• Nenhum resultado encontrado

Autoritarismo e Racismo: Oliveira Vianna, Constituição e Democracia sob os Trópicos

N/A
N/A
Protected

Academic year: 2021

Share "Autoritarismo e Racismo: Oliveira Vianna, Constituição e Democracia sob os Trópicos"

Copied!
22
0
0

Texto

(1)

Autoritarismo e Racismo: Oliveira Vianna,

Constituição e Democracia sob os

Trópicos

Authoritarianism and Racism: Oliveira Vianna,

Constitution and Democracy in the

Tropics

Evandro Piza Duarte *

Universidade de Brasília, Brasília – DF, Brasil

1. Introdução1

Francisco José Oliveira Vianna2 (1883-1951) foi, no dizer de Antônio Paim, o representante do elemento mais característico do ideário da República, a “ascensão do autoritarismo político” que ora se manifestou como discurso ora apenas como “prática autoritária”3. Segundo Clóvis Moura, ele foi o principal estudioso entre aqueles “que fizeram da história social do Brasil um prolongamento do processo de interação racial nos seus diversos aspectos”, defensor da “necessidade de se estimular um processo arianizante para que as nossas possibilidades de evolução no processo civilizatório fossem favoráveis”.4

A propósito, Ricardo Silva, ao analisar as Instituições Políticas Brasileiras (IPB) (1949), afirma que seu ponto de partida estaria na percepção da disjunção entre o “país real” e o “país ideal”, ou seja, entre as instituições de direito público criadas pelas elites e o seu confronto com as instituições que prevaleceriam na prática (o “direito do povo-massa”). Por sua vez, a “dramaticidade” da “história política” estaria no “esforço improfícuo das elites para obrigar o povo-massa a

* Doutorado em Direito pela Universidade Nacional de Brasília (UnB), Mestrado em Direito pela

UFSC (1998) e Graduação em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina (1993). E-mail: evandropiza@gmail.com.

1 Agradeço ao Professor Menelick de Carvalho Netto pelo diálogo durante a elaboração desse

texto. O presente texto foi possível graças à bolsa de produtividade do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico – CNPq. Ademais, a publicação integra o projeto "Justiça, racismo e sexismo: dimensões da desigualdade nos sistemas de justiça do Brasil, dos EUA e da Colômbia, as estratégias de análise e controle judicial”, Capes/Print.

2 “Seu primeiro livro – Populações Meridionais do Brasil – aparece em 1920, quando completa 37

anos. Nesse mesmo ano publica O idealismo da Constituição”. Finalmente, em 1949, seu texto mais conhecido, Instituições Políticas Brasileiras. PAIM, 2005, p. 21.

3 PAIM, 1999, pp. 11-12. 4 1990, p. 197.

(2)

Direito, Estado e Sociedade Ahead of Print, n. XX mês/mês 2021

praticar este direito por elas elaborado, mas que o povo-massa desconhece e a que se recusa a obedecer”. Portanto, “[...] nosso mais grave problema residiria na estrutura do povo-massa e nos complexos culturais que o dominam, fonte de nosso direito costumeiro, contra a qual se estilhaçariam as frágeis Constituições liberais”.5

O presente artigo parte do papel de Oliveira Vianna na construção do autoritarismo instrumental e da afirmação de Clóvis Moura sobre a importância do racismo6 em sua obra para formular as seguintes perguntas iniciais: O pensamento jurídico-político de Oliveira Vianna, especialmente sua crítica ao idealismo da Constituição, pode ser descontextualizada da sua defesa das teses do racismo científico? De que modo as concepções sobre raça e branquidade se articulam na ideia de um Estado tecnocrático que oculta as suas estratégias de (re)produção de hierarquias raciais no plano do direito?7

O tema da “disjunção” é considerado aqui, porém, desde o “Idealismo da Constituição”8, sua obra anterior à Instituições Políticas Brasileiras e, por assim dizer, mais propriamente “jurídica”. Numa visão geral, a proposta de Oliveira Vianna em muito se assemelha a de Carl Schmitt na crítica do liberalismo (pluralidade de opiniões conflitantes e não reduzíveis a uma vontade) em nome da democracia (formação de uma vontade identificada com o povo), assim como da de Ferdinand Lassale9 na distinção entre constituição escrita (“folha de papel”) e constituição real (“fatores reais de poder”) e da de Sieyés10 na reivindicação da nação, definida como uma classe que “representasse” as forças vivas da sociedade.

Todavia, a pergunta central aqui proposta é: Qual a relação entre essa noção de “disjunção” e a assunção de uma perspectiva racializada da história para a opção entre a alternativa procedimentalista, que crê na possibilidade de coesão social por meio dos procedimentos democráticos, e a alternativa substancialista, que busca a coesão social desde a esfera da cultura?11

A disjunção entre “país ideal” e “país real” traz como pano de fundo, e como solução, a distinção entre povo (elites de poder qualificadas) e plebe (massa amorfa), perpassada e fundamentada na compreensão racializada e racista da história e da sociedade brasileiras, convergindo para a defesa do Estado como

5 SILVA, 2008, p. 247.

6 Além da perspectiva adotada por Clóvis Moura, cf. PAIVA, 1976, p. 59.

7 Neste ponto, concordamos com Vanilda Paiva, para quem, há uma mudança na forma de

exposição do racismo. Há o Oliveira Vianna de Populações Meridionais e do Idealismo da Constituição que analisamos e o: "Oliveira Vianna mais influente nas últimas décadas, ou seja, aquele que evitou as formulações racistas explícitas e passou a analisar a sociedade brasileira, mantendo-as subjacentes, mas cuidando de evitar a sua identificação imediata.” PAIVA, 1976, p. 58.

8 “Um livro como O idealismo da Constituição, criticado por Batista Pereira, nem mesmo poderia

ser considerado obra histórica. Era obra de publicista, de propagandista, de panfletário. Fica aí evidente que Oliveira Viana estava muito distante da prática historiográfica de seus colegas do Instituto Histórico. Além de depender de conjecturas, a história não seria um exercício ocioso. Ela teria finalidade pragmática. Na conferência do Instituto esta finalidade foi descrita como a busca do sentimento de nós mesmos, do fortalecimento do patriotismo.” CARVALHO, 1991, pp. 84-85.

9 2003; HESSE, 1991. 10 2001.

(3)

agente de construção da nacionalidade (e da hegemonia branca na colônia) e na representação do papel perigoso da ideia democrática de participação popular.

A especificidade da opção de Oliveira Viana tem raízes na colonialidade do saber e do poder, pois é desde a experiência de mundialização do capitalismo que são "naturalizadas as experiências, identidades e relações históricas da colonialidade e da distribuição geocultural do poder capitalista mundial”, e, sobretudo, as classificações sociais racializadas12. As relações entre dentro e fora dessa disjunção, com o conflito de tradições culturais “universais" e "realidades locais", pressupõe a perspectiva de que a Europa e seus centros hegemônicos de difusão das filosofias políticas e padrões institucionais, como por exemplo, a França e a Inglaterra, foram formações históricas produtoras de seu próprio “desenvolvimento”, e com características internas que justificariam sua expansão e hegemonia mundial13 e, no mesmo passo, que as “periferias" não foram locais de criação de novas instituições jurídicas ou sociais.14

Essa disjunção impede (i) a compreensão do lugar da inteligência (Oliveira Viana e seus herdeiros) na (re)produção de alternativas de passado-futuro e, especialmente, esconde as dimensões racializadas dessa elite intelectual e seu papel na gestão das hierarquias sociais que, aparentemente, diz constatar. No mesmo passo, (ii) implica no ocultamento no passado-presente de processos sociais alternativos às relações de hierarquia. Ao retirar as dimensões contraditórias dos processos sociais, sua leitura da sociedade consolida e justifica tais hierarquias. Oculta-se, por exemplo, as tensões sociais, as resistências individuais e coletivas, que condicionam a estrutura do poder. (iii) Ao pretender circunscrever os elementos de um “problema”, de fato, constrói uma dimensão importante desse problema. A oposição entre adoção do direito (constitucionalismo) em sua “origem europeia” numa realidade social “não europeia”, consolida um “orientalismo”15 “luso-brasileiro”16.

