T R I B U N A L DE J U S T I Ç A DO E S T A D O DE S À O P A U L O TRIBUNAL DE JUSTIÇA DE SÃO PAULO
ACÓRDÃO/DECISÃO MONOCRATICA REGISTRADO(A) SOB N°
ACÓRDÃO llllllllllllllllllllllllllllllllllll iiiiiiii
USUCAPIÃO ESPECIAL URBANA - Irrelevância da irregularidade dominial do imóvel, salvo marcada fraude à lei - Concordância dos confrontantes, da Mitra Diocesana como titular do domínio, bem como ausência de impugnação das Fazendas Públicas - Prova testemunhai que atesta os atos de posse dos usucapientes -Desinteresse do Município em determinar se o lote em questão faz parte de imóvel que lhe pertence - Ação procedente - Recurso improvido.
Vistos, relatados e discutidos estes autos de Apelação Cível n- 397 714 4/5-00, da Comarca de CAÇAPAVA, onde figuram como apelante MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE SÃO PAULO e apelados BENEDITO DOMICIANO BATISTA E OUTRA
ACORDAM, em Quarta Câmara de Direito Privado do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, por votação unânime, negar provimento ao recurso, de conformidade com o relatório e voto do Relator, que ficam fazendo parte do acórdão
Cuida-se de recurso de apelação interposto contra a r sentença de fls 116/117 dos autos, que julgou procedente a ação de usucapião ajuizada por BENEDITO DOMICIANO BATISTA E OUTRA
Fê-lo a r sentença, forte no argumento de que a prova testemunhai e documental acostada aos autos confirmou o preenchimento dos requisitos da usucapião pro moradia Os autores lograram comprovar o exercício da posse mansa e pacífica, há mais de dez anos, com ânimo de senhores, sem perturbação sobre o imóvel usucapiendo Observou ainda que
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os possíveis interessados foram regularmente citados e não se opuseram ao pedido, o que corrobora a veracidade das alegações iniciais dos requerentes
Irresignado, o Ministério Público recorreu alegando, em breve síntese, que o imóvel objeto da presente demanda situa-se no Bairro de Caçapava Velha, onde existem diversos loteamentos clandestinos, de modo que se faz necessária a devida regularização dos lotes daquela região. Insiste que não há possibilidade, no ordenamento jurídico brasileiro, da obtenção da propriedade por usucapião no presente caso, enquanto não for regularizado o parcelamento do solo Assim, requer a extinção do processo sem julgamento do mérito dada a impossibilidade jurídica do pedido, nos termos do artigo 267, VI, do Código de Processo Civil.
0 recurso foi contrariado (fls. 138/142).
Manifestou-se a Procuradoria Geral de Justiça pelo provimento do recurso (fls. 146/156)
É o relatório.
1 O recurso não comporta provimento, e a bem lançada sentença se mantém por seus próprios fundamentos.
Desde as fontes romanas, a usucapião é modo não só de adquirir a propriedade, mas também de sanar os vícios de propriedade ou outros direitos reais adquiridos a título derivado Em termos diversos, constitui eficaz instrumento de consertar o domínio derivado imperfeito (cfr. Lenine Nequete, Da Prescrição Aquisitiva, Sulina, 1.954, p. 21).
Isso decorre do fato de a usucapião ser modo originário de aquisição da propriedade, porque não há relação pessoal entre um precedente e um subsequente sujeito de direito O direito do usucapiente não se funda sobre o direito do titular precedente, não constituindo este direito o
Apelação Cível n* 397 714 4'5-00 - CAÇAPAVA - Volo ri1 4113 - H - (1
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pressuposto daquele, muito menos lhe determinando a existência, as qualidades e a extensão
Na lição precisa de Benedito Silvério Ribeiro, na mais completa obra já escrita sobre o tema, em determinados casos, desde que justificados, cabível é a usucapião tabular, ajuizada por quem já é titular do registro a título derivado, mas que padece de alguma imperfeição Ensina que
"tem-se dito, e a jurisprudência dos tribunais pátrios endossa o entendimento, de que a ação de usucapião não compete apenas ao possuidor sem título algum de propriedade, mas também àquele que o tenha, todavia, insuscetível de assegurar-lhe o domínio" (Tratado de Usucapião, V. 1, p. 209).
