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Associação Nacional de História ANPUH XXIV SIMPÓSIO NACIONAL DE HISTÓRIA

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Academic year: 2021

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"As mestiçagens da fé: mulheres cristãs-novas e heresia no Nordeste colonial"

Angelo Adriano Faria de Assis∗

Resumo: Com a implantação do monopólio católico em Portugal, a partir de 1496-97, e a

transformação dos antigos judeus em cristãos-novos, crescem as desconfianças de práticas judaizantes dentre os neoconversos portugueses – dos principais motivos para a criação do Tribunal do Santo Ofício da Inquisição em Portugal, no ano de 1536. No grupo dos principais acusados, destaque para as mulheres, responsáveis de primeira linha pela manutenção das práticas judaizantes dos antepassados entre os descendentes. Esta comunicação busca analisar a Família Lopes Mendes, originárias do reino e fixadas na Bahia desde meados do século XVI, apontadas como matriarcas do judaísmo proibido no Brasil colônia, fortemente acusadas perante a Mesa do Santo Ofício durante a Primeira visitação ao Brasil, entre 1591-95.

Palavras-chave: Inquisição, mulheres judaizantes, Brasil colônia.

Abstract: With the implantation of the catholic monopoly in Portugal, from 1496-97, and the

transformation of the old Jews in New Christian, the diffidences of “judaizantes” practical amongst the Portuguese new conversed was one of the most important reasons for creation of Inquisition´s Court in Portugal, in the year of 1536. In the group of main accused, we found the prominence for the women, responsible of first line for the maintenance of the practical “judaizantes” of ancestor between the descendants. This communication searchs to analyze the Family Lopes Mendes, originary of the kingdom and fixed at Bahia since middle of XVI century, pointed as mothers family head of the judaism forbidden in Brazil colony, strong accused before the Table of the Inquisition during the First Visitation to Brazil, between 1591-95.

Key-words: Inquisition, judaizantes women, Colonial Brazil.

É conhecido pela historiografia o sofrimento dos judeus portugueses e seus descendentes convertidos ao cristianismo – os neoconversos - por conta das leis monopolizadoras impostas em fins do século XV em Portugal e seus domínios. Igualmente, o processo de implementação da Inquisição no reino a partir de 1536 e sua predileção pela perseguição aos cristãos-novos, apontados como os grandes ameaçadores da pureza católica. Se a historiografia, nos últimos anos, vem abordando os mais variados aspectos da presença cristã-nova e do funcionamento e estruturação da Inquisição no mundo luso-americano. A micro-história é aliada destas análises, responsável pela recuperação de histórias e biografias

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dos personagens atingidos pelo Santo Tribunal ao longo dos 285 anos que atuou em Portugal, apesar das críticas, muitas vezes infundadas, que recebe.

Na documentação correspondente à primeira visitação inquisitorial ao Nordeste brasílico, encontra-se extenso rol de acusações contra mulheres, das mais diversas origens e classes sociais, denunciadas por judaizar, em todas as regiões que receberam a presença do inquisidor Heitor Furtado de Mendonça. Se, no contexto da visitação, as denúncias envolvendo cristãos-novos acusados de judaísmo representam destaque significativo no total de acusações, o número, dentre eles, de mulheres delatadas por prática judaizante não seria desprezível fato que comprova o papel de destaque reservado à mulher para a divulgação criptojudaica. Em linhas gerais, repetiam-se as denúncias que pesavam sobre Ana Rodrigues e suas descendentes. As acusações versavam sobre a insistência de cristãs-novas em costumes considerados, ao menos, indícios explícitos de prática criptojudaica, tais como: guarda dos sábados; preparação de alimentos e práticas jejunais; celebrações de festas e datas do calendário judaico, a exemplo do Iom Kipur, leitura e posse de livros sagrados, como a Torá, costumes e ritos funerários, bênçãos e juramentos ao modo dos judeus, realização de esnoga.

Durante a visitação na Bahia, vários denunciantes compareceriam à mesa do Santo Ofício para delatar o comportamento de mulheres que insistiam na manutenção de práticas referentes à religião proibida. As denúncias também envolveriam as murmurações das ruas, boatos, fatos sem comprovação, notícias de “ouvi dizer” e “pública fama”, acusações contra personagens indevidamente identificados, relatos que, em geral, demonstravam desconhecimento do judaísmo tradicional tanto por parte dos denunciantes quanto dos denunciados. Por vezes, as acusações identificavam qualquer atitude considerada herética como sinal indiscutível de prática judaica, embora comportamentos desviantes da norma católica não se limitassem aos cristãos-novos, principais acusados de criptojudaísmo.