Nesse contexto, a disjunção, mais do que o reconhecimento de um problema é uma parte integrante (e invertida do problema). Ela é o ponto de partida e de chegada, de tal modo que a “percepção” da disjunção é também sua (re)criação.17

Enfim, o presente texto retoma o Idealismo na Constituição para colocar “sob suspeita” a forma de pensar a diferença constitucional brasileira desde essa disjunção arquetípica do conservadorismo constitucional brasileiro entre a dimensão “simbólica” e a dimensão “real”, demonstrando as bases coloniais e raciais de sua construção. O título contém a provocação de que as leituras abstratas e formais do lugar ocupado pelo direito “sob os trópicos” são em si mesmas um problema a ser superado.

12 QUIJANO, 2009, p. 74, grifos nossos. 13 DUSSEL, 1993.

14 BUCK-MORSS, 2009. 15 SAID, 2007.

16 KEMNITZ, 2016.

17 Muito embora em discordância com grande parte de seus pressupostos teóricos, é de se

reconhecer no estudo de Luhman a propósito da construção do Sul da Itália como um problema social e econômico, que a demarcação de uma diferença como pressuposto condiciona os achados “causais” da investigação científica, e é ela mesma uma causa da manutenção da diferença. LUHMANN, 1995.

(4)

Direito, Estado e Sociedade Ahead of Print, n. XX mês/mês 2021

2. Substancialismos e Procedimentalismos sob os Trópicos: situando “o problema”

Em “A Inclusão do Outro”, Jürgen Habermas revisitou as tradições filosóficas do liberalismo para enfrentar as novas demandas de grupos minoritários e o ressurgimento do nacionalismo na Europa. Haveria duas alternativas para a coesão entre grupos humanos que pertenciam antes às sociedades estamentais: uma solução na esfera da cultura, o substancialismo, associado à obra de Carl Schmitt, desenvolvida no século XIX; ou uma solução na esfera das instituições e dos procedimentos democráticos, o procedimentalismo, associado às obras de Kant e Rousseau, e ao pensamento do século XVIII.18

No primeiro caso, ela pressupõe a necessidade de uma homogeneidade nacional como condição necessária do poder democrático. “A ideia da nação de um povo conduz à hipótese de que o demos dos concidadãos tem de se enraizar no ethnos dos membros de um povo, para poder estabilizar-se como uma associação política de jurisconsortes livres e iguais.”19 Isso porque “[...] a lealdade do cidadão precisa de uma ancoragem na consciência da solidariedade do povo, marcada por uma primordialidade natural e pelo destino histórico.”20

No segundo caso21, a concepção republicana, procedimentalista e orientada para o futuro, defende a possibilidade de formação de uma vontade coletiva mesmo entre estranhos, se respeitados os padrões procedimentais. Logo, pressupõe o reconhecimento da igualdade entre os integrantes da comunidade política e o uso público da razão que decorre da garantia do direito à liberdade. “O próprio processo democrático” seria o

[...] fiador de falta da integração social, numa sociedade cada vez mais diferenciada. O ônus da integração nas sociedades pluralistas “não pode ser desviado do nível da formação da vontade política e da comunidade pública e aberta para o substrato cultural, aparentemente de origem natural, de um povo supostamente homogêneo.22

Todavia, segundo Habermas, nem mesmo Kant colocou a questão da “composição legítima da comunidade básica dos cidadãos”, ou seja, não enfrentou o tema da definição de “quem de fato pode fazer uso do direito, com quem, onde e quando, nem quem pode associar-se numa comunidade autodeterminada, sobre o fundamento do contrato social”. A solução mais comum será encontrada na ideia de auto legislação e da referência a uma geração de fundadores que se elabora uma constituição. Porém, essa solução torna-se problemática quando as questões “de fronteira” passam a ser objeto da disputa, ou seja,

18 HABERMAS, 2002. 19 HABERMAS, 2002, p. 150. 20 HABERMAS, 2002, p. 150.

21 Não se olvida, aqui, a diferença de abordagem entre Rousseau e Kant, dado que o primeiro faz

uma leitura mais republicana, enquanto o segundo uma leitura mais liberal. Assim, o francês entende a democracia como um processo participativo, só podendo existir na figura de uma democracia nacional, sendo o sujeito do “autogoverno do povo” concebido como um “macrossujeito” capaz de agir. Nesse sentido, “segundo a fórmula rousseauniana, todos devem decidir o mesmo para todos” HABERMAS, 2002, p. 156.

(5)

[...] quando os cidadãos tiveram de lutar para conquistar liberdades republicanas contra o próprio governo, quer dizer dentro das fronteiras de um Estado existente, seja contra um senhor colonial que tinha demarcado ele próprio as fronteiras da desigualdade.23

Quando se observam as duas alternativas na formação dos Estados, constata-se que, enquanto a alternativa procedimental destaca a “contingência dessas fronteiras”, a alternativa substancialista propõe a ideia de “uma nação de origem primordial para vencer essa contingência”, ornando as fronteiras com “uma aura de substancialidade simulada, legitimando-as através de relações artificiais”. O “Povo se qualifica para o direito à soberania nacional pelo fato de se definir como povo homogêneo” e poder controlar as fronteiras que decorrem de tal assertiva. Entretanto, a ideia de homogeneidade contradiz a ideia de voluntariedade e leva a “consequências normativas indesejáveis”. "Um Estado, ao qual falta essa homogeneidade, tem algo de anormal, algo que se constitui em ameaça para a paz.” Daí um repertório para purificação: “submissão e evacuação da população heterogênea”, “segregação geográfica”, “instalação de protetorados, colônias, reservas, homelands etc.”24

Por sua vez, Habermas sugere duas situações limites em que problemas semelhantes reaparecem como desafio para a alternativa procedimentalista: os processos de Independência nas ex-colônias europeias e o problema das minorias inatas.

Para o autor, versões substancialistas, ainda que evocadas em nome de grupos sociais oprimidos, ao construírem Estados-Nacionais, retomariam sempre procedimentos etnocidas. Portanto, para Habermas, grupos étnicos poderiam se conferir uma Constituição, mas a “independência” deveria se legitimar “a partir do direito individual de cada cidadão a viver em liberdade, de acordo com as leis”. A legitimidade do direito de secessão adviria do fato de que “o poder central de um Estado nega seus direitos a uma parte da população”. Assim:

[...] nos casos gritantes de domínio estrangeiro e de colonialismo, a injustiça contra a qual se dirige uma resistência legítima não surge da infração de um direito supostamente coletivo à autodeterminação nacional, mas da infração de direitos fundamentais individuais.25

Ademais, o potencial universalizante do direito como forma de reconhecimento intersubjetivo, mascara o problema das minorias “inatas”, ou seja, um conflito cultural movido pelas minorias desprezadas contra a cultura da maioria. Isso ocorre porque

[...] mesmo quando observados como personalidades jurídicas, (os cidadãos) não são indivíduos abstratos, amputados de suas relações de origem. Na medida em que o direito intervém em questões ético-políticas, ele toca a integridade das formas de vida dentro das quais está enfronhada a configuração pessoal de cada vida. Com isso entram em jogo - ao lado de considerações morais, de reflexões pragmáticas e de interesses negociáveis - valorizações fortes, que dependem de tradições intersubjetivamente compartidas, mas

23 HABERMAS, 2002, pp. 159-160. 24 HABERMAS, 2002, pp. 160-162. 25 HABERMAS, 2002, pp. 161-162.

(6)

Direito, Estado e Sociedade Ahead of Print, n. XX mês/mês 2021

culturalmente específicas. As ordens de direito também são, em seu todo, ‘eticamente impregnadas’, porque interpretam o conteúdo universalista dos mesmos princípios constituintes de modo diferente em cada caso, a saber, no contexto das experiências de uma história nacional e à luz de uma tradição, uma cultura e uma forma de vida historicamente predominantes. Na regulação de matérias culturalmente delicadas (...) em tudo isso reflete-se amiúde apenas o autoentendimento ético-político de uma cultura majoritária, dominante por motivos históricos.26

O caminho a ser percorrido, segundo Habermas, não deveria ser o de fechamento, com a essencialização da cultura majoritária ou das minoritárias, mas o reconhecimento do caráter aberto, auto e hetero-reflexivo das culturas na Modernidade. Logo, sua aposta é orientada para que “[...] as forças de coesão da cultura política comum - a qual se torna tanto mais abstrata quanto mais forem as subculturas para as quais ela é o denominador comum - devem continuar a ser suficientemente fortes para que a nação dos cidadãos não se despedace.”27

Enfim, o contexto em que Habermas escreve é decisivo para sua percepção das tensões entre substancialismo e procedimentalismo, realçando a contingência das fronteiras e dos conceitos (Nação, Estado, Cultura, Identidade etc). Essa redescoberta da pluralidade no espaço europeu estava marcada pelos seguintes aspectos: criação da Comunidade Econômica Europeia; fluxos de imigração desde dentro e desde fora dessa comunidade (migrações Leste-Oeste/Sul-Norte); ressurgimento do fantasma do racismo contra os imigrantes; necessidade de convivência de diversas nacionalidades num mesmo espaço político e novas tensões provocadas por intercâmbios culturais; consolidação de uma cultura de massa decorrente da modernização pós-guerra; impossibilidade do monopólio da cultura por parte do Estado e a criação de um mercado globalizado de bens culturais, com o “estranhamento” da alta cultura europeia que esteve na base da formação da “esfera pública”.

