Santo Tomás de Aquino
Comentário a
Tessalonicenses
Edição bilíngüe
Tradução:Tiago Gadotti
Comentário a Tessalonicenses, Santo Tomás de Aquino © Editora Concreta, 2015
Título original:
Super I Epistolam B. Pauli ad Thessalonicenses lectura Super II Epistolam B. Pauli ad Thessalonicenses lectura
O texto latino utilizado nesta obra é o mesmo publicado no website Corpus Thomisticum da Fundación Tomás de Aquino (www.corpusthomisticum.org). Este texto está baseado na
edição Marietti de 1954, transcrita por Roberto Busa S.J. e revisada por Enrique Alarcón.
© 2015 FUNDACIÓN TOMÁSDE AQUINO, PAMP LONA (ESPANHA). REP RODUZIDOCOMAUTORIZAÇÃODOTITULAR.
Os direitos desta edição pertencem à EDIT ORA CONCRETA
Rua Barão do Gravataí, 342, portaria – Bairro Menino Deus – CEP: 90050-330 Porto Alegre – RS – Telefone: (51) 9916-1877 – e-mail: contato@editoraconcreta.com.br
EDIT OR:
Renan Martins dos Santos COORDENADOR EDIT ORIAL:
Sidney Silveira TRADUÇÃO:
Tiago Gadotti REVISÃO:
Carlos Nougué CAPA & DIAGRAMAÇÃO:
Hugo de Santa Cruz DESENVOLVIMENT O DE EBOOK
Loope – design e publicações digitais www.loope.com.br
FICHA CATALOGRÁFICA
Tomás, de Aquino, Santo, 1225?-1274
T655c Comentário a Tessalonicenses / tradução de Tiago Gadotti, edição de Renan Santos. – Porto Alegre, RS: Concreta, 2015.
ISBN: 978-85-68962-04-6
1. Teologia. 2. Filosofia. 3. Filosofia medieval. 4. Metafisica. 5. Cristianismo. 6. Catolicismo. 7. Espiritualidade. I. Título.
CDD-230.2 Reservados todos os direitos desta obra. Proibida toda e qualquer
reprodução desta edição por qualquer meio ou forma, seja ela eletrônica ou mecânica, fotocópia, gravação ou qualquer meio.
F
COLEÇÃO ESCOLÁSTICA
oram características marcantes do período escolástico a elevação da dialética a um cume jamais superado – antes ou depois, na história da filosofia –, o notável apuro na definição de termos e conceitos, a clareza expositiva na apresentação das teses, o extremo rigor lógico nas demonstrações, o caráter sistêmico das obras, a classificação das ciências a partir de um viés metafísico e, por fim, a existência duma abóboda teológica que demarcava a latitude e a longitude dos problemas esmiuçados pela razão humana, os quais abarcavam todos os hemisférios da ordem do ser: da materia
prima a Deus.
O leitor familiarizado com textos de grandes autores escolásticos, como Santo Tomás de Aquino, Duns Scot, Santo Alberto Magno e outros, estranha ao deparar com obras de períodos posteriores, pois identifica perdas de cunho metodológico que transformaram a filosofia num enorme mosaico de idéias esparzidas a esmo, nos piores casos, ou concatenadas a partir de princípios dúbios, nos melhores. A confissão de Edmund Husserl ao discípulo Eugen Fink de que, se pudesse, voltaria no tempo para recomeçar o seu edifício fenomenológico serve como sombrio dístico do período moderno e pós-moderno: o apartamento entre filosofia e sabedoria – entendida como arquitetura em ordem ao conhecimento das coisas mais elevadas – acabou por gerar inúmeras obras malogradas, mesmo quando nelas havia insights brilhantes.
Constatamos isto em Descartes, Malebranche, Espinoza, Kant, Hegel, Schopenhauer, Nietzsche, Husserl, Heiddegger, Ortega y Gasset, Wittgenstein, Sartre, Xavier Zubiri e vários outros autores importantes cujos princípios filosóficos geraram aporias insanáveis, verdadeiros becos sem saída.
Na prática, o filosofar que se foi cristalizando a partir do humanismo renascentista está para a Escolástica assim como a música dodecafônica, de caráter atonal, está para as polifonias sacras. Em suma, o nobre intuito de harmonizar diferentes tipos de conhecimento foi, aos poucos, dando lugar à assunção da desarmonia como algo inescapável. As conseqüências desta atitude intelectual fragmentária e subjetivista, seja para a religião, seja para a moral, seja para a política, seja para as artes, seja para o direito, foram historicamente funestas, mas não é o caso de enumerá-las neste breve texto.
Neste ponto, vale advertir que a Coleção Escolástica, trazida à luz pela editora Concreta em edições bilíngües acuradas, não pretende exacerbar um anacrônico confronto entre o pensar medieval e tudo o que se lhe seguiu. O propósito maior deste projeto é o de apresentar ao público brasileiro obras filosóficas e teológicas pouco
difundidas entre nós, não obstante conheçam edições críticas na grande maioria das línguas vernáculas. Tal lacuna começa a ser preenchida por iniciativas como esta, cujo vetor pode ser traduzido pela máxima escolástica bonum est diffusivum sui (o bem difunde-se por si mesmo). Ocorre que esta espécie de bens, para ser difundida, precisa ser plantada no solo fértil dos livros bem editados.
No mundo ocidental contemporâneo, plasmado de maneira decisiva na longínqua dúvida cartesiana, assim como nos ceticismos de todos os tipos e matizes que se lhe seguiram; mundo no qual as certezas são apresentadas como uma espécie de acinte ou ingenuidade epistemológica; mundo que se despoja de suas raízes cristãs para dar um salto civilizacional no escuro; mundo, por fim, desfigurado pelas abissais angústias alimentadas por filosofias caducas de nascença; em tal mundo, não nos custa afirmar com ênfase entusiástica o quanto este projeto foi concebido sem nenhum sentimento ambivalente. Ao contrário, moveu-nos a certeza absoluta de que apresentar o Absoluto é um bálsamo para a desventurada terra dos relativismos.
Vários autores do período serão agraciados na Coleção Escolástica com edições bilíngües: Santo Tomás de Aquino, São Boaventura, Santo Anselmo de Cantuária, Santo Alberto Magno, Alexandre de Hales, Roberto Grosseteste, Duns Scot, Guilherme de Auvergne e outros da mesma altitude filosófica.
Em síntese, a Escolástica é uma verdadeira coleção de gênios. Procuraremos demonstrar isto apresentando-os em edições cujo principal cuidado será o de não lhes desfigurar o pensamento.
Que os leitores brasileiros tirem o melhor proveito possível deste tesouro.
SIDNEY SILVEIRA
A
GRADECIMENTOS AOS COLABORADORES
Através de campanha no website da Concreta para financiar o “Comentário a Tessalonicenses”, 510 pessoas fizeram sua parte para que este livro se tornasse realidade, um gesto pelo qual lhes seremos eternamente gratos. Mais abaixo listamos aquelas que colaboraram para ter seus nomes divulgados nesta seção:
Adailso Janesko Adriano Pereira Silva Alan Ébano Oliveira Alan Marques da Rosa Alexandre da Luz Silva Alexandre Rocha
Allan Victor de Almeida Marandola Aluísio Dantas
Alvaro Mendes Álvaro Pestana Amantino de Moura Ana Claudia Silveira
Ana Larissa Dantas Santos Simões Anderson Braz
Anderson Cleiton
Anderson Mello de Carvalho Anderson Rocha
André Arthur Costa
André Bender Granemann
André Caniné de Oliveira Machado André de Oliveira da Cruz
André Reis Miranda Andre Ribeiro
André Ricardo Rodrigues Andrey Gomez Kopper Anselmo Luís Ceregatto
Antonio Carlos Correia de Araújo Jr. Antonio Chacar Hauaji
Antônio Murilo Macedo da Luz Antonio Paulo Leme
Arolldo Maciel Arthur Dutra Arthur Jordan
Augusto Carlos Pola Jr. Augusto Mendes
Aureliano Caldeira Horta França Bernardo Augusto Sperandio Filho Bernardo Cunha de Miranda Bernardo Jordão Nogueira de Sá Bruce Oliveira Carneiro
Brunno Messina Ramos de Oliveira Bruno Barchi Muniz
Bruno Brasil Leandri
Bruno José Queiroz Ceretta Bruno Vallini
Camila Maria S. Bernardino Carlos Alberto de Magalhães Carlos Alberto Leite de Moura Carlos Alberto Lopes da Costa Carlos Alexander de Souza Castro Carlos Crusius
Carlos Eduardo de Aquino de Pádua Carlos Eduardo Pauluk
Carlos Frederico Gitsio K. T. da Silva Carlos Wolkartt
Christopher Stimamilio Cláudia Makia
Cláudio Márcio Ferreira Cleber Queiroz
Cleto Marinho de Carvalho Filho Clotilde Grosskopf
Cristiano Eulino Cristina Garabini Dallima Um Tseng
Daniel de Athayde Quélhas Daniel Pinheiro
Danilo Cortez Gomes Danilo Martins
Danilo Miyazaki David Saboia Vale
Davide Lanfranchi Delania Gomes Vieira Diego Luvizon
Diego Pessi Dimitri Mota
Diogo Ferreira Ribeiro Laurentino Diogo Fontana
Dionisio Lisbôa
Edilia Cristina de Carvalho Edilson Lins
Edinho Lima Ednardo Rodrigues
Eduardo dos Santos Silveira Eduardo Erminio Marin Eduardo Fernandes
Eduardo Moreira dos Santos Elaine Cristina Moreira Batista Elaine Egidio Elaine Ferreira Elaine Rizzato Eline Santos Elizabeth Dias Elpídio Fonseca Elyelton Cesar Emerson Silva Enzo Marinni
Érico Raoni Santos da Silva Estêvão Lúcio Sobrinho Evandro Maraschin Evanir Vieira Jr. Everton S. da Silva Ewerton Caetano
Ewerton José Wantroba Fabio Dias
Fabio Lauton Fabio Nascimento
Fabio Rogerio Pires da Silva Fábio Salgado de Carvalho Fabrício Tavares de Moraes Fabrício Vieira
Felipe Aguiar Felipe Câmara
Felipe Corte Lima Felipe Dias
Felipe Geraldes Felipe Mazzarollo
Fernando Alves de Almeida Fernando Lopes
Fernando Santos Simões Ferreira Fernando Simões
Filipi Martins Firmino Abreu
Francisco A. L. Silva Francisco Peçanha Neves Franklin Picirilo Naka Frederico Carlos Ferreira Gabriel Henrique Knüpfer Gabriel Pereira Bueno Gabriela Soares Arrigoni Gedson Alves de Souza Genesio da Silva Pereira Genésio Saraiva
Geovan Petry Geovânia Feitoza Gideon de Brito Gilberto Luna
Gio Fabiano Voltolini Jr.
Giovanni Wesley Campos Silva Gisleine Maria Franco de Godoy Giulia d’Amore
Giuliano Bastos Estrela Giuliano Carvalho
Giuseppe Mallmann de Sampaio Grazielli Pozzi
Guilherme Batista Afonso Ferreira Guilherme Ferreira Araújo
Guilherme Ranal Gustavo Barnabé Gustavo Bertoche Gustavo de Araújo
Gustavo Mendonça Rezende Haberlandt Pereira Duarte Heitor Dias Antunes Pereira Henrique Montagner Fernandes
Hilário da Silva
Humberto Campolina França Jr. Ícaro Padilha
Ivan Antonio Pinheiro Jackson Ferreira Silva Jackson Viveiros Jairo Bolzan
Jardel de Souza da Silva Jefferson Bombachim Ribeiro Jefferson Zorzi Costa
Jesus Pereira Joanees Oliveira João Castro
João Marcelo Silva Zigurate João Marcos Costa
João Paulo Arrais
João Pedro da Luz Neto João Vitor Trivilin Nunes Joaquim Resende
Joel Paese Jonas Faga Jr.
Jonas Henrique Pereira Macedo Jonatan Dorneles
Jorge Roberto Pereira José Alexandre
José Francisco dos Santos Jose Marcio Carter
José Max Lânio de Oliveira Souza José Menezes
Jose Reis Pimenta José Ribeiro Jr. Juliano Erichsen Julius Lima
Kaye Oliveira da Silva Kennedy Costa
Kleberson Carvalho
Layse Caroline da Silva Santiago Leandro Casare
Leandro Marques Lenine Marques Leo Stenio
Leonardo Henrique Silva Leonardo Maciel
Liana Netto
Lucas Cardoso da Silva Lucas Freitas
Lucas Guelfi
Lucas Monachesi Rodrigues Lucas Morais
Lucas Oliveira Luciana Antoniolli
Luciana Cristina Oliveira Costa Silva Luciano Diniz
Luciano R. Moura e Silva Luciano Saldanha
Lucio Medeiros
Luis Henrique Galdino de Morais Lútio H. F. Cândido
Lysandro Sandoval Marciano Souza
Márcio André Martins Teixeira Marcius Vinicius Júlio
Marco Antonio Benito
Marcos Antonio do Nascimento Marcos Costa
Marcos Paulo Marcos Salomão Marcus Michiles
Maria Rita Sulzbach de Aguiar Marilia de Souza
Marinaldo Cavalari Mário Jorge Freire
Marlon Rodrigo de Oliveira Martha Gandra
Mateus Cruz
Mateus R. C. de Paula Mateus Rauber Du Bois Matheus Batista Santos Mauricio Lebre Colombo Maurício Nogueira
Mauro Sergio Ribeiro Messias Leandro Michel Pagiossi
Milton Adolfo Santucci Jr. Mônica Siqueira
Natanael Pereira Barros
Nazareno Delabeneta Gualandi Nei Afonso Ribeiro
Nelmo Fernandes Nicolas Barbieri Beoni Nikollas Ramos Oacy Campelo Odair Ferreira Odinei Draeger Orlando Tosetto Pamela Duarte Paulo Cruz
Paulo Eduardo Coelho da Rocha Paulo Henrique Brasil Ribeiro Paulo Leão Alves
Paulo Roberto Faria Pedro Chudyk Huberuk
Pedro Henrique Pinto de Aquino Pedro Theil Melcop de Castro Philippe Nizer
Pietro Augusto Aires Rafael de Almeida Martin Rafael Martins
Rafael Plácido
Rafaella Casali Ramos Raphael Garcia
Raphael Sepulcri Raul Labre Raul Lemos Reginaldo Magro
Renato da Silva Leite Filho Renato Guimaraes
Ricardo Antônio Mohallem Ricardo Bellei
Ricardo Mazioli Jacomeli Ricardo Rangel
Rinaldo Oliveira Araújo de Faria Roberto Kolbe
Robson Gois Cavalcante Rodolfo Melchior Lopes
Rodolfo Miranda
Rodrigo de Abreu Oliveira Rodrigo de Menezes Rodrigo Luiz
Rodrigo Naimayer dos Santos Rodrigo Rocha Silveira
Rodrigo Santana Silveira Ronald Robson
Ronaldo Fernandes da Silva Ronaldo Valentim
Ronildo Monteiro
Rosele Martins dos Santos Samuel Cardoso Santana Samuel da Silva Marcondes Samuel Santos
Sandra Salomão Sandro Bastos Sebastião Leite Sérgio Eduardo Sergio Paulo Roberto
Silmar José Spinardi Franchi Silvio José de Oliveira
Silvio Livio Simonetti Neto Tânia Vieira
Tatiana Ramos Prado Tharsis Madeira Thiago Amorim Thiago Borges Thiago Junglhaus Thiago Rabelo
Tiago Arno Saldanha Kloeckner Tiago Bana Franco
Tiago Sfredo
Vanessa Sparagna Marques Malicia Vânia Maria de Vasconcelos
Vicente do Prado Tolezano Victor Hugo Barboza Vinicius Barros
Vinicius de Almeida Alvarenga Vitor Colivati
Vitor Duarte
Vitor Hugo Pontes Butrago Wagner Cavalcante
Wellington Felicio Wellington Hubner
Wellington Moreira Frutuoso Wendel Ordine
Wendell Ramos Maia William Bottazzini
William de Souza Guimarães William Gomes Silva
S
UMÁRIO
Capa
Folha de Rosto Créditos
Coleção Escolástica
Agradecimentos aos colaboradores Apresentação
O vetor teológico do comentário: mérito, graça e profecia 1.1 O mérito e os direitos da amizade (iure amicabili) 1.2 Preeminência da graça, começo da glória
1.3 Profecia: teologia de fundo metafísico Conclusão: teologia para um mundo caótico Notas prévias do tradutor
Comentário à 1ª Epístola de São Paulo aos Tessalonicenses Prefácio
Capítulo I
Primeira Leitura – I Tessalonicenses 1, 1-10 Capítulo II
Primeira Leitura – I Tessalonicenses 2, 1-12 Segunda Leitura – I Tessalonicenses 2, 13-20 Capítulo III
Primeira Leitura – I Tessalonicenses 3, 1-13 Capítulo IV
Primeira Leitura – I Tessalonicenses 4, 1-11 Segunda Leitura – I Tessalonicenses 4, 12-17 Capítulo V
Primeira Leitura – I Tessalonicenses 5, 1-13 Segunda Leitura – I Tessalonicenses 5, 14-28 Super I Epistolam B. Pauli ad Thessalonicenses lectura
Caput 1 Lectio 1 Caput 2 Lectio 1 Lectio 2 Caput 3 Lectio 1 Caput 4 Lectio1
Lectio 2 Caput 5
Lectio 1 Lectio 2
Comentário à 2ª Epístola de São Paulo aos Tessalonicenses Prefácio
Capítulo I
Primeira Leitura – II Tessalonicenses 1, 1-5 Segunda Leitura – II Tessalonicenses 1, 6-12 Capítulo II
Primeira Leitura – II Tessalonicenses 2, 1-5 Segunda Leitura – II Tessalonicenses 2, 6-10 Terceira Leitura – II Tessalonicenses 2, 10-16 Capítulo III
Primeira Leitura – II Tessalonicenses 3, 1-9 Segunda Leitura – II Tessalonicenses 3, 10-18 Super II Epistolam B. Pauli ad Thessalonicenses lectura
Caput 1 Lectio 1 Lectio 2 Caput 2 Lectio 1 Lectio 2 Lectio 3 Caput 3 Lectio 1 Lectio 2 Bibliografia citada
As leituras bíblicas deste livro estão
linkadas para facilitar a consulta dos textos
nos dois idiomas. Basta clicar em
"PRIMEIRA LEITURA" ou "SEGUNDA
LEITURA" para ser direcionado a
O
A
PRESENTAÇÃO
Frei Tomás: olhos
postos na eternidade
SIDNEY SILVEIRA
Papa Pio XII certa vez salientara que ninguém pode dizer-se tomista se não conhece os comentários de Santo Tomás de Aquino à Sagrada Escritura,[ i ] entre os quais se encontra esta preciosa obra que o leitor tem em mãos – trazida à luz pela editora Concreta numa primeira edição em língua portuguesa, compaginada com o original latino. Grande razão tinha o notável Papa, pois todos os escritos do Boi Mudo da Sicília estão, de maneira direta ou indireta, teleologicamente orientados a Deus, e não por outro motivo o único título acadêmico que, com agrado, o Aquinate aceitou ao longo de sua trajetória intelectual foi o de Doutor em Sacra Pagina, não sendo nenhum outro capaz de seduzir este homem cuja inteligência estava vertida para as coisas do Alto.
Ressalta o próprio Tomás, sem dar margem a tergiversações hermenêuticas:
O conhecimento de Deus é (...) o fim último de todas as atividades humanas.[ ii ]
Trata-se, pois, do supremus et perfectus gradus vitæ,[ iii ] nas conhecidas palavras do santo, no qual a inteligência humana alcança o ápice contemplativo possível neste mundo – daí o tipo de supremacia da ciência teológica com relação às demais: o seu objeto formal terminativo é o Próprio Ser,[ iv ] realidade metafísica da qual todas as demais são partícipes e sem a qual repugna à razão conceber a existência de qualquer ente. Em suma, ou há a permanência absoluta no ser à qual costumamos atribuir o nome Deus, ou nada haveria. O Próprio Ser Subsistente é o horizonte possibilitante dos entes, no plano ontológico, e o ponto arquimédico de sua inteligibilidade, no plano gnosiológico.
Os comentários de Tomás às epístolas paulinas pertencem, de acordo com a tradição de respeitados catalogadores modernos de sua obra, como Pierre Mandonnet[ v ] e Martin Grabmann,[ vi ] à época posterior à do primeiro período de seu magistério na Universidade de Paris, já como Mestre Regente em Teologia (entre 1256 e 1259).[ vii ] Tratar-se-ia de lições subministradas quando o Aquinate chegou à corte do Papa Urbano IV em Orvieto, no ano de 1261. Naquela ocasião, o seu secretário particular, Reginaldo de Piperno, fora encarregado de transcrever estas leituras magistrais sobre as epístolas paulinas; somente depois de 1265, em Nápoles, o Aquinate teria voltado a ocupar-se dos
comentários a São Paulo, como destaca Gallus Manser,[ viii ] assim como no começo da década de 70 daquele luminoso século XIII.
O VETOR TEOLÓGICO DO COMENTÁRIO: MÉRITO, GRAÇA E PROFECIA
1.1 O mérito e os direitos da amizade (iure amicabili)
O rigor lógico e o elevado alcance da visão espiritual de Santo Tomás – a um só tempo filosófica, teológica e mística – estão presentes em todos os comentários bíblicos que nos foram legados de sua pena. Com o presente livro não poderia ser diferente: nele vemos o Aquinate referir-se à missão apostólica para cujo sucesso depende o grau de santidade de vida dos pregadores,[ ix ] premissa esta que vale não apenas para os tessalonicenses dos primeiros anos do cristianismo, mas para homens de todas as épocas; e vemos também o insigne teólogo extrair corolários da parte essencialmente profética do texto paulino, explicitando aspectos relevantes acerca de como estarão as coisas no mundo e na Igreja no tempo da manifestação do Anticristo.
Exemplo da argúcia interpretativa do Doutor Angélico é o trecho do comentário no qual afirma, após lembrar-nos que a palavra “tribulação” provém de tribulus (cardo, planta espinhosa) – e dizer que somos pungidos interiormente nas tribulações, numa etapa purgativa necessária ao crescimento espiritual –, que os santos suportam os espinhos desta vida por dois motivos principais: para terror dos maus e para aumento dos próprios méritos.[ x ] Aqui, diga-se que o caráter analógico da noção de mérito subjaz a esta passagem do comentário,[ xi ] estando em primeiro lugar o mérito sobrenatural, recompensa outorgada ao homem graças a Deus; e, em segundo lugar, o mérito natural, direito a uma recompensa pelas boas obras praticadas.
Em resumidas contas, o mérito sobrenatural supõe o estado de graça, amizade com Deus por cujo intermédio o homem adquire direito à recompensa sobrenatural, que não é outra senão a salvação da alma, como em diferentes escritos aponta o Pe. Reginaldo Garrigou-Lagrange, mais inspirado teólogo da escola neotomista no século XX. Por sua vez, o mérito natural supõe apenas a boa ação levada a cabo, sem estar Deus objetivamente considerado nela. Ora, como nos atos humanos o motivo especifica o valor de que são portadores, assim como o meio pelo qual podem ser aquilatados, convém dizer à guisa de exemplo que uma coisa é alguém arrepender-se apenas por enxergar a ação má praticada; outra, mui distinta, é arrepender-se por ver nessa ação uma ofensa a Deus. Eis, portanto, a diferença entre os arrependidos, no estrito sentido teológico, e os remordidos pela consciência de qualquer delito; a diferença entre Pedro e Judas Iscariotes: o remorso deste é o macabro reverso do arrependimento daquele.
Todos os méritos acima aludidos têm como analogado supremo o sangue vertido por Cristo na cruz em ordem à redenção do gênero humano. Este é o mérito perfeitíssimo, fruto do amor de benevolência de Deus para com os homens. O seu valor é infinito e superabundante porque radica na Pessoa do Verbo, que se encarnou voluntariamente – por amizade aos homens.
Em linhas gerais, os méritos estão subdivididos pelo Aquinate de acordo com o seguinte esquema:
Mérito de condignidade (de condigno):
Perfecte de condigno. É o mérito de Nosso Senhor, que com o sacrifício na Cruz
mereceu para nós a salvação que não merecíamos, por causa dos nossos pecados;
De condigno. É o mérito concedido por Deus em reconhecimento ao esforço do
homem por seguir os mandamentos e fazer-se amigo de Deus.
Mérito de conveniência (de congruo):
De congruo proprie. É o mérito proveniente dos direitos adquiridos pelo homem
em virtude de sua amizade para com Deus. Noutras palavras, este mérito é concedido por um direito de amizade (iure amicabili), o que faz refulgir o fato de a genuína amizade implicar responsabilidades recíprocas, nascidas do amor de benevolência. No caso de que se trata, o homem em estado de graça, rezando, torna-se partícipe da vontade divina na salvação dum pecador, na conversão dum infiel, na contrição perfeita duma pessoa na hora da morte, etc.;
De congruo improprie. É o mérito do pecador que, estando em pecado mortal,
recebe graças atuais para rezar e voltar ao estado de graça.[ xii ]
Em síntese, ao dizer neste Comentário a Tessalonicenses que as tribulações do justo servem para aumentar-lhe os méritos, Tomás está referindo-se propriamente ao mérito
de condigno; no caso, ao direito à recompensa por uma boa obra específica, a saber:
suportar as tribulações e decantá-las espiritualmente, em prol do aperfeiçoamento da vida na fé.
Vale destacar, neste ponto, que o tipo de contemplação propiciada pelas verdades da Escritura, quando se entranham na alma humana – como propõe Santo Tomás no proêmio do seu magnífico Comentário ao Evangelho de João –, é de tríplice natureza: alta, ampla e perfeita. A altitude provém da omniexcelência de Deus, que está acima de todas as criaturas. A amplitude é demarcada pelo fato de se contemplarem as coisas na causa primeira, universalíssima. E, por fim, a perfeição radica em que o contemplador é elevado à realidade contemplada, de maneira análoga a como uma inteligência se aperfeiçoa ao conhecer mais e melhor as coisas cognoscíveis.[ xiii ]
1.2 Preeminência da graça, começo da glória
O esquema geral das epístolas paulinas, de acordo com o Aquinate, refere-se à graça divina em diferentes perspectivas:
> A graça que está em Cristo-Cabeça (Heb)
> A graça de Cristo atuante nos principais membros do Corpo Místico:
a) Para o governo voltado à unidade eclesiástica (I Tm); b) Para a firmeza contra os perseguidores (II Tm); c) Para defender a unidade contra os hereges (Tt); d) Para o governo voltado às questões temporais (Fm). > A graça de Cristo atuante em toda a Igreja:
a) Considerada em si mesma (Rm);
b) Contida nos sacramentos, com a seguinte subdivisão: 1- Com relação aos próprios sacramentos (I Cor); 2- Com relação à dignidade dos ministros (II Cor);
3- Com exclusão de sacramentos circunstancialmente desnecessários (Gl). c) Conforme o que causa a unidade, na seguinte ordem:
1- Sobre a unidade da Igreja em si (Ef); 2- Sobre o crescimento na unidade (Fp);
3- Sobre a defesa da unidade contra os erros (Cl).[ xiv ]
Observe-se que, neste esquema geral, não está contemplada a Epístola aos Tessalonicenses, mas à luz do corpus thomisticum podemos sem risco de erro inseri-la como mais um quesito referente à graça de Cristo atuante na Igreja, ao qual poderíamos dar a seguinte definição, para delimitar bem o tema tratado: anúncio profético dos tempos do Anticristo. Isto é evidenciado na parte do comentário de Tomás referente a II Ts, e saltará aos olhos do leitor que se puser a estudar com atenção o presente volume.
A graça é, a propósito, o pano de fundo teológico de tudo o que se vai afirmando ao modo de corolário neste Comentário a Tessalonicenses. Um exemplo está logo no primeiro capítulo (nº. 6), no ponto onde se diz que, entre os bens espiritualmente apetecidos, em primeiro lugar está a graça, princípio de todos os bens – consoante se lê em I Cor 10: “Pela graça de Deus, sou o que sou” –, sendo a paz o fim, porque a paz acontece quando os apetites estão literalmente locupletados, apaziguados, repousados no bem. Este sossego do espírito, no qual as potências da alma se mantêm hierarquicamente ordenadas umas às outras conforme a excelência dos atos aos quais tendem, é propriedade essencial da paz – e esta será tanto maior quanto mais excelso for o bem contemplado. Aqui reluz o princípio tão caro a Tomás: Gratia inchoatio gloriæ (“a graça é o começo da glória”), exatamente no ponto em que o comentário fala dos bons pregadores, os quais querem “agradar aos homens por causa da glória de Deus e para que a pregação frutifique mais”.[ xv ]
1.3 Profecia: teologia de fundo metafísico
Em II Ts, São Paulo relata como estarão a Igreja e o mundo no tempo do Anticristo, e o faz de maneira concisa em versículos cujas proposições se vão encadeando aos poucos, certamente com o intuito de que tal procedimento apologético obtenha o êxito de debelar erros nascentes entre cristãos enfatuados para quem a vinda gloriosa do Senhor era iminente. Por isso o Apóstolo dos Gentios lembra ao povo de Tessalônica que o tempo da Parusia é incerto, porém será precedido de eloqüentes sinais precursores, sobretudo dois: a grande apostasia e a manifestação do homem do pecado, o Anticristo.
Assinale-se que Santo Tomás dá por pressuposto em seu comentário que somente Deus possui inteligência omnicompreensiva, no sentido de esgotar a inteligibilidade de toda a criação num só ato. Por causa disso, entre as coisas por Ele conhecidas não
poderiam deixar de estar os chamados “futuros contingentes”, ou seja, tudo o que não é dedutível pela ciência humana – nem pela angélica –, dada a circunstância de inserir-se em séries causais acidentalmente ordenadas, ou seja: as que acarretam efeitos distantes não mensuráveis, em virtude do tipo de contingência metafísica no qual radicam.[ xvi ] Algo distinto ocorre, por exemplo, com a dedução de um fato futuro a partir do perfeito conhecimento das causas, seja numa série essencial (per se), seja numa série acidental (per accidens).[ xvii ]
A respeito deste tópico, não nos custa salientar o seguinte: Deus não conhece estes “futuríveis” como algo futuro, pois Ele é o agora eterno, realidade intangível que está para muito além das coisas que se geram e se corrompem – as quais o Criador conhece como são, como eram, como serão e como poderiam ser. Ainda nesta ordem de considerações, observe-se que a natureza divina não pode ser medida pelo tempo:
æternitas ambit totum tempus et excedit. Noutras palavras, o tempo é a medida do
movimento, e a eternidade é a medida da imutabilidade absoluta de Deus quanto ao ser. Neste sentido, só pode haver futuro para entes contingentes, como o homem, cuja inteligência finita não alcança o que pode vir a ser ou não – sobretudo no tocante a escolhas livres radicadas na indeterminabilidade da vontade quanto aos meios, pois o fim já está dado: a forma inteligível de um bem.[ xviii ]
Se o profeta é, pois, capaz de lograr o conhecimento do futuro, isto acontece porque Deus o faz partícipe de sua omnisciência. Cumpre em tal cenário apenas destacar que a profecia não é prognóstico, não é especulação, não é cálculo, não é adivinhação, não é raciocínio, mas conhecimento certíssimo, intuitivo,[ xix ] do futuro humano à luz da ciência divina. Assim se deu, por exemplo, com a Virgem Santíssima, cujo dom da profecia se evidencia no Magnificat: “De hoje em diante, todas as gerações me chamarão bem-aventurada” (Lc, 1, 48). Assim foi predito por Maria, assim sucedeu.
Com estes princípios de ordem metafísico-teológica, ao comentar o texto paulino Santo Tomás de Aquino conclui que muitos na Igreja receberão o Anticristo de braços abertos,[ xx ] numa espécie de abominável conluio no qual estarão implicadas a intenção depravada de clérigos apóstatas, contrária aos fins espirituais buscados pela Igreja; a traição ao seu múnus sacerdotal santificador; e, por fim, um elevado – e culpável – grau de cegueira mental, oriunda do pecado diabólico por antonomásia: a soberba, que tem como uma de suas conseqüências funestas o ódio a Deus.
Estamos no ponto nevrálgico do presente comentário do Aquinate à Epístola de São Paulo aos Tessalonicenses, essencialmente entrelaçado a outra verdade profética destacada alhures pelo Apóstolo dos Gentios: “Repreende, suplica, admoesta com toda a paciência e doutrina, porque virá o tempo em que os homens não suportarão a sã doutrina” (II Tm, 4, 2-3). Não por outro motivo, quando Tomás alude ao “artifício do erro” (II Ts 2, 10), cita Isaías (19, 14) e afirma que a pena das pessoas seduzidas pelo Anticristo provém de sua adesão condenável à mentira.[ xxi ]
CONCLUSÃO: TEOLOGIA PARA UM MUNDO CAÓTICO
No atual momento da Igreja e do mundo, editar este Comentário a Tessalonicenses – apresentado ao público brasileiro em tradução do jovem talento Tiago Gadotti – assume um caráter profilático, sobretudo para quem se rende à seguinte premissa: a fé tem por causa a autoridade de Deus, que se revela ao homem (propter auctoritatem Dei
revelantis, numa famosa formulação), e a história não é outra coisa senão o pêndulo
espiritual que vai da negação odienta à anuência piedosa a essa autoridade do non
serviam luciferino ao obediente “sim” redentor de Cristo à vontade do Pai.[ xxii ] Seja
como for, o anúncio profético do fim dos tempos por São Paulo, comentado em detalhe pelo Doutor Comum da Igreja, serve de alerta para muitas pessoas manterem o espírito evangélico de vigilância e de atenção aos sinais dos tempos, tanto no plano político e moral, como no religioso.
Não encerremos esta breve apresentação sem frisar que, em tudo quanto escreveu Santo Tomás de Aquino, uma verdade multissecular hoje posta de lado está sempre implicada, de maneira implícita ou explícita: no seio das nações, os erros podem ser tolerados como um fato – inescapável nalguns casos –, porém nunca transformados em direitos. Na prática, esta premissa já foi abolida pela religião universal ecumenista cujos tentáculos vislumbramos num horizonte tenebroso, no qual parece já não haver nenhuma autoridade espiritual, e o lugar de Deus vem sendo usurpado pelo homem, no mundo e também no seio da própria Igreja, o que é gravíssimo. Em tal cenário, o preço por pagar será caro, de acordo com o Aquinate: a danação eterna para os que crerem na mentira.[ xxiii ] Não em qualquer uma, mas naquela segundo a qual o homem pode realizar-se de maneira autônoma em relação à autoridade divina.
Non sine magno dolore, observamos que a inércia hedonística do mundo
contemporâneo alcança o ponto de inflexão no qual a cultura e o direito assumem caráter patógeno, com a disseminação de conceitos abstrusos, contrários ao senso comum, aos princípios civilizacionais elementares e aos bens espirituais que, no parecer do grande Papa Leão XIII, deviam ser a primeira preocupação do Estado[ xxiv ] – para desconforto de adeptos de filosofias liberais que consideravam no século XIX, e continuam a considerar no começo do XXI, tal premissa ingênua ou indevida, pois entronizaram a consciência individual como árbitra suprema das ações humanas.
Quando se dará a ceifa aludida na Segunda Epístola aos Tessalonicenses, ninguém pode dizê-lo, mas a nenhuma pessoa custa meditar acerca dos sinais precursores do fim, revelados em diferentes passagens da Sagrada Escritura. Este é, a propósito, o convite de Santo Tomás a quem folhear as páginas seguintes: contemplar as vicissitudes do tempo com os olhos da eternidade.
[ i ] Acta Apostolicæ Sedis, 50 (1958), 152.
[ ii ] SANT O TOMÁS DE AQUINO, Suma contra os Gentios, III, 25.
[ iii ] Op. cit., IV, 11.
[ iv ] A escola tomista sempre procurou distinguir os três objetos a que visam as ciências, sejam especulativas, sejam práticas: o objeto material, que pode servir de estudo a diferentes ciências; o objeto formal motivo (a saber: os meios dos quais se vale qualquer ciência para lograr os seus fins); e o objeto formal terminativo, que
não é outro senão o conhecimento principal a que visam as diferentes ciências. No caso da ciência teológica, por exemplo, o objeto material são os textos da Sagrada Escritura; o objeto formal motivo são os instrumentos – sobretudo metafísicos e lógicos – de que se vale para lograr as suas demonstrações; e o objeto formal terminativo é Deus, em seus atributos passíveis de ser assimilados pelas criaturas dotadas de potência intelectiva: simplicidade, infinitude, eternidade, imaterialidade, bondade, verdade, unidade, omnisciência, omnipotência, etc. [ v ] Pierre Mandonnet (1858-1936), historiador dominicano belga, foi um dos grandes expoentes da escola neotomista, que ganhou impulso no final do século XIX após a publicação da Encíclica Aeterni Patris, de Leão XIII, datada de 04/08/1879. Entre os trabalhos teológicos importantes de Mandonnet estão Siger de Brabant et
l’averroïsme latin au XIIIe Siècle e Dante le théologien. O dominicano também se notabilizou por ser autor de
uma das atualizações catalográficas importantes da obra de Santo Tomás, publicada em 1909 na Revue Thomiste, intitulada Des écrits authentiques de Saint Thomas d’Aquin.
[ vi ] Martin Grabmann (1875-1949), sacerdote alemão, autor de uma importante História do Método Escolástico (Die geschichte der scolastischen methode), estudou a fundo os catálogos da obra de Santo Tomás e procurou dar definições precisas quanto à autoria certa, provável, duvidosa, improvável ou apócrifa dos textos do corpus
thomisticum. O jesuíta italiano Roberto Busa, primeiro a conceber a idéia de um léxico tomista digitalizado,
conhecido como Index Thomisticus, trabalho que durou cerca de 30 anos e teve o apoio da IBM – do qual é caudatária a Opera Omnia de Santo Tomás hoje disponibilizada na Internet pelo Prof. Enrique Alarcón –, deve muito a estes e a outros estudiosos da escola neotomista.
[ vii ] São dois os períodos de Santo Tomás de Aquino como professor na Universidade de Paris, subdivididos em três etapas: entre 1252 e 1256, como Bacharel Sentenciário; entre 1256 e 1259, como Mestre Regente em Teologia; e, por fim, entre 1269 e 1272 – já conhecido por seus feitos intelectuais notáveis e temido pela fama de controversista imbatível –, época em que recrudescia a perseguição às ordens mendicantes nos meios universitários e eclesiásticos parisienses. O lema da atuação magisterial dominicana, legere, disputare, prædicare (ler, disputar, pregar), foi neste período o norte inamovível do trabalho de S. Tomás. Ler consistia em comentar a Escritura versículo a versículo, sendo o doctor o hermeneuta abalizado que sabia ler e que ensinava a ler o texto sagrado com método e critério; disputar consistia em debater de maneira dialeticamente encadeada, com a participação dos ouvintes e a ajuda dum bacharel assistente; e pregar consistia em anunciar a palavra sagrada, seja para universitários, seja para populares.
[ viii ] GALLUS MANSER, La esencia del tomismo, Madri, Consejo Superior de Investigaciones Científicas, Instituto Luis Vives de Filosofia, 1953, p. 53. O alemão Gallus Maria Manser (1866-1950), outro nome importante da escola neotomista, notabilizou-se pelo trabalho aqui citado (Das Wesen des Thomismus), cuja primeira edição alemã veio à luz em 1932, e a segunda em 1949. Foi professor de Lógica, de Ontologia e de História Medieval na Universidade de Freiburg, onde exerceu o cargo de reitor entre 1914 e 1918. Precisão conceptual e clareza expositiva de cunho escolástico são notas distintivas dos escritos de Manser.
[ ix ] Haurido da graça divina.
[ x ] SANT O TOMÁS DE AQUINO, Comentário a Tessalonicenses, 2ª Epístola, 11.
[ xi ] Os nomes não significam diretamente as coisas, pois têm como mediadores os conceitos da mente, que permitem à inteligência se identificar com os aspectos formais da realidade – assimilados imaterialmente. Entre qualquer cavalo, quadrúpede da ordem dos ungulados, e o nome “cavalo” existe o conceito mental de eqüinidade. Neste contexto, diga-se que a analogia é uma espécie de semelhança proporcionada da qual precisam valer-se todas as ciências para desenvolverem-se em seus respectivos âmbitos, conforme salienta o Pe. Maurílio Teixeira-Leite Penido no prólogo de seu clássico Le rôle de l'analogie en theologie dogmatique. Nos raciocínios analógicos, o primeiro analogado realiza em si, de maneira perfeita (simpliciter), a noção mesma de analogia, ao passo que os analogados menores participam, de maneira limitada (secundum quid), do conceito principal. Não é o caso de explicitar nesta breve nota os sentidos da analogia nos dois principais tópicos que a escola tomista definiu: 1- DE ATRIB UIÇÃO: a) plurium ad unum: vários analogados menores haurem sentido de alguma semelhança com o analogado supremo. b) unius ad unum: um analogado menor realiza algo do conceito de que o analogado supremo é portador. 2- DE PROPORCIONALIDADE, em distintos vetores: a) imprópria ou metafórica; b) própria.
Como bibliografia elementar sobre o tema, indicamos o citado livro do Pe. Penido, que conheceu uma edição para o português cuja tradução foi revisada pelo autor (A Função da Analogia em Teologia Dogmática, trazida à luz pela antiga editora Vozes em 1946); o denso tratado De analogia, do dominicano da escola salmaticense Santiago Ramírez; e o escrito do lógico José Miguel Gambra intitulado La Analogía en General, ainda em catálogo pela editora da Universidade de Navarra (EUNSA). A propósito, neste livro Grambra diz com acerto que somente a metafísica e a lógica têm competência para tratar do tema da analogia.
[ xii ] Sobre o tema, veja-se o texto “Sobre as coisas políticas (VII): a Política em Santo Tomás”, no blog Contra
[ xiii ] Cf. SANT O TOMÁS DE AQUINO. Comentário ao Evangelho de S. João, Proêmio, 1.
[ xiv ] RICARDO CLAREY; GUSTAVO NIETO; MARCELO LATTANZIO, Santo Tomás: Comentário de la Carta a los Filipenses, ed. bilíngüe, Mendoza, Ediciones del Verbo Encarnado, 2008, Introd., p. 18.
[ xv ] SANT O TOMÁS DE AQUINO. Comentário a Tessalonicenses, 1ª Epístola, 30.
[ xvi ] Uma série causal é acidentalmente ordenada quando os efeitos atuais não necessitam do influxo causal concomitante de toda a série para se manterem no ser, em sua forma presente. Por exemplo: para que um homem viva hic et nunc (aqui e agora) não é necessário que os seus bisavós ou tataravós ainda estejam no influxo causal que distantemente o produziram, a saber: nos seus respectivos intercursos carnais, levados a cabo a determinada altura no decurso do tempo.
[ xvii ] Uma série causal é essencialmente ordenada quando o efeito, após produzir-se, necessita do influxo atual de todas as causas da série para manter-se no ser em sua forma presente. Recorramos a um exemplo dado pelo Pe. Leonel Franca para aludir à natureza da série causal per se. “Considerai, por exemplo, os olhos do homem. No fundo, um sistema de filetes nervosos, capazes de transmitir aos centros cerebrais uma sensação de luz, expandindo-se no interior do globo ocular em miríades de elementos diferenciados, cones e bastonetes, sensíveis à luz e à variedade das cores. Em seguida uma série de meios transparentes, sólidos ou líquidos, constituindo-se um sistema dióptrico centrado de modo que a imagem luminosa obtida se vá formar na superfície da retina. Uma lente de curvatura variável – o cristalino – permite adaptá-lo a todas as distâncias (...). Um diafragma, eliminando os raios periféricos, assegura a nitidez da imagem e corrige as conseqüências da aberração, de esfericidade. O humor lacrimal, lavando continuamente a superfície da refração, conserva-lhe a transparência. A dualidade dos órgãos visuais permite a visão estereoscópica com a percepção do relevo e da terceira dimensão. A posição dos olhos na cabeça e um sistema de músculos sinérgicos ampliam o campo de visão facilitando-lhes os mais variados movimentos. A cavidade dos olhos, as pálpebras (...) e sobrancelhas protegem a delicadeza deste aparelho que realiza o que ainda não conseguiram todos os nossos aparelhos óticos, fotográficos e cinematográficos. Diariamente os nossos olhos podem tomar mais de 864.000 clichês. Cada uma de suas partes é por sua vez uma obra-prima cuja complexidade os progressos da anatomia e da fisiologia nos vão revelando de dia para dia. Só o cristalino é formado por mais de duas mil e duzentas lamelas superpostas e concêntricas; seu tecido é constituído por fibras prismáticas de seção hexagonal cujo número, dizem os tratados de histologia, se eleva a cinco milhões. A constituição histológica da retina é de uma complexidade estonteadora; nela já se chegam a discernir mais de dez camadas de elementos, diferenciados de modo a assegurar não só a impressão da imagem, mas a percepção das cores e a constituição fotoquímica quase imediata dos elementos alterados por uma percepção anterior. (...) No efeito que observamos há (...) uma convergência de todas as propriedades e ações para um determinado resultado [ver], (...) há uma subordinação a um bem superior que se obtém e que não encontra a sua explicação em cada um dos elementos [em separado]”, PADRE LEONEL FRANCA. O problema de
Deus, 3. Argumento da finalidade, 3.1 Teleologia Cósmica. À luz deste trecho do Pe. Franca, explicitemos o
princípio: nas causas essencialmente ordenadas, quando um dos elementos da série não alcança o seu fim próprio, ou o efeito não se produz, ou se produz com defeito. No caso do ser, se a sua indefectibilidade não fosse absoluta, as causas essencialmente ordenadas sequer existiriam. O ser é o suposto fundamental de todas elas. [ xviii ] O objeto do entendimento (o verum) é superior ao da vontade (o bonum apprehensum), na medida em que para nós o bem só pode dizer-se “bom” enquanto verdadeiro. Neste sentido, a razão de bem (ratio boni) radica na razão de verdade (ratio veri), porque a vontade – que é o apetite intelectivo do bem – só deseja algo na única e exata medida em que se apresenta na forma inteligível de um bem. Em síntese, dada a sua constituição ontológica, a vontade não pode querer o mal em si (simpliciter), mas apenas acidentalmente (per accidens), como ocorre a um suicida que, ao matar-se, deseja a morte porque esta, naquele momento, se lhe afigurou como a melhor maneira de pôr fim a seus tormentos existenciais. Ou seja: a vontade quis o que, no ato, lhe pareceu um bem. Em síntese, o verdadeiro está para o bom assim como o ato está para a potência, pois o ser dos entes é apresentado à vontade somente após ser conhecido. Por isso Santo Tomás sustenta que não é possível querer o que não se conhece, pois algo só pode ser apetecido na medida em que o seu modo de ser (modus essendi) seja descortinado, nalgum grau, pela inteligência. Por conseguinte, o entendimento dá à vontade o seu objeto, conforme se lê num estupendo artigo da Suma Teológica (I, q. 82, a.3, ad.2).
Para maiores detalhes sobre o tema, indicamos a série do blog Contra Impugnantes intitulada “As relações entre a inteligência e a vontade”: I- http://contraimpugnantes.blogspot.com.br/2009/10/as-relacoes-entre-inteligencia-e.html; II- http://contraimpugnantes.blogspot.com.br/2009/11/as-relacoes-entre-inteligencia-e.html; III- http://contraimpugnantes.blogspot.com.br/2010/05/as-relacoes-entre-inteligencia-e.html IV- http://contraimpugnantes.blogspot.com.br/2010/09/as-relacoes-entre-inteligencia-e.html; V- http://contraimpugnantes.blogspot.com.br/2010/09/as-relacoes-entre-inteligencia-e_20.html;
VI- http://contraimpugnantes.blogspot.com.br/2010/09/as-relacoes-entre-inteligencia-e_21.html; VII- http://contraimpugnantes.blogspot.com.br/2011/06/as-relacoes-entre-inteligencia-e.html.
[ xix ] Na gnosiologia tomista, o termo “intuição” designa a união formal do intelecto com a essência da coisa, de
qualquer modo que seja: “Intelligere nihil aliud dicit, quam intuitum, qui nihil aliud est, quam praesentia intelligibilis ad intellectum quocumque modo” [grifos nossos], SANT O TOMÁS DE AQUINO, Comentário às
Sentenças de Pedro Lombardo, Dist. 3, Q.4, Art. 5. Intuir não é o modo propriamente humano de conhecer, pois
só chegamos ao conceito após abstrair todas as notas individuantes da matéria. O caso da profecia é excepcional, pois nele se trata de intuição participada por Deus, ou, noutras palavras, clara visão de uma verdade à luz da omnisciência divina.
[ xx ] SANT O TOMÁS DE AQUINO. Comentário a Tessalonicenses, 2ª Epístola, 40. [ xxi ] Op. cit., 2ª Epístola, 54-56.
[ xxii ] “Pai, se é do teu agrado, afasta de mim este cálice; não se faça, contudo, a minha vontade, mas a tua” (Lc. 22, 42).
[ xxiii ] SANT O TOMÁS DE AQUINO. Comentário a Tessalonicenses, 2ª Epístola, nº. 55 [ xxiv ] Cf. LEÃO XIII, Rerum Novarum, 23.
NOTAS PRÉVIAS DO TRADUTOR
• Antes de cada LEITURA (comentário) de Santo Tomás a uma passagem, pusemos o
texto bíblico, que não está presente na edição de que nos servimos, ou seja, na edição preparada por Roberto Busa S.J. e aprimorada por Enrique Alarcón.[ xxv ] Agradecemos penhoradamente a este último pela cessão do texto latino ora apresentado aos leitores brasileiros, ao lado da tradução para o português.
• Antes de cada versículo bíblico, pusemos uma numeração entre colchetes que permite ao leitor localizar no texto do comentário a passagem exata em que o Santo Doutor comenta tal versículo. Esta disposição, porém, não é nossa. Tomamo-la da edição Marietti[ xxvi ] das obras de Santo Tomás de Aquino.
• Todas as citações da Bíblia Sagrada foram retiradas da tradução do Pe. Matos Soares, menos quando julgamos que sua tradução destoava do original e prejudicava a compreensão do texto.
• Utilizamos como fonte do original grego do Novo Testamento a consagrada edição crítica de Westcott e Hort (1881).
• Ao longo do comentário do Aquinate, há notas explicativas e remissivas, as quais são apontadas respectivamente, ao seu final, com as abreviaturas N. C. (Nota do Coordenador) e N. T. (Nota do Tradutor).
• Agradecemos de modo especial a Carlos Nougué por pacientemente revisar nossa tradução.
[ xxv ] http://www.corpusthomisticum.org/c1t.html e http://www.corpusthomisticum.org/ct2.html
[ xxvi ] SANT O TOMÁS DE AQUINO, Super Epistolas S. Pauli lectura, t. 2. Ed. R. CAI, 8ª ed, Taurini-Romae, Marietti, 1953, p. 163-209.
C
OMENTÁRIO À
DE
S
ÃO
P
AULO AOS
T
ESSALONICENSES
PREFÁCIO
As águas cresceram, etc. (Gên. 7, 17).
1. Estas palavras competem à matéria desta epístola. A arca, com efeito, é figura da Igreja, como diz I Pedro 3, 20, porque, assim como na arca, enquanto outras pereceram, poucas almas foram salvas, assim na Igreja poucos, isto é, só os eleitos, serão salvos.[ 1 ]
As águas, porém, significam tribulações. Primeiro, porque as águas impelem combatendo, assim como as tribulações. Mateus 7, 25: Transbordaram os rios, e
assopraram os ventos e combateram aquela casa. Mas a Igreja não é movida pelo
embate dos rios. Por isso acrescenta: e não caiu.
Segundo, a água extingue o fogo. Eclo. 3, 33: A água extingue o fogo ardente. As tribulações extinguem o ímpeto das concupiscências de modo que os homens não as sigam segundo seus caprichos, mas não extinguem a verdadeira caridade da Igreja. Cant. 8, 7: As muitas águas não puderam extinguir a caridade, nem os rios terão força para
a afogar.