Em alguns casos, a documentação revela famílias inteiras acusadas perante a Inquisição. Dentre os grupos familiares mais denunciados de prática judaizante durante a primeira visitação, encontramos a família de Mestre Afonso Mendes, bacharel cirurgião d’El Rey. Mestre Afonso viera para o Brasil acompanhando a Mem de Sá. Em Portugal, atuava como Cirurgião-mor da Cidade de Lisboa, mas pediu sua remoção para o Brasil, provavelmente, devido ao aumento das perseguições aos cristãos-novos no reino, com a crescente estruturação da Inquisição. Fora o médico responsável por prover os doentes a bordo, evitando uma perda de gente ainda maior do que as quarenta e duas mortes ocorridas na viagem que trouxera o governador-geral. Na colônia, continuaria atuando como médico do

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governador e de sua família, acompanhando-o por todas as incursões que fazia contra os índios rebeldes.

Era o chefe de uma família seguidamente denunciada durante a visitação. Ele próprio apesar de falecido cerca de catorze anos antes da chegada de Heitor Furtado , juntamente com a esposa, seriam insistentemente acusados de açoitar um crucifixo, além, de terem sido vistos comendo carne de frango durante o dia de Endoenças. A fama geral da família era de que judaizavam, e a história da profanação do símbolo do martírio cristão era repetida aos quatro cantos. Com a morte de Mestre Afonso, a antiga lei continuaria a ser seguida pela mulher e filhos. Da esposa, dizia-se que mantivera a tradição judaica no cuidado com os mortos. Dizia-se que, na morte de Mestre Afonso, a esposa o pranteara ao modo judaico.

Também marcante seria a acusação de que apoiara o suicídio de um certo tio que permanecera no reino, Mestre Roque, que, preso nos cárceres inquisitoriais, teria preferido matar-se a morrer pelas chamas inquisitoriais: A própria esposa do cirurgião d’El Rey compareceria à mesa do visitador para contar sua versão das culpas que lhe eram imputadas. Natural de Évora, mulher de sessenta e cinco anos, Maria Lopes confessaria durante o tempo da graça conferido à cidade de Salvador e moradores vizinhos, alguns hábitos característicos do judaísmo, como não comer galinhas e qualquer outra ave que tenha morrido de doença. Maria Lopes confessaria também seguir alguns dos costumes funerários atribuídos aos judeus, como lançar a água em caso de falecimento e o trabalho, condenado pela Igreja, em dias sagrados para os cristãos:

Admoestada pelo licenciado do Santo Ofício, procuraria negar o caráter judaizante de suas culpas, admitindo realizá-las apenas por desconhecimento, afirmando que, nunca teve intenção judaica, e é boa cristã.

Branca de Leão, embora já falecida à época da visitação, seria a filha mais acusada do casal Lopes Mendes. De acordo com os denunciantes, Branca especializara-se no combate ao culto de imagens, tão comum aos cristãos, mas entendido pelos judeus como idolatria. Assim como os pais, acabaria denunciada, entre outras culpas variadas, de desrespeitar o crucifixo, arremessando-lhe certa vez um púcaro de água, repreendendo, em seguida, aos que a repreendiam: “calai-vos, mana, que isto não é Deus, que é papel, porque Deus está nos altos céus”. Também fora surpreendida a picar com os dedos e fazer descortesias a um crucifixo, e de beliscar e romper uma carta de Nossa Senhora, indagando: “para que presta isso”? O marido de Branca, Antônio Lopes Ilhoa, também seria acusado

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publicamente de possuir uma esnoga de judeus ao lado da capela que mantinha em seu engenho. É possível que Branca tomasse parte, ao lado do esposo, nas reuniões e celebrações sinagogais da família.

Depoimento dos mais impressionantes de toda a primeira visitação seria uma das acusações feitas contra Ana d’Oliveira, outra das filhas de Mestre Afonso e de sua esposa Maria Lopes. Trata-se do único documento conhecido relativo à visitação de Heitor Furtado de Mendonça que faz referência à observância do preceito da circuncisão. Fato ainda mais destacável se levarmos em conta que a acusação de realização do episódio inédito de circuncisão é imputada a uma mulher, e não aos homens, conforme orienta a lei judaica.

