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XIII Reunião de Antropologia do Mercosul 22 a 25 de Julho de 2019, Porto Alegre (RS)

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XIII Reunião de Antropologia do Mercosul 22 a 25 de Julho de 2019, Porto Alegre (RS)

Grupo de Trabalho: GT 12 - Antropologia da saúde: perspectivas, debates e problemas

Representações e visibilidades: definições de caso para sífilis no sistema de saúde brasileiro

Eduardo Doering Zanella

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Em dezembro de 2018, as nações unidas publicaram em seu sítio virtual uma notícia sobre o avanço da epidemia de sífilis no Brasil, que se iniciava com o seguinte texto:

No Brasil, a população mais afetada pela sífilis são as mulheres, principalmente as negras e jovens, na faixa etária de 20 a 29 anos.

Somente esse grupo representa 14,4% de todos os casos de sífilis adquirida e em gestantes notificados. Na comparação por sexo, as mulheres de 20 a 29 anos alcançam 26,2% do total de casos notificados, enquanto os homens nessa mesma faixa etária representam apenas 13,6% (NAÇÕES UNIDAS, 2018).

Enunciados deste tipo são formados de dados epidemiológicos, um campo das ciências da saúde e da medicina em particular, produtos de um sistema de vigilância em saúde. A sífilis1 é uma doença de notificação obrigatória no Brasil, o que significa que qualquer profissional de saúde, do setor público ou privado, que confirmar o seu diagnóstico, deve preencher uma ficha de notificação, um instrumento que contém uma série de dados sobre o caso positivo em questão. O documento preenchido é enviado para o setor da vigilância em saúde que trabalha com a sífilis, no caso do Estado do Rio Grande do Sul trata-se do Setor de Doenças e Agravos Não Transmissíveis, local em que as informações das fichas de notificação são combinadas de modo a formar bancos de dados, de modo a permitir análises como a selecionada acima.

No presente trabalho, busco compreender a produção deste tipo de informação. Trata-se de uma modalidade de dado que descreve a doença, lhe atribui propriedades específicas e caracteriza sua distribuição em um espaço e população. Argumento que tais elaborações constituem representações, cuja principal característica é a produção de visibilidades para a doença em foco, no caso a sífilis. Ou seja, constituem expressões para o objeto ao qual se reportam, e lhe revelam certas qualidades ao mesmo tempo em que ocultam outras.

Objetivo analisar as ferramentas mobilizadas na produção destas representações, as fichas de notificação. Em específico, trata-se de elaborar uma descrição das alterações e mudanças nas definições de caso de sífilis – adquirida, congênita e em gestante2

1 A Sífilis constitui uma infecção sexualmente transmissível (IST), provocada pela bactéria Treponema Pallidum. A enfermidade se manifesta por meio de quatro fases: primária (entre 4 a 8 semanas, com o aparecimento de úlceras indolores na área infectada), secundária (entre 2 a 6 meses, com erupções cutâneas espalhadas pelo corpo), latente (de 2 a 40 anos, e se caracteriza pela ausência de sintomas significativos) e terciária (formação de gomas sifilíticas, tumorações, deformidade articular, efusões bilaterais no joelho, neurosífilis e sífilis cardiovascular).

2 As definições de caso serão discutidas em detalhes e constituem o objeto mesmo do presente trabalho, mas para fins de compreensão inicial é pertinente referir que a Sífilis congênita é contraída pelo infanto durante a gravidez, sífilis adquirida é obtida por meio de relações sexuais ou contato intravenoso, e sífilis em gestante constitui o diagnóstico de mulher grávida com sífilis.

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utilizadas em tais instrumentos. Na sequência, exponho de que maneira trabalho com o conceito de representação e de visibilidade no presente estudo.

Representações.

A epidemiologia constitui campo do conhecimento científico cujo propósito fundamental é a descrição da distribuição dos fenômenos de saúde-doença, e seus fatores condicionantes e determinantes, em uma população e região específica. O empreendimento epidemiológico estabelece as características determinadas que envolvem a frequência e a difusão de um agravo em um espaço determinado: sua repartição por gênero, idade, raça e cor, escolaridade, os meios de transmissão, os tratamentos utilizados, formas de contaminação, entre muitas outras variáveis, que serão alteradas de acordo com o fenômeno em questão.

Parto do princípio que a elaboração de descrições epidemiológicas relativas a doenças e agravos, bem como situações de saúde de uma população, constituem esforços dirigidos para a produção de representações do objeto ou entidade ao qual se reportam. São formas de caracterizar os fenômenos de saúde-doença, de conhecê-los, a fim de agir sobre os mesmos.

O conceito de representação no presente trabalho não é utilizado no sentido de indicar uma correspondência de natureza entre um signo, social ou simbólico, e o seu referente, objetivo, material e inato. Compreendido nesse sentido, o conceito de representação constituiria uma prática mental que vincularia ideias abstratas e genéricas a um mundo pré representacional por definição. Diferentemente, representações são compreendidas como elaborações práticas que produzem efeitos concretos no mundo a partir do qual emergem. Seguindo esta orientação, alguns autores, especialmente aqueles vinculados ao campo de estudos sociais da tecnologia e da prática científica, argumentam que representações são performativas. Com isto, afirmam que a representação constitui um objeto sociotécnico de elaboração contínua, produtores das realidades às quais se dirigem.

