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BOLETIM CEDES JUNHO/AGOSTO 2012 ISSN

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BOLETIM CEDES – JUNHO/AGOSTO 2012 – ISSN 1982-1522

Figueiredo, André Videira de. (2001), O Caminho quilombola: sociologia jurídica do reconhecimento étnico. Curitiba, Apris. 214p.

Resenha: O caminho quilombola

Marilson Santana*

A questão quilombola se firmou na esfera pública brasileira nas últimas décadas não só como um tema da política de reconhecimento e identidade, mas também como uma questão de direito. “O Caminho quilombola: sociologia do reconhecimento étnico” é um reflexo deste acúmulo posto por um observador sociológico situado na fronteira do direito com a antropologia, sem perder de vista os movimentos sociais e políticos nela implicados.

No plano teórico-político, o autor parte da “teoria do reconhecimento”, referenciada principalmente em Axel Honneth e adensada por uma visão crítica das discussões de Nancy Fraser e do comunitarismo de Charles Taylor, do conceito de etnicididade desenvolvido por Barth. A esse plano ele associa uma hermenêutica constitucional, capaz de unir o pensamento de Dworkin e Peter Häberle, marcada pela tradição hermenêutica e sistêmica, com a sociologia de matriz estruturalista de Pierre Bourdieu. Neste sentido, pretende conectar uma “gramática de direitos” e “um exercício de hermenêutica constitucional” aplicado a um estudo de caso no ambiente do “campesinato negro” do Rio de Janeiro. Assim, uma etnografia com cortes sócio-jurídicos é desenvolvida na comunidade de Alto da Serra, localizada no Vale do Paraíba fluminense.

Prepara-se o leitor, no capítulo 1, com um pano de fundo que se desenha na articulação entre a “luta por reconhecimento” e o processo de “nominação” quilombola com “repertórios discursivos” atravessados pelas tensões e atritos do mundo cultural no universo de debate racial e de classe. O autor assume uma posição em favor da teoria política do reconhecimento marcada por Honneth, indicando haver uma “dicotomia constitutiva da questão quilombola” (p.57), quando a política institucional de governo

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assume uma postura que mescla redistribuição e reconhecimento. Com isso, antecipa uma crítica ao pensamento de Nancy Fraser. Segundo ele, “tal modelo” reduz o cultural ao econômico, sugerindo, em contraposição, um modelo trinário que propugna por uma política de reconhecimento afirmativo (contrária à dominação cultural branca), política redistributiva transformativa (adversária da desigualdade econômica) e política de redistribuição afirmativa (trata de “injustiças culturais de formato econômico”).

O livro não deixa de trazer uma densa reconstrução do processo sócio-jurídico e político do movimento quilombola desde a edição do art.68 do Ato das Disposições Constitucionais Provisórias na Constituição Federal de 1988. Não perde de vista, por conseguinte, o papel dos antropólogos como intelectuais atuantes na comunidade aberta de intérpretes do sentido de quilombos. Analisa com cuidado os “marcos regulatórios” e as “possibilidades interpretativas”. Coloca de um lado a chave de leitura da “ressemantização”, que compreende quilombo como grupo étnico, e de outro as visões conservadoras ainda presas a ideia de remanescentes de quilombos como “negro fugido” no sentido de Palmares.

Na primeira leitura, estaria um pensamento constitucional mais aberto e pluralista, pautado por uma “interpretação comunitarista”, situada em uma tensão “entre direitos culturais e fundiários”, opondo-se a uma visão civilista estreita de visão jurídica. O processo de ressematização do termo “remanescente de quilombos”, iniciado no “campo” da antropologia, ganha terreno para construir uma “etnização do sujeito de direito” que agrega múltiplos sentidos: desde “terra de preto”, passando por “terras de uso comum”, sem perder de vista a expressão de “comunidades negras rurais”, “Mocambos” ou “quilombos”. A resultante desse processo encontra recibo final na autoatribuição das próprias comunidades como “quilombolas”.

Há no livro uma bem-vinda reconstrução das interpretações institucionais do estatuto próprio do direito quilombola. Ao narrar sobre o papel do Ministério Público Federal, desenha uma trajetória de disputas jurídicas e judiciais que se forma desde uma compreensão da auto-aplicabilidade do dispositivo constitucional anteriormente referido, passando pelo ativismo judicial decorrente das Ações Civis Públicas até a discussão em torno da Ação Direta de Inconstitucionalidade proposta pelo Partido Democratas-DEM (na época Partido da Frente Liberal – PFL) contra o Decreto 4887/2003. Esta norma regula o procedimento de titulação da propriedade quilombola e substitui o Decreto 3912/2001, cuja inconstitucionalidade era discutida por parecer do Ministério Público Federal. O autor não se furta a fazer um debate crítico das duas

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edições normativas, posicionando-se numa defesa do primeiro, ainda que reconheça pontos polêmicos deste no que concerne à desapropriação com indenização para o domínio de terras particulares.

