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MATERIALIDADES SONORAS: Música, cinema e espaço. COORDENAÇÃO: José Cláudio S. Castanheira (UFSC)

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Academic year: 2021

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MATERIALIDADES SONORAS: Música, cinema e espaço

COORDENAÇÃO: José Cláudio S. Castanheira (UFSC)

S U M Á R I O

Resumo da mesa ... 01

I

A superfície da música: afetos, modelos, protocolos de escuta... José Cláudio S. Castanheira

02

II

Políticas sônicas: Sonoridades, espaços e violência em práticas culturais.... urbanas

Pedro Silva Marra

13

III

Representações da discofilia e seus significados em filmes do Cinema... Moderno francês dos anos 50 e 60

Luiza Alvim

27 Resumo da mesa

O objetivo geral desta mesa é aprofundar a análise de alguns objetos no campo da música e do som por um viés material. Entendemos que determinadas situações dentro da riqueza de experiências proporcionadas pelos diferentes aspectos materiais do som e de seus suportes e dispositivos de reprodução escapam a certas perspectivas de cunho interpretativo. Apesar da abstração hermenêutica proposta por disciplinas como a musicologia, não há como dissociar a música de sua base material. Sendo assim, toda experiência musical torna-se única e não repetível. O discurso tecnológico que sustenta as diferentes mudanças de formatos e formas de audição pressupõe uma homogeneização e, sobretudo, uma hierarquização dessas experiências. A experiência estética da música – entendendo-se como musicais os mais diferentes sons possíveis e disponíveis atualmente – pressupõe algo mais profundo que um exercício arquitetural de formas preestabelecidas. Também vai além da proposição de novas formas de organização desse material, entendendo-se que esse é um exercício intelectual e que formas sempre cedem espaço umas às outras. Nossa preocupação é, em parte, com o que transcende o apenas racional. A experiência sonora é violenta, no sentido de que ocupa espaços, atinge corpos e contamina nossos próprios mecanismos de percepção. Ela conforma a escuta. Sendo assim, toda e qualquer noção de forma musical é posterior à própria geração de modelos e protocolos de escuta. No embate entre esses modelos e a abstração de ideias embutidas nas formas musicais constroem-se afetos, certezas e incertezas. Os trabalhos desta mesa propõem uma mirada mais detida sobre alguns desses aspectos.

Palavras-chave: Materialidades, Tecnologias de som, Modelos de escuta, Cinema, Música.

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-I-

A SUPERFÍCIE DA MÚSICA1

afetos, modelos, protocolos de escuta

José Cláudio S. Castanheira2 Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, SC.

Resumo: Em toda tecnologia de reprodução sonora encontram-se, cristalizadas, maneiras de se reportar não apenas à mídia ela mesma, mas ao próprio objeto para o qual ela se coloca como veículo. Uma das formas mais comuns de se relacionar com os aparatos sonoros cotidianos é a de encarar o som produzido pelos mesmos como parte natural de uma ecologia sonora mais ampla. Dessa forma, sons mecânicos e/ou digitais são tomados como referências a partir das quais qualquer outro material sonoro/musical é avaliado. Este trabalho procura fazer uma análise inicial dessas relações afetivas com a materialidade dos dispositivos musicais, especialmente a partir de fenômenos como a revalorização de mídias analógicas como o vinil e o cassete, da reedição de catálogos antigos e da própria reeducação sonora que surge como efeito secundário no processo.

Palavras-chave: Tecnologias musicais, modelos de escuta, afetos, protocolos de escuta, audiofilia.

Introdução

Em toda tecnologia de reprodução sonora encontram-se, cristalizadas, maneiras de se reportar não apenas à mídia que serve de suporte ao som em si, mas a este próprio de uma forma peculiar. O que queremos dizer com isso? Quando atribuímos qualidades específicas a um som, algumas com um viés tecnicista mais evidente – fidelidade, definição etc. –, outras demonstrando óbvias relações afetivas – “calor”, “natural”, “artificial” etc. –, estamos parcialmente deslocando uma série de características físicas e/ou materiais de um lado dessa relação som/mídia para o outro. Sons não são fiéis ou “naturais” a não ser que lhes atribuamos essas facetas por algum motivo. Estamos aqui menos preocupados com a exposição dessas

1 Trabalho integrante da Mesa Materialidades sonoras: Música, cinema e espaço, apresentada durante o VII

Musicom – Encontro de Pesquisadores em Comunicação e Música, realizado no período de 09 a 11 de agosto de 2017, na Universidade Federal de Minas Gerais – UFMG..

2 Professor e coordenador do curso de cinema da Universidade Federal de Santa Catarina. Pesquisador nas áreas de cinema, música e cibercultura. E-mail: j.castanheira@ufsc.br.

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qualidades do que com a descrição das idiossincrasias na relação material e cultural entre o objeto e o ambiente em que circula. Esse ambiente é pautado por condicionantes tecnológicos, mas, antes disso, por um amálgama de fatores que se entrecruzam, definindo de modo característico cada um desses arranjos midiáticos a cada momento histórico.

Procuraremos aqui explorar, em um primeiro momento, um conceito um tanto quanto subestimado apesar do extenso universo em que transita: sonoridade. A sonoridade é tomada pelo senso popular às vezes como um sinônimo de “som”, genericamente falando, às vezes como um tipo específico de som: um som “agradável”, um som “desagradável” etc. Referimo-nos às particularidades de determinados instrumentos musicais como possuidores de uma sonoridade especifica. Nesse sentido, sonoridade não apontaria para um elemento apenas mas para um grupo deles que, conjuntamente, criariam uma “atmosfera” audível específica de algo, alguém ou algum lugar. A partir dessa visão mais imediatista podemos inferir pelo menos três formas de analisar a sonoridade: A) pelas características físicas do som; B) pelas características estéticas do som; C) pelas características técnicas do som. Cada uma dessas formas nos fornece um viés em singular e nem sempre concordarão uma com a outra.

Após a análise mais atenta dessas formas, procuraremos estabelecer o vínculo entre um discurso tecnocientífico historicamente construído acerca do som e a padronização/naturalização de determinados tipos de escuta. Por fim, pensaremos o lugar de certas práticas ou comportamentos como o colecionismo e a audiofilia dentro de um cenário mais atual de consumo musical.

Sonoridades

Se pensarmos o aspecto físico como determinante, o que áreas como a acústica tendem a fazer, tomamos o som como um aglomerado de frequências, com diferentes amplitudes, produzindo diferentes efeitos a cada uma de suas infinitas combinações. Pode-se ainda considerar, de um modo mais sofisticado, o universo reverberante constitutivo de cada espaço como modelador do som final que se ouve. O som “implicado” (EVENS, 2005) é o fundo sobre o qual o material audível se destaca em um movimento contínuo de crescimento e decrescimento de energia. O conjunto de frequências presentes nos diversos espaços funciona em um processo constante de entropia. O som percebido é pensado como “sinal”, descolado do “ruído” de fundo. Essa é uma visão influenciada pelo modelo matemático da informação

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de Shannon e Weaver (1964), em que o sinal precisa ser separado do ruído para que a comunicação seja efetiva e inequívoca. Evens, um pouco mais flexível, nos diz que é o ruído que produz a especificidade do som “explicado”. A “expressão” está presente no choque e na troca mútua de energias entre objeto produtor do som e ambiente sonoro. Diferentes espaços constroem diferentes sons. O inaudível (ruído) é imprescindível nessa tarefa.

Podemos trabalhar, igualmente, a ideia de ruído não apenas como o que não se ouve, mas também como aquilo que não se deseja ouvir. O ruído é o indesejado, o que transtorna a experiência do som. Esse vai ser um argumento importante para pensarmos a abordagem tecnicista de sonoridade.

O segundo viés mencionado foi o estético. Em uma primeira leitura, podemos pensar essa aproximação como uma diferença entre sons “bonitos” e sons “feios”. Uma premissa fundamental para a proposição de Hegel sobre a filosofia da arte é o domínio do belo. Esse belo não seria o belo natural, mas aquele produzido pelo humano: “[...] só é belo o que possui expressão artística, o que é criação do espírito, e que só enquanto relacionado com o espírito ao natural se pode atribuir beleza” (HEGEL, 2009, p. 5). Essa já é uma mudança considerável em relação ao foco da atenção dada à sonoridade pelas ciências duras. Aqui não cabe analisar o objeto como independente de um crivo humano. Muito embora esse crivo não se proponha a mudar nenhuma das leis da ciência, certamente esses condicionantes físicos são atenuados ou distanciados por uma série de convenções (conscientes ou inconscientes) do que seria uma sonoridade bela ou não. A ideia de “belo” (agradável, perfeito etc.) é quase inevitável no discurso cotidiano uma vez que determinados conjuntos de sons invariavelmente provocam reações emocionais. O critério do que estaria mais para um lado ou para outro pode ser pensado de forma subjetiva ou cultural, mas ainda assim é um critério importante para o reconhecimento desses sons em diferentes contextos culturais.

A sonologia é um campo multidisciplinar de estudo do som que tem como um de seus objetos principais a música. A perspectiva da sonologia, porém, leva em conta tanto os aspectos tecnológicos da produção de som quanto as questões estéticas advindas daí. O fato de a sonologia ter origem em um laboratório de investigação tecnológica da empresa Philips em meados dos anos 1950 deixa evidente como a ciência e o estudo do som haviam se tornado inseparáveis. Com a criação de um estúdio de música eletrônica dentro desse mesmo laboratório em 1956, os campos da música e da tecnologia se integram definitivamente. As experiências prévias na música concreta por Pierre Schaeffer, entre outros, foram parcialmente responsáveis pela transição do ato de criar música como uma atividade subjetiva

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e baseada no domínio de um código musical específico para algo menos restrito, vinculado a um domínio amplo do conhecimento científico e das novas tecnologias. A máquina é entendida, assim, como copartícipe das sonoridades possíveis. A resposta sonora em execuções musicais também está atrelada, pelas perspectivas mais conservadoras, à própria fabricação dos instrumentos musicais, pensando-se em termos de material utilizado e de técnicas mais artesanais. A noção de timbre incorpora, além dessas questões, outras relacionadas à performance, como dinâmica, execução etc. Porém, com o advento da música concreta e da música eletroacústica, a mediação técnica passou a representar uma grande parte do resultado sonoro. Isso nos leva ao terceiro viés na produção de sonoridades.

A questão técnica, como pudemos observar até agora, não pode ser evitada em nenhum dos momentos de produção sonora (incluindo-se aí os sons sem destinação musical específica). Historicamente, o campo do som talvez seja um dos que mais tenha se pautado por um perfeccionismo tecnicista. Claro que esse tipo de visão esteve presente, também de forma potente, no caso das imagens (tanto as fotográficas quanto as cinematográficas). O registro sonoro, contudo, desde cedo foi orientado pela necessidade de uma paridade entre o objeto sonoro original e sua reprodução. A distinção entre a função do som mecanicamente registrado e a da imagem filmada pode ser vista nos primeiros teóricos do cinema. Bela Balázs (1970) afirma convicto que o som gravado é uma reprodução fiel do som inicial enquanto a imagem estaria sujeita a uma intervenção criativa do fotógrafo. Assim, não se diferenciaria um som do outro (uma vez que ambos habitam o mesmo espaço físico) enquanto nas imagens a própria condição bidimensional e sem cores da imagem projetada (nas primeiras décadas) deixaria claro que se tratavam de coisas distintas.

É célebre a experiência de Edison com seus Tone Tests, em que realizava apresentações em diferentes teatros colocando à prova a capacidade da plateia de diferenciar uma execução mecânica – via fonógrafo – de uma canção e sua apresentação ao vivo – com um cantor ou cantora presente no palco. Os cartazes anunciavam “and no one could tell the difference”.3 O palco permanecia na penumbra para dificultar o arbítrio visual do público. O resultado esperado era o de realmente confundir a todos. O próprio Edison chamava suas gravações de “recriações” das canções. A mediação dos aparatos é vista, dessa forma, como transparente, sem oferecer distorções perceptíveis. Ao mesmo tempo, a busca pela perfeição técnica aparentemente não teria mais fim. O custo de criar a sensação de estar presente ao evento sonoro original era o de buscar eternamente o aperfeiçoamento técnico. Claro que, por

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si só, essa condição já mostra que gravações mecânicas não eram tão fiéis quando se imaginava, uma vez que precisavam periodicamente passar por uma atualização. De fato, o que era revisto constantemente era a própria noção de realismo.

A busca do constante desenvolvimento tecnológico jamais abandonou as práticas de registro sonoro. A mesma argumentação a respeito do som mais realista pode ser encontrada na mudança do modelo analógico para o digital. Dessa vez, apesar da mediação ainda mais intensa, o digital passa a ser considerado como aquela experiência mais próxima do contato imediato com um universo sonoro natural. A tentativa de exclusão radical do ruído também ajudou a reforçar a ideia de som como sinal – um elemento devidamente delimitado por parâmetros científicos objetivos. A identificação do som digital com um ambiente moderno, preciso e, paradoxalmente, mais próximo da experiência natural, também foi importante na naturalização de uma paisagem sonora contemporânea específica.

Naturalização da escuta

Nos primeiros anos da mudança generalizada do modelo analógico para o digital, com pesados investimentos da indústria de eletrônicos na criação de soluções domésticas que substituíssem os obsoletos toca-discos ou tape-decks, o caráter “limpo” ou “cristalino” do som de CDs ou DVDs era constantemente ressaltado. Desde a propaganda de TVs a cabo até os anúncios de equipamentos de som ou mesmo os slogans de gravadoras e de fabricantes de mídias, o que se destacava era a superioridade de uma sonoridade em relação à outra. Sons digitais eram tecnicamente superiores porque não apresentavam ruídos e porque não se desgastavam como LPs ou cassetes. O novo objeto de consumo era mais caro – para compensar a maior facilidade de se fazer cópias ilegais – e, talvez por isso, tão desejado.

Ao mesmo tempo, parte dos profissionais e ouvintes mais experientes levantaram-se contra o que eles julgavam ser um som “pobre”. A precariedade dos processos de digitalização dos catálogos antigos de discos produzia uma grande quantidade de “traduções sonoras” muito aquém dos originais. A limitação do padrão Red Book CD-DA, da Sony e da Philips, não dava conta da sonoridade construída através de décadas por dispositivos analógicos. A digitalização dos títulos musicais gravados em fitas magnéticas de diferentes bitolas para uma estrutura binária, a partir de uma frequência de amostragem de 44.1 kHz e uma quantização de 16 bits, eliminava do material convertido muitos elementos menos óbvios. Sobretons, frequências fora do espectro audível “humano” ou mesmo resquícios dos

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ruídos advindos dos processos de gravação eram parcialmente ou totalmente ignorados. Esses elementos, entretanto, sempre fizeram parte do material sonoro consumido largamente e, mesmo não sendo conscientemente percebidos, ajudaram a definir uma audibilidade específica de algumas gerações. Essa audibilidade era agora confrontada com outra “filosofia” do audível. O rigor com que a lógica digital selecionava o que era descartado e o que era aproveitado era muito maior. Não que os dispositivos analógicos também não exercessem sua função de “curadoria” sobre o tipo de som possível, mas o acaso fazia parte do repertório da escuta desse modelo. O acaso, no modelo digital, é algo a ser evitado enfaticamente: ele é um erro. Tanto é que o involuntário em sons analógicos pode ser traduzido como um elemento de mesma natureza, ou seja, também um som: uma fita amassada, um disco arranhado etc. Estes provocam distorções na execução, mas não deixam de ser elementos audíveis. O erro digital é simplesmente desconsiderado pelo conversor digital-analógico (D-A) e não é ouvido. A falha analógica está impressa no suporte e esse suporte é a origem do som reproduzido. Dessa forma, ouvimos o som apenas porque ouvimos o suporte. No digital, o suporte é tão somente uma estrutura invisível para um conteúdo lógico a ser traduzido.