John Law (2014) é um dos autores que segue esta linha de argumentação. Em vez de perguntar o que formam as representações científicas, ou seja, do que são feitas, o autor questiona o que as representações fazem, ou seja, quais seus efeitos concretos sobre o mundo. Nesse sentido, o autor sugere que as representações performam os objetos e entidades que representam, de modo que a realidade objetiva é trazida à tona (enected) em práticas científicas sociomateriais. Representações constituem, dessa forma, o objetivo ou mesmo a finalidade da prática tecnocientífica.

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Já Suchman (2014), outra autora vinculado a este campo, aponta para as inclusões e exclusões inerentes às práticas representacionais do fazer científico. A autora argumenta que os objetos constitutivos das práticas representacionais são delineados a partir de práticas reiterativas, materialistas e discursivas, cujas delimitações estabelecem relações dentro-fora nas representações elaboradas pela ciência. Kemp (2014), outro autor, vai na mesma linha ao afirmar que, no sentido mais amplo, todo ato de representação é intencionalmente seletivo, assim como são nossos atos de ver.

Deste modo, um dos aspectos que está em jogo na produção de representações é, justamente, os recortes realizados no processo de suas elaborações, as escolhas que dizem respeito aos delineamentos do objeto ou entidade. Ou seja, o jogo de visibilidades e apagamentos inerentes à fabricação de representações.

Visibilidades.

De acordo com Foucault (2014), a visibilidade é umas das funções fundamentais ao exercício do poder na modernidade, entendida como o momento em que, nas sociedades ocidentais, se difundem os dispositivos disciplinares, aparatos que visam a produção de corpos tanto dóceis quanto úteis. O autor aborda este tópico ao analisar a arquitetura do panóptico, dispositivo arquitetônico cuja principal característica é a de permitir ampla visibilidade de seu interior, a partir de um ponto que, ele próprio, não é enxergado.

É o modo como a visibilidade funciona no panóptico que o torna particularmente representativo do poder disciplinar. Este dispositivo arquitetônico dissocia o par ver-ser-visto: sua visibilidade é unilateral, de modo que o sujeito a ele submetido é visto, mas não vê. Ou seja, torna-se objeto de uma informação e não sujeito de uma comunicação. A visibilidade no panóptico é também constante: “o dispositivo panóptico organiza unidades espaciais que permitem ver sem parar e reconhecer imediatamente”. (FOUCAULT, 2014, p. 194).

Assim, o efeito mais importante do panóptico é inculcar no sujeito a consciência de sua visibilidade permanente, o que garante o funcionamento automático do poder, via a sujeição de seus corpos a uma relação de docilidade-utilidade. Desta forma, mesmo que descontínua em sua ação, a vigilância é ininterrupta em seus efeitos. É esta submissão dos sujeitos a um campo permanente de visibilidades classificatórias que faz deste dispositivo uma máquina de ver e uma figura arquitetural da composição do poder disciplinar (FOUCAULT, 2014).

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De acordo com Foucault, é a partir do panóptico que o poder disciplinar se difunde no corpo social, sendo assim emblemático da sociedade disciplinar. Esta extensão das instituições disciplinares, de acordo com o autor, é o aspecto mais visível de processos mais profundos, que o autor denomina inversão funcional das disciplinas, estatização dos mecanismos de disciplina e ramificação dos dispositivos disciplinares. Este último se refere a desinstinstitucionalização dos mecanismos dos estabelecimentos de disciplina. Parte desse processo diz respeito à uma mudança na concepção dos hospitais, compreendidos como ponto de apoio para a vigilância médica da população externa. Desta forma, estas instituições passam a ter como função não somente recolher os doentes de uma região, mas também “reunir informações, tomar conta dos fenômenos endêmicos ou epidêmicos, abrir dispensários, dar conselhos aos moradores e manter as autoridades a par do estado sanitário da região” (FOUCAULT, 2014, p. 205).

Desta forma, de acordo com as ideias de Foucault, é possível afirmar que a emergência da vigilância em saúde, concebida como o aparato de produção sistemática de informações sobre a distribuição doenças em populações determinadas, constitui um processo próprio de uma sociedade disciplinar, caracterizada pelo exercício de um poder que se dá tanto no nível da população, objeto a ser medido, esquadrinhado e descrito, quanto no nível dos corpos, lhes impondo relações de docilidade-utilidade.

Os sistemas de vigilância em saúde contemporâneos também objetivam, fundamentalmente, a produção de visibilidades. Não se trata da visibilidade de sujeitos no interior de um dispositivo arquitetônico, tal qual o panóptico, mas sim da visibilidade de doenças e agravos em uma população. Trata-se de determinar suas características principais: incidência (quantidade de casos novos da doença) e prevalência (quantidade de casos existentes de uma doença, novos e antigos), distribuição por raça, cor, sexo, idade, escolaridade, tratamento realizado, entre outras variáveis. Aqui também, revelar as facetas e os aspectos da doença é fundamental para a gestão da população sobre a qual incide. Ou seja, a visibilidade, neste caso, também é fundamental ao exercício do poder.

