PREFÁCIO
David Spencer* Tradução: Letícia Barroso
Guerras tradicionais são cada vez mais improváveis dada a grande assimetria entre os concorrentes, o que foi bem ilustrado durante a invasão do Iraque, em 2003. A assimetria entre a força de coalisão e as forças iraquianas era tão proeminente que a vitória da campanha aliada era certa. As forças iraquianas foram humilhadas e o bilionário aparato de guerra obtido tornou‐se, rapidamente, uma pilha de lixo muito cara incapaz de conter o avanço das forças aliadas. O principal problema foi que o exército iraquiano apresentou aos Estados Unidos um tipo de guerra para o qual vinha se preparando desde a Guerra Fria. Os americanos, por sua vez, não fizeram por menos, passando por cima do exército iraquiano como faca quente na manteiga. As forças americanas eram limitadas tão somente pelo quão rápido conseguiam dirigir, assegurando recordes históricos de quão longe e quão rápido um exército tradicional consegue singrar o território inimigo. Em virtude desse panorama surgem as Guerras Irregulares1, das quais emerge o terrorismo, e que são, provavelmente, a ameaça mais persistente do início do século XXI.
A Guerra do Iraque foi uma campanha gloriosa para as forças de coalisão, mas a comemoração durou pouco porque rapidamente os inimigos dos Estados Unidos compreenderam que enfrentar um exército convencional com recursos tradicionais não era uma estratégia vitoriosa e se adaptaram ao novo cenário. Adotaram a estratégia da resistência – que abre caminho para o terrorismo – com o qual começaram a desfrutar, senão de sucesso, de tornar mais difícil a ação dos Estados Unidos.
Apesar de guerrilhas sempre terem existido, eram vistas como uma arma dos mais fracos, uma estratégia de suporte à guerra. Hoje, apesar de ainda ser considerada uma arma dos mais
1 “Guerra irregular” é a tradução mais aceita para o conceito, em inglês, Irregular Warefare. Não obstante, alguns
autores adotam outras expressões como “guerra de milícias”, “guerra rebelde”, “guerrilha”, “estratégia da resistência” e “guerra suja” para elucidar o conceito. Trata-se de uma expressão cunhada para caracterizar combates em que os combatentes façam parte de organizações militares irregulares, não militarizadas ou não chanceladas pelo Estado. A expressão está, na maioria dos casos, indissociavelmente ligada a práticas terroristas apesar de não se restringir a elas. Para efeitos de compreensão, nesta versão foram utilizadas diferentes expressões para caracterizar o conceito de acordo com o contexto criado pelo autor [N.T.].
fracos, é a principal forma de combate escolhida, restando à guerra tradicional o segundo lugar, até mesmo para países mais poderosos. Isso se dá pela relação custo‐benefício das guerrilhas em relação à guerra tradicional para o lado mais fraco, e o impacto tem sido devastador. Voltando ao nosso exemplo, enquanto a guerra tradicional no Iraque durou apenas um mês, a guerra de guerrilha se estendeu por oito anos e custou bilhões de dólares e milhares de vidas antes que os Estado Unidos se declarassem “vitoriosos” e retornassem para casa. Dados oficiais apontam que a invasão ao Iraque, em 2003, custou ao erário americano 92.3 bilhões de dólares, além de 139 mortos e 551 feridos. Enquanto os resultados dos oito anos da guerra irregular foram 945.7 bilhões de dólares, 4.349 mortos e 31.675 feridos. Ou seja, a guerra irregular custou aos Estados Unidos 10 vezes mais em recursos, 31 vezes mais em vidas, 57 vezes mais em feridos e mobilizou suas forças por um tempo 96 vezes maior do que a guerra tradicional. Não é de se espantar que seus inimigos tenham eleito esse tipo de estratégia para combatê‐los. Ansiosos para conter a hemorragia [de recursos financeiros e humanos], os Estados Unidos retiraram suas tropas do local em 2011.