De acordo com as denúncias, Ana deve ter herdado do pai algumas de suas práticas, repetindo as tradições judaicas com os próprios filhos. As notícias sobre a realização de rituais específicos dos judeus ganhariam fama por toda a capitania, espalhando-se a história de que circuncidava as crianças que paria depois que vinham de batizar, e que uma vez fora vista uma criança sua ensangüentada, e fora ouvida chorar quando a circuncidava”.

No judaísmo, a circuncisão, ou brit milá, remonta à tradição da aliança de Deus com Abraão (Gen. 17:11-12), salvando os circuncidados de serem castigados por Abraão após a morte. Representa a iniciação do menino judeu como integrante pleno do povo judaico, ao assinar com o próprio sangue seu contrato com Deus, que ficará marcado eternamente em sua carne. A circuncisão é praticada em obediência ao mandamento da Torá: “Este é o meu pacto, que guardarei entre mim e vós, e a tua semente depois de ti: que todo varão será circuncidado” (Gen. 17,10).

O papel reservado à mulher durante a realização da circuncisão, de acordo com a tradição, está longe daquele exercido por Ana d’Oliveira na circuncisão de seus próprios filhos. O brit milá deve ocorrer no oitavo dia após o nascimento, no mesmo dia da semana em que nasceu o menino a ser circuncidado. A cerimônia exige um quorum religioso (minyan) de dez homens adultos, caso seja possível, mas deve ser realizada mesmo sem a presença deste grupo. A operação é feita por um judeu praticante e cumpridor das leis, além de perito nas leis e técnicas de circuncisão, denominado mohel. O minyan reúne-se com o pai e o padrinho da criança e o mohel. Em geral, a criança está com a mãe em outra sala até ser conduzida por um homem escolhido pelo pai (kvatter) para a sala onde ocorrerá a circuncisão. Não é permitido à mãe assistir ao momento da operação. Com a chegada do kvatter, todos ficam de pé  exceto aquele que vai segurar a criança durante a operação, o sandek , e a criança é entregue ao

mohel, que a coloca sobre uma cadeira especial, a Cadeira do Profeta Elias (os judeus

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é entregue pelo mohel ao pai, que a repassa ao sandek. Feito o pronunciamento de uma bênção pelo mohel, a operação é realizada. Imediatamente após a retirada do prepúcio, o pai recita uma bênção de agradecimento a Deus pelo ingresso “no pacto de nosso pai, Abraão”, ao que os presentes respondem, “assim como ingressou no pacto, possa também ingressar na

Torá, no casamento e nas boas ações”. Após a circuncisão, o mohel certifica-se de que não

houve aderência à glande de nenhum resquício do prepúcio; em seguida, cobre-se o pênis com uma proteção, deixando-se a glande exposta. O mohel segura um copo de vinho recitando uma bênção em que proclama o nome do menino, colocando em seguida um pouco de vinho na boca da criança e dizendo as bênçãos restantes, dando, em seguida, por terminada a reunião. Como se pode perceber, em nenhum momento a mulher toma parte direta na cerimônia, o que torna ainda mais excepcional a atitude de Ana d’Oliveira na circuncisão dos filhos, quando desempenhou, ela própria e concomitantemente, na falta de alguém mais preparado, o papel reservado ao pai e as funções de kvatter, de sandek, e principalmente, de

mohel.

Depoimento igualmente importante, pela vastidão e riqueza de detalhes sobre a prática criptojudaica e os conflitos familiares entre os seguidores de Moisés e os fiéis de Cristo, seria a confissão de outra representante da família, Antônia d’Oliveira, “cristã-nova de todos os costados”, de idade de trinta e oito anos, casada e moradora em Salvador. Antônia era aparentada de Mestre Afonso e Maria Lopes, pois era sobrinha de Dona Maria, filha de uma irmã desta, de nome Ana Rodrigues. Em sua sessão de confissão, Antônia revelaria, que, ainda durante o tempo em que morava em Porto Seguro, cerca de quinze anos antes, partindo seu esposo para Portugal, passaria a manter práticas jejunais “quartas e sextas-feiras e sábados do carnal, os quais dias ela jejuava encomendando-se a Deus Nosso Senhor e à Virgem Nossa Senhora, e aos santos do paraíso, encomendando-lhes também ao dito seu marido ausente, e rezando-lhes pelas contas das orações da Santa Madre Igreja”. Seu primo com irmão, Álvaro Pacheco, um dos filhos do casal Lopes Mendes, observando suas práticas, a aconselharia a realizar o verdadeiro jejum, sem comer e fartar-se ao meio-dia, ao modo dos antepassados que deste modo se salvaram.