Outros atores do Estado, como o Incra e Fundação Cultural Palmares-FCP e da sociedade civil como a Comissão Pro-índio de São Paulo são também colocados no contexto da judicialização do debate político sobre quilombos. Partindo de Werneck Vianna, observa o autor que a “crise de representação política” criou uma cisão entre “mundo da opinião” e “mundo da vontade”, fato que tem permitido uma invasão do direito na agenda política e alterando os sentidos de representação de grupos e movimentos sociais.

Nesse esteio, parte para uma demonstração de como as posições dos intelectuais do direito aparecem no contexto daquela Adin. Demonstra que por “homologia” as disputas em torno da ressemantização se infiltram no “campo” do direito, gerando uma bipartição entre ações judiciais de natureza possessória e as ações civis públicas. Aquelas estariam situadas em um “repertório discursivo” conservador enquanto estas estariam em um “repertório discursivo” aberto e mais próximo de uma interpretação comunitarista da constituição. Tal “homologia” e bipartição discursiva se reflete também no contexto do Supremo Tribunal Federal-STF quando grupos politicamente antagônicos assumem a posição de “amicus curiae” na defesa ou no ataque à constitucionalidade do mencionado Decreto 4887.

O livro traz também uma análise da repercussão do tema na mídia tradicional brasileira. Tomando como um emblema o caso de São Francisco do Paraguaçu na Bahia, há uma demonstração de como o discurso de certos veículos de comunicação se postam numa posição “historicista” e conservadora da questão quilombola. Tal posição assume uma postura radical-conservadora, na figura de uma articulista de jornal de grande circulação no estado do Rio de Janeiro de que o discurso da etnização reflete risco para as liberdades civis ao engendrar uma “função racial pra propriedade”.

A partir do capítulo 3, tem-se praticamente outro livro, pois o autor passa a um estudo de caso concreto em caráter etnográfico, mas com aguda observação sócio-jurídica. O autor faz uma reconstrução das condições de vida da comunidade quilombola do Alto da Serra, partido do contexto da escravidão e da crise do café, passando pelo ciclo do carvão até os dias atuais.

Traça um mapa da comunidade, identifica as famílias e os cruzamentos de parentesco, mostrando uma forte sedução pela etnografia e pelo trabalho empírico

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aplicado ao campesinato. Nota-se a influência da análise histórica de Block, da visão antropológica de Redfield e Wolf e até mesmo na de Clifford Geertz, sem deixar de lado um autor brasileiro que o acompanha desde o início do livro por tratar da etnicidade quilombola, Alfredo Wagner Berno de Almeida. Defronta-se com um caso judicial concreto, por meio de uma ação possessória, analisando de modo minucioso os sentidos da posse e da propriedade.

A impressão de que se trata de um outro livro pode ser notada pelo fato de que o mesmo não cuida das mesmas referências desenvolvidas nos primeiros capítulos, modulando um corte que toca a questão antropológica mais que a sócio-jurídica. Caberia uma retomada do juiz Hércules de Dworkin, dialogando com os intérpretes abertos de Härbele. Por outro lado, várias questões se colocam para o cidadão brasileiro pretensamente quilombola que parecem ser apontadas timidamente no texto.

O direito das comunidades remanescentes de quilombos disposto no art.68 da ADCT pode se limitar ao regime de propriedade, em analogia, com os dispositivos referentes à reforma agrária? Quais seriam os efeitos e consequências disso para aqueles proprietários privados que dispõem de justo título de propriedade e boa fé, mas possuem incidência de territorialidade quilombola em suas terras? Se se tem no direito constitucional, público ou agrário, elementos que definem os índices de produtividade de uma determinada propriedade rural, permitindo a sua desapropriação tanto para fins sociais quanto para fins ambientais (as duas hipótese colocadas como desapropriações para fins de reforma agrária), seria a etnicidade o critério de interpretação e pressuposto fático de desapropriação referente à terra quilombola, ativando uma limitação implícita da propriedade por sua função cultural?