Dentre os inúmeros exemplos dados pelo autor, estão os casos de imóveis com descrições absolutamente imprecisas, ou adquiridos em partes ideais sem controle das frações, de modo que impossível fica remontar o todo na esfera retificatóna É essa exatamente a hipótese dos autos.
Os requerentes adquiriram os direitos sobre um lote de terreno urbano da Mitra Diocesana de Taubaté, por meio de contrato de aforamento, conforme demonstra o documento de fl. 75, celebrado em 30 de outubro de 1.985 Anos depois, em 24 de outubro de 2.002, os mesmos contratantes celebraram compromisso particular de cessão de direitos possessónos centenários (fls 44/44-v) mediante o qual a Mitra Diocesana cedeu todos os direitos possessónos que indiretamente exercia sobre o imóvel, na condição de donatária e aforadora, além de anuir expressamente "à ação de usucapião proposta pelo cessionário, desde que respeitadas as medidas constantes desta cessão, ficando sem efeito qualquer contestação porventura formulada nos autos" (fl. 44-v)
Tanto o contrato de aforamento quanto o compromisso de promessa de cessão de direitos sobre o imóvel celebrada entre o requerente e a Mitra Diocesana não obtiveram ingresso no registro imobiliário, por múltiplas razões Primeiro, porque a gleba maior sofreu vários
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destaques e não há controle quantitativo e qualitativo do remanescente, em atenção ao princípio da especialidade registraria. Segundo, porque aparentemente houve antigo parcelamento do solo, sem o devido processo de loteamento
De qualquer modo, a Mitra Diocesana de Taubaté, titular do domínio adquirido por força de Escritura Pública de Doação de Terras lavrada em 15 de abril de 1 867, não conseguiu registrar o imóvel em nome próprio, o que, por tabela, impede o adquirente de registrar o respectivo título derivado.
Consta de antigo julgado de São Paulo que "não há
a menor ilegalidade em que o possuidor, por não ter confiança em seu título dominial, recorra à ação de usucapião" (RT 357/400).
O Superior Tribunal de Justiça assentou também que "é cabível ação de usucapião por titular do domínio que encontra
dificuldade, em razão de circunstâncias ponderáveis, para unificar as transcrições ou precisar área adquirida escnturalmenté' (REsp 292.356-SP,
Rei. Min. Menezes Direito)
Pois bem Se pode o titular do domínio imperfeito usar da usucapião para sanar os vícios, pode também a posse, desde que com sua aquiescência, ser usada e somada pelo cessionário para fins de accessio
possesionis, nos moldes do artigo 1.243 do Código Civil.
É verdade que os autores têm posse própria desde outubro de 1 985. Podem, todavia, somá-la à posse de sua antecessora, a Mitra, ainda que fosse esta titular do domínio imperfeito
As testemunhas ouvidas confirmaram que os autores residem no imóvel há mais de vinte anos, que construíram uma casa sobre o terreno, pagam regularmente os impostos e mantêm a posse mansa e pacífica sem qualquer empecilho por parte de atgum interessado
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Em resumo, a falta de contestação de qualquer interessado, a concordância expressa da Mitra como primeira adquirente (fls 44/44-v), somados à boa prova documental e testemunhai que atestam a posse longeva dos autores, conduzem à procedência da ação de usucapião do imóvel descrito na transcrição de fl 10 acostada à inicial
2 Também não vejo óbice ao fato de inexistir loteamento registrado. Em que pesem os entendimentos da Digna Procuradora de Justiça e do Ilustre Promotor de Justiça, é absolutamente irrelevante que o loteamento onde se situa o imóvel usucapiendo esteja ou não regularizado, por uma singela razão. O parcelamento irregular do solo pressupõe ato de vontade do parcelador, o que não ocorre na usucapião, em que um mero comportamento, uma conduta similar à do proprietário, prolongada e qualificada, vai converter a posse em propriedade.
