o sofrimento como redençÃo de si: doençA e VidA nAs fiLosofiAs
Coleção filosofia em questão
• Pensamento ético contemporâneo, Jacqueline Russ • Pitágoras e os pitagóricos, Jean-François Mattéi • Pensar com Emmanuel Levinas, Benedito E. Leite Cintra • Nietzsche: Para uma crítica à ciência, Mauro Araujo de Sousa • Introdução a Ricoeur, Domenico Jervolino
• O sofrimento como redenção de si: Doença e vida nas filosofias de Nietzsche e Pascal, Thiago Calçado
tHiAgo cALçAdo
o sofrimento como
redençÃo de si
doençA e VidA nAs fiLosofiAs
de nietZscHe e PAscAL
Direção editorial: Zolferino Tonon
Coordenação editorial: Claudiano Avelino dos Santos Assistente editorial: Jacqueline Mendes Fontes Revisão: Márcia Elisa Rodrigues
Cesar Augusto Faustino Junior Diagramação: Dirlene França Nobre da Silva Capa: Marcelo Campanhã
Impressão e acabamento: PAULUS
© PAULUS – 2012 Rua Francisco Cruz, 229 • 04117-091 São Paulo (Brasil) Fax (11) 5579-3627 • Tel. (11) 5087-3700 www.paulus.com.br • editorial@paulus.com.br ISBN 978-85-349-3333-9 1ª edição, 2012
Aos doentes e moribundos que se fizeram “encontro” para mim em seus leitos de dor, especialmente
os mais pobres. nos seus corpos convalescentes aprendi a amar a infinitude
AgrAdecimentos
Ao Professor dr. ivonil Parraz, por ter inspi rado, acreditado e incentivado esta obra desde o início até a sua conclusão.
Ao Professor dr. José carlos Bruni, pelo apoio e pelas conversas sempre “transgressoras” que me ensinaram o caminho da liberdade no pensar.
À Professora dra. Lígia fraga silveira, pelas correções.
À cAPes, pelo apoio material sem o qual não seria possível a realização deste trabalho.
Aos funcionários da Unesp de marília, de modo especial à secretária Aline, pela paciência e dedicação a todos os mestrandos.
Aos amigos, familiares e companheiros de jor nada, que me impulsionaram no transcurso desta pesquisa.
Aos meus pais que, com sua simplicidade, me educaram com palavras, lágrimas e sorrisos pelas trilhas do saber.
enfim, agradeço a deus, pela liberdade e afir mação de si que me foram concedidas no decorrer deste trabalho.
“A capacidade de sofrer é a medida de grandeza de uma pessoa e salva a vida interior dessa pessoa.”
clarice Lispector
“O meio mais rápido de se chegar à verdade é a dor.”
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introdUçÃo
relacionar dois autores em filosofia não é uma tarefa fácil. Ainda mais quando se trata de estabelecer uma possível relação entre dois pensa dores aparentemente tão díspares como friedrich nietzsche e Blaise Pascal. não obstante a diferen ça de época e de contexto filosófico dos dois, nota se uma distância tremenda a ser considerada no que diz respeito às suas compreensões quanto à religião. enquanto o filósofo francês faz da sua vida um sacrifício constante ao deus cristão, no recolhimento e no pensamento, nietzsche é deno minado o anticristo, tornandose o maior expo ente do embate contra o cristianismo no fim do século XiX.
todavia, o fato de esses dois autores se dis porem, à primeira vista, de maneira tão contrária no que diz respeito às suas crenças e intenções não invalida uma análise comparativa no tocante a outros temas de suas filosofias. Apesar da apa rente e, de certa forma, concreta distância entre a constituição de seus pensamentos, é possível esta belecer relações importantes, se forem analisadas suas biografias e seus modos de afirmação de si
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em relação aos contextos nos quais estavam inseri dos. nietzsche, como será apresentado no primei ro capítulo deste trabalho, leu Pascal e o admirava por sua coragem de permanecer fiel a si mesmo em situações totalmente adversas, impostas por seus correligionários jansenistas. Pascal, por ou tro lado, mesmo não conhecendo o autor do
Anti-cristo, sugeriu uma interpretação interessante na
sua maneira de lidar com aqueles que o cercavam e, principalmente, com a sua enfermidade, seme lhante ao que nietzsche também experimentou.