Esse pano de fundo do discurso habermasiano, surge refletido em dois espelhos, identificados de forma indiciária em seu texto, na experiência política-jurídica americana e nos processos de independência africana. Do modelo americano se extrai a crença de que ele teria dado respostas às heranças do colonialismo, como a dessegregação racial, e aos conflitos entre a moral de grupos minoritários e direitos individuais. Ao mesmo tempo que olha para a tradição jurídica americana, o autor aposta numa reatualização da cultura jurídico-política democrática, surgida no pós-guerra, para dar resposta aos emergentes problemas “europeus”.

26 HABERMAS, 2002, pp. 165-167.

27 “O problema das minorias ‘inatas’, que pode surgir em todas as sociedades pluralistas,

agudiza-se nas sociedades multiculturais. Mas quando estas estão organizadas como Estados democráticos de direito, apresentam-se. Todavia, diversos caminhos para se chegar a uma inclusão ‘com sensibilidade para as diferenças’: a divisão federativa dos poderes, uma delegação ou descentralização funcional e específica das competências do Estado, mas acima de tudo, a concessão de autonomia cultural, os direitos grupais específicos, as políticas de equiparação e outros arranjos que levem a uma efetiva proteção das maiorias. Através disso, dentro de determinados territórios e em determinados campos políticos, mudam as totalidades fundamentais dos cidadãos que participam do processo democrático, sem tocar nos seus princípios.” HABERMAS, 2002, pp. 166-167.

(7)

No espelho habermasiano, a experiência africana, seguindo o padrão do etnocentrismo europeu, surge como polo negativo. O próprio ataque constante dos países europeus aos processos de autonomia dos povos do continente africano não é identificado como um problema relevante para compreender a necessidade de “mobilização nacional” diante dos processos de destruição/ocupação/saque empreendido pelas metrópoles coloniais. No mesmo passo, o substancialismo do nazismo, vinculado ao imperialismo, é equiparado ao substancialismo das guerras de independência contra o imperialismo, e, paradoxalmente, se lhe atribui a responsabilidade pelos conflitos internos, obviamente sem qualquer referência a questões concretas às dinâmicas coloniais, como os lucros do complexo de guerra dos países europeus e EUA.

Neste contexto, há um aspecto central a ser desafiado na compreensão da matriz procedimental, a tentativa de explicá-la desde dinâmica interna aos processos europeus. Nesse sentido, um elemento dessa crítica, que é retomada nas páginas seguintes, diz respeito, em certa medida, ao componente espacial que tomam as expressões particularistas e universais. Particular parece estar identificado como algo que se passa num local determinado e universal, ao contrário, como algo que pode estar em todos os lugares ou pode, desde um local, ter a potencialidade de se expandir a outros locais. As "tradições" ocidentais modernas nascem em relação, ou seja, são tradições cuja força propulsora é um processo de diferenciação interna impregnada pela consciência de um passado e de um presente plurais. Não decorrem do isolamento geográfico, mas da mundialização. Em outras palavras, a resposta de Kant não seria a resposta a problemas filosóficos propostos por uma tradição europeia ou por um mundo europeu, mas a invenção da identidade europeia e do espaço europeu. Nesse caso, o que se passa no mundo não é a periferia do pensamento universal, mas a razão pela qual esse pensamento se autocompreende como universal.

Nesse sentido, embora não desconheça, Habermas não leva em conta o colonialismo como realidade. A forma como o direito ocidental foi introduzido nas Américas ou na África, e com ele a teoria política constitucional, não é um processo que possa ser descrito apenas como adoção ou não adoção de modelos constitucionais. O enraizamento de modelos procedimentais, por exemplo, enfrentou tarefas maiores em termos de acoplamento social. Isso porque a relação colonial produziu sociedades profundamente hierarquizadas, mesmo no momento de expansão da igualdade jurídica. Assim, por exemplo, o movimento de expansão do constitucionalismo foi simultâneo à construção e divulgação do racismo científico, com a invasão da África e a tentativa dos EUA de “domesticar" a América.

O colonialismo, ao mesmo tempo em que a Europa tentava se libertar das ordens estamentais, recriou aqui novas formas de desigualdade e silenciamentos. Sob a pretensão de ser universal, a alternativa procedimental desconsidera não apenas as minorias no contexto europeu - como parece indicar Habermas -, mas também todas as particularidades culturais dos povos conquistados e oculta o fato de que a aceitação da condição de sujeito de direito pressupunha a identificação racial e cultural com os povos europeus. Ao contrário de sua autoimagem universalizante, a prática desse paradigma representou também a difusão de um particularismo bem mais excludente. Aos indígenas não foi negado

(8)

Direito, Estado e Sociedade Ahead of Print, n. XX mês/mês 2021

apenas o direito à ocupação das terras, segundo seus usos e costumes, mas o próprio direito à propriedade, segundo as formas de aquisição do direito ocidental local. Aos negros, associados ao trabalho forçado da escravidão, negou-se, quando da formação do mercado de trabalho livre, a identificação com a condição de “bom trabalhador” e a “capacidade” de executar tarefas de gerenciamento da atividade produtiva.

A crítica colonial permite compreender que as soluções constitucionais procedimentais também são um particularismo universalizado. A causa genérica da existência de particularismos não está apenas nas formas pelas quais o sistema jurídico se acopla ao sistema social, reforçando as visões das maiorias. O sistema constitucional não absorve elementos de um meio ambiente onde maiorias políticas impregnam as normas jurídicas com suas identidades culturais, sociais, econômicas etc. Eles são moldados, especialmente desde sua composição racializada, como filtros que favorecem minorias protoconsulares e, no mesmo passo, ressurgem as tensões provocadas pela existência de maiorias excluídas do sistema de direitos. O primeiro desses filtros é a composição racializadas das instituições do sistema de justiça.28 Ademais, a prática das Cortes Constitucionais demonstra que a impregnação de valores não decorre apenas do enraizamento do direito ao sistema social local. A seletividade na escolha dos casos e das doutrinas estrangeiras representa formas de delimitação da compreensão dos direitos fundamentais de igualdade e liberdade, um modo específico de particularismo articulado à ideia de universalidade. Apenas à título de exemplo, vê-se a tentativa de condicionar o debate sobre ações afirmativas aos termos da “diversidade" nos moldes da Suprema Corte Americana, sem considerar que no Brasil se está diante de maiorias marginalizadas.29

Enfim, as categorias propostas por Habermas, e os seus limites de compreensão histórica, introduzem um conjunto de problemas que estarão postos em Oliveira Vianna no modo como ele (re)constitui a exclusão das maiorias radicalizadas dos processos decisórios e do substrato de valores que deveria impregnar o sistema jurídico. Uma questão que perpassa as preocupações centrais deste autor é: Quem pode ter o papel de protagonista na construção de alternativas constitucionais e institucionais?