Mais ainda Os autores, assim como outros moradores do bairro, têm posse antiga e consolidada. Não é certamente a usucapião que vai tornar a ocupação já existente irregular. Ao contrário A regularização fundiária certamente será o primeiro passo para a regularização e reurbanização da gleba
A maior prova disso é que o Estatuto da Cidade prevê de modo explícito as modalidades de usucapião individual e coletivo sobre imóveis irregulares, exatamente como medida primeira para futura recuperação da gleba degradada
Assim, os julgados mais recentes do Tribunal de Justiça de São Paulo admitem usucapião sobre lotes irregulares, inclusive de dimensões inferiores à L. 6.766/79, salvo prova de marcada fraude à lei
Esta Quarta Câmara de Direito Privado, em data recente, julgou caso semelhante, de minha relatona, com a seguinte ementa
USUCAPIÃO Especial urbano Imóvel inserido em loteamento irregular -Irrelevância - Modo originário de aquisição da propriedade que ignora
Apelação Cível n* 397 714 4/5-00 - CAÇAPA VA - Voto n24l 1 3 - H - f l S
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comportamento anterior - Posse aparentemente antiga e consolidada - Ação proposta pelo adquirente - Hipótese em que não há fraude à Lei Federal n
6 766/79 - Facultatividade do htisconsórcio entre diversos outros moradores de lotes vizinhos - Desnecessidade, ademais, da Municipalidade figurar no pólo passivo da ação a fim de se determinar a regularização do parcelamento e implantação de obras de infra-estrutura - Prosseguimento do feito - Recurso provido. (TJSP, Apelação Cível n. 461.907-4/7-00 - Cotia - 4- Câmara de
Direito Privado - Relator: 15.03.07 - V.U.).
A um primeiro exame, não há fraude à lei no caso concreto, pois quem postula a usucapião não é o empreendedor, mas sim o adquirente de um lote
Cuida-se de ocupação antiga, de mais de vinte anos Esta decisão não altera e nem trata da ocupação do solo, mas apenas declara a propriedade sobre o imóvel. Ademais, tanto a Prefeitura Municipal como as Fazendas Estadual e Federal, ouvidas a respeito do tema, não opuseram embaraços à procedência da demanda.
Diga-se, de resto, que a Prefeitura Municipal não contestou o pedido e nem recorreu da sentença Se a própria e maior interessada reconhece a natureza particular do imóvel usucapiendo, não parece razoável que o representante do Ministério Público invista contra tal situação
3 No mais, conforme bem observou o Digno Juízo
a quo, os requerentes preencheram os requisitos da usucapião especial
urbana, também conhecida como usucapião pro moradia, prevista no artigo 1240 do Código Civil. Há prova nos autos de que ocupam o imóvel, cuja área é de cerca de 250 metros quadrados, há mais de cinco anos, sem qualquer resistência ou contestação, além de não possuírem qualquer outra propriedade, urbana ou rural
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As testemunhas ouvidas confirmaram que os Apelados estavam na posse do imóvel há cerca de vinte anos, sem qualquer resistência ou contestação de terceiros.
Em resumo, a falta de contestação de qualquer interessado somada à boa prova documental e testemunhai que atestam o preenchimento dos requisitos legais pelos autores, conduzem à procedência da ação de usucapião do imóvel descrito no memorial de fls. 10/11 acostado à
inicial
Assim, a bem lançada sentença deve ser mantida, inclusive por seus próprios fundamentos
Diante do exposto, pelo meu voto, nego provimento ao recurso
Participaram do julgamento, os Desembargadores Teixeira Leite (Presidente, sem voto), J. G. Jacobina Rabello (Revisor) e Ênio Zuhani (3Q Juiz)
São Pauloyél de feveE^írc/de 2008.
FRANCISCO LOUREIRO Relator