Durante a retirada, os Estados Unidos aprenderam outra terrível lição: guerras irregulares são conflitos longos que não são determinados por ciclos eleitorais, mas pela vontade do inimigo. Não há como negar que a “estratégia Anaconda”, empregada pelo general Petraeus, desmantelou Abu Masab al‐Zarqawi e a primeira formação da Al Qaeda no Iraque, mas a retirada das tropas antes que a poeira abaixasse aliada a uma sucessão de erros políticos cometidos pelo governo iraquiano, permitiram o surgimento de um novo grupo, conhecido como Estado Islâmico. Um grupo formado de insurgentes sunitas do recém‐extinto braço iraquiano da Al Qaeda, mais experiente, mais habilidoso e ainda mais assustador do que seu antecessor jamais pensou em ser. Liderado por Abu Bakr al‐Baghdadi, o grupo rapidamente tomou armas e conquistou territórios de sua vizinha, Síria, se aproveitando do caos instaurado no país pela guerra civil, e passou a convocar voluntários ao redor do mundo para construir seu Estado Islâmico. Cerca de 30 mil pessoas de 86 países ao redor do mundo atenderam ao chamado. Caracterizado por sua crueldade, uso ostensivo de práticas nefastas – como filmar a decapitação de prisioneiros e disponibilizar o conteúdo na internet –, e promoção de massacres, o grupo de Abu Bakr lançou uma ofensiva que tomou território desde a cidade de
Mossul até Bagdá, formando o infame Triângulo Sunita – que também compreende cidades como Fallujah, Tikrit e Ramadi –, e que só foi contida pelo exército iraquiano com auxílio do Irã e Estados Unidos.
Se as tropas americanas tivessem permanecido no Iraque, o Estado Islâmico não teria conseguido se expandir e se desenvolver e nem ganhar controle territorial como ocorreu. Os Estados Unidos tiveram de retomar a guerra no Iraque. Aprenderam, assim, uma lição amarga: a guerra irregular moderna é um compromisso de longo prazo – que custa centenas de bilhões de dólares e milhares de vidas – que ultrapassa qualquer tipo de situação política imediata. Se partirmos do atentado às Torres Gêmeas, em 2001, os Estados Unidos estão em guerra com grupos rebeldes radicais islâmicos, de uma forma ou de outra, por mais de 15 anos. E restam poucas dúvidas de que o combate a essa ameaça se prolongará por ainda outros 15 anos ou mais.
O retorno ao Iraque se dá, basicamente, pela participação de consultores e especialistas técnicos da Força Aérea americana. Afinal, ao tomar territórios, o Estado Islâmico criou alvos que os Estados Unidos são bons em atacar. A partir de agosto de 2014, iniciou‐se, então, uma campanha de bombardeios sistemáticos a alvos militares e economicamente estratégicos do Estado Islâmico a fim de minar suas capacidades e, ao mesmo tempo, fortalecer o exército iraquiano que, sistematicamente foi retomando territórios conquistados pelo grupo. Enquanto escrevo se desenrola uma batalha lenta e amarga pela retomada da cidade de Mossul, estabelecida como capital do Estado Islâmico.
O Estado Islâmico desaparecerá uma vez que o Iraque e a Síria recobrem o controle de seus territórios? Provavelmente não. Já tivemos uma demonstração disso quando a guerra começou a virar e prejudicar o Estado Islâmico, que orientou seus recrutas estrangeiros a não irem para o território da Síria e do Iraque, mas, ao invés disso, realizarem ataques terroristas em seus próprios territórios. O Estado Islâmico orientou ou inspirou ataques a 21 países, incluindo: Afeganistão, Argélia, Austrália, Bangladesh, Bélgica, Bósnia, Canadá, Dinamarca, Egito, França, Alemanha, Indonésia, Kuwait, Líbano, Líbia, Malásia, Arábia Saudita, Turquia, Tunísia, Estados Unidos e Iêmen, matando, aproximadamente, 1.500 pessoas.