3. Oliveira Vianna e a Tradição Liberal: um diálogo com seus intérpretes

Para Antônio Paim, Oliveira Viana foi marcado pela crítica à tradição liberal efetuada por Alberto Torres (1865/1967) e pelo culturalismo sociológico de Silvio Romero (1851/1914).30

Oliveira Vianna dialogou com a tradição liberal que era representada por Ruy Barbosa (1849/1923). Todavia, afirmava que era impossível um sistema político liberal numa sociedade não liberal. O problema da democracia não estava no sufrágio universal, mas na garantia da liberdade civil e individual. No Brasil, a liberdade política à inglesa conduziria ao aumento do poder nas mãos das autoridades locais, que desde a colônia caracterizavam-se pela sua busca de

28 DUARTE; FREITAS, 2019; DUARTE & QUEIROZ, 2016. 29 BERTÚLIO, 2019, pp. 10-20.

(9)

autonomia e não integração ao mercado, e era a principal responsável pela violação das liberdades civis. Logo, o sistema representativo, sobretudo com a descentralização ocorrida com a proclamação da República, numa sociedade agrária, parental, clânica, oligárquica e não urbanizada, reforçaria os instrumentos utilizados contra o “povo-massa”, uma justiça local (o juiz “nosso”) e uma polícia local (o delegado “nosso”). A única defesa que o “povo-massa” possuía era o recurso ao Estado, no período monárquico, representado pela figura do Imperador, mediador e alto-funcionário. Por tais razões, Oliveira Viana concordava com Alberto Torres que, embora fosse partidário do sistema representativo, propunha o fortalecimento do poder executivo como a principal reforma a ser realizada. Para Viana, Torres teria aberto o livro do direito público e preparado nossa reforma Constitucional.31

Com Silvio Romero o diálogo sobre a questão racial foi mais direto. Romero empenhou-se “em buscar os instrumentos capazes de compreender o Brasil e sua história.” Influenciado por Herbert Spencer, propunha uma explicação biossociológica, em que se reconheceria elementos: primários (ou naturais – clima e meio geográfico); secundários (ou étnicos – o mais importante era a incapacidade relativa das três raças formadoras), terciários (morais – fatores históricos, tais como a política, legislação, usos e costumes – que inicialmente eram efeitos e depois atuariam como causas), e por fim, a “luta de classes”. A questão etnográfica, porém, continuaria a ser “a base fundamental de toda a história, de toda a política, de toda a estrutura social, de toda a vida estética e moral das nações”. Os diferentes modelos de família (patriarcal, quase patriarcal, tronco e instável) dariam lugar a dois tipos de sociedade, de formação comunitária e de formação particularista. 32

Em síntese, segundo Antônio Paim:

Partindo da lição de Sílvio Romero, que elaborou o roteiro para levantar-se o quadro de nossa organização social, e tendo presente, graças às advertências de Alberto Torres, que nossa tradição liberal minimizou o papel do Estado devido sobretudo ao desconhecimento das condições reais do país, Oliveira Viana formulou uma proposta inteiramente original e que de certa forma correspondia a uma grande síntese da tradição política nacional, considerados os cinco séculos de sua existência e não apenas o último deles, a partir da Independência, como veio a tornar-se praxe. A modernização do país deve abranger o plano das instituições políticas, como pretenderam nossos liberais desde a Independência. Mas essa modernização institucional, para deixar de ser um simples voto, exige transformação da sociedade que só o Estado pode realizar. Assim, concebeu uma fórmula unitária abrangendo tanto o projeto liberal-democrático de Rui Barbosa, dando precedência ao primeiro.33

Segundo José Murilo de Carvalho, não por acaso, “Oliveira Viana absorveu muitos dos temas do liberalismo conservador do Império”, em especial do Visconde do Uruguai que representou para as gerações subsequentes, incluindo Silvio Romero e Alberto Torres, um modelo de pensar a política brasileira. Entre

31 Todavia, tomou de Ruy Barbosa o papel conferido ao Poder Judiciário na implantação e

consolidação das liberdades civis, concebendo como uma força moral semelhante ao papel do Imperador no período monárquico. PAIM, 1999, pp. 24-32.

32 PAIM, 1999, pp. 22-23. 33 1999, p. 27.

(10)

Direito, Estado e Sociedade Ahead of Print, n. XX mês/mês 2021

os temas retomados estava a crítica do deslumbramento das elites com as teorias estrangeiras e o desconhecimento da realidade nacional; a percepção de que o Estado não era a única ameaça, pois esta tinha seu oposto correspondente no caudilhismo dos chefes locais; a distinção entre direitos civis que deveriam ser estendidos a todos e direitos políticos que dependeriam de uma qualificação; seu ideal de semelhança com a Inglaterra, mas seu realismo diante da necessidade de um estágio anterior pelo qual deveria passar a sociedade brasileira, daí o papel do Estado na “criação” da Sociedade;34 Enfim, Oliveira Vianna representaria a elaboração teórica desse projeto conservador, o autoritarismo instrumental35, gestado desde a Independência.

Segundo Wanderley Guilherme dos Santos, os autoritários instrumentais creem:

Em primeiro lugar, (...) que as sociedades não apresentam uma forma natural de desenvolvimento, seguindo antes os caminhos definidos e orientados pelos tomadores de decisão. E desta presunção deriva-se facilmente a inevitável intromissão do Estado nos assuntos da sociedade a fim de assegurar que as metas decididas pelos representantes desta sociedade sejam alcançadas. Nesta medida, é legítimo e adequado que o Estado regule e administre amplamente a vida social - ponto que, desde logo, os distingue dos liberais. Em segundo lugar, afirmam que o exercício autoritário do poder é a maneira mais rápida de se conseguir edificar uma sociedade liberal, após o que o caráter autoritário do Estado pode ser questionado e abolido. A percepção do autoritarismo, como um formato político transitório, estabelece a linha divisória entre o autoritarismo instrumental e as outras propostas políticas não democráticas.36

Entretanto, Ricardo Silva opõe-se, com razão, a tese de que o objetivo de Oliveira Vianna fosse, por meio do autoritarismo, alcançar o liberalismo. Ao invés de um Estado autoritário, como passagem, o objetivo desses teóricos teria sido o de dar ao país um Estado autoritário racionalizado em que uma equipe técnica seria capaz de administrar os interesses corporativos e garantir o desenvolvimento da produção.37 Tais ideias marcariam a Revolução de 1930, quando Vianna contribui para a modernização da estrutura jurídica. E, segundo Antônio Paim, servirão de arcabouço ideológico da Ditadura de 1964.38

José Murilo de Carvalho, por sua vez resgata duas outras influências da dimensão utópica do pensamento de Oliveira Vianna que o distancia de um projeto de modernização aos moldes liberais ingleses e expõe a face contraditória de projeto de um Estado tecnocrático, o seu Iberismo e seu apelo aos valores rurais. O “modelo de sociedade” de Oliveira Vianna seria uma visão ibérica de inspiração católica, em que há o predomínio do coletivo sobre o indivíduo.39 Já “o

34CARVALHO, 1991, pp. 84-85.

35 CARVALHO, 1991, pp. 84-85. PAIM, 1999, pp. 11-37. 36 SANTOS, 1978 apud PAIM, 1999, pp. 28-29.

37 SILVA, 2008. 38 1982, p. 116.

39 “O iberismo pode ser entendido, negativamente, como a recusa de aspectos centrais do que se

convencionou chamar de mundo moderno. É a negação da sociedade utilitária individualista, da política contratualista, do mercado como ordenador das relações econômicas. Positivamente, é um ideal de sociedade fundada na cooperação, na incorporação, no predomínio do interesse coletivo sobre o individual, na regulação das forças sociais em função de um objetivo

(11)

ruralismo se manifestava com seus valores paternalistas, familistas, pessoalistas”. “Sua visão de futuro prendia-se a tradições de longas raízes e se algo de romântico nela havia era o romantismo da vida fazendeira idealizada, em que havia brancos e negros ex-escravos”.40

Se há uma ênfase na criação da Nação pelo Estado:

o próprio Estado era patriarcal e sua tutela sobre a nação tinha a marca do poder familiar que buscava harmonizar a grande família brasileira sob sua autoridade. Na cabeça desta grande família, ou deste grande clã, colocava-se o imperador, que, ao final do Império, com suas longas barbas brancas, era a própria figura do grande patriarca. A verdadeira desestruturação se teria verificado em 1888, como consequência da Abolição da Escravidão.41

Enfim, no pensamento político de Oliveira Vianna demarca-se uma continuidade com o projeto de organização do Estado Nacional e escravista. Estado que representava a possibilidade de conciliação dos interesses das elites agrárias e os setores ligados à vida urbana e à industrialização do país, mas capaz de fazer frente às pressões sociais vindas “de baixo” e oferecer alternativas à fatalidade do fim da escravidão.

A propósito, segundo Marilena Chauí, o modelo de nação brasileira nasceu de uma combinação contraditória de duas interpretações: uma influenciada pelo “cientificismo naturalista evolucionista e positivista” e outra pela “escola histórica alemã”, na tradição historiográfica do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. Elas estavam diretamente vinculadas à formação do pensamento racial e à percepção racializada da história. Em comum, foram capazes de negar um lugar como sujeitos, na história nacional, para os grupos que eram naturalizados como desiguais. 42

4. A disjunção fundamental: O Idealismo da Constituição e o Povo como um Problema Racial

Qual seria o fundamento e os elementos da disjunção entre o Ideal e o Real? Inicialmente, a disjunção, como experiência histórica, era percebida da seguinte forma: “Veio a República. Veio a Democracia. Veio a Federação. E para logo se levantou um sussurro de desapontamento do seio da turba fanatizada – e esse desapontamento se acentuou, com o tempo, numa permanente desilusão.”43 O momento de inflexão da história constitucional brasileira era a passagem do período imperial ao republicano: “Na Constituinte Imperial os nomes que nela concorriam eram os maiores do país pelo prestigio da cultura, da inteligência, do caráter ou da situação social.”44 Na Constituinte Republicana, ao

comunitário.” CARVALHO, 1991, p. 89. Tais argumentos sobre a distinção ibérica foram extraídos de MORSE, 1988.