Terceiro, as águas submergem pela inundação. Lam. 3, 54: Um dilúvio de águas veio
sobre minha cabeça. Mas a Igreja não é por elas submersa. Jn. 2, 5: As águas me cercaram até a alma, o abismo me encerrou em si, as ondas do mar me cobriram a cabeça, etc., e após isso: eu contudo verei ainda o teu santo templo, etc. (v. 5).
2. Portanto, ela não desanima, mas é sublevada. Primeiro, pela elevação da mente a Deus. Gregório: as coisas más que aqui nos comprimem compelem-nos a ir a Deus.[ 2 ] Os. 6, 1: Vendo-se na sua tribulação, dar-se-ão pressa a recorrer a mim.
Segundo, pela consolação espiritual. Sal. 93, 19: Segundo as muitas dores que provou
o meu coração, as tuas consolações alegraram a minha alma. II Cor. 1, 5: Porque, à medida em que nos crescem as penas de Cristo, crescem também por Cristo as nossas consolações.
Terceiro, pela multiplicação dos fiéis, porque em tempo de perseguições Deus fez crescer a Igreja. Ex. 1, 12: Quanto mais os oprimiam, tanto mais se multiplicavam e
cresciam.
Assim, portanto, [aquelas palavras do Gênesis] convêm a esta epístola, pois, padecendo estes muitas tribulações, permaneceram fortes. Vejamos, pois, o texto.
CAPÍTULO I
PRIMEIRA LEITURA – I TESSALONICENSES 1, 1-10
[3]1Paulo, Silvano e Timóteo, à Igreja dos tessalonicenses em Deus Pai e no Senhor
Jesus Cristo. [6]2Graça e paz vos sejam dadas. Damos sempre graças a Deus por
todos vós, fazendo continuamente memória de vós nas nossas orações, [10]3lembrando-nos, diante de Deus e nosso Pai, da obra da vossa fé, do trabalho da
vossa caridade e da constância da vossa esperança em Nosso Senhor Jesus Cristo. [11]4Com efeito, sabemos, irmãos amados de Deus, qual foi a vossa eleição;
[13]5porque o nosso Evangelho não vos foi pregado somente com palavras, mas
também com virtude e no Espírito Santo e em grande plenitude, como sabeis quais nós fomos entre vós, por amor de vós.[15]6E vós vos fizestes imitadores nossos e do
Senhor, recebendo a palavra no meio de muita tribulação, com a alegria do Espírito Santo,[17]7de modo que vos tornastes modelo para todos os crentes na Macedônia e
na Acaia. [19]8Por meio de vós se difundiu a palavra do Senhor, não só pela
Macedônia e pela Acaia, mas também se propagou por toda a parte a fé que tendes em Deus, de sorte que não temos necessidade de dizer coisa alguma. [20]9De fato
eles mesmos (os fiéis) publicam de nós qual foi a aceitação que tivemos entre vós, como vos convertestes dos ídolos a Deus, para servirdes ao Deus vivo e verdadeiro [22]10e para esperardes do céu a seu Filho (a quem ele ressuscitou dos mortos) Jesus,
o qual nos livrou da ira que há de vir.
3. O Apóstolo quer aqui munir a Igreja contra as tribulações; e, primeiro, contra as tribulações presentes, e isto na primeira epístola; segundo, contra as tribulações futuras, no tempo do Anticristo, e isto na segunda. A primeira epístola se divide em saudação e em narração epistolar: Damos graças a Deus (v. 2). Igualmente, primeiro trata das pessoas que saúdam; depois, da Igreja que é saudada; e, por fim, dos bens apetecidos.
4. Mas deve notar-se que, como quando não pecamos, somos todos iguais, por isso como escreve a estes bons,[ 3 ] o Apóstolo não faz menção de cargo, mas somente do nome de sua humildade: Paulo. Sab. 7, 11: E inumeráveis riquezas vieram por suas
mãos. E acrescenta mais dois, que lhes pregaram com ele: Silvano, que é Silas, e Timóteo, a quem circuncidou, como se diz em Atos 16, 3.
5. Saúda, porém, a Igreja, que é congregação dos fiéis. E faz isto em Deus Pai e no
Senhor Jesus Cristo, isto é, segundo a fé na Trindade e na divindade e humanidade de
Cristo, porque nossa beatitude consistirá no conhecimento delas. Mas menciona a pessoa do Pai e a do Filho encarnado, nas quais se intelige o Espírito Santo, que é o nexo dos dois.
6. Os bens apetecidos são a graça, que é princípio de todos os bens (I Cor. 15, 10:
pela graça de Deus, sou o que sou), e a paz, que é o fim, porque há paz quando o
apetite é totalmente pacificado.
7. Quando ele diz em seguida: Damos graças a Deus, etc., começa a narração epistolar. Primeiro, louva-os pela perseverança passada; segundo, admoesta-os a bem
agir no futuro, cap. 4, 1: Quanto ao mais, etc. Igualmente, primeiro dá graças universalmente por seus bens; segundo, lembra-os em particular: Sabemos, irmãos, etc. Com respeito ao primeiro, faz duas coisas: primeiro põe a ação de graças; segundo, a sua matéria: Lembrando-nos, etc. Igualmente, primeiro rende graças por eles; segundo, ora por eles: fazendo continuamente memória de vós.
8. Quanto ao primeiro, pois, diz três coisas que devem estar na ação de graças. Primeira, ela deve ser ordenada, ou seja, [deve dirigir-se] a Deus. Por isso diz: Damos
graças a Deus. Sal. 84, 11: O Senhor dará graça e glória. Tia. 1, 17: Toda a dádiva excelente e todo o dom perfeito vem do alto e descende do Pai das luzes. Ademais,
deve ser assídua, razão por que [diz] sempre. Por fim, deve ser universal: por todos vós. I Tess. 5, 18: por tudo dai graças.
9. Em seguida, ora por eles, dizendo: fazendo continuamente memória de vós, etc., como se dissesse: Toda vez que oro, tenho-vos na memória. Romanos 1, 9:
Incessantemente faço menção de vós nas minhas orações.
10. Em seguida, quando diz: lembrando-nos da obra, põe os bens pelos quais rende graças, ou seja, a fé, a esperança e a caridade. I Cor. 13, 13: Agora, pois, permanecem
estas três coisas: a fé, a esperança, a caridade, etc. Antepõe a fé, porque é a substância das coisas que se esperam, etc. É necessário que o que se aproxima de Deus creia (Heb. 11, 1 e 6). Mas esta não é suficiente, se não tem operação e labor. Por
isso diz: a obra e o trabalho da vossa fé. Tia. 2, 26: A fé sem obras é morta. Igualmente, porque se o que trabalha por Cristo é derrotado, sua fé de nada lhe serve. Luc. 8, 13: até
certo tempo crêem, mas no tempo da tentação voltam atrás. Por isso diz: a obra e o trabalho. É como se dissesse: lembrando-nos de vossa fé que opera e trabalha.
[Lembra-lhes] também a caridade, em cujas obras abundam. I Tess. 4, 9: caridade da
fraternidade, etc. Igualmente, a esperança, que os faz suportar pacientemente as
adversidades. Rom. 12, 12: alegres na esperança, pacientes na tribulação. E a
constância, que a esperança produz. Tia. 5, 11: Vós ouvistes falar da paciência de Jó, etc. A esperança, diz ele, de Nosso Senhor, isto é, que temos em Cristo, ou que Cristo
nos deu. I Ped. 1, 3: regenerou-nos para uma esperança viva, etc. Esta esperança é
perante Deus, não perante os olhos dos homens. Mat. 6, 1: guardai-vos de fazer vossa justiça diante dos homens, etc. Heb. 6, 19: Temos a esperança como âncora segura da alma, etc. Com efeito, a esperança no Antigo Testamento não conduziu a Deus.
11. Em seguida, quando diz: sabemos, irmãos, lembra-lhes os bens em particular. Primeiro, louva-os por terem devota e prontamente aceitado a pregação, não obstante a tribulação. Segundo, por não retrocederem dela por causa da tribulação, no cap. 2, 1:
Efetivamente sabeis, etc. A primeira parte divide-se em duas, porque primeiro mostra de
que sorte foi esta pregação; depois, como foi por eles recebida: E vós vos fizestes
imitadores nossos, etc. Quanto ao primeiro faz três coisas: primeiro, mostra o que sabia
acerca deles; segundo, o modo de sua pregação: porque nosso Evangelho, etc.; terceiro, o que eles sabiam sobre o Apóstolo: sabeis, etc.