Para compreender os sistemas de vigilância em saúde como aparatos que fabricam visibilidades, não se deve tomar este processo como uma prática, em si mesma, de natureza visual. Para Lynch (2014), o termo visualização constitui uma formação temporal e prática do que se torna observável, mensurável, comparável. Trata-se de um processo constante e inacabável, que ocorre em contínuo. Para o autor, a visualização não se

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restringe a práticas que permitem que algo seja visto, ou seja reveladoras de um objeto, mas inclui também toda a gama de práticas que fazem e prestam contas às formas materiais, concretas, das coisas e campos que os cientistas investigam (LYNCH, 2014). Assim, a visualização inclui os arranjos de materiais e instrumentos que produzem exibições visuais. Ou seja, os resultados das práticas de visualização operam forma bastante diferente do “olho da mente”. Em outras palavras, de acordo com Lynch, a visualização é tanto o trabalho das mãos quanto o do chamado olhar.

A partir dessas orientações, o presente trabalho centra-se nas práticas de visualização epidemiológica da sífilis, no contexto do sistema de saúde brasileiro, compreendidas então como representações. Objetivo empreender uma análise das mudanças e alterações nas fichas de notificação para sífilis; em específico, este estudo está centrado nas modificações das definições de caso para sífilis congênita, adquirida e em gestante.

Definições de caso constituem os critérios que confirmam o caso positivo para notificação. A definição de caso serve para padronização dos diagnósticos, no sentido de tornar comparáveis as situações que regulam a entrada dos casos no sistema de informação – no caso da sífilis, trata-se do sistema de informação de agravos notificação (SINAN), destinado às doenças e enfermidades de notificação obrigatória pelo Ministério da Saúde. A definição de caso de uma doença ou agravo pode ser alterada em função de modificações na epidemiologia ou sintomatologia da doença, ou com o objetivo de expandir ou diminuir os parâmetros de ingresso de casos no sistema de informação, de modo a aumentar ou reduzir sua sensibilidade (capacidade de uma definição abarcar um amplo espectro de casos, possivelmente maior que o existente em uma situação epidemiológica) ou especificidade (qualidade de uma definição se restringir a poucos casos, possivelmente menor que o existente em uma situação epidemiológica).

Apresenta-se, na sequência, uma descrição das modificações das definições de caso para sífilis – adquirida, congênita e em gestante – identificadas em um levantamento de documentos, guias de vigilância em saúde, boletins epidemiológicos e diretrizes terapêuticas.

Este é um primeiro exercício no sentido de apontar tais mudanças na notificação obrigatória da sífilis, de modo que é possível que ajam mais modificações que as identificadas durante o período em realizei este estudo. Ou seja, pretende-se

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continuar o levantamento aqui empreendido acerca das definições de caso para sífilis no sistema de saúde brasileiro.

É importante referir também que foi possível rastrear a definição de caso de sífilis congênita com maior riqueza de detalhes, em comparação com a sífilis em gestante e sífilis adquirida. Isto se deve ao fato de que este se trata de um diagnóstico com notificação obrigatória desde 1986, e com grande importância social, de maneiras que as informações a seu respeito se encontram mais disponíveis à investigação.

Sífilis Congênita: Guia de Vigilância Epidemiológica – Ministério da Saúde (BRASIL, 1998).

O Guia de Vigilância Epidemiológica do Ministério do Ministério da Saúde, em sua quarta edição, utiliza cinco critérios para definir casos de sífilis congênita. Este guia constitui uma obra de referência para o campo da vigilância epidemiológica do sistema de saúde brasileiro, cuja última atualização é do ano de 2017. Trata-se de um documento que serve para orientar os profissionais da saúde em campo, trazendo as normatizações utilizadas em suas práticas de trabalho. O documento utilizado neste trabalho é do ano dede 1998. O primeiro critério é o seguinte:

1. Toda criança cuja MÃE teve Sífilis NÃO TRATADA ou

INADEQUAMENTE TRATADA, independentemente da presença de sinais, sintomas e resultados laboratoriais;

Neste critério, para a confirmação do diagnóstico de sífilis congênita, é suficiente que a mãe seja portadora de sífilis, e não tenha recebido tratamento para a doença ou recebido tratamento inadequado, não se fazendo necessário a realização de testes específicos de detecção de sífilis na criança. Como a notificação de sífilis em gestante ainda não era obrigatória em 1998, não há, neste documento, uma definição de caso que aponte condições específicas para determinar uma “mãe que teve sífilis”.

Já o critério dois da definição de caso do Guia de Vigilância Epidemiológica do ano de 1998 exige a realização de teste reagente para sífilis na criança, acrescido de seis condições alternativas:

2. toda criança que apresentar um TESTE REAGÍNICO POSITIVO para Sífilis e alguma das seguintes condições:

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• evidência de sintomatologia sugestiva de Sífilis Congênita ao exame físico, como: hepatomegalia, erupção cutânea, condiloma lata, icterícia (hepatite sifilítica), pseudo-paralisias, anemia, trombocitopenia ou edema (síndrome nefrótica), ceratite intersticial, surdez neurológica, arqueamento anterior da tíbia, nariz em sela, entre outros;

• evidência de Sífilis Congênita ao exame radiológico;

• evidência de alterações no Líquido Céfalo-Raquidiano (LCR): teste para anticorpos, contagem de linfócitos e dosagem de proteínas;

• títulos reagínicos do recém-nato maior ou igual a 4 vezes o título materno, na ocasião do parto;

• evidência de elevação de títulos reagínicos em relação a títulos anteriores;

• positividade para anticorpos IgM contra Treponema pallidum.