40 CARVALHO, 1991, p. 91-92, 96. 41 CARVALHO, 1991, p. 93. 42 CHAUÍ, 2000, p. 49-50.

43 VIANNA, 1939, p. 28.

44 “Os grandes estadistas que consolidaram o Império e construíram o poder político da nação, saíram dela ou nela estavam (...). Eles tinham, ao demais, a imensa autoridade de um mandato verdadeiramente nacional – pois eram realmente, e não ficticiamente, representantes da nação.

(12)

Direito, Estado e Sociedade Ahead of Print, n. XX mês/mês 2021

revés, as fontes da autoridade dos republicanos “não eram de pureza absoluta: o mandato que receberam não lhes vinha de uma delegação nacional”.4546

Malgrado essa insuficiência, a prática constitucional republicana pretendia confundir, sem êxito, a constituição real com a constituição escrita. O mimetismo das elites dirigentes republicanas, estava no cerne da adoção simultânea do liberalismo e da democracia. O projeto idealista republicano fracassara inevitavelmente diante das “condições mentais” e estruturais de nosso povo”. “Uma força estranha” teria impedido essa síntese idealista: “o momento histórico” e “a própria nação”. 4748

As forças políticas nos Estados, formada por homens que agiam “como homens do seu meio, do seu tempo e da sua raça – o que equivale dizer (..) que agiam em completo desacordo com o espírito idealista da Constituição”. Ou seja, as condições econômicas da sociedade, diante da desagregação provocada pelo fim da escravidão, pois “eram perfeitamente impróprias a qualquer surto de idealidade política”. Ao invés disso, provocaram o deslocamento da aristocracia rural para o patrimonialismo dos empregos públicos. A grande “indústria da terra” teria encontrado “no Estado uma nova base econômica”.495051

Todavia, segundo Oliveira Vianna, esse fracasso era explicado pelos republicanos pela inexperiência ou pela corrupção, sem levar sem consideração “o desacordo entre o idealismo da Constituição e a realidade nacional”. O erro decorria da presunção de que aqui existiria essa “coisa que, nos povos de raça saxônia principalmente, se chama ‘opinião pública’”. Todo o mecanismo do regime estabelecido na Constituição teria sido constituído a partir dessa presunção central.

Embora, na sua totalidade, flutuando nos inter-mundos do utopismo doutrinário, eram espíritos fortemente compenetrados das suas idéias.” VIANNA, 1939, p. 20.

45 VIANNA, 1939, p. 21-22.

46 A importância das lutas sociais para compreender a dimensão racializada das “soluções" constitucionais pode ser encontrada já no debate sobre a Constituinte de 1823 e o fantasma da Revolução do Haiti. QUEIROZ, 2018. DUARTE; QUEIROZ, 2019.

47 “[os brasileiros] na sua veneta, na sua fantasia, ou nos livros que leram, ou no que sabem do que se passa lá fora, naturalmente porque não encontram, dentro do país, nenhuma fonte que os possa inspirar. Os ingleses, não: em toda essa actividade febril, que desenvolvem, a fonte da sua inspiração é exclusivamente a opinião inglesa.” VIANNA, 1939, p. 25-28, 33, 76.

48 “(…) a bela ideologia da Constituinte teria que fracassar da mesma forma, senão imediatamente, como aconteceu, pelo o menos com o correr dos tempos, á medida que se fosse acentuando o desacordo entre os seus princípios e as condições mentais e estruturais no nosso povo.” VIANNA, 1939, p. 36.

49 “O decreto da abolição do trabalho servil havia explodido com a violência de uma mina subterrânea, e a sociedade inteira, de baixo acima, se abalou, estremeceu e, em muitos pontos, derruiu completamente. Todas as classes sofreram uma profunda perturbação na sua estrutura – umas directamente, como a agrícola; outras, indirectamente, com a repercussão do abalo sofrido pelas primeiras.” VIANNA, 1939, pp. 32-34.

50 “Os cargos públicos, - administrativos ou políticos, -passaram a ser disputados, não como meio mais eficiente para realizar o ‘ideal’, o ‘sonho’; mas, pura e materialmente, como meio de vida.” VIANNA, 1939, pp. 32-33.

51 Desse modo: “Os que conseguiam, destarte, alcandorar-se nos postos oficiais ou electivos viam neles logicamente uma situação definitiva e vitalícia – e a defendiam, por todos os meios, contra o assalto dos novos invasores.” “E só lhe restava alar-se no ar subtil. O ideal inspirador dos homens deixará de ser aquela bona libido patrice gratificandi, de Sallustio, e passará a ser apenas o avarus venter horaciano.” VIANNA, 1939, pp. 34-35.

(13)

A Constituição instituiria, com efeito, “o regime democrático; portanto, um regime que deriva da ‘vontade do Povo Soberano’, manifestada pela ‘Opinião Pública’” que não poderia ser confundida com o sufrágio universal. O aparato republicano da formação dessa opinião partia de ideia de que “as opiniões individuais seriam coordenadas e agrupadas pelos partidos políticos à maneira inglesa” e que esta seria a “forma mais legitima, senão a única, da manifestação do Povo Soberano”. Entretanto, o que se chama “opinião” na Inglaterra seria coisa muito distinta da existente no Brasil.52

O problema da democracia no Brasil não era o “problema do voto – e sim o problema da organização da opinião” que nos países europeus e americanos teria sido “resolvido pela história – por uma cultura cívica acumulada em mil anos de evolução política”. Logo, as democracias estariam divididas entre as “democracias de opinião organizada”, como no caso de ingleses e americanos, e “as democracias de opinião, simplesmente”, como no caso dos brasileiros.

Quais eram as condições para a formação do regime de opinião?

Quando se considera a delimitação do problema proposto percebe-se que Oliveira Vianna não se opunha abertamente às formas procedimentais de participação política, ou melhor tinha, o compromisso ideológico de valorizar “os padrões das "sociedades civilizadas”. De qualquer modo, a expressão de uma vontade coletiva pública poderia ser encontrada nos procedimentos democráticos, desde que o povo a que ela se reportasse estivesse suficientemente desenvolvido para tanto. Em outras palavras, a inadequação da forma procedimental não era de método, mas do contexto histórico político onde se pretendia aplicá-la.

O raciocínio de Oliveira Vianna é, de fato, bem circular. Na origem das boas instituições está o povo. O Direito é parte desse enraizamento institucional. Onde não há um povo, nasce uma disjunção entre a forma e a substância. Na origem do bom uso dos procedimentos democráticos estariam atributos de natureza biológica/histórica. Mesmo sem o exercício do direito ao voto, haveria “essa poderosa solidariedade de classes, esse espírito popular, militante e infatigável, acabaria por obrigar, pela simples força moral da sua opinião, os detentores do Poder e a classe propriamente política a considera-lo”. Esse regime da opinião decorreria de dois “atributos intransferíveis do cidadão inglês”:

a sua índole ativa e combativa (a aggressive vitality, de Whitman), por um lado; por outro, o espírito de solidariedade, o sentimento instintivo do interesse coletivo, aquilo que van Dyke chama – the spirit of common order and social cooperation. Estes dois atributos – um de natureza biológica, porque se prende ao temperamento da raça; outro de natureza moral, porque se prende à formação social e política do povo – é que asseguram à democracia inglesa esta surpreendente vitalidade, que faz a admiração e também o desespero de todos os povos não saxões do mundo.53

52 “Esta organização é constituída por um conjunto majestoso de ‘fontes de opinião’, representadas, em parte, pelas várias associações de classe, poderosamente unidas e federalistas, e, em parte, por esses grupos activos e militantes nascidos do admirável espirito de solidariedade da raça saxônica (leagues, clubs, committees, societies, etc.)”. VIANNA, 1939, pp. 38, 40-41, 45. 53 VIANNA, 1939, pp. 47, 104.