12. Diz, pois, irmãos amados de Deus, não só em comum, enquanto Deus vos dá o ser da natureza, mas enquanto sois especialmente chamados aos bens eternos. Mal. 1,
2-3: Amei Jacó, mas aborreci Esaú, etc. Deut. 33, 2-3: Ele amou os povos, etc. Vossa
eleição. Como se dissesse: com toda a certeza reconheço-vos eleitos, porque não
merecestes a eleição, mas fostes eleitos gratuitamente por Deus. E isto eu sei porque Deus me deu um grande argumento na pregação, ou seja, aqueles a quem falo são eleitos de Deus, quando Deus lhes dá a graça de ouvir frutuosamente a palavra que lhes é pregada, ou quando me dá a graça de pregar-lhes copiosamente. Ezequiel 3, 26 parece, porém, contradizê-lo: e eu farei que a tua língua se pegue ao teu paladar, etc.
13. Por isso, primeiro, lembra quão virtuosamente lhes pregou; segundo, induz a seu testemunho: como sabeis. Em verdade pregou virtuosamente, porque não o fez com sermão sublime, mas com virtude. I Cor. 2, 4: A minha conversação e a minha
pregação não consistiram em palavras persuasivas da humana sabedoria, mas na manifestação do espírito e da virtude. I Cor. 4, 20: O reino de Deus não consiste nas palavras, mas na virtude. Ou isto pode referir-se à confirmação da pregação, ou à
maneira de pregar. Se se refere ao primeiro: minha pregação foi confirmada entre vós, não por argumentos, mas pela virtude dos milagres.[ 4 ] Mar. 16, 20: Cooperando com
eles o Senhor, e confirmando sua pregação com os milagres que a acompanhavam.
Também foi confirmada pela doação do Espírito Santo. Por isso diz: no Espírito Santo. Atos 10, 44: Estando Pedro ainda proferindo estas palavras, desceu o Espírito Santo
sobre todos os que ouviam a pregação, etc. Heb. 2, 4: Comprovando Deus o seu testemunho por meio de sinais, maravilhas, várias virtudes e distribuições de Espírito Santo. E em plenitude, etc. Acrescenta isto para que não creiam ter recebido menos do
que os judeus. Como se dissesse: o Espírito Santo não faz acepção de pessoas, mas esteve convosco na mesma plenitude com que esteve com os judeus. At. 2, 4: foram
todos cheios do Espírito Santo, etc. Mas se se refere ao segundo: em virtude, isto é,
exibindo-vos uma vida virtuosa. At. 1, 1: Jesus começou a fazer e a ensinar. E no
Espírito Santo, ou seja, por seu impulso. Mat. 10, 20: Não sereis vós que falais, etc. Em grande plenitude, porque vos instruí em todas as coisas necessárias à fé.
14. Induz, porém, o testemunho dos fiéis ao dizer: como vós sabeis, etc., isto é, quais dons e virtudes mostramos a vós. II Cor. 5, 11: Espero que também sejamos conhecidos
das vossas consciências.
15. Quando diz em seguida: e vós vos fizestes imitadores nossos, etc., mostra como aceitaram sua pregação virtuosamente, sem recuar por causa das tribulações. Primeiro, mostra a sua virtude em imitar os outros; segundo, em se apresentarem como dignos de ser imitados: de modo que vos tornastes.
16. Quanto ao primeiro faz duas coisas; primeiro, mostra os que foram imitados; segundo, em que os imitaram: recebendo. Quanto ao primeiro diz que eles imitaram os que deviam ser imitados, ou seja, os prelados. E por isso diz: vós vos fizestes imitadores
nossos. Fil. 3, 17: Sede meus imitadores, irmãos. Mas não nos imitaram naquilo em que
prevaricamos como homens, e sim naquilo em que imitamos a Cristo. Por isso também diz em I Cor. 4, 16: Sede meus imitadores, como eu o sou do Cristo, isto é, naquilo em que imitei a Cristo, a saber, na paciência em tempo de tribulação. Mat. 16, 24: Se alguém
Cristo também sofreu por nós, deixando-vos o exemplo, para que sigais as suas pisadas. E por isso diz: no meio de muita tribulação, com a alegria, isto é, conquanto
muitas tribulações os ameaçassem por causa da palavra, contudo vós a aceitastes com gáudio. Tia. 1, 2: Tende por um motivo da maior alegria para vós as tribulações que
vos afligem, etc. At. 5, 41: Os apóstolos saíam da presença do conselho, contentes por terem sido achados dignos de sofrer pelo nome de Jesus. Com a alegria, diz ele, do Espírito Santo, e não de outro qualquer, pois ele é o amor de Deus, que engendra alegria
nos que sofrem por Cristo porque o amam. Cant. 8, 7: Ainda que um homem dê todas as
riquezas de sua casa pelo amor, ele as desprezará como nada.
17. E vós sois nossos imitadores de tal modo que podeis ser imitados por outros. Por isso diz: de modo que vos tornastes, etc. Quanto a isso enuncia três coisas: primeira, mostra que são imitáveis; segunda, como sua fama foi divulgada: por meio de vós se
difundiu, etc.; terceira, como são louvados por todos os povos: eles mesmos publicam, etc.
18. Portanto, diz: vós nos imitastes tão perfeitamente de modo que vos tornastes
modelo, ou seja, um exemplo de vida, não só em vossa terra, mas em outras. Mat. 5, 16: Assim brilhe a vossa luz diante dos homens, para que vejam as vossas boas obras, etc.
19. Porém vos tornastes exemplo para os fiéis aos quais a vossa fé se fez conhecida, aos quais chegou a vossa bondade. Por meio de vós se difundiu a palavra do Senhor, isto é, ao pregar o Senhor, propagou-se vossa fama, não só pela Macedônia e pela
Acácia, que vos são próximas, mas a fé perfeita que tendes em Deus – aquela que Deus
aceita e que vos une a Ele – propagou-se também por toda a parte. Rom. 1, 8: Vossa fé
é celebrada em todo o mundo, etc. E um sinal disto é que não temos necessidade de dizer coisa alguma. Pois o bom pregador propõe o bem feito pelos outros como
exemplo. II Cor. 9, 2: O vosso zelo tem estimulado muitos.
20. Ao dizer em seguida: De fato eles mesmos, etc., põe o louvor que eles recebem dos outros, pois são eles mesmos que publicam, etc. Prov. 31, 31: e as suas obras a louvam
nas portas da cidade. Louvam, porém, em vós a minha pregação e a vossa conversão.
Anunciam, pois, a aceitação que tivemos entre vós, pois padecíamos grande dificuldade e tribulações. Louvam também vossa conversão.
21. E indicam como, de que e a que fostes convertidos. Quanto ao primeiro diz: como
vos convertestes a Deus, isto é, quão facilmente e perfeitamente. Joel 2, 12: Convertei-vos a mim de todo o Convertei-vosso coração, etc. Eclo. 5, 8: Não tardes em te converter ao Senhor, e não difiras de dia para dia. Quanto ao segundo, diz: dos simulacros. I Cor.
12, 2: Sabeis que, quando éreis gentios, concorríeis aos simulacros mudos, conforme
éreis levados. Quanto ao terceiro, diz: para servirdes a Deus, ou seja, prestando a Deus,
e não à criatura, um culto de adoração. Isto é o contrário do dito em Rom. 1, 25:
adoraram e serviram à criatura de preferência ao Criador, etc. Diz vivo para excluir o
culto idolátrico, já que os idólatras adoravam alguns mortos cujas almas diziam ser deificadas, como a de Rômulo e a de Hércules. Deut. 32, 40: Eu vivo eternamente. Igualmente, porque os platônicos acreditavam que certas substâncias separadas eram
deuses por participação, diz verdadeiro, não por participação da natureza divina, mas porque Deus recompensa os que o servem.
22. Por isso, como sois servos dele, resta-vos esperar a recompensa. Por isso diz: para
esperardes a seu Filho, ou seja, o Filho de Deus, descendo do céu. Luc. 12, 36: Fazei como os homens que esperam o seu senhor quando volta das bodas. Is. 30, 18: ditosos todos os que o esperam. Estes são os que têm os rins cingidos. Há duas coisas, porém,
que esperamos: primeira, a ressurreição, para que assim nos conformemos a Ele. Por isso diz: a quem Ele ressuscitou dos mortos, Jesus. Rom. 8, 11: Ele, que ressuscitou
Jesus Cristo dos mortos, também dará vida aos vossos corpos mortais, etc. Fil. 3, 21: Transformará o nosso corpo de miséria, fazendo-o semelhante ao seu corpo glorioso.
Segunda, a libertação da pena futura reservada aos réprobos.[ 5 ] Mas somos libertos da causa da pena, ou seja, do pecado, por Cristo. Por isso diz: o qual nos livrou da ira que
há de vir. Apoc. 6, 16: Escondei-nos da face daquele que está sentado sobre o trono e da ira do Cordeiro. Ninguém pode livrar-nos desta ira senão Cristo. Mat. 3, 7: Quem vos ensinou a fugir à ira vindoura?