Apesar de a América Latina ter sido esparsamente atingida pelo terrorismo islâmico, a região não está livre dele. Em 1990, um grupo islâmico tentou promover um golpe em Trinidad e Tobago. Em 1992 e 1994, o Hezbollah assumiu a autoria de bombardeios a alvos judeus na Argentina. Mas, mais importante do que a ação direta, o Hezbollah, a Al Qaeda e o Estado Islâmico realizam operações econômicas na região, particularmente relacionadas ao tráfico de drogas. É sabido, por exemplo, que o Estado Islâmico controla rotas utilizadas para o transporte de cocaína da América do Sul para a Europa, através da África Ocidental. Uma rota de escoamento da Líbia para a França. Não é por coincidência que a maior parte dos terroristas que promoveram os ataques do Estado Islâmico a Paris, em novembro de 2015, tinham ligação direta com o tráfico de cocaína, a maior parte vendia a droga nas ruas da França.
Da mudança de atuação do Estado Islâmico de controlar território e conduzir ações de terrorismo internacional, vemos dois importantes aspectos. Primeiro, sua flexibilidade estratégica: conforme a situação o grupo flutua entre práticas de guerra tradicionais e irregulares sem nunca, contudo, admitir derrota. Segundo, sua flexibilidade financeira. Onde controla o território, o grupo cobra impostos como qualquer outro governo. Extraía petróleo e vendia em qualquer mercado que pudesse para gerar receita. No entanto, nunca hesitou em recorrer a práticas ilícitas para obter fundos, como suas incursões no tráfico de drogas. Eles fazem o que for necessário para obter fundos e fragilizar seus inimigos: tráfico de pessoas, mineração ilegal; e qualquer outra prática que dê algum retorno, seja ela lícita ou não. No Estado Islâmico existe uma convergência real entre práticas criminosas e atividades terroristas.
Está claro que o Estado Islâmico tem conduzido atividades econômicas no ocidente, bem como tem utilizado a internet para recrutar potenciais terroristas para o grupo. Dos muitos que se juntaram ao grupo dessa forma e foram aos territórios por ele controlados, um número significativo é da região do Caribe. Não se sabe quantos permanecem em seus países de origem o que nos leva a crer que é apenas uma questão de tempo até que um membro recrutado da América Latina promova um ataque ao seu país ou a alguma outra região.
Embora essa pesquisa tenha se focado, até o momento, no terrorismo islâmico de forma geral, e no Estado Islâmico, em particular, é importante deixar claro que o terrorismo não está restrito a grupos islâmicos. A América Latina tem uma longa tradição de guerrilhas. Até a
década de 1990, a região foi berço de diversos grupos revolucionários, muitos dos quais utilizavam práticas terroristas em maior ou menor grau. As Forças Revolucionárias Colombianas (FARC) ficaram conhecidas por empregarem mais práticas terroristas do que qualquer outro grupo da região, mas isso se deu somente porque foi, também, o grupo que teve maior sobrevida. Sua guerra durou mais do que qualquer outra no bloco. Recentemente as FARC assinaram um acordo de paz com o governo da Colômbia no qual abrem mão de práticas terroristas para uma atuação mais pacífica. Também na Colômbia, atua o Exército de Libertação Nacional (ELN), que ainda não negociou um acordo, apesar de ser sua intenção. No Peru, existem reminiscências do notório grupo Sandero Luminoso e, no Paraguai, desenvolveu‐se, nos últimos 20 anos, uma organização quase quixotesca conhecida como Exército Popular do Paraguai (EPP). Os demais grupos não são expressivos ou poderosos, mas, apesar da aparente fraqueza, as práticas terroristas ainda sobrevivem na região.
Dependendo da ótica, o terrorismo pode ser considerado como uma tática ou uma ideologia política que pode ser discutida em relação ao crime organizado internacional. Apesar de não terem como objetivo final o controle político, grupos de crime organizado internacional sediados no México, Colômbia e Brasil, entre outros, utilizam táticas terroristas para controlar mercados, eliminar a concorrência, intimidar e/ou matar representantes de governos. Apesar de relutarmos em chamá‐los de terroristas, no sentido político, compreendermos que sua atuação segue metodologias terroristas é fundamental para que possamos desenvolver maneiras eficientes de combatê‐los.