o tema do sofrimento foi escolhido para ser o ponto de contato entre as duas filosofias. não se trata de qualquer sofrimento. optouse aqui por estudar as implicações físicas, emocionais e re lacionais que a enfermidade propiciou às vidas e às filosofias dos dois pensadores. tanto nietzsche como Pascal foram pessoas de saúde muito frágil e passaram praticamente toda a sua vida pade cendo diante das enfermidades. o cume desse so frimento foi a morte prematura de ambos, Pascal com 39 anos e nietzsche com 56. no estudo de suas trajetórias de brilhantismo e originalidade, a doença que afligiu tanto um como outro será o guia no caminho da possível relação entre suas filosofias.
É importante ressaltar que, ao abordar a doença, não é o intuito deste trabalho analisá la no seu sentido simbólico, como muitas vezes nietzsche faz em seus escritos, direcionandose ao pensamento decadente de sua época. Para os
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estudiosos do filósofo alemão, ao ouvir a palavra doença, tendese geralmente a pensar em suas for tes acusações à sociedade alemã, ao cristianismo e a outros elementos que refletem a fraqueza e a debilidade de todo um contexto, do qual nietzsche se desprendeu na constituição de seu pensamento. Ao contrário, tratase aqui de abordar a doença no que tange à experiência vital do próprio filósofo, levandose em conta todo o sofrimento que a en fermidade imputou em sua trajetória.como será abordado mais adiante, é justa mente essa fragilidade física, passível de muita dor e sofrimento, que permitirá a nietzsche libertarse lentamente do contexto intelectual no qual estava inserido. enfim, sugerese aqui compreender, por mais paradoxal que aparente ser, que a doença o libertou da verdadeira enfermidade: aquela do pensamento decadente. “A doença libertoume len tamente: poupoume qualquer ruptura, qualquer passo violento e chocante. não perdi então nenhu ma benevolência, ganhei muitas mais. A doença deume igualmente o direito a uma completa in versão de meus hábitos.”1 em razão da enfermida
de física, nietzsche teve que se afastar da cátedra na Universidade da Basileia, onde ministrava au las de filologia. esse afastamento também fez com que ele se distanciasse dos círculos românticos e
1 nietZscHe, f. Ecce Homo. como alguém se torna o que é.
§ 4. tradução de Paulo césar de souza. são Paulo: companhia das Letras, 1999, p. 75.
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de Wagner, possibilitando uma maior autonomia e liberdade na constituição de sua filosofia.
A libertação pode ser entendida aqui em dois níveis. Primeiro pelo afastamento do engajamento docente que, por motivo de doença, permitiu ao filósofo mais tempo e liberdade para se dedicar, de modo autônomo, na constituição de seu pensa mento. o outro nível é o que essa liberdade propi cia, na medida em que lança o filósofo na solidão de si e num isolamento, em sua forma de fazer fi losofia. em meio às dores oriundas da enfermida de, nietzsche se descobre em sua simesmidade e vai além das definições redutoras propostas pelo saber da época. em vez de ver na dor uma for ma de diminuição de si e de degeneração, faz dela um instrumento, um meio para que alcance mais potência, mais vida, na medida em que o faz sair de uma normalização decadente. em ambos os ní veis, a enfermidade está relacionada.
o sofrimento é um assunto fascinante, prin cipalmente se for analisado a partir de suas con sequências e implicações na vida de quem padece. mais do que se deter na mera apreciação da dor, esta pesquisa pretende apontar as possibilidades que o sofrimento abriu nas vidas de nietzsche e de Pascal. no modo como cada um se relacionou com o sofrimento, propõese que seja possível perceber uma forma de afirmação em relação aos contextos nos quais estavam inseridos. Além disso, sugