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REPRESENTAÇÕES DA DISCOFILIA E SEUS SIGNIFICADOS EM FILMES DO CINEMA MODERNO FRANCÊS DOS ANOS 50 E 60

2.2 Música clássica e erudição

Os discos com repertório clássico preexistente costumam estar nos filmes como marcas da erudição dos personagens, caso dos melômanos de Chabrol, como os ricos burgueses Paul, de Os primos (Les cousins), e também Ronald e Henri, de Les godelureaux (1961), do amante vivido também por Jean-Claude Brialy no curta-metragem de Jacques Rivette, O truque do pastor, assim como dos melômanos “mais proletários” de Godard em

Acossado (À bout de souffle) e em Masculino Feminino.

Em A distinção, Bourdieu (2007) observava que as preferências pelas peças de arte eruditas dependiam mais do nível de instrução (entendido como algo adquirido da educação familiar ou escolar; já o autodidatismo de um Antoine Doinel seria considerado, nesse panorama, uma “cultura livre ilegítima”) do que apenas da origem social. Por outro lado,

12 Surgida durante a Ocupação, a JMF atingiu o record de afiliados em 1957. Ela oferecia um ecletismo musical, indo do clássico ao contemporâneo, jazz e música de cinema, com o objetivo de dar acesso à música a um grande público de ouvintes jovens (PORCILE, 2001).

quando as outras variáveis são semelhantes, Bourdieu percebe uma influência da origem social, com uma correspondência entre a hierarquia de gêneros (musicais, por exemplo) e a hierarquia social13.

Além disso, Maisonneuve (2009) observa que, na Europa, desde muito cedo no século XX, o fonógrafo foi direcionado a um uso “culto”, diferentemente dos Estados Unidos da América, onde ele foi associado, no início, ao “entretenimento” e, só progressivamente, houve uma mudança nas práticas em direção também à escuta de um repertório considerado erudito.

Em três dos filmes citados, Os primos (1958), Les godelureaux (1961) e O truque do

pastor – os dois primeiros, de Chabrol -, o mesmo ator Jean-Claude Brialy faz um

personagem de “dandy-esteta”, remetendo à figura do amigo e co-roteirista da Chabrol, Paul Gégauff.

Apesar de Chabrol ser amante de ópera, é provável que se deva a Gégauff a seleção de música preexistente germanófila, principalmente wagneriana, nos discos que o personagem Paul coloca para tocar diegeticamente em Os primos. Usar música de Wagner naquela época era uma ousadia, mas Chabrol queria alertar para a presença do Nazi-fascismo entre estudantes de Direito da Sorbonne, como o personagem Paul (MARDORE, 1962, p.9). Austin (1999) considera também que a germanofilia do filme é uma referência ao fascismo do próprio Gégauff, embora Chabrol tenha tentado afastar essa conexão (Mardore, 1962, p.9), atribuindo as atitudes do amigo (como vestir-se de oficial alemão) ao seu anarquismo.

Em outra entrevista, Chabrol disse: “o lado ‘germânico’ vem do fato de que sou muito sensível à guerra e a toda atmosfera do ‘romantismo alemão’, que, ao mesmo tempo, me seduzem e me inquietam” (CHABROL, 1962, p.7). Lecompte (2014, p.555) considera que Chabrol utiliza a música de Wagner no filme consciente dessa “ambiguidade mesma do personagem [Paul], misturando esteticismo (beleza musical) com a provocação (paródia da conotação fascista)”. Por exemplo, quando o primo Charles entra no apartamento de Paul pela primeira vez, ele está ouvindo a Marcha Fúnebre da ópera de Wagner Crepúsculo dos

Deuses. Como observa Lecompte (2014), essa música é premonitória do final trágico do

filme, além de ter sido utilizada em anúncios radiofônicos e em atualidades cinematográficas da UFA de mortes de personalidades do nazismo.

Logo depois que Charles entra no apartamento e cumprimenta Paul, a música para de repente, mostrando a ambiguidade entre seu caráter diegético e extradiegético, embora os discos sejam efetivamente vistos em outros momentos do filme e postos em marcha por Paul

13 O estudo de Bourdieu foi feito a partir de um questionário aplicado em 1963 e em 1967-1968, na França. Apesar das críticas que possamos fazer, a época e o contexto local correspondem ao dos filmes aqui analisados.

em seu toca-discos. Um desses momentos é durante a primeira festa de Paul no apartamento. Ele pergunta aos presentes se querem ouvir música, recusa a sugestão de “música dançante” e destaca a sua presumida superioridade cultural, anunciando “Mozart” e colocando o primeiro movimento da Sinfonia n.40 em sol menor do compositor, após cujo início dá o seu julgamento de valor: Wunderbar (“Maravilhoso”, em alemão).

Embora seja sinfônica e não programática, a música de Mozart evoca o gênero operístico, principalmente, a trilogia com Lozenzo da Ponte, cheia de intrigas amorosas. Pois vemos, durante o Allegro de Mozart, várias sugestões galantes entre os convivas e o momento de destaque: a chegada de Florence, antiga namorada de Paul, em quem Charles está interessado, a alegria deste e o olhar ciumento de Paul.

Paul é sempre quem manipula o toca-discos e ele impõe seus gostos musicais aos convidados. Anuncia, então, que vai trocar Mozart por Wagner (“Mozart, fini. Maintenant,

Wagner”: “Mozart, terminado. Agora, Wagner”). Em meio a vaias das pessoas presentes (uma

rejeição a Wagner e à germanofilia de Paul ou ao gênero de música? A resistência a Wagner já tinha sido demonstrada quando, depois de Paul anunciar que vai colocar música, um dos rapazes lhe pede: “De la musique, pas de Wagner!”, “Música, sim, Wagner, não!”), a iluminação é diminuída, Paul aparece com um quepe nazista e segurando um candelabro aceso. Ele passa por entre os convidados recitando um poema em alemão, enquanto ouvimos o Prelúdio da ópera Tristão e Isolda de Wagner, e chega até o lugar em que Charles beija Florence justamente quando diz a palavra Liebe (“amor” em alemão).

Perto do final do filme, mais uma vez, Paul coloca um disco durante uma festa que dá no apartamento justamente na véspera dos exames de Charles na faculdade. Ouvimos, então, a

Cavalgada das Valquírias. Florence, pivô da dificuldade de Charles de se concentrar nos

estudos (uma Valquíria que vem buscar seu guerreiro antecipadamente?), entra no quarto do rapaz e tenta, em vão, convencê-lo a se divertir.

O caráter manipulador (do toca-discos e como um traço de sua personalidade) de Paul será reforçado no final do filme, quando se torna, sem querer, um assassino ao som do

Liebestod (morte de amor) da ópera Tristão e Isolda. Em grande desespero, Charles fizera

roleta-russa na cabeça de Paul à noite e desiste depois de duas tentativas. No dia seguinte, começamos a ouvir a música sobre a imagem de Charles adormecido e logo vemos Paul no quarto (por isso é de se pensar que ele tenha colocado o disco). Charles morre quando Paul, brincando e não sabendo que o revólver estava carregado, atira.

No último plano do filme, a ambiguidade entre extradiegético e diegético é desfeita ao vermos, finalmente, o toca-discos, sobre o qual vem a palavra “Fim, justamente, quando a agulha volta à posição inicial ao término do disco. Como observa Lecompte (2014, p.549), “De tanto brincar [ou “fazer tocar”], ele [Paul] acaba matando. E a morte, tal qual uma ceremônia fortuita, ocorre durante a música”.

“Godelureau”, em definição de dicionário, significa um homem jovem de comportamento afetado que se diverte em seduzir mulheres. Seria a definição mais apropriada para o personagem Ronald do filme de Chabrol, mas se refere também aos jovens Arthur e Ambroisine que, sob influência de Ronald, divertem-se de maneira inconsequente. Há, porém, uma distinção de classe social clara entre os três: Ronald é muito rico e vive num apartamento próprio com um serviçal; Arthur é de família abastada, mas depende do dinheiro do tio; Ambroisine é proletária e se diverte com os outros dois em ambientes bem diferentes dos que normalmente frequentaria.

Por exemplo, Ronald leva Arthur e Ambroisine para um almoço na casa do rico primo Henri com a mãe e a noiva dele. Após a saída da noiva, em seu quarto, diante do toca-discos e demonstrando erudição, Henri pergunta aos três o que gostariam de ouvir: “Massenet, Gounod, Léo Délibes, Rimsky-Korsakoff...?”. Decidindo-se por este último, fica alguns momentos em êxtase, “regendo” a peça, como bom melômano. Ambrosine começa seu número de sedução, pedindo a Henri que se sente ao lado dela e tire os óculos. Então, Henri começa a emitir, junto com a moça, um zumbido, evocando a peça O voo do besouro de Rimsky-Korsakoff, que ouviremos na sequência.

Ronald foi para a o salão de baixo e joga damas com a tia, que reclama do alto volume da música, ao que Ronald responde: “Tudo isso para Rimsky-Korsakoff”. Depois, passamos a ouvir O voo do besouro, enquanto, como um besouro, a câmera passeia pelo quarto de Henri, mostrando seu violino até chegar Henri e Ambroisine em beijos e gemidos. A escolha dessa peça musical reforça o aspecto cômico da sequência.

Diversos trechos de peças orquestrais de Couperin (L´Apothéose de Lully e L´Impériale) estão em O truque do pastor como música extradiegética. No entanto, Rivette mostra que Couperin também é uma referência de seus personagens, quando o dandy vivido por Jean-Claude Brialy e amante da protagonista coloca na vitrola o disco com Les jeunes seigneurs.

Em A linha de demarcação14 (La ligne de démarcation, 1966), drama de guerra de

Chabrol, a música clássica preexistente simboliza a cultura de um médico resistente francês em meio à ignorância dos nazistas, numa inversão do mito do “alemão melômano” (LECOMPTE, 2014). Tarde da noite, o médico ouve15 o Allegro do Concerto para clarineta

em fá menor do compositor romântico alemão Carl Maria von Weber, quando entra o policial

nazista. Ele pergunta ao médico: “Schumann?”, confirmando ao espectador que a música é diegética. O médido responde “Villeneuve”, ao que o policial apenas murmura em total desconhecimento.

Com a resposta absurda, além de ridicularizar os nazistas alemães, como observara Lecompte (2014), o médico francês também faz referências a ações de resistentes franceses (em 1942, o resistente Robert Schuman, homônimo do compositor alemão, fugiu de uma prisão nazista na Alemanha e passou pela Linha de Demarcação, chegando à França não ocupada) e ao próprio traçado da Linha (na cidade de Villeneuve-sur-Allier). Há também um jogo intertextual com o restante da obra de Chabrol, pois o policial nazista é interpretado, com fingido sotaque alemão, por Jean-Louis Maury, ator bastante empregado por Chabrol em papeis de homens grosseiros.

Os discos também fazem parte das referências eruditas de jovens personagens de Godard, intelectualizados, mas não necessariamente ricos: por exemplo, a estudante americana Patricia (Jean Seberg) de Acossado (1960), em oposição aos gostos mais populares de Michel (Jean-Paul Belmondo). Em seu quarto de hotel, encontramos muitas referências da alta cultura: reproduções de Picasso e de Renoir, um disco de Chopin, que ela coloca para tocar. Ela olha para a capa de outro disco, fala “Bach” e, numa afirmação de sua erudição, diz que “conhece todos de cor”.

No final do filme, Patricia coloca no toca-discos o Concerto para clarineta K622 de Mozart. Já acostumada com os gostos musicais de Michel por canções, Patricia lhe pergunta se a música o incomoda. Ele lhe responde que não, pois o pai havia sido clarinetista (embora, neste momento do filme, ouçamos apenas a introdução orquestral do Allegro). É, portanto, uma razão bastante pessoal que move a simpatia de Michel pela peça. Na manhã seguinte, enquanto Patricia o denuncia à polícia, Michel está adormecido sobre a mesa, ao som do solo de clarineta do terceiro movimento, o Rondó.

14 A linha de demarcação foi estabelecida em 22 de junho de 1940, separando França ocupada ao norte e a França dita livre ao sul.

Se, em Acossado, as demonstrações de erudição vêm da personagem feminina, em

Masculino feminino (1966), elas pertencem ao personagem masculino Paul, a quem, dessa

vez, o Allegro do Concerto para clarineta K622 de Mozart é associado de forma extradiegética. Também ouvimos o Adagio do concerto de forma diegética: Paul o coloca para tocar para Catherine, amiga de sua amada Madeleine. Como verdadeiro melômano, Paul chama a atenção de Catherine para trechos da música (ça va venir, “vai chegar”, referindo-se ao solo da clarineta) e qualifica a orquestra (fantastique).

Apesar de não deixar de fazer referência ao Michel de Acossado por conta da presença do solo da clarineta, diferentemente dele, se aqui há oposição entre alta e baixa cultura, Paul está mais próximo à primeira. Com efeito, Madeleine, é, tal qual sua intérprete Chantal Goya, uma jovem cantora yé-yé16. Ela reclama, antes de Paul colocar o disco, que eles vão ouvir une

musique barbare – “bárbara”, no sentido de estrangeira ao seu gênero musical - , embora, ao

final do filme, diga numa entrevista que gosta de Jean-Sebastian Bach, que não é incompatível com sua própria música.

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