Apesar de acreditar nas palavras e ensinamentos do primo, confessaria ter realizado os jejuns duas vezes somente, quando foi à presença de uma tia para que lhe fosse lançada a bênção, e a sua tia lhe pôs a mão na cabeça, nomeando Abraham. Lembraria ainda ao visitador outro episódio que confirmaria o relato do primo Álvaro: há cerca de seis anos, no Espírito Santo, ouvira variadas vezes de um compadre, enquanto rezava: “como reza, e não sabe como se há de salvar”, dizendo-lhe que “os seus antepassados todos se salvaram na

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glória, e que se “ela jejuava como se costuma na Santa Madre Igreja, que seus avós dela jejuavam doutra maneira”, e o mesmo faziam os avós de seu marido.

O depoimento de Antônia d’Oliveira, ao contrário de apontar um verdadeiro sentimento de manutenção judaica por parte da confessante, apesar dos ritos e práticas judaicas que assumidamente manteve, parece, antes, retratar a dualidade religiosa vivida dentro da família, em que uma parcela, sem dúvida, continuava a celebrar a tradição da antiga lei (caso dos avós, da mãe também chamada Ana Rodrigues, como sua companheira de fé de Matoim , das tias e do primo, assim como dos parentes de seu marido), enquanto outra parcela procurava adequar-se aos preceitos do cristianismo e às imposições do monopólio católico, apesar das pressões da camada judaizante para que adotasse os costumes dos antepassados. Quadro este, diga-se de passagem, bastante semelhante ao que ocorria dentre os Antunes, e intensificado pela presença de cristãos velhos na família, em que uma parcela do clã preocupava-se, ao menos, em dissimular a prática criptojudaica com bom comportamento cristão, buscando apagar as suspeitas sobre os demais membros judaizantes. Informa Vainfas que, apesar disso, Antônia d’Oliveira acabaria processada pelo visitador por atos de judaísmo, por não ter confessado suas culpas durante o período de graça concedido à cidade. Porém, “considerando ser nova quando delinqüiu, recebeu pena branda: abjuração de leve suspeita na fé, feita na mesa” logo, julgada pelo próprio visitador, na Bahia, sem que o caso fosse enviado para o Conselho Geral da Inquisição em Lisboa , mais “admoestação e penitências espirituais”.

Como Antônia e outras mulheres de sua família, várias mulheres lutaram pela sobrevivência judaica no mundo colonial, permitindo uma sobrevida ao judaísmo que, com novas cores, se redesenhava no ambiente brasílico, mas sempre, apesar de (de certo modo) oculto, permitindo às novas gerações conhecer as histórias e crenças de seus antecessores. Judaísmo oculto, dissimulado, limitado, mas forte e zeloso de suas máximas graças ao papel desempenhado pela mulher em seu seio.

Referências bibliográficas:

Primeira Visitação do Santo Officio ás partes do Brasil pelo licenciado Heitor Furtado de Mendonça capellão fidalgo del Rey nosso senhor e do seu desembargo, deputado do Santo Officio. Denunciações da Bahia 1591-593. São Paulo: Paulo Prado, 1922-1929, 3

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Primeira Visitação do Santo Ofício às Partes do Brasil Pelo Licenciado Heitor Furtado de Mendonça Confissões da Bahia, 1591/1592. Rio de Janeiro: F. Briguiet & Cia

Ed., 1935.

Primeira Visitação do Santo Ofício às Partes do Brasil Pelo Licenciado Heitor Furtado de Mendonça Confissões de Pernambuco, 1594/1595. Recife: Ed. Universidade

Federal de Pernambuco, 1970.

Primeira Visitação do Santo Ofício às Partes do Brasil Denunciações e Confissões de Pernambuco 1593-1995. Recife: FUNDARPE. Diretoria de Assuntos

Culturais, 1984, Coleção Pernambucana, 2ª fase, vol. XIV.

VAINFAS, Ronaldo (org.). Santo Ofício da Inquisição de Lisboa: Confissões da

Referências

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