Em suma, o terrorismo está se tornando, cada vez mais, a metodologia preferida para a guerra irregular por seu grande impacto com menor custo. Uma vez aderindo a esta modalidade de guerra, o país não pode escolher quando se retirará sem correr o risco de graves consequências. Os países devem enfrentar aquela ameaça até o fim em um cenário em que o terrorismo vai se adaptando e criando resistência. Os grupos terroristas estão se tornando cada vez mais internacionais e estão convergindo com o crime organizado uma vez que obtém dinheiro e armas por este ramo enquanto o crime organizado utiliza‐se do caos criado pelo terrorismo para conquistar novos territórios, proteger‐se e ter sucesso nos negócios. Já existem
focos de terrorismo na América Latina e, provavelmente, é uma questão de tempo até que ataques, como os que ocorreram na Argentina, aconteçam novamente.
Diante deste cenário crítico, Marcus Reis e Joanisval Gonçalves trazem a público um necessário manual para compreender e combater a ameaça terrorista. O Brasil ainda não foi alvo de um ataque sério e este manual pode ser a chave para assegurar que ele nunca aconteça. Afinal, compreender a natureza da ameaça é o primeiro passo para enfrentá‐la. Tantas tragédias poderiam ter sido evitadas se aqueles que estão no poder não tivessem subestimado a ameaça. Diversas foram as vezes que governos acreditaram na imagem de que tudo está bem que insistem em transmitir por mera conveniência política e alto foi o preço que tiveram de pagar ao, finalmente, admitir a verdadeira dimensão do problema, normalmente, após um ataque. Reis e Gonçalves desenvolveram um trabalho muito cuidadoso que tem início com a importante discussão filosófica sobre o que é, afinal, terrorismo e com o debate político sobre quando e se a rebelião armada é justificável para, então, explorar minuciosamente a evolução do terrorismo desde meados do século XX até o surgimento do Estado Islâmico, conforme discuti brevemente neste texto. Para além disso, exploram aspectos jurídicos, estratégico‐operacionais e tático‐ operacionais do problema, dividindo a análise em escopo macro e micro. Os autores discutem aspectos de contraterrorismo e, finalmente, lidam com questões sobre o terrorismo contemporâneo como a Jihad Global, a relação entre terrorismo e crime organizado, dentre outros temas.
Este extenso trabalho cobre todos os aspectos do fenômeno chamado terrorismo desde o teórico até o tático passando pelo político, jurídico, estratégico e operacional, com um texto palatável e com exemplos do mundo real que o tornam ainda mais compreensível tanto para o especialista quanto para um leitor que está sendo introduzido ao tema pela primeira vez. Parabenizo os autores pelo trabalho.
* David Spencer é PhD e professor‐adjunto no Centro para Estudos de Defesa Hemisférica William J. Perry. Antes de aceitar sua colocação atual no Centro para Estudos Perry, Dr. Spencer atuou como diretor de Combate ao Terrorismo no Hicks e Associados, cargo no qual apoiou diversos projetos USOUTHCOM. Por, pelo menos, 15 anos trabalhou em diversas áreas no
Support of Plan Colombia. Passou cinco anos em El Salvador atuando como consultor do Ministério da Defesa durante a guerra civil. Trabalhou para inúmeros centros de pesquisa e empresas de consultoria como o Centro de Análises Navais (CNA) e a Corporação Internacional de Aplicações Científicas (SAIC). Dr. Spencer foi criado na América Latina tendo residido no Chile, Costa Rica, Colômbia, Venezuela e Guatemala. Serviu ao Exército Americano e na infantaria da Guarda Nacional deste mesmo país. Conquistou a posição de Sargento e foi convocado para atuar na primeira Guerra do Golfo, de 1990‐1991. Em junho de 2011, publicou o estudo Colombia’s Road to Recovery: Security and Governance 1982‐20102. Foi premiado com a medalha de Serviço Público Excepcional, em 2013. Dr. David Spencer é entusiasta de história militar e arqueologia.