A materialidade dos suportes analógicos faz parte, portanto, da experiência sonora, ajudando a compor um conjunto de sons facilmente identificáveis dentro de uma cultura de escuta específica. Registros sonoros fazem parte e determinam uma paisagem sonora específica que mantém com os ouvintes uma relação tanto afetiva quanto racional.

Tecnologias digitais, apesar de sua preocupação em limitar (ou eliminar) o papel do suporte físico sobre a experiência sonora, também constroem paisagens sonoras específicas a partir das características de seus sons. A crítica que o CD recebeu dos ouvintes mais refinados parte, claro, de uma limitação da tecnologia em desenvolvimento, mas parte também de uma incapacidade de entender como natural um tipo de som que não é aquele com o qual se conviveu desde sempre. A educação auditiva é dada pela relação do ouvinte não apenas com determinados sons, mas também com as diferentes tecnologias que gravam e reproduzem esses sons. O desenho de uma paisagem sonora específica leva em conta, dessa forma, aspectos afetivos suscitados pelos sons, mas também aspectos técnicos. Schafer (1997) enfatiza as relações culturais e subjetivas que determinados sons cultivam nas diferentes sociedades ao longo do tempo. Em sua obra, a dimensão tecnológica também tem um papel definidor de muitas dessas relações. Muito embora o autor não tenha uma opinião muito simpática aos efeitos que certas tecnologias causaram à paisagem sonora mundial, seria

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simplesmente muito ingênuo não as entender como conformadoras daquilo que podemos ouvir e de como o fazemos.

Identificamos uma paisagem sonora própria em cada conjunto de aparatos e ela nos parece natural e adequada. A adequação diz respeito, obviamente, ao repertório de coisas a serem ouvidas de que dispomos. Pouco sentido faz um som que não esteja de alguma forma inserido em nosso cotidiano, em nossas práticas. O caráter “natural” é também uma construção subjetiva que pouco diz além da intimidade que temos ou deixamos de ter com determinado som. Ao falar “som”, nós quase podemos substituir o termo por “tecnologia”, como como se fossem indistintos. Não são, claro, mas quando nos referimos a um som “natural”, “agradável”, “sem peso” ou “quente” queremos falar não apenas do objeto gravado, mas da maneira como ele está sendo reproduzido: através de que objetos técnicos. Esses sons, e a sua forma específica de serem ouvidos, fazem parte dessa paisagem sonora mais ampla e são tomados como referências a partir das quais qualquer outro material sonoro/musical será avaliado. Apesar da consolidação de um rígido e influente discurso tecnocientífico em vários momentos da história dos dispositivos sonoros, os processos através dos quais as sonoridades são percebidas, aceitas ou não pelos diversos tipos de ouvintes são de uma ordem muito mais afetiva do que necessariamente técnica.

Discurso tecnocientífico

Ao se tomar determinada ecologia sonora como “natural”, definimos parâmetros para avaliar se outros sons se aproximam ou se distanciam dessa pretensa “natureza”. Da mesma forma, estipulamos protocolos de relacionamento com sons e dispositivos,4 musicais ou não. Aspectos como atenção, tempo, local adequado, horários etc. são conformados para dar conta de nossas diferentes práticas culturais e, ao mesmo tempo, constroem uma noção subjetiva de tecnologia. Assim, o caráter pessoal de cada modo de uso recai sobre os aparelhos de que dispomos e dá-lhes uma feição que é quase a de uma reafirmação dos nossos sentidos. Usar determinadas tecnologias de som é também uma forma de investigar o mundo sonoro através de extensões protéticas que, se não substituem nosso sensorium integralmente, ajudam a formatá-lo. O repertório dos dispositivos é muito aproximadamente o nosso próprio, sendo difícil classificar ou aceitar tranquilamente qualquer sonoridade que fuja do mesmo.

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Como já dissemos, esse repertório está em constante mudança. Há um diálogo sempre inacabado entre o que tecnologias nos permitem e aquilo que desejamos que elas o façam. Como no exemplo dos Tone Tests de Edison, pode haver uma incerteza sobre se realmente a plateia era convencida de que as performances (humana e maquínica) eram idênticas, mas está claro que a intenção era a de que houvesse, de fato, uma indistinção entre as duas.

Noções como fidelidade nascem da relação material entre som gravado e suporte, mas também do desencantamento com as ideias metafísicas inicialmente suscitadas pelas tecnologias de registro sonoro. Em um primeiro momento, o deslocamento da voz de seu corpo original para um suporte separado significava uma cisão do próprio humano. O elemento subjetivo mais revelador dos mistérios de cada um tornava-se, assim, disponível para uma escuta pública e mundana. É famoso o assombro dos periódicos de época, afirmando que, com o fonógrafo de Edison, as vozes dos cantores famosos já falecidos continuariam presentes, prontas para serem reouvidas. Importante, também, o efeito de redimensionamento do espaço e do tempo que modernidades como o rádio e o telefone produziram. O manifesto La Radia, de Marinetti e Masnata (1933), afirma que uma inevitável nova forma de arte, a partir da transmissão de sons à distância, deveria provocar a

Imensificação do espaço Não mais visível nem emoldurável a cena torna-se universal e cósmica [...] Uma arte sem tempo nem espaço sem ontem e sem amanhã A possibilidade de captar estações transmitindo em diversos fusos horários e a ausência de luz destruirão as horas do dia e da noite A captação e amplificação da luz e das vozes do passado com válvulas termiônicas destruirão o tempo (MARINETTI, F. T.; MASNATA, Pino, 1933, sem paginação. Pontuação como o original)

Por mais que a dimensão técnica do registro sonoro atendesse a um projeto específico de determinadas atividades emergentes, como o cinema e a indústria fonográfica, ela também representou um desligamento de dimensões mais subjetivas na fruição de sons, consolidando formas mais claras de descrição, catalogação e hierarquização de sons. A comodificação do som, na forma de cilindros e discos, acenou com a possibilidade de formação de coleções pessoais e de acesso a essas gravações de forma mais imediata. O som agora era palpável e à disposição de todos.

Como objeto de colecionadores, o som gravado torna-se ainda mais indistinto de sua base material. Afinal, não se arquivam ondas sonoras, mas os suportes que as abrigam. Junto com o suporte, houve toda uma necessidade de procedimentos de rotulagem desses objetos sonoros (GITELMAN, 1999). Categorias como gênero musical, cantor, gravadora etc. são definidas a partir da necessidade de especificar cada tipo de gravação e de se facilitar a comercialização desse produto.

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Ao mesmo tempo em que a base material das gravações as afasta de uma dimensão mística e transitória, ela também propicia novas relações estéticas e econômicas ao transformar sons em objetos de consumo. Como mercadorias de grande circulação, as gravações sujeitaram-se a uma cadeia de produção rigidamente estruturada e bastante lucrativa. As Big Three, grupo de empresas do ramo fonográfico que dominavam o mercado estadunidense na primeira década do século XX (formado pela Victor Talking Machine Company, Edison e pela Columbia), aderiram ao sistema de manufatura com partes intercambiáveis na linha de montagem de suas talking machines. A atuação do grupo não se limitava à gravação de músicas, mas também incluía a fabricação e comercialização de fonógrafos e gramofones dos mais variados modelos. Elas dominavam uma cadeia que ia desde o estúdio até o comércio varejista, em uma estrutura integrada verticalmente.

A audiofilia, o colecionismo ou mesmo a nostalgia tecnológica, comuns em vários momentos (inclusive hoje em dia), podem ser pensados como respostas afetivas a um modo de organização da produção musical que subestimou, possivelmente, especificidades das experiências musicais em função de uma homogeneização de modelos e/ou protocolos de escuta. Noções como a de fidelidade ou de aperfeiçoamento tecnológico ainda permanecem vivos mesmo dentro dessas atividades subculturais, mas refletem, no fundo, uma padronização da ideia de sonoridade imposta por um determinado percurso dentro da história das gravações.

A revalorização de mídias analógicas como o vinil e o cassete, hoje em dia, são reflexo dessas culturas de nicho e de uma certa resistência a um modelo que ignora as relações materiais presentes na experiência sonora. A reedição de catálogos antigos e a defesa de um processo quase artesanal na produção dos novos LPs – com ênfase na gramatura, na preservação do material impresso original etc. – parecem, em um primeiro momento, uma reação a um sistema capitalista baseado em práticas massivas onde a própria ação de ouvir importaria menos do que a quantidade de músicas disponíveis. Apesar de serviços de

streaming como Spotify e congêneres apresentarem significativos aumentos de assinaturas

nos últimos anos, o mercado de vinil também vem crescendo, justificando, inclusive, o investimento na fabricação de novas prensas. A produção recente ainda depende das velhas máquinas das antigas gravadoras, recuperadas e adaptadas às novas demandas. Entretanto, novas fábricas vêm sendo inauguradas em vários países. Trata-se de um fenômeno mundial.

Se esse movimento pode ser considerado apenas um modismo ou se nele podemos ver o germe de uma reeducação sonora, ainda é cedo para se dizer. Mas há nesse renascimento de

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antigas mídias uma flexibilização, talvez, do relacionamento até hoje muito coercitivo entre mercado, dispositivos e formas de ouvir.

Conclusão

A utopia tecnológica do pós-Guerra ajudou a construir imaginários não apenas sobre o futuro da sociedade como um todo, mas também sobre o próprio objetivo dos dispositivos de produção e execução musical. A música, então, renascia a partir da disponibilidade e da legitimação de novos materiais sonoros só possíveis com o estabelecimento de novas tecnologias de som. Acompanham essas mudanças reconfigurações sociais, culturais e cognitivas. A música concreta e todos aqueles que, de uma forma ou de outra, foram influenciados por ela, reconheceu a potência da dimensão material dos aparatos na produção de diferentes sonoridades. Isso implica, inevitavelmente, na criação de novos modelos de escuta.

O que ficou claro desde então foi não só a importância das tecnologias na construção de sons, mas a maneira como as diferentes corporeidades compõem esses sons. Os corpos aqui referidos não são aqueles de carne e osso tão somente, mas igualmente os suportes sobre os quais se inscrevem os sons e através dos quais eles são ouvidos. Esse sistema em que todos os atores têm igual importância, funciona a partir do tensionamento dessas diferentes materialidades. É daí que nascem e se consolidam práticas e modos de se conhecer auditivamente o mundo.

REFERÊNCIAS

BALÁZS, Béla. Theory of the film: character and growth of a new art. London: Dennis Dobson Ltd, 1970.

EVENS, Aden. Sound ideas: music, machines and experience. Minneapolis: University of Minnesota Press, 2005.

GITELMAN, Lisa. Scripts, grooves, and writing machines: representing technology in the Edison Era. Stanford: Stanford University Press, 1999.

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MARINETTI, F. T.; MASNATA, Pino. La Radia (1933). Disponível em: <http://www.futurismo.altervista.org/manifesti/radia.htm>. Acesso em 20 jul. 2014.

MILLARD, Andre. America on record: A history of recorded sound. New York: Cambridge University Press, 2005

RUNES, Dagobert R. The diary and observations of Thomas Alva Edison. New York: Philosophical Library, 1976.

SCHAEFFER, Pierre. Traité des objets musicaux. Paris: Éditions du Seuil, 1966.

SCHAFER, R. Murray. A afinação do mundo. São Paulo: UNESP, 1997.

SHANNON, Claude; WEAVER, Warren. The mathematical theory of communication. Champaign: The University of Illinois Press, 1964.

WALTENBERG, Lucas Laender. De partituras a aplicativos móveis: novas convenções do formato “álbum de música” na cultura digital. Tese de doutorado. Niterói: Universidade Federal Fluminense – Instituto de Arte e Comunicação Social, 2016.

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-II-

POLÍTICAS SÔNICAS5

Sonoridades, espaços e violência em práticas culturais urbanas

Pedro Silva Marra6 Universidade Federal do Espírito Santo, Vitória, ES.

Resumo: Este trabalho explora as relações entre sonoridades, espaços e violência no contexto de práticas culturais urbanas tais como o esporte, a sociabilidade em bares e restaurantes e manifestações e protestos políticos. O artigo busca compreender como as relações de poder, nestes contextos, se materializam por meio de disputas sônicas que impactam os corpos dos agentes envolvidos em tais confrontos e assimetrias no nível do corpo. Ao final, o texto elabora questões a investigar acerca da legitimidade destas dinâmicas violentas ressaltando as formas como explicitam o exercício do poder no campo somático

Palavras-chave: Cultura Urbana, espaço, esporte, sonoridades e violência.

Introdução

Este trabalho explora as relações entre sonoridades, espaços e violência. Tomo como ponto de partida a ideia de que os sons possuem massa e tamanho (DAUGHTRY, 2014) e a relaciono a uma noção de violência como qualquer ato de ocupação de espaços por corpos contra a resistência de outros corpos (GUMBRECHT, 2010) a fim de evidenciar uma perspectiva teórico-metodológica que ajude a compreender o emprego de vibrações sônicas para a realização de certas práticas culturais. Por meio da voz, música e outros ruídos, agentes ocupam os espaços urbanos e com isso marcam a presença dos grupos sociais a que pertencem nestes lugares públicos. Assim, assumimos a violência como um aspecto sempre presente na atividade humana: se há nestas dinâmicas uma questão ética, esta é a de uma correspondência entre as formas e amplitudes dos atos violentos e as opressões e assimetrias contra as quais se insurgem.

5 Trabalho integrante da Mesa Materialidades sonoras: Música, cinema e espaço, apresentada durante o VII

Musicom – Encontro de Pesquisadores em Comunicação e Música, realizado no período de 09 a 11 de agosto de 2017, na Universidade Federal de Minas Gerais – UFMG.

6 Professor do Departamento de Comunicação Social da Universidade Federal do Espírito Santo. Coordenador do grupo de pesquisa Fazer com Sons: Técnicas Sônicas, práticas sócio-culturais e territorialidades urbanas. Email: pedromarra@gmail.com

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Nestes processos, a materialidade acústica dos sons empregados toma a frente por três motivos principais. Em primeiro lugar, empregam sensorialidades extremas que privilegiam aspectos drásticos, somáticos e hápticos do som em detrimento de sua dimensão simbólica e cognitiva. Em segundo lugar, as diferentes formas de manipulação do material sonoro delimitam identidades diversas que por vezes estão em conflito e outras em acordo. Finalmente, é na interação entre tais sonoridades diversas que se pode vislumbrar as formas como se chocam, rivalizam ou entram em acordo diferentes posições ideológicas. Tais dinâmicas tem um caráter político na medida em que marcam dissensos entre grupos rivais e disputas em torno da constituição de fronteiras físicas e simbólicas entre territórios distintos.

A fim de demonstrar a aplicabilidade da perspectiva teórico-metodológica que aqui delineio, volto a escuta para três fenômenos sociais objetos de pesquisas que já desenvolvi e que no momento começo a investigar: sonoridades do cotidiano da cidade; o torcer em estádios de futebol e protestos e manifestações políticas no espaço público. Nestes três contextos, procuramos observar como diferentes materiais sônicos são manipulados por seus usuários a fim de ocupar o espaço e, assim, afetar aqueles que estão presentes em sua área de abrangência de forma a fazê-los vibrar numa mesma freqüência. Desenvolve-se, assim, uma dinâmica de violência sonora em que diferentes corpos são “obrigados” a entrar em consonância.

Som, ocupação de espaços e violência:

Você está acompanhando a partida decisiva de sua equipe de futebol do coração contra seu arquirrival no estádio de futebol. As arquibancadas estão lotadas de torcedores que compartilham contigo a paixão pelo mesmo time e a multidão canta a plenos pulmões o hino do clube. A intensidade, tamanho e peso desta sonoridade impacta seu corpo de forma que você se sente compelido a também entoar a canção, apesar de sua vergonha por não saber a letra completamente, ou pela sua desafinação. Mas a força da voz coletiva do estádio é grande o bastante para lhe tirar de sua relação de ouvinte de música e arrastar-lhe para parte do coro que preenche o espaço do estádio.

Enquanto isso, em campo, o seu time mantém a posse de bola no campo de ataque e troca passes buscando penetrar a defesa adversária. Uma tabela entre o lateral e o meio de campo posicionado entre as linhas defensivas do oponente abre espaço na defesa e o jogador da ponta penetra a área sem marcação. A torcida – da qual você faz parte – vibra intensamente

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com a possibilidade de gol que se oferece. Na cobertura, o zagueiro adversário aparece para tentar cortar a jogada. No entanto, derruba o atleta da equipe para a qual você torce na linha que limita a área. As arquibancadas urram, pedindo o pênalti, mas o árbitro marca apenas falta.

Indignada, a multidão presente urra de maneira muito intensa: “Ei juiz, vai tomar no cu!” Você também está nervoso com a decisão da arbitragem e – da mesma forma como anteriormente embarcara no hino do clube – se sente compelido a ecoar também a ofensa, apesar de seu cunho homofóbico. Após uma breve hesitação, você cede ao peso e intensidade do grito que toma as arquibancadas e engrossa o coro. Alguns instantes depois do incidente, você se dá conta de que acabara de participar de uma manifestação de preconceito que em outros contextos combateria. Para contrapor-se à culpa, lembra-se da infância e das vezes em que se viu envolto em jocosidades masculinas nas quais, em tom de brincadeira, insultou amigos – e foi por eles insultado – com palavrões e xingamentos heteronormativos que reprovavam práticas ligadas pelo senso comum à homossexualidade.

A narrativa acima – que não descreve um acontecimento futebolístico específico, muito embora apresente um alto nível de verossimilhança – contém elementos de violência em pelo menos duas instâncias. A primeira e mais óbvia está no xingamento proferido pela multidão presente na arquibancada. Há aqui uma certa ambiguidade neste ato agressivo: de um lado, encontramos a violência simbólica da reprodução da heteronormatividade em um palavrão que atribui sentidos negativos à práticas eróticas ligadas, no senso comum, à homossexualidade masculina; de outro, há a indignação dos torcedores contra uma injustiça esportiva que se realiza na disputa – violência legítima, portanto, do oprimido que se volta contra o opressor com os recursos a sua mão ou voz no momento, jogando com os repertórios simbólicos dominantes nas práticas culturais em que se insere. Afinal, é conhecido e tratado por diversos estudos (ALABARCES, 2014; GASTALDO, 2006; MARRA, 2016) a importância das performances masculinas nas práticas torcedoras, que muitas vezes manifestam-se por meio de insultos e jocosidades de alta carga heteronormativa.

No entanto, neste artigo, pretendo voltar a atenção para uma outra dimensão em que a violência aqui se apresenta. A narrativa destaca, em diversos momentos a forma como o torcedor se sente compelido a ecoar e embarcar em certas sonoridades entoadas ou acessadas pela multidão presente no estádio, mesmo que esta atitude vá de encontro às suas vontades, disposições, ideologias ou auto-censura. Nestas ocasiões de sonoridade extrema, suportado por dezenas de milhares de vozes, o peso, presença e tamanho do grito da torcida parece

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forçar o torcedor a entrar em sintonia com os demais presentes no espetáculo esportivo. Hans Ulrich Gumbrecht argumenta que um tipo específico de violência é um dos elementos de certos esportes que parecem ser uma das fontes do fascínio que produzem em seus expectadores. Segundo o autor, o Rugby e o Futebol Americano incorporaram em suas regras e dinâmicas de disputa certos movimentos que envolvem o choque entre os corpus dos adversários, de forma que os atletas bloqueiam-se. Quando uma jogada desta natureza se concretiza de maneira bem sucedida, os torcedores vibram intensamente, ao presenciar uma forma prevista pelo jogo e esperada pelos expectadores, mas que se realiza apenas em um momento para logo em seguida se esvair. Nestas ocasiões, segundo Gumbrecht, estaríamos diante de uma experiência estética no contexto esportivo, ainda que o evento que catalise tal epifania esteja embebido em violência. Neste sentido, o autor toma como ponto de partida uma definição que

ao invés de alegar que a violência é ubíqua, na maioria das vezes mal vinda mas usualmente um fenômeno puramente espiritual (como por exemplo o uso do conceito por Michel Foucault sugere), destacará o suposto “escândalo da agressividade física” sem confirmar, por outro lado, a associação frequente entre violência e comportamento criminoso (em outras palavras: minha definição implica que, em certas condições, a violência pode ser perfeitamente legítima e até mesmo útil). Proponho chamar “violência” todos os atos e formas de comportamento que ocupam ou bloqueiam espaços por meio de corpos, contra a resistência de outros corpos. (GUMBRECHT, 2010, pág. 69)

Na narrativa aqui apresentada, torna-se claro de que maneira as sonoridades participam de dinâmicas violentas, nesta acepção oferecida por Gumbrecht. Em primeiro lugar, destacamos que os sons emitidos pela torcida ocupam de maneira intrusiva o espaço do estádio de futebol. Eles o colonizam e ali produzem um lugar propício para a prática esportiva, inclusive delineando certos movimentos, táticas e posicionamentos da equipe, como demonstrei em minha tese de doutorado (MARRA, 2016). No mesmo trabalho, explorei a forma como o canto de uma torcida, quando muito intenso e ecoado pelo restante das arquibancadas, também bloqueia os gritos de outras torcidas que, sob o risco de não serem mais escutadas adotam as sonoridades que dominam o território do campo de futebol. Trava-se, nestes contextos, uma disputa sônica em que diversas identidades coletivas tornam-se presentes por meio de diferentes formas de manipular materiais acústicos comuns ou divergentes, em dinâmicas de enfrentamento e consonância, nos quais os grupos que soam expõem suas semelhanças e disparidades. Finalmente, destaco esta força aparentemente irresistível de uma música, palavra de ordem ou outro som emitido e replicado por dezenas de

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milhares de pessoas em forçar ecoar ou mover em sincronia a ele os corpos mais obstinados em resistir a suas potências sedutoras.

Ao estudar as relações entre sonoridades e violência no contexto da Guerra do Iraque, Martin Daughtry (2014) destaca que os sons possuem tamanho, peso e direcionalidade e que por isso, ocupam espaço. Seu tamanho equivale à área em que é possível escutá-lo – e neste sentido, vibrações acústicas costumam ser muito maiores do que suas fontes. Além disso, tal envergadura apresenta um caráter dinâmico, na medida em que varia ao longo do tempo, de acordo com seu movimento de surgir e esvair. Seu peso corresponde às sensações táteis que as vibrações sonoras produzem sobre os corpos ouvintes. Enquanto a voz de uma única pessoa não possui a capacidade de produzir um impacto perceptível sobre a pele, uma multidão vociferando a mesma palavra de ordem, ou sonoridades muito graves e intensas, têm a capacidade de realizar tal feito. Nestes contextos, fica clara a natureza mecânica do mundo audível, de movimento de um corpo que encontra ressonância em outro. Finalmente, a direcionalidade diz respeito ao sentido em que movimenta-se o som. Vibrações acústicas podem ser muito direcionais, alvejando de maneira direta um ouvinte que o escuta de forma clara. Por outro lado, elas também se voltam em direção à sua fonte, o que confere a todos os sons uma certa omnidirecionalidade.

Tais propriedades do mundo audível acentuam-se em sonoridades extremas, que contam com altos níveis de intensidade, frequências extremamente graves ou agudas, ritmos muito acelerados ou cadenciados, andamentos muito lentos ou rápidos, etc. Nestas situações de hiper-sensorialidade, toma a frente o caráter de força dos sons em detrimento de seus aspectos sígnicos: as vibrações, desta forma, passam a agir diretamente sobre os corpos ao invés de remeter a sua fonte ou aos códigos culturais a que costumam se associar. No plano da recepção, acentuam-se seus aspectos drásticos – ou seja de afecção – em detrimento de sua cognição – ou seja a capacidade do ouvinte de interpretá-los ou de criar narrativas a partir daquilo que escuta. Nas palavras de Daughtry, tais condições extremas “apontam para o fato de que a riqueza semântica do som – sua dimensão inteligível, interpretável – pode por vezes ser comprometida, se não erradicada, por sua presença material devastadora” (DAUGHTRY, 2014, pág. 32).

Tal impacto sônico sobre os corpos é por diversas vezes irresistível: ainda que a escuta possa ser treinada para fazer o corpo reagir ou resistir a tais seduções, estamos, necessariamente a todo tempo sob a ação de um campo vibracional que constantemente força nossos corpos a mover em simpatia, como lembra Daughtry. É neste caminho também que

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Tim Ingold (2007) afirma que não escutamos aos sons, mas ouvimos nos sons, já que estes não são o objeto, mas o meio da percepção auditiva. Desta forma, o aspecto imersivo deste sentido toma a frente, o que não só destaca a importância da escuta na atribuição de significados aos lugares, mas sobretudo mostra como esta produção de significação envolve uma afinação no nível somático dos indivíduos às ressonâncias, reverberações e ecos que vibram no espaço em nível individual ou coletivo (HELMREICH, 2007). Assim, “confinamento de lugar, em resumo é uma forma de surdez” (INGOLD, 2007, pág. 12) na medida em que para não ser arrastado pela massa sonora deslocada por uma sonoridade intensamente afetiva, é necessário encontrar uma âncora, realizar algum esforço para permanecer imóvel. Reforça-se, portanto uma íntima conexão entre os corpos e os ambientes em que estão imersos, por meio de técnicas corporais que permitem deixar-se embalar ou resistir a tal sincronia. Estas dinâmicas afetivas do sonoro impregnam a memória corporal dos indivíduos, e possuem a capacidade, por exemplo, de engatilhar traumas que remetem a experiências passadas. Portanto, afirmo em consonância com Daughtry que “o som coloniza territórios acústicos, incluindo o território ressoante do corpo” (DAUGHTRY, 2014, pág. 33).

Hipersensorialidade, culturas urbanas e zonas de (in)audição:

O que configura uma situação sonora extrema? Estamos falando apenas de ocasiões em que bombas explodem a uma curta distância, sirenes de aviso soam avisando um ataque, tiros passam a centímetros de distância, ou que veículos pesados e blindados passam nas proximidades? Ou incluímos nesta categoria toda uma gama de situações de hipersensorialidade presentes no cotidiano das grandes cidades, tais como exposição a música em níveis de intensidade muito altos, ruído de trânsito de veículos automotores, mares de vozes incessantemente a conversar, gritar pregões, palavras de ordem, entre outros enunciados? Toda uma tradição de estudos acerca da urbanidade moderna, que remontam aos trabalhos pioneiros do sociólogo alemão Georg Simmel, permitem responder positivamente à nossa segunda pergunta. Afinal, a cidade configura-se como lugar atravessado por multiplicidades de atores, forças econômicas, sociais e culturais que reverberam sua presença no espaço urbano por meio de sonoridades que se harmonizam, sincronizam ou se contrapõem e assim partilham, loteiam ou disputam ruas, avenidas, calçadas e praças. A resultante desta miríade de sons simultâneos é um ambiente ruidoso e intenso, capaz de produzir níveis de stress físico consideráveis.

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Algumas dinâmicas culturais urbanas, inclusive, produzem um estado de disputa semelhante ao de uma guerra, ao empregar e confrontar sonoridades de forma bastante intensa e assim produzir o que poderíamos chamar de trincheiras sônicas7. Em outra ocasião, trabalhei, em conjunto com o companheiro de pesquisa Luiz Henrique Assis Garcia (GARCIA e MARRA, 2016), o uso de música ao vivo e reproduzida por autofalantes localizados em bares, restaurantes e cafés com fins a criar um ambiente propício para as práticas de sociabilidade que ali acontecem e ao mesmo tempo ampliar a área do estabelecimento comercial de forma a anexar ao local as calçadas adjacentes. Neste estudo, realizamos trabalho de campo na região da Praça da Savassi, em Belo Horizonte, onde reformas urbanas fecharam as ruas e estabeleceram um largo passeio ocupado pelos bares da região com mesas onde atendem os clientes. Então, verificamos como os espaços de diversão noturna posicionavam suas caixas de som nas marquises ou solo de suas edificações a fim de produzir respectivamente lugares mais propícios à conversa – com música em níveis mais baixos – ou para a prática do “aquecimento” para a noite, na qual grupos de amigos se encontram para beber e escutar música alta em preparação para um programa mais tarde, seja um show ou dançar em uma boate.

Como estes bares localizam-se um na vizinhança do outro, a prática constitui topografias audíveis, com fronteiras invisíveis mas reais e que são possíveis de atravessar a pé. Ainda assim, durante o trabalho de campo realizado, foi possível estar na área de ocupação sônica de um bar e não ser importunado pelas sonoridades que vinham dos outros estabelecimentos: o espaço de um mantinha-se individualizado e loteado em relação aos vizinhos. A situação começou a alterar-se em meados de 2016: novos bares e restaurantes inauguraram e também passaram a utilizar o recurso de tocar música em grandes níveis de intensidade, seja ao vivo ou por reprodução mecânica a fim de ampliar para o calçadão o seu espaço físico. Na última vez em que estive presente no local, em meados do mês de maio de 2017, a situação havia se consolidado e agravado. Num domingo a tarde, bares e restaurantes tocavam, intensamente, uma banda de pagode ao vivo, os comentários preliminares a uma transmissão ao vivo pela TV da partida de futebol final do Campeonato Mineiro 2017, música pop contemporânea e Música Popular Brasileira. Desta maneira, digladiavam-se e disputavam clientes por meio de um som que resultava infernal, produto das emissões vindas de estabelecimentos vizinhos de porta ou um a frente do outro. A dinâmica parecia espantar os

7 Agradeço o insight pelo termo ao colega de pesquisa Luiz Henrique Assis Garcia, que o sugeriu enquanto elaborávamos uma proposta de trabalho não submetida a um evento acadêmico.

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clientes – como fizera comigo mesmo que fui almoçar em outro lugar – já que grande parte das mesas encontrava-se vazia.

Agora, em nenhum ponto da praça era possível individualizar um bar ou restaurante. De todos os pontos era possível escutar os outros estabelecimentos comerciais de forma que os pedestres encontravam-se em meio a uma espécie de “fogo cruzado sonoro”, alvejados por sonoridades que buscavam seduzí-los a entrar e nele permanecer. O resultado, no entanto, era o oposto pois a disputa intensa que ali se estabelecia acabava por espantá-los do espaço público, na medida em que a ocupação sônica do lugar impactava seus corpos com uma massa audível intensa, desconexa e divergente, por isso disruptiva, produzindo uma região onde tudo se escuta, mas pouco se distingue.

Este relato aponta para a discussão empreendida por Martin Daughtry acerca das zonas de (in)audição em tempos de guerra. O antropólogo americano propõe 4 regiões em que modos de escuta diferentes estabelecem o “grau de atenção que as pessoas davam aos sons de armas” (DAUGHTRY, 2015, pág. 76). O limite para tais zonas apresenta diversas variáveis, entre elas técnicas de audição que habilitavam seus usuários a ignorar, identificar ou realçar certas sonoridades; recursos tecnológicos disponíveis para abafar ruídos próximos ou possibilitar comunicação a distância; o tempo passado em território em guerra; posições sociais e culturais; mas sobretudo a proximidade à fonte sonora. Mais distante do ouvinte, encontra-se a zona da audibilidade inaudível. Trata-se de uma região em que as intensas sonoridades do combate encontram-se a uma distância segura, de tal forma que são percebidas como fundo, porém estão longe o bastante para não representar perigo para o ouvinte ou para pessoas que lhe são próximas. Nesta área, o ouvinte se permite abstrair dos sons ao fundo pois dedicar a atenção a omnipresença das sonoridades de explosão e tiros poderia ocasionar uma experiência por demais exaustiva para aqueles que se encontram em zonas de conflito.

Em seguida, Daughtry estabelece a zona narrativa, na qual os sons do conflito se aproximam, estimulando a imaginação do ouvinte que começa a interpretá-los como sinais ou indícios da localização de certas armas em particular. A distância, contudo, ainda oferece um grau de segurança grande o bastante para permitir a quem está aí contar a história de uma batalha que não é vista a partir da dedução da posição dos elementos envolvidos no confronto que se oferece à audição. Mais próxima, está a zona tática, na qual o combate se aproxima de tal forma que o risco de ser alvejado se torna real e iminente. “Quando o tiroteio estava próximo, a riqueza e detalhe das narrativas auditivas colapsam nas mais curtas avaliações táticas: corra neste sentido; atire naquela direção” (DAUGHTRY, 2015, pág. 88). Nesta

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região, os aspectos cognitivos do som começam a ruir em favor de suas qualidades drásticas, para que a escuta volte sua atenção à predição do perigo por vir. A situação configura um estado de sobrecarga sensória na qual os corpos devem tomar decisões imediatas face a novos estímulos audiovisuais que bombardeiam os sentidos de maneira ininterrupta e que dificultam a manutenção de um estado de alerta em uma experiência que já adentra o campo do háptico. Finalmente, encontramos a zona do trauma, no qual estes estados corporais atingem o seu limite. Quando o corpo é alvejado, ou uma bomba explode a centímetros de distância, o som o atinge como força e pode produzir paralisia, concussões, tinitus e surdez definitiva ou temporária. “No coração da zona do trauma físico, quando alguém é exposto a detonação próxima de uma bomba improvisada ou outro instrumento explosivo, a distinção entre o som da explosão e sua força destrutiva se desfaz completamente” (DAUGHTRY, 2015, p. 94).

Martin Daughtry estabelece suas zonas de (in)audição com base no trabalho de campo realizado na Guerra do Iraque. O autor destaca que apesar destas regiões apresentarem uma forte semelhança com as dinâmicas sonoras do cotidiano urbano – sobretudo pelo jogo que se dá entre a sensibilização e dessensibilização do pedestre aos altos níveis de intensidade do ruído da cidade – haveria um dilema ético no contexto da guerra que o diferenciaria do dia a dia nas grandes cidades. Daughtry destaca que a armadura acústica necessária para a configuração da zona de audibilidade inaudível pressupõe um vácuo ético no qual o ouvinte deve suspender preocupações humanitárias com relação àqueles que se encontram na região onde o combate efetivamente se realiza. Tal suspensão é possível pois o indivíduo que se encontra distante da batalha sabe que ali não se encontra um ente querido ou próximo. Este fato realça o aspecto relacional das zonas de (in)audição que variam não só com os aspectos sônicos do ambiente e distância em relação aos sons, mas também à posição e envolvimento social, cultural e afetivo de quem escuta. De toda maneira, “esta é uma das formas sutis a partir das quais o som belifônico paulatinamente desumaniza seus ouvintes: eles devem criar uma zona de audibilidade inaudível a fim de sobreviver, mas ao fazê-lo, se movem em direção a um espaço eticamente empobrecido, um mundo de surdez ética” (DAUGHTRY, 2015, pág. 80).

Apesar de compreender as especificidades colocadas por Daughtry a respeito das condições sônicas no campo de batalha, acreditamos que as sonoridades dos espaços urbanos – sobretudo em regiões periféricas do globo, onde as contradições econômicas e sociais do capitalismo se acentuam e exibem de maneira mais clara – e as técnicas de escuta utilizadas para viver aí também colocam certos outros dilemas éticos que configuram diferentes zonas

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de (in)audibilidade, baseadas em outras distâncias do ouvinte em relação à fonte e até mesmo em níveis de intensidade sonora diversas. Ao caminhar pela região central de uma grande cidade brasileira, sobretudo em contexto de crise econômica, o pedestre se vê obrigado, constantemente, a ignorar pedidos de auxílio de diversas ordens emitidos por outros transeuntes ou moradores de rua. Não é que o passante não escute, mas que prefere “fazer-se de surdo” para evitar o constrangimento de negar ajuda. Configura-se então uma zona de audibilidade inaudível em outros termos: composta pela proximidade à fonte e por sons muitas vezes balbuciados e menos intensos do que os outros que o circundam e que com ele competem. No processo, o pedestre se vê obrigado a abrir mão de uma possível empatia com o outro indivíduo que pede auxílio. Incluir o pedinte na zona de audibilidade inaudível pode também evitar que esta região configure-se em uma zona de trauma – também reconfigurada em outros níveis de intensidade sônica: o pedido de auxílio pode rapidamente transformar-se em uma abordagem de assalto que, por sua vez, tem a potência de engatilhar na memória experiências de violência urbana passadas a partir de um som pouco intenso, no nível da voz. Desta forma, na cidade, assim como na guerra, torna-se necessário – ainda que em outros termos – um certo grau de “surdez ética” para que se mantenha a segurança pessoal, os níveis de stress e a sanidade mental controlados. Observa-se também de que forma relações de poder se expressam, expõem, configuram e negociam a partir das sonoridades, de sua ocupação do espaço urbano e das zonas de (in)audibilidades que aí se estabelecem, produzindo políticas sônicas que atuam na dimensão da partilha do sensível, da afetividade e do individual.

Não é intenção deste trabalho mapear as zonas de (in)audibilidade em contextos urbanos. Esta tarefa não só necessitaria um maior volume de estudos de campo, mas também se mostraria exaustiva e talvez inexeqüível porque situada e limitada a cada cidade onde a pesquisa se desenvolve. De toda forma, os estudos que já realizamos acerca das sonoridades da cidade, indicam que boa parte da experiência auditiva no espaço público das ruas, calçadas e praças se dá em uma zona tática, na qual o pedestre ao mesmo tempo ignora os sons intensos mais distantes e foca a atenção nos de sua proximidade a fim de tomar decisões imediatas com vistas a guiar-se pelo espaço, evitar acidentes ou até mesmo inserir-se sonoramente no lugar. Retomando o caso da Praça da Savassi e seus bares guerreando em torno da preferência dos pedestres por meio do som, imagine um grupo de amigos que por ventura decidiu-se por sentar no epicentro ruidoso do lugar. Eles se dispõem na mesa de forma a posicionarem-se próximos daqueles com quem possuem mais interesse de conversar no momento. Regularmente, se levantam e trocam de lugar para interagir com os outros

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presentes. Também posicionam suas cabeças em ângulos específicos de forma a direcionar seus ouvidos para captar a voz daqueles com quem conversam. E assim, mantêm-se corporalmente e situacionalmente alertas ou desatentos à miríade de sons de intensidades diferentes que os bombardeiam, tomando decisões no momento a fim de manter a interação ativa e inserir-se numa sonoridade densa muito ocupada; imersos em um ambiente de hipersensorialidade, repleto de forças intensas que podem arrastá-los e tirá-los da sociabilidade que em princípio intencionavam. Parodiando Ingold, confinamento de lugar é também audição seletiva.

Uma outra situação urbana que evidencia estas zonas táticas são os protestos e manifestações políticas que ocupam ruas e avenidas em determinadas mobilizações sociais acerca de temas candentes, tais como os mega eventos que aconteceram no país entre 2013 e 2016, o impeachment da Presidenta eleita Dilma Rouseff, reforma da Previdência Social, entre outros. Desde junho de 2013, iniciei trabalhos de campo exploratórios – primeiramente na cidade de Belo Horizonte e agora em Vitória no Espírito Santo – a fim de tatear estudos acerca das sonoridades destas estratégias de ação organizadas por grupos populares e Movimentos Sociais. Neste estágio da pesquisa, chama a atenção como a presença e voz daqueles que acompanham a marcha é disputada, ao longo de sua duração, por diferentes lideranças que participam de sua organização, bem como por outros grupos militantes e ativistas que também a integram. Esta disputa manifesta-se a partir do emprego e manipulação de sons como ritmos e melodias, canções, gritos de guerra, bordões, entre outros, em dinâmicas que levam em conta não só a intensidade das sonoridades acessadas e a proximidade dos ouvintes com relação à sua fonte, mas também a sequência dos repertórios sônicos acessados.