(14)

Direito, Estado e Sociedade Ahead of Print, n. XX mês/mês 2021

No Brasil, “o monopólio dos órgãos do poder pelas pequenas parcerias politicantes, que entre si distribuem os cargos públicos” e sua submissão ao executivo seriam “fatos naturais”, “num povo que não tem – porque não podia ter – nem espírito democrático, nem sentimento democrático, nem, portanto, hábitos e tradições democráticas”. Dever-se-ia reconhecer de “um ponto de vista objectivo o fenômeno” e, segundo Oliveira Vianna,

talvez devamos ser, de um certo modo, gratos a estes clãs politicantes: pelo menos, eles nos prestam o serviço de organizar essa cousa essencial e que, entretanto, o Povo, o nosso Povo, pela sua inaptidão democrática, se mostra incapaz de organizar: o quadro dos poderes públicos do país.54

Logo, as oligarquias, apesar de se constituírem a partir de interesses particularistas, não seriam assim tão condenáveis, pois a soberania popular seria incapaz de construir espontaneamente a “superestrutura administrativa”. Isso porque “num povo como o nosso, elas são mesmo inevitáveis. Diremos mais: elas são necessárias.”55 A tarefa política, diante da impossibilidade do povo para a democracia seria a educação das elites.56 Elas seriam, portanto, “as vítimas das próprias circunstâncias em que atuam: no meio do silêncio geral do país, nada mais natural que eles acabem ouvindo exclusivamente a voz que se faz ouvir com insistência e persuasão: a voz dos interesses partidários que os cercam”.57

Não obstante, no Brasil, haveria duas fontes contínuas dessa opinião pública “a imprensa e os partidos políticos”. As “classes industriais e comerciais” abririam uma nova fase “na vida da nossa rudimentar democracia”, “o primeiro passo para a constituição, com caracter permanente, junto ao Poder, dos órgãos consultivos das nossas classes econômicas”. Em outras palavras, a nova opinião pública organizada se manifestava num Estado Corporativo, o que implicava um novo papel ao poder executivo. Era esse desenvolvimento técnico que justificava o papel secundário dos parlamentos.58

Assim, num só golpe, Oliveira Vianna justificava a presença e a continuidade das oligarquias agrárias escravistas, sua apropriação do aparelho de Estado, sua ética patrimonialista como um produto do povo, da ausência de uma voz popular que, obviamente, tivesse os ditames adequados das raças evoluídas e das civilizações desenvolvidas, capaz de constituir a nacionalidade. Ao invés de serem representadas como parte do processo de dominação político econômica, elas eram a própria solução para a existência do Estado. Tal fato era perfeitamente compatível com seu elogio tanto da política centralizadora do Império (construída para negar a condição de povo a todos) quanto da mística do bandeirante como elemento civilizador (construída para negar a sua ação genocida), temas que desenvolve de forma específica, respectivamente, em O

54 1939, pp. 52-53.

55 VIANNA, 1939, pp. 52-53.

56 “O grande problema não está em destruí-las; está em educá-las, em discipliná-las, em reduzir-lhes a capacidade de fazer o mal e aumentar-reduzir-lhes a capacidade de fazer o bem.” VIANNA, 1939, p. 54.

57 VIANNA, 1939, pp. 55-57, 60-61. 58 VIANNA, 1939, pp. 96, 104-107.

(15)

caso do Império (1925), e Populações Meridionais do Brasil (1920) e Evolução do Povo Brasileiro (1923).

Desse modo, a disjunção proposta por Oliveira Vianna é também distinta da mera assunção da existência dos “fatores sociais de poder” que orientariam a ação do Estado e a formação do direito, como em Lassalle. Ao revés, sem perder esse ponto de partida, ele propunha a organização dos fatores reais de poder, mediante instituições de direito público. Os fatores reais de poder seriam criados com a racionalização do Estado, num processo de reconstrução (ou criação) da sociedade. Porém, os fatos e a experiência comprovariam que “somente pela virtude dos textos constitucionais” não seria possível essa reorganização. O erro dos “espíritos teorizadores” estaria em que “uma reforma política só é possível por meios políticos”, incapazes de conceber outros meios "de modificar as condições de vida política de uma sociedade senão a modificação das suas instituições de direito público”.59 Ao contrário, o estabelecimento de um novo regime político “em nosso povo é antes de tudo um problema social e econômico – e só secundariamente um problema político e constitucional”.60 Enfim, sua proposta não negava o valor do Direito como um todo, mas a parte do Direito Constitucional relativa aos direitos fundamentais, de natureza individual, especialmente as liberdades públicas e o direito ao voto, de base popular.

As ponderações de Oliveira Viana se assemelham àquelas de Nina Rodrigues sobre a impossibilidade de adoção de um Código Penal Liberal uniforme diante da suposta maior incidência da criminalidade entre negros, indígenas e seus mestiços, e da diferente distribuição das composições raciais em nosso território. O raciocínio “dedutivo” dos republicanos que não teriam atentado para a diversidade (regional/racial) é criticado no mesmo “tom”, quase de cópia literal:

Tendo de organizar uma Constituição para o Brazil ou para o Camboja, para o povo inglês ou para um kraal do Hottentocia, criariam o mesmo sistema de governo, com as mesmas peças, as mesmas articulações, a mesma construtura, o mesmo modo de funcionamento, os mesmos freios, as mesmas válvulas de segurança: não lhe modificariam nada, não alterariam sequer o tamanho da cabeça de um parafuso –porque isto equivaleria a comprometer a 'beleza do regime' ou quebrar a ‘harmonia do sistema’.61

Ao revés, o futuro legislador constituinte (o povo em sentido estrito, a elite, distinta da plebe) deveria, "na elaboração das suas reformas e na arquitetura do novo sistema político”, "antes de se mostrar homem do seu tempo”, "mostrar-se homem da sua raça e do seu meio.”62

Sobre esse tema, Ricardo Silva afirma que Oliveira Vianna "desenvolveu suas ideias em sintonia com o pensamento conservador europeu de fins do século XIX e das primeiras décadas do século XX, opondo-se (…) às reformas direcionadas à expansão da cidadania política”63 A extensão do sufrágio seria a principal causa da desorganização nacional. Por isso, lamentava a “anarquia" decorrente da

59 VIANNA, 1939, pp. 63-64. 60 VIANNA, 1939, p. 64. 61 VIANNA, 1939, p. 68. 62 VIANNA, 1939, p. 69. 63 SILVA, 2008.

(16)

Direito, Estado e Sociedade Ahead of Print, n. XX mês/mês 2021

equiparação do voto da "nobreza da terra" ao de “analfabetos”, inclusive "mestiços”, dessa "incoerente população de pardos, cafuzos e mamelucos infixos, que vagueavam então pelos domínios”.64

Em outras palavras, o suposto objetivo de chegar ao liberalismo pelo autoritarismo não era apenas a preocupação com o caráter privado dos interesses, semelhante a Carl Schimitt. Havia o medo mais amplo de que as formas procedimentais de participação popular poderiam fazer confundir o povo (elite qualificada) com a povo (plebe), uma confusão na "hierarquia das raças", entre o lugar de mando ocupado por aquelas responsáveis pela "civilização" e as consideradas "inferiores". Diante do particularismo dos interesses oligárquicos, legitimados por sua atuação histórica civilizatória e a massa amorfa (identificada com adjetivos racializados), Oliveira Vianna insiste que a verdadeira democracia existiria sem voto: “não seria absurdo imaginar-se a possibilidade de uma perfeita democracia funcionando sem eleições”65.

Na demonstração dessa "democracia", curiosamente, o movimento abolicionista lhe serve de exemplo do “triunfo da opinião pública”, pois a abolição teria sido realizada sem uma maioria parlamentar abolicionista. Tal exemplo revela o compromisso com a política conservadora do período imperial, que à custa da escravização “imoral e ilegal” de pessoas negras, manteve o Brasil como principal pais escravista num mundo em que a abolição tinha, no mínimo, quase cem anos de trajetória.66 O que Oliveira Vianna chama de triunfo da opinião foi, certamente, resultado de pressões internas e externas, em que uma elite se viu, finalmente, encurralada e, ao final, organizou um novo projeto de hegemonia racial.67

A proposta de Oliveira Vianna, mais do que a condução para a um liberalismo econômico ou político futuro, representa a tentativa de racionalização das formas de apropriação privada dos recursos estatais, mediante seu gerenciamento técnico e de acomodação dos conflitos sociais vinculados ao fim da escravidão, à imigração e à nova fase de urbanização. Utopia de uma ciência social voltada para a prática que tem, desde seu início, a preocupação com a legitimação das elites e a sua reconfiguração como “elites sociologicamente iluminadas” e racialmente definidas como brancas. De um lado, reconhece no privatismo dessas elites, o caráter ambíguo de dispersão de interesses, de agente civilizatório e de ator social na construção do Estado, de outro, sua incapacidade para realizar as tarefas de desenvolvimento que o autor julga necessárias em relação à sociedade e ao Estado. A velha fórmula de construir e constituir-se como classe a partir do Estado e do papel do Estado na construção da Sociedade é revisitada pelo cientificismo de Oliveira Vianna. Ao final, a culpa é projetada no “povo-massa”, objeto-sujeito das mazelas nacionais.