O critério 3 exige evidência laboratorial da bactéria que provoca a sífilis, Treponema pallidum, em amostra oriunda de parte do corpo da criança, especificando também as técnicas a serem utilizadas no exame:

3. toda criança com evidência laboratorial do Treponema pallidum em material colhido de lesões, placenta, cordão umbilical ou necrópsia, em exame realizado ATRAVÉS DE TÉCNICAS DE CAMPO ESCURO, IMUNOFLUORESCÊNCIA ou outra coloração específica;

A realização de teste reagente para sífilis na criança só é suficiente para confirmar diagnóstico de sífilis congênita no quarto critério da presente definição de caso, e mesmo assim somente em crianças a partir de seis meses de idade:

4. toda criança com teste reagínico positivo após o sexto mês de idade, exceto em situação de seguimento pós-terapêutico e de Sífilis adquirida; e

O último critério se assemelha ao primeiro, ao condicionar o diagnóstico de sífilis congênita do natimorto ao fato da mãe ser portadora de sífilis e não ter recebido tratamento ou ter recebido tratamento inadequado, independente da realização de testes para detecção da doença. Novamente, uma vez que à época desta definição

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não era obrigatória a notificação de casos de sífilis em gestante, não se explicita quais são os critérios necessários para a confirmação dessa condição:

5. todo caso de MORTE FETAL ocorrida após 20 semanas de gestação ou com peso maior que 500 gramas, cuja mãe, portadora de sífilis, não foi tratada ou foi inadequadamente tratada, é definido como NATIMORTO SIFILÍTICO.

A presente definição de caso ainda distingue a sífilis congênita precoce, diagnosticada até o segundo ano de vida, da sífilis congênita tardia, diagnosticada após esta idade, desde que seja descartada a possibilidade de sífilis adquirida, decisão que deve ser “baseada na história materna e no julgamento clínico”.

Sífilis congênita: Diretrizes para o Controle da Sífilis Congênita - Série Manuais nº 62 – Ministério da Saúde (BRASIL, 2005).

Esta definição de sífilis congênita foi atualizada no ano de 2004, e se encontra presente no documento Diretrizes para o Controle de Sífilis Congênita, edição número 62 da série Manuais do Ministério da Saúde, de 2005. Ao invés de cinco, agora são quatro critérios que compõe a definição de caso de sífilis congênita:

1. Toda criança, ou aborto, ou natimorto de mãe com evidência clínica para sífilis e/ ou com sorologia não-treponêmica3 reagente para sífilis com qualquer titulação, na ausência de teste confirmatório treponêmico realizada no pré-natal ou no momento do parto ou curetagem, que não tenha sido tratada ou tenha recebido tratamento inadequado.

Diferentemente do primeiro critério do Guia de Vigilância Epidemiológica de 1998, que mencionava apenas “criança cuja mãe teve sífilis”, o presente critério passa a incluir aborto e natimorto. Há também uma preocupação em definir a condição da mãe: onde se lia “mãe com sífilis”, agora há a especificação “mãe com evidência clínica para sífilis”.

3 A qualificação de um teste como treponêmicos ou não treponêmicos diz respeito à sua capacidade de detectar a sífilis: testes treponêmicos acusam a presença da sífilis por meio de verificação de anticorpos no corpo humano reagentes à bactéria treponema pallidum, testes não treponêmicos detectam a presença de sífilis por meio da verificação de outros reagentes.

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Contudo, segue excluído deste primeiro critério de definição de caso para sífilis congênita, a necessidade de realização de testes reagentes para sífilis na criança, sendo suficiente para confirmar o diagnóstico evidência clínica de sífilis na mãe.

2. Todo indivíduo com menos de 13 anos de idade com as seguintes evidências sorológicas:

• titulações ascendentes (testes não-treponêmicos); e/ou

• testes não-treponêmicos reagentes após seis meses de idade (exceto em situação de seguimento terapêutico); e/ou

• testes treponêmicos reagentes após 18 meses de idade; e/ou

• títulos em teste não-treponêmico maiores do que os da mãe. Em caso de evidência sorológica, apenas deve ser afastada a possibilidade de sífilis adquirida.

O segundo critério da definição do Guia de Vigilância Epidemiológica do ano de 1998, a primeira utilizada neste exercício, para confirmação do diagnóstico de sífilis congênita, mencionava em seu texto “toda criança” que apresentar teste reagente para sífilis, ao que acrescia a necessidade da existência de ao menos uma das condições listadas. O critério de 2004 substitui o termo vago “criança” por “indivíduo com menos de 13 anos”, de modo a definir com maior precisão o sujeito passível do diagnóstico de sífilis congênita. Com relação às condições listadas, neste novo critério são mencionados somente evidências sorológicas, testes treponêmicos e não treponêmicos, e são excluídas evidências para sífilis congênita via exame físico, exame radiológico e alterações no Líquido Céfalo-Raquidiano. Estes dois últimos são alocados em um terceiro critério:

3. Todo indivíduo com menos de 13 anos, com teste não-treponêmico reagente e evidência clínica ou liquórica ou radiológica de sífilis congênita

O quarto critério da definição de caso cotindo nas Diretrizes para o Controle da Sífilis Congênita do ano de 2004 equivale ao terceiro critério do Guia de Vigilância Epidemiológica de 1998. A principal diferença entre estes dois critérios diz respeito ao fato de que, agora, na confirmação de caso de sífilis congênita, são incluídas evidencias de infecção pelo Treponema pallidum em amostras de aborto e natimorto,

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e não somente crianças. Este critério menciona somente a realização de exames microbiológicos, e não procedimentos específicos, tal como técnicas de campo escuro e imunofluorescência, citados na definição de caso anterior.