Um estatuto jurídico próprio para os remanescentes de quilombos parece implicar reconhecê-los como destinatários de direitos diferenciados no conteúdo e na legitimidade de exercício. Mas adequados ao reconhecimento formal e processual do sistema jurídico, capaz de gerar segurança nesses sujeitos de direitos a ponto dos mesmos não ficarem sem amparo sócio-jurídico e estatal numa situação de conflito. A construção desse estatuto, implícito na Constituição, decorreria não só da especificação de normas constitucionais em novas leis ou novos diplomas normativos, mas, sobretudo, de uma nova leitura geradora de sentido de validade e força, inserta em uma integridade histórica de princípios. Com isso, se quer afirmar não um novo direito, mas uma nova interpretação posta na relação entre constitucionalismo e invenção democrática de direitos.

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Entende-se o constitucionalismo visto como prática social discursiva estabelecida nos processos de aquisição construtiva da linguagem do direito, articulada no âmbito de especialistas, mas nem por isso reduzida ao “gueto” dos juristas. Nota-se, contudo, a presença de (i) um constitucionalismo hegemônico vertical - de cima para baixo e (ii) um constitucionalismo não hegemônico – horizontal – de baixo para cima. O primeiro exercido no centro do poder judiciário a partir de um controle de constitucionalidade concentrado nas decisões do Supremo Tribunal Federal-STF. O segundo entendido a partir do gozo da liberdade, da igualdade e da solidariedade no âmbito da política e das relações sociais.

O livro traz uma forte menção ao pensamento constitucional de Häberle e Dworkin e quando trata da ética do discurso não cuida da articulação que Habermas faz entre as duas teorias. Na intersubjetividade da ética do discurso de Habermas (1997), corrigem-se os excessos da abertura de Peter Härbele que, na crítica de Bonavides (2007), pode tornar o direito constitucional sem sentido por sua amplitude hermenêutica. Por outro lado ainda, reconstrói-se e submete ao crivo da argumentação democrática o esforço "hercúleo" e solitário do juiz de Dworkin e pode se complementar com o empirismo da sociologia e antropologia jurídica que investiga o relacionamento dos movimentos sociais e identidades culturais com a produção do direito. Assim, o constitucionalismo horizontal não hegemônico resiste em ser plenamente especializado, é intersubjetivo, intercultural, e não tem pretensão de definitividade, pois sobrevive com o referido pano de fundo da invenção democrática dos direitos – e – da possibilidade de correção difusa elaborada nas comarcas judiciais do país.

A legitimidade de tal constitucionalismo, reafirma-se, decorre de demandas de movimentos sociais ou grupos organizados da sociedade civil que exigem uma nova leitura para os seus direitos fundamentais. Uma leitura deste constitucionalismo pode ser otimizada pela percepção de uma crescente judicialização das relações sociais no Brasil, pois que não se exclui daquela tensão substancialista entre o eixo Habermas-Garapon, enquanto o eixo Dworkin-Cappelletti permite perceber que o “constitucionalismo comunitário toma a constituição como um conjunto de valores compartilhados por uma determinada comunidade jurídica”. (WERNECK VIANA 1999: 39)

O constitucionalismo hegemônico precisa incluir no seu rol de destinatários a linguagem de um constitucionalismo não hegemônico. A partir de conflitos, o

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constitucionalismo horizontal pode verticalizar algumas de suas práticas, assimilando “standards” principiológicos e normativos do constitucionalismo vertical. De outro modo, o constitucionalismo vertical pode aprender a linguagem do mundo da vida, da sociabilidade e da política de uma maneira menos formalista e descompassada da demanda livremente formulada na esfera pública. Essa bipartição pode ser vista como reflexo de que as “‘duas’ democracias da Constituição – a da representação e a da participação, mesmo que essa última esteja ali como dependente da mediação do direito- não estão em oposição, nem formal nem substantivamente” (WERNECK VIANA 1999: 44). Assim, da reconstrução que HABERMAS (1997) faz do construtivismo de DWORKIN (1999) no capítulo V do Direito e Democracia- entre facticidade e validade, nas entrelinhas, pode-se perceber que ele vê o “juiz Hércules” como muito solitário e passivo para entender a participação e a representação democrática numa conexão interna com o direito. Não conta com as alianças possíveis de se fazer na esfera pública por meio da audiência de grupos sociais diversos, o que seria uma construção menos solitária do direito na democracia.

Essa audiência não precisa ser concretamente posta. Um juiz sintonizado com as discussões de seu tempo tem subsídio para justificar e adequar suas decisões de modo mais democrático sem colocar em risco seu saber especializado. Assim, além do Supremo Tribunal Federal, precisamos interrogar juízes de casos como Alto da Serra e São Francisco do Paraguaçu qual o seu lugar como intérprete da Constituição.

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