Enfim, Oliveira Vianna conferiu legitimidade a tese de que a apropriação privada e elitista dos recursos públicos, especialmente das carreiras da

64 SILVA, 2008. 65 1939, p. 86.

66 ALENCASTRO, 2000. ALENCASTRO, 2010.

67 “Realmente, o triunfo do movimento abolicionista foi um legítimo triunfo da opinião pública; (…) conseguiu fazer com que um Parlamento hostil à ideia abolicionista se visse moral e politicamente coagido a tornar-se um Parlamento favorável á ideia abolicionista.” VIANNA, 1939, p.88.

(17)

administração pública e da justiça, decorria dos males de origem do povo massa e de que o desenvolvimento seria alcançado pela remodelação das elites políticas conforme o saber das ciências sociais. Como anota Luciano Aronne de Abreu, o Idealismo da Constituição, “não por coincidência, teve uma segunda edição em 1939, aumentada, na qual o autor refere-se ao Estado Novo como um exemplo do idealismo orgânico e de realismo político, legitimando-o em suas práticas políticas”.68 A defesa do Estado Novo que criou no poder executivo órgãos de manifestação corporativa e técnica, a opinião qualificada, respondia à exigência de “modernização". 69 O projeto modernizador era, em sua essência, racialmente pensado como um modo de garantir a supremacia branca nas instituições públicas.

5. Conclusão

As tensões entre procedimentalismo e substancialismo em Oliveira Vianna têm seguramente outros caminhos.

Como se fez referência, seria possível questionar o próprio conteúdo da “tradição liberal”. Conforme Emília Viotti da Costa70, o liberalismo assumido no Brasil não pretendia se confundir com democracia, ou seja, “a escravidão constituiria o limite do liberalismo no Brasil”, liberalismo de proprietários de escravos, cujas fronteiras eram construídas pelo medo e cálculo político de agitar as massas no processo de independência e de emancipação gradual.71 Questão semelhante é colocada pela interpretação que lembra as raízes ibéricas e patriarcais do pensamento do autor. Ou ainda, como sintetiza Raimundo Faoro, em sua conhecida crítica ao patrimonialismo: “Longe do modelo anglo-saxão, respirando o bolor bragantino, o liberal se propõe educar, corrigir, tutelar o ‘inorganismo’ (o povo), mas atento às suas travessuras e rebeldias.”72 De igual modo, ao considerar a produção científica em fins do século XIX, Lilian Schwarcz constatou que o liberalismo convivia com o racismo científico.73

Enfim, uma das soluções para a questão dos pontos de partida é adjetivar os liberalismos. Há o liberalismo conservador, defensor da propriedade escrava; e o liberalismo do cientificista (como de Spencer) defensor da seleção natural dos mais "fracos integrantes” das classes trabalhadoras; o liberalismo reformador, abolicionista e com visões negativas do trabalhador negro; o liberalismo elitista, a favor da República e contrário à participação das massas trabalhadoras no pós-abolição. Entre permanências e rupturas ou tradições e novidades, há uma “continuidade”, o objeto-sujeito das propostas políticas (os povos da conquista, os negros da África, os escravos da Guiné, os libertos, os aldeados…), ou seja, as relações discursivas constituem-se desde a colonialidade. O limite do “liberalismo" está na subordinação racial dos escravos ou no povo racializado, ou seja, as populações consideradas como um problema de gestão racial, alvos de

68 ABREU, 2008. p. 51. 69 CAMPOS, 2001.

70 1999, p. 33.

71 AZEVÊDO, 1987. CARVALHO NETTO, 1993. 72 1994, p. 130.

(18)

Direito, Estado e Sociedade Ahead of Print, n. XX mês/mês 2021

estratégias públicas e privadas, descrito como inapto para a gestão de atividades econômicas, para integrar-se a instituições liberais, para conquista de direitos… Todavia, é importante realçar: esse limite não é nacional ou local, pois ele estrutura o espaço colonial com suas diferenciações. O próprio discurso da diferença emerge como constitutivo da estrutura desse espaço.

Neste caso, haveria um atalho simples a ser tomado, a leitura atenta das dedicatórias que mostravam o projeto intelectual de Oliveira Vianna. Ele foi discípulo de Ingenieros, quiçá o teórico racista mais influente na América Latina, que atribuía o papel político de gerenciamento das sociedades “periféricas” às elites europeias qualificadas, e propôs inúmeras medidas racistas aplicadas contra as populações não brancas.74 Oliveira Vianna defende o idealismo/realista do colega argentino para quem “um verdadeiro ideal não deve ser outra coisa senão uma antevisão da realidade social futura e não uma criação arbitraria da nossa fantasia ou da nossa razão”.75

De fato, como analisa Marcos Odalla, Ingenieros fez dois usos do conceito de civilização para “descrever” essa “realidade”: “um etnográfico pelo qual a civilização é atribuída a qualquer sujeito social e um valorativo em virtude do qual esta se converte em índice preciso de adaptabilidade ao meio de una raça determinada”. Neste caso, trata "das capacidades” para uma raça se impor a outras, num cenário governado "pelo princípio da luta pela vida”, em que a raça branca sairia vitoriosa.76

A relação entre a construção racializada do povo como objeto/sujeito da ciência e a oposição entre idealidade/realidade, capaz de definir os limites de “atuação” sobre/desde o Estado/Sociedade foi a principal contribuição do cientificismo de Oliveira Vianna ao autoritarismo. Tema, de fato, tomado de Ingenieros.77

De qualquer sorte, em Oliveira Vianna, o discurso racial, quer sobre as elites quer sobre o povo, em sua construção da imagem negativa dos negros e indígenas, e dos mestiços (elementos úteis apenas pela seu potencial de arianização e "melhoria da raça"), não é um apêndice maldito que pode ser descartado, à posteriori, do autoritarismo, mas um dos seus elementos centrais.

A ciência política autoritária, a história racializada e o uso das ciências que propõem compreensões racistas da sociedade brasileira fundamentam os seus escritos. Ali se encontram os liberalismos (antinegro e anti-indígena) que se afasta da universalização dos direitos e assume a necessidade de hierarquias sociorraciais e a nova roupagem científica que emerge como retórica de Direito Público voltado para a defesa da centralidade do Estado com medo de que o individualismo e liberalismo possam conduzir à afluência dos ex-escravos aos mecanismos decisórios institucionais e/ou à forma jurídica de direitos.

74 Sobre a importância do pensamento racista de J. Ingenieros: ZAFFARONI, 1993. 75 1927, pp. 131-132.

76 2009.

77 Além desses dois caminhos, outro ponto central que não pode ser examinado neste texto é

articulação (e aparente oposição) entre o substancialismo presente na versão de Gilberto Freyre da democracia racial, democracia que se estabelece fora da arena institucional, pública e jurídica, e o substancialismo do autoritarismo/racista de Oliveira Vianna que, como se viu, negava os procedimentos democráticos de inclusão das massas negro/indígenas no pós-abolição.

(19)

Para compreender esse traço de continuidade, é necessário, porém, voltar aos elementos do que se pretende ver, e fazer crer, ser uma disjunção, e na disjunção que a prática científica pretende operar entre compreender a presença do negro na sociedade brasileira e negar-lhe direitos.

Enfim, a crítica ao racismo como um componente importante da teoria social crítica sugere novos caminhos para a compreensão da obra de Oliveira Vianna. Ela não deveria ser simplesmente descartada por ser racista. Esse descarte já é realizado pela visão subjetivista e individualista do racismo que impõe o silêncio sobre a atualidade da relação entre autoritarismo e racismo. E, paradoxalmente, foi a solução proposta pelo relativismo de época que busca depurá-la do racismo, secundarizando sua relevância ou escolhendo "o que há de bom" no autor.

Ao revés, como tentamos argumentar, o texto não aparece nem como mera inversão da realidade nem mera construção da realidade pelo discurso. Sua obra é um conjunto de indícios relevantes das estratégias de construção do presente. A negativa da via constitucional e democrática para as massas pós-abolição revela como a elite branca empenhou-se em produzir um sistema que, desse ponto de vista, não criasse distúrbios na continuidade.