4. Toda situação de evidência de infecção pelo T. pallidum na placenta ou no cordão umbilical e/ou em amostras da lesão, biópsia ou necropsia de criança, produto de aborto ou natimorto, por meio de exames microbiológicos.

Sífilis congênita: Boletim Epidemiológico – Sífilis – Ministério da Saúde (BRASIL, 2015)

O ano de 2012 foi o primeiro em que foi lançado um boletim epidemiológico específico para sífilis. Nos anos anteriores, as descrições epidemiológicas das doença eram incluídas no boletim epidemiológico do HIV/AIDS. Contudo, o boletim de 2012 não traz nenhuma definição de caso para a doença. Já em 2015, o boletim epidemiológico de sífilis anuncia que, em sua presente edição, apresentam-se as novas definições de caso para sífilis. Em específico, trata-se da sífilis congênita, cujos critérios de diagnóstico passam por uma nova atualização.

1

- Criança cuja mãe apresente, durante o pré-natal ou no momento do parto, teste para sífilis não treponêmico reagente com qualquer titulação E teste treponêmico reagente, que não tenha sido tratada ou tenha recebido tratamento inadequado;

- Criança cuja mãe não foi diagnosticada com sífilis durante a gestação e, na impossibilidade de a maternidade realizar o teste treponêmico, apresente teste não treponêmico reagente com qualquer titulação no momento do parto; - Criança cuja mãe não foi diagnosticada com sífilis durante a gestação e, na impossibilidade de a maternidade realizar o teste não treponêmico, apresente teste treponêmico reagente no momento do parto;

- Criança cuja mãe apresente teste treponêmico reagente e teste não treponêmico não reagente no momento do parto, sem registro de tratamento prévio.

A definição de 2015 expande o primeiro critério de confirmação de sífilis congênita das outras duas definições já mencionadas. Se anteriormente este critério

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era expresso em um parágrafo somente, agora são quatro situações que podem definir o caso de sífilis congênita.

A definição anterior possibilitava o diagnóstico a partir de evidência clínica da mãe, já na nova definição é imprescindível a realização de teste sorológico, treponêmico ou não treponêmicos. Busca-se maior precisão na confirmação da sífilis congênita, de modo a evitar o caráter genérico da categoria “evidência clínica”.

Ainda, os casos de aborto e natimorto são excluídos deste primeiro critério, sendo alocados no critério 3.

2. Todo indivíduo com menos de 13 anos de idade, com pelo menos uma das seguintes evidências sorológicas:

- Titulações ascendentes (testes não treponêmicos);

- Testes não treponêmicos reagentes após seis meses de idade (exceto em situação de seguimento terapêutico);

- Testes treponêmicos reagentes após 18 meses de idade;

- Títulos em teste não treponêmico maiores do que os da mãe, em lactantes;

- Teste não treponêmico reagente com pelo menos uma das alterações: clínica, liquórica ou radiológica de sífilis congênita.

O segundo critério de definição de caso para sífilis congênita acrescenta, com relação ao critério de 2005, a possibilidade de confirmação do diagnóstico via realização de teste não treponêmico reagente, acrescido de alterações clínicas, liquóricas ou radiológicas, que anteriormente estavam alocados no terceiro critério. Também foi acrescido a condição de lactantes, na alternativa que menciona “títulos em teste não treponêmicos maiores que os da mãe”.

O terceiro critério desta definição de caso não apresenta muitas novidades. Consiste em uma realocação do primeiro critério de 2004, que mencionava sífilis congênita em abortos a natimortos. Nesta definição, este critério também elimina a necessidade de evidência liquórica ou radiológica, já alocados no segundo critério.

3. Aborto ou natimorto cuja mãe apresente teste para sífilis não treponêmico reagente com qualquer titulação ou teste treponêmico reagente,

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realizados durante o pré-natal, no momento do parto ou curetagem, que não tenha sido tratada ou tenha recebido tratamento inadequado.

O quarto critério desta definição também apresenta poucas mudanças com relação ao seu anterior, somente excluindo a necessidade de verificar a infecção pelo Treponema pallidum por meio de exames microbiológicos.

4. Toda situação de evidência de infecção pelo Treponema pallidum em placenta ou cordão umbilical e/ou amostra da lesão, biopsia ou necropsia de criança, aborto ou natimorto.

A definição de 2015 também traz definições precisas acerca do que constitui o tratamento inadequado para sífilis:

Entende-se por tratamento inadequado:

- Tratamento realizado com qualquer medicamento que não seja penicilina; ou

- Tratamento incompleto, mesmo tendo sido feito com penicilina; ou - Tratamento inadequado para a fase clínica da doença; ou

- Instituição de tratamento dentro do prazo de até 30 dias antes do parto; ou

- Parceiro (s) sexual (is) com sífilis não tratado (s) ou tratado (s) inadequadamente.

Sífilis adquirida, em gestante e congênita: Nota técnica 02/2017 (BRASIL, 2017) Em 2017 o Ministério da Saúde elaborou a mais recente definição de caso para sífilis, atualizando as definições de sífilis em gestante, sífilis congênita e sífilis adquirida. Esta definição foi lançada na nota técnica 02/2017 do Departamento de Vigilância, Prevenção e Controle das IST, do HIV/Aids e das Hepatites Virais. Com referência a esta definição de caso, irei apontar as diferenças com relação as definições anteriores também no que diz respeitos aos casos de sífilis adquirida e sífilis em gestante, e não somente sífilis congênita.

A definição de caso de sífilis adquirida de 2017 define duas situações para a confirmação do diagnóstico: Indivíduo assintomático, com teste não treponêmico reagente com qualquer titulação e teste treponêmico reagente e sem registro de

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tratamento prévio; e Indivíduo sintomático para sífilis, com pelo menos um teste reagente - treponêmico ou não treponêmico com qualquer titulação. Já a definição de 2015 estabelece como caso confirmado (não havendo caso suspeito): “todo indivíduo com evidência clínica de sífilis primária ou secundária (presença de cancro duro ou lesões compatíveis com sífilis secundária), com teste não treponêmico reagente com qualquer titulação e teste treponêmico reagente, OU indivíduo assintomático com teste não treponêmico com qualquer titulação e teste treponêmico reagente”.

Ou seja, com ou sem sintomas para sífilis, a definição de 2015 exige que o paciente se submeta a dois testes, treponêmico e não treponêmico. Já na nova definição de caso, de 2017, a presença de sintomas para sífilis abre a possibilidade da realização de somente um teste, treponêmico ou não treponêmico. Isto significa que a confirmação do diagnóstico se torna mais simples e direta.

No que se refere à sífilis em gestantes, a definição de 2017 estabelece três situações para confirmar o diagnóstico:

1. Mulher assintomática para sífilis, que durante o pré-natal, parto e/ou puerpério apresente pelo menos um teste reagente - treponêmico E/OU não treponêmico com qualquer titulação – e sem registro de tratamento prévio.

2. Mulher sintomática para sífilis, que durante o pré-natal, parto e/ou puerpério e apresente pelo menos um teste reagente - treponêmico E/OU não treponêmico com qualquer titulação.

3. Mulher que durante o pré-natal, parto e/ou puerpério apresente teste não treponêmico reagente com qualquer titulação E teste treponêmico reagente, independente de sintomatologia da sífilis e de tratamento prévio.

*Casos confirmados de cicatriz sorológica não devem ser notificados.

Já a definição de 2015 é organizada da seguinte maneira:

Caso suspeito: gestante que durante o prét-natal apresente evidência clínica de sífilis, ou teste não treponêmico reagente com qualquer titulação”.

Caso confirmado:

1. Gestante que apresente teste não treponêmico reagente com qualquer titulação e teste treponêmico reagente, independente de qualquer evidência clínica de sífilis, realizados durante o prá-natal.

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2. Gestante com teste treponêmico reagente e teste não treponêmico não reagente ou não realizado, sem registro de tratamento prévio.

Na definição de 2015, somente a realização de teste não treponêmico de sífilis não era suficiente para confirmar diagnóstico de sífilis em gestante, apenas confirmava caso suspeito. A nova definição, de 2017, exclui a definição de caso suspeito e aceita a realização do teste não treponêmico para confirmação de caso de sífilis. Ou seja, os casos de sífilis em gestantes poderão ser definidos em mulheres assintomáticas com apenas um teste reagente, sem registro de tratamento prévio e, em caso de dois testes reagentes, independentemente de tratamento prévio. Há também uma expansão do período de detecção e classificação do caso de sífilis em gestante, passando a considerar o pré-natal, parto e puerpério, e não somente o período pré-natal.

No que se refere à sífilis congênita, a definição de 2017 estabelece três situações para confirmação do diagnóstico. Esta nova definição insere um conjunto significativo de modificações bastante detalhadas, motivo pelo qual irei apontar tais alterações de maneira individual.

1. Todo recém-nascido, natimorto ou aborto de mulher com sífilis (c) não tratada ou tratada de forma não adequada (d,e.c).

d Tratamento adequado: Tratamento completo para estágio clínico da sífilis com penicilina benzatina, e INICIADO até 30 dias antes do parto. Gestantes que não se enquadrarem nesses critérios serão consideradas como tratadas de forma não adequada.

e Para fins de definição de caso de sífilis congênita, não se considera o tratamento da parceria sexual da mãe.

Nesta definição, os casos de aborto e natimorto voltam ao primeiro critério. Há também outra novidade: convergência dos critérios de sífilis em gestante e de sífilis congênita. Na definição de 2015 de sífilis em gestante, não era possível a confirmação do diagnóstico somente com a realização de teste não treponêmico, contudo, o mesmo teste era admitido para confirmação de caso de sífilis congênita. Agora, tanto para sífilis em gestante quanto para sífilis congênita, são utilizados os mesmos critérios.