Estas manifestações e protestos políticos organizam-se, usualmente, em torno de marchas puxadas por um ou mais carros de som nos quais localizam-se lideranças dos movimentos sociais que a convocam entoando palavras de ordem, bordões e canções. O público mobilizado envolve não só militantes associados ao movimentos que convocam a manifestação, mas também membros da sociedade civil, pedestres e sobretudo outros grupos de ativistas posicionados na proximidade político-ideológica da abordagem ao tema em questão que dá razão ao protesto, mas nem sempre completamente alinhados às diretrizes de quem convocou a marcha. Usualmente, estes coletivos divergentes trazem consigo seus próprios conjuntos musicais, munidos sobretudo de instrumentos de percussão, por vezes formal, por vezes improvisados com latões de tinta ou galões de plástico e localizam-se a uma

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distância tal em que o som vindo dos autofalantes que conduzem o protesto não sejam capazes de bloquear as sonoridade da banda – o que atrapalharia sua própria performance sônica – mas que também permaneçam audíveis, ainda que ao fundo.

A dinâmica sonora se constitui de tal forma que os grupos instrumentais algumas vezes ecoam aquilo que toca o carro de som a frente do protesto e em outros momentos contrapõem-se àqueles que convocaram a manifestação. Esta divergência pode se dar a partir de repertórios sonoros completamente diferentes, utilizando respostas ao que o grupo contrário propõe, ou ainda apropriando-se do material sônico de forma a recombiná-lo e formar uma outra mensagem. Assim, por vezes observamos os grupos disputarem a adesão dos presentes por meio de ritmos e melodias muito similares sobre os quais canta-se letras, bordões ou palavras de ordem muito diferentes, mas que soam de maneira similar. Esta abordagem permite confundir os manifestantes que se vêem repetindo, por aproximação, conteúdos ideológicos com os quais muitas vezes não estão completamente de acordo. No processo, os grupos em disputa na manifestação vêem seu tamanho crescer ou diminuir. A dinâmica relatada constitui zonas táticas nas quais os manifestantes e grupos de militantes se vêem bombardeados por repertórios sonoros diferentes e tomam suas decisões imediatas a respeito daquilo que pretendem ecoar baseados não só em conteúdos ideológicos, mas também na intensidade dos sons, na proximidade física das fontes e no volume de atores que neles embarcam. Estabelece-se, portanto, uma disputa sônica na qual muitas vezes importa mais o senso de oportunidade daqueles que soam do que o conteúdo político dos bordões, versos ou palavras de ordem. Por vezes, um grito ou canção “pega” a multidão de maneira mais eficiente pela forma como é manipulado do que por sua capacidade de sintetizar um argumento ou transmitir uma mensagem. Assim, as disputas ideológicas dentro de uma manifestação se expressam de maneira audível em performances políticas sônicas que aproximam o manifestante do performer ou do artista popular do improviso.

Considerações Finais: breve nota acerca da legitimidade da violência por meios acústicos

Percebemos ao longo do trabalho, a partir dos exemplos abordados, uma contradição entre formas de violência e de sedução a partir do emprego do som: por vezes um corpo impede a ação de outro por meio de formas de bloqueio, por outras, tais barreiras exercem uma força, convencendo no nível somático os indivíduos a ecoarem ou moverem-se em

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direções que talvez não tomariam em outras circunstâncias. Tal ambigüidade deste uso das sonoridades traz a tona uma discussão acerca da legitimidade de atos violentos. Quando a ação de um corpo em atrapalhar a agencia de outro se justifica? Até que ponto tais sonoridades que colonizam o espaço materializam disputas baseadas em relações assimétricas de poder? Em síntese, em que medida tais dinâmicas de ocupação do espaço por meio de som são imperialistas?

Ao explorar os critérios que definem a violência revolucionária, Hardt e Negri (2009) levantam as seguintes questões: que armas e estratégias são mais efetivas para se conquistar a vitória? Quais armas são mais benéficas para a constituição da multidão? Importante lembrar que os autores estão interessados em compreender as mutações pelas quais o capitalismo contemporâneo reinventa as formas de exploração do trabalho de muitos em benefício de uma classe restrita a fim de buscar formas de vislumbrar possibilidades de transformações estruturais latentes no próprio sistema econômico vigente e que possibilitem a emergência de novas formas de organização social – a qual eles denominam multidão – caracterizadas por uma democracia de cunho mais direto, na qual os agentes possuam maiores possibilidades de realizar seus desejos e potências. Neste contexto, toma-se como pressuposto que a violência legítima é aquela a partir da qual o oprimido se volta contra o opressor. Contudo, nem toda violência legítima seria revolucionária e, por isso, necessária.

Enquanto alguns dos casos levantados neste trabalho pareçam claramente ilegítimos – a guerra sonora travada entre bares em um espaço público – ou legítimos – as disputas sonoras realizadas no interior de uma manifestação política – outros transitam ambiguamente em uma zona cinzenta na qual são compreensíveis os termos utilizados na ação violenta, embora o sentido da agência não pareça justificável: a torcida que xinga palavrões heteronormativos face a uma marcação equivocada da arbitragem em uma partida de futebol; um morador de rua que pede ajuda aos pedestres em tom de ameaça. Apesar de não conseguir elaborar uma resposta cabal e definitiva sobre estes exemplos, creio que eles são importantes na medida em que permitem perceber as formas como relações de poder se estruturam não só no nível dos recursos materiais indispensáveis à vida, ou naquele campo mais espiritual das disputas simbólicas. A política também reverbera no plano do somático ao impactar os corpos com assimetrias sensíveis e estéticas em torno da ocupação do espaço em contraposição à resistência de outros atores sociais.

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REFERÊNCIAS

ALABARCES, Pablo. Héroes, machos y patriotas: el fútbol entre la violência y los médios. Buenos Aires: Aguilar, 2014.

DAUGHTRY, Martin. Thanatosonics: ontologies of acoustic violence. Social Text, v. 119, 32, n. 2, p. 25-51, 2014.

__________________. Listening to War: Sound, music, trauma and survival in wartime iraq. Oxford university Press, 2015.

GARCIA, Luis Henrique Assis; MARRA, Pedro Silva. Praças polifônicas: o som e a música popular como tecnologias de comunicação no espaço urbano. Revista Famecos – Mídia, cultura e tecnologia, Porto Alegre, v. 23, n. 1, p. 1-24, jan./abr. 2016.

GASTALDO, Édison. Futebol e performances de gênero: notas etnográficas sobre as relações jocosas futebolísticas. 30o ENCONTRO ANUAL DA ANPOCS, Anais..., 2006.

GUMBRECHT, Hans Ulrich. Is there anything wrong with violence? About the beauty of rugby and Amrican Footbal. Philia&Filia, vol 1, n.2, jul./dez., 2010

HARDT, Michael; NEGRI, Antônio. Commomnwealth. Cambridge: The Belknap Press of Havard University Press, 2009.

HELMREICH, Stefan. An anthropologist underwater: imersive soundscapes, submarines cyborgs and transductive ethnography. American Ethnologist, v. 34, n. 4, p. 621-641, nov. 2007.

INGOLD, Tim. Against soudscape. In: CARLYLE, A. Autumn leaves. Paris: Double Entendre, 2007, p. 10-13.

MARRA, Pedro Silva. Vou Ficar de Arquibancada pra sentir mais emoção: Técnicas Sônicas nas dinâmicas de produção de partidas de futebol do Clube Atlético Mineiro. Tese de doutorado apresentada no Programa de Pós Graduação em Comunicação Social da Universidade Federal Fluminense, 2016.

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