A compreensão dessa construção autoritária do direito público78 é uma chave importante para entender a permanência e atualização dos padrões de classificação social “herdados” da escravidão. As sobrevivências podem ser pensadas como projetos de exclusão que estão na estrutura do Estado, incluindo as formas de recrutamento da composição das instituições jurídicas. Os fundamentos raciais do autoritarismo deslocam o tema dos padrões de relações raciais presentes no país para a importância dos padrões jurídicos e institucionais para produção de hierarquias raciais. Hoje podemos, ao observar a branquidade dos tribunais de justiça, reconhecer que o projeto de Oliveira Vianna foi decisivo para produzir a desigualdade racial que encontramos no país.

78 Por hora, é possível refletir sobre a permanente oposição entre interesse público, interpretado

segundo a experiência das autoridades constituídas, e os direitos fundamentais dos cidadãos, cindidos, de fato, entre sujeitos com experiências semelhantes às dessas autoridades e não-sujeitos. O público, portanto, como um espaço de privilégio (essencialmente racializado) onde determinadas perspectivas não têm lugar.

(20)

Direito, Estado e Sociedade Ahead of Print, n. XX mês/mês 2021

Referências

ABREU, Luciano Aronne. Dossiê temático: Estado Novo, Realismo e Autoritarismo Político. Política e Sociedade, vol.7, nº 12, 2008, pp. 49-66.

ALENCASTRO, Luiz Felipe. O Trato dos viventes. Formação do Brasil no Atlântico sul. São Paulo, 2000.

ALENCASTRO, Luiz Felipe. Parecer sobre a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental, ADPF, nº 186, apresentada ao Supremo Tribunal Federal. 2010. AZEVÊDO, Célia Maria Marinho de. Onda negra, medo branco: o negro no imaginário

das elites do século XIX. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1987.

BERTÚLIO, Dora Lúcia. Direito e Relações Raciais: uma introdução crítica ao racismo. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2019.

BUCK-MORSS, Susan. Hegel, Haiti, and universal history. University of Pittsburgh Pre, 2009.

CAMPOS, Francisco. O Estado Nacional: sua estrutura, seu conteúdo ideológico. Brasília: Senado Federal, Conselho Editorial, 2001.

CARVALHO, José Murilo de. A Utopia de Oliveira Vianna. Revista Estudos Históricos, vol. 4, n. 7, 1991, CPDOC, FVG.

CARVALHO NETTO, Menelick de. A sanção no procedimento legislativo. Del Rey, 1993. CHAUÍ, Marilena. Brasil: Mito Fundador e Sociedade Autoritária. São Paulo: Fundação

Perseu Abrano, 2000.

COSTA, Emília Viotti da. Da monarquia à república: momentos decisivos. São Paulo: UNESP, 1999.

DUARTE, Evandro Charles Piza; QUEIROZ, Marcos Vinícius Lustosa. A Revolução Haitiana e o Atlântico Negro: o Constitucionalismo em face do Lado Oculto da Modernidade. Revista Direito, Estado e Sociedade, n. 49, 2016.

DUARTE, Evandro Piza; FREITAS, Felipe da Silva. Racism and Drug Policy: Criminal Control and the Management of Black Bodies by the Brazilian State. In: KORAM, Kojo. The War on Drugs and the global colour line. Pluto, 2019.

DUSSEL, Enrique. 1492: o encobrimento do outro; a origem do Mito da modernidade; conferências de Frankfurt. Vozes, 1993.

FAORO, Raymundo. Existe um Pensamento Político Brasileiro? São Paulo: Ática, 1994. LASSALE, Ferdinand. O que é uma Constituição. Belo Horizonte: Ed. Líder, 2003; LUHMANN, Niklas. Causalidade no sul. Trad. de Menelick de Carvalho Netto (para fins

acadêmicos). Revista de Teoria Sociológica. Universidade de Bielefeld, Alemanha, s/d, 1995.

HABERMAS, Jürgen. A Inclusão do Outro. São Paulo: Loyola, 2002.

HESSE, Konrad. A Força Normativa da Constituição. Porto Alegre: Sérgio Antonio Fabris, 1991.

KEMNITZ, Eva-Maria von. Em Portugal–O Orientalismo em fragmentos. Revista de estudios internacionales mediterráneos, 2016.

MOURA, Clóvis. As injustiças de Clio: o negro na historiografia brasileira. Belo Horizonte: Oficina de Livros, 1990, p. 197.

MORSE, Richard M. O espelho de Próspero: cultura e idéias nas Américas. São Paulo: Companhia das Letras, 1988.

(21)

ODALLA, Marcos. Civilización y barbarie. La función de los intelectuales en la Argentina del Centenario: J. Ingenieros y R. Rojas. Estudios de Filosofía Práctica e Historia de las Ideas. Revista anual de la Unidad de Historiografía e Historia de las Ideas/INCIHUSA – CONICET, Mendoza, vol.11, n° 2, diciembre 2009, p. 43-54. PAIM, Antônio. Curso de Introdução ao Pensamento Político Brasileiro. A Opção

Totalitária. Unidade XI e XII. Brasília: Universidade de Brasília, 1982.

PAIM, Antônio. Introdução. In: VIANNA, Oliveira. Populações Meridionais do Brasil. Brasília: Senado Federal, 2005, p. 18-45.

PAIM, Antônio. Oliveira Vianna e o Pensamento Autoritário no Brasil. In: VIANNA, Oliveira. Instituições Políticas Brasileiras. vol. I. Brasília: Senado Federal, 1999, pp. 11-37.

PAIVA, Vanilda. Oliveira Vianna: Nacionalismo ou Racismo? Síntese: Revista de Filosofia, 1976, vol. 3, n. 6, pp. 57-84.

QUEIROZ, Marcos V. Lustosa. Constitucionalismo Brasileiro e o Atlântico Negro: a experiência constituinte de 1823 diante da Revolução Haitiana. Editora Lumen Juris, 2018.

QUIJANO, Aníbal. Colonialidade do poder e Classificação social. Epistemologias do Sul, 2009.

SAID, Edward W. Orientalismo: o Oriente como invenção do Ocidente. Editora Companhia das Letras, 2007.

SCHWARCZ, Lilia K. Moritz. O espetáculo das raças: cientistas, instituições e questão racial no Brasil, 1870-1930. São Paulo: Companhia das Letras, 1993.

SIEYÉS, Emmanuel Joseph. A Constituinte Burguesa. Qu`est-ce que le Tiers État? Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2001.

SILVA, Ricardo. Liberalismo e democracia na sociologia política de Oliveira Vianna. Sociologias, Porto Alegre, ano 10, nº 20, jul./dez. 2008, pp. 238-269.

VIANNA, Oliveira. O Idealismo da Constituição. Rio de Janeiro: Terra de Sol, 1927. VIANNA, Oliveira. O Idealismo da Constituição. São Paulo: Cia. Editora Nacional, 1939. ZAFFARONI, Eugenio Raúl. Criminología: aproximación desde un margen. Bogotá,

Colômbia: Temis, 1993

Recebido em 04 de março de 2020. Aprovado em 09 de setembro de 2020.

Referências

Documentos relacionados

Portanto, é possível concluir que um Modelo Baseado no Indivíduo, apesar de mais complexo para sua concepção e implementação, permite observar

O objetivo deste trabalho foi avaliar épocas de colheita na produção de biomassa e no rendimento de óleo essencial de Piper aduncum L.. em Manaus

No presente trabalho, os tratamentos endodônticos foram mais frequentemente realizados pelos alunos do 9° período da graduação (segundo ano clínico)

Este trabalho tem como objetivo apresentar um ambiente de simulação integrado e multifuncional, utilizando técnicas de controle digital e que possua procedimentos de sintonia,

Sei que Georges Duby não gostou da evolução dos Annales depois de Braudel. Ele não estava interessado, era mesmo reti­ cente a respeito das orientações do tipo etnológico

É notória a divergência entre os objetivos traçados para o Ensino Médio, em algumas épocas da história desse segmento da educação e os atuais. A base para elaboração dos

Quanto aos aspectos verificados por esta pesquisa como rele- vantes para reflex~o por parte de pessoas envolvidas no processo de ensino de LE, evidencia-se a

A pesquisa teve por objetivo identificar nas indústrias de transformação localizadas na cidade de Campina Grande-PB a ocorrência de adoção do Custeio Alvo, bem como analisar o