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Toda criança com menos de 13 anos de idade com pelo menos uma das seguintes situações:

• Manifestação clínica, alteração liquórica ou radiológica de sífilis congênita E teste não treponêmico reagente (f);

• Títulos de teste não treponêmicos do lactente maiores do que os da mãe, em pelo menos duas diluições de amostras de sangue periférico, coletadas simultaneamente no momento do parto;

• Títulos de testes não treponêmicos ascendentes em pelo menos duas diluições no seguimento da criança exposta (g) ;

• Títulos de testes não treponêmicos ainda reagentes após 6 meses de idade, em crianças adequadamente tratadas no período neonatal;

• Testes treponêmicos reagentes após 18 meses de idade sem diagnóstico prévio de sífilis congênita.

f Nesta situação, deve ser sempre afastada a possibilidade de sífilis adquirida em situação de violência sexual

g Seguimento da criança exposta: 1, 3, 6, 12 e 18 meses de idade

No segundo critério, que estabelece títulos de teste não treponêmicos do lactante maiores que o da mãe, se acresce a especificação “em pelo menos duas diluições de amostras de sangue periférico, coletadas simultaneamente no momento do parto”. No critério seguinte, o terceiro, também é acrescentado a especificação das duas diluições no seguimento da criança exposta. Já no quarto critério, que menciona a realização de “testes não treponêmicos ainda reagente após seis meses de idade”, há uma alteração sutil, com o acréscimo da palavra “ainda”. Ou seja, a nova definição de caso para sífilis congênita passa a recomendar a realização dos testes antes da criança completar seis meses. Para realização de testes treponêmicos reagentes após 18 meses de idade, no quinto critério, foi incluída a condição “sem diagnóstico prévio de sífilis congênita”.

3. Evidência microbiológica (h )de infecção pelo Treponema pallidum em amostra de secreção nasal ou lesão cutânea, biópsia ou necrópsia de criança, aborto ou natimorto.

h Detecção do Treponema pallidum por meio de exames diretos por microscopia (de campo escuro ou com material corado).

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Na terceira situação adiciona-se a especificação de que a evidência de infecção pelo Treponema Pallidum deve ser microbiológica, por meio de exames diretos por microscopia, de campo escuro ou com material colorado. Com relação à definição anterior, há a exclusão do cordão umbilical como lócus da evidência, e sua substituição pela secreção nasal, há também a especificação da lesão como lesão cutênea.

Ainda uma última consideração é importante de ser referida, a nova definição de caso de sífilis congênita de 2017 desconsidera a informação do tratamento concomitante da parceria sexual das gestantes para classificação do tratamento como adequado. Ou seja, para classificar os casos de sífilis congênita, deixou de ser levado em consideração o tratamento da parceria sexual para determinação do tratamento da mãe como inadequado.

Este tópico vem sofrendo alterações constantes. Em 2004 se considerava a realização de tratamento da parceria sexual da gestante um critério para definição de tratamento adequado da mãe para sífilis congênita; já em 2015, a ausência de informação acerca do tratamento do parceiro sexual da mãe deixa de ser um dos critérios para confirmar tratamento inadequado da mãe, mantendo-se esta definição apenas nos casos de parceiros com sífilis sabidamente não tratada; e na definição de caso mais recente, de 2017, tal informação passa a ser desconsiderada para classificação do tratamento como adequado ou inadequado.

Considerações finais.

O levantamento realizado permite a elaboração de algumas considerações e a proposição de argumentos de cunho analítico. Como se trata de um primeiro levantamento, estas são ainda ideias iniciais, a serem elaboradas em desenvolvimentos posteriores.

Se a sífilis mobilizou uma grande demanda de trabalho e atenção das autoridades sanitárias do Brasil entre os séculos XIX e XX (CARRARA, 1996), depois da década de 1940, quando se difundiu a penicilina benzatina, principal medicamento para o seu tratamento, a doença se tornou uma enfermidade com indicadores de morbimortalidade estáveis. Contudo, o aumento no número de casos da doença em um período recente novamente a coloca em uma situação de destaque diante dos mecanismos de gestão do cuidado e atenção do sistema de saúde brasileiro.

Sinal desta nova gravidade médica e social da sífilis é a complexificação de suas definições de caso. No período aqui abarcado, cresceram as situações possíveis para a confirmação do diagnóstico, assim como a variedade dos testes de detecção da

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doença. Se em 1998 havia uma definição enxuta para sífilis congênita, em 2017 apresenta-se uma definição bastante mais elaborada, que inclui sífilis em gestante e sífilis adquirida, que se tornaram agravos de notificação obrigatória no intervalo entre estes dois momentos. Esta mudança nas definições de caso nas notificações de sífilis aponta para o contínuo aumento da importância social da doença na história recente da saúde pública brasileira.

Tais mudanças na definição de caso de sífilis revelam, também, os modos por meio dos quais funcionam as práticas representacionais na ciência. Tal como argumenta Latour (2004), a imagem científica nunca é mimética. Diferentemente, na representação, a referência é movimento, trajetória, e não propriedade de uma imagem realista. Assim, não são as relações de semelhança entre signo e a referência que constituem a base para legitimidade das representações na ciência, mas sim as cadeias de transformação entre um e outro: são necessárias definições de caso, e alterações contínuas de tais definições, para produzir legitimidade na correspondência entre o vírus no corpo do sifilítico e a representação epidemiológica da sífilis.

Argumento, por fim, que as representações da sífilis produzidas a partir do aparato de notificação da doença podem ser compreendidas como uma forma de partilha do sensível, tal como Rancière define este conceito: um sistema de evidências sensíveis que revela, ao mesmo tempo, a existência de um âmbito compartilhado comum e dos recortes que ali determinam partes exclusivas (RANCIÈRE, 2005, p.15).

Trata-se de um conceito filosófico que explora as relações entre estética e política. O autor compreende a estética como o “sistema das formas a priori” que define o campo de possibilidades do sentir: “é um recorte dos tempos e dos espaços, do visível e do invisível, da palavra e do ruído que define ao mesmo tempo o lugar e o que está em jogo na política como forma de experiência” (RANCIÈRE, 2005, p.16). Já a política, segundo o autor, ocupa-se do que a estética permite sentir: “do que se vê e do que se pode dizer sobre o que é visto, de quem tem competência para ver e qualidade para dizer, das propriedades do espaço e dos possíveis do tempo” (RANCIÈRE, 2005, p.17). Ou seja, a política, no pensamento de Rancière, é função da estética.

No caso empírico deste trabalho, considero que esta partilha do sensível se evidencia nas próprias definições de caso: tratam-se de delimitações que estabelecem os critérios universais, comuns, para confirmação da existência própria da sífilis como doença de notificação, ao mesmo tempo em que classificam o diagnóstico, por meio de sua diferenciação interna, de acordo com a organização específica da definição de caso – ou seja, determinam se o caso notificado é de situação um, dois, três ou outra.

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Para além das definições de caso, os elementos mobilizados na produção dessas representações também são oriundos do mundo sensível: raça e cor, idade, sexo, etc. Ao se ancorar nestes marcadores, tal partilha do sensível estabelece tanto o fundo comum de onde são produzidas as representações para sífilis – estes elementos do mundo sensível –, quanto recorta diferenças e hierarquias, tendo em vista a distribuição desigual da doença na sociedade com relação às variáveis especificadas – raça, sexo, etc.

É a partir destes dados, cujas combinações formam as representações epidemiológicas da sífilis, que se irá discutir as diferentes possibilidades de gestão de sua reemergente epidemia no Brasil. Ou seja, é a estética – a mobilização de um sistema de evidências sensíveis – que estabelece o campo de possibilidades em que se discute e se faz a política.

Referências

BRASIL. Ministério da Saúde. Fundação Nacional da Saúde. Centro Nacional de Epidemiologia. Guia de Vigilância Epidemiológica. 1998. Brasília: Ministério da Saúde, 2005.

BRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria de Vigilância em Saúde. Programa Nacional de DST e Aids. Diretrizes para o Controle da Sífilis Congênita / Ministério da Saúde, Secretaria de Vigilância em Saúde, Programa Nacional de DST e Aids. Brasília: Ministério da Saúde. 2005.

BRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria de Vigilância em Saúde – Departamento de DST, AIDS e Hepatites Viriais. Boletim Epidemiológico – Sífilis. Brasília, Ministério da Saúde. 2015.

BRASIL. Ministério da Saúde. Departamento de Vigilância, Prevenção e Controle das IST, do HIV/Aids e das Hepatites Virais. Nota Técnica 02/2017. Brasília, Ministério da Saúde. 2017.

CARARRA, S. Tributo a vênus: a luta contra a sífilis no Brasil, da passagem do século aos anos 40. Rio de Janeiro: FIOCRUZ, 1996.

FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir: nascimento da prisão. Petrópolis, RJ: Vozes, 2014. LATOUR, Bruno. The More Manipulations, the Better. In: COOPMANS, VERTESI, LYNCH, WOOGLAR, (orgs). Representation in scientific practice revisited. MIT Press, London, UK, 2014.

LAW, John. Indistinct Perception. In: COOPMANS, VERTESI, LYNCH, WOOGLAR, (orgs). Representation in scientific practice revisited. MIT Press, London, UK, 2014.

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MARTIN, Kemp. A Question of Trust: Old Issues and New Technologies. In: COOPMANS, VERTESI, LYNCH, WOOGLAR, (orgs). Representation in scientific practice revisited. MIT Press, London, UK, 2014.

MICHAEL, Lynch. Representation in Formation. In: COOPMANS, VERTESI, LYNCH, WOOGLAR, (orgs). Representation in scientific practice revisited. MIT Press, London, UK, 2014.

NAÇÕES UNIDAS. Aumentam casos de sífilis no Brasil diz Ministério da Saúde. Disponível em: https://nacoesunidas.org/aumentam-casos-de-sifilis-no-brasil-diz-ministerio-da-saude/ (acesso em 03/02/2019)

RANCIÈRE, Jacques. A Partilha do Sensível: estética e política. São Paulo: EXO experimental org./Editora 34, 2005.

SUCHMAN, L. Reconfiguring Practices. In: COOPMANS, VERTESI, LYNCH, WOOGLAR, (orgs). Representation in scientific practice revisited. MIT Press, London, UK, 2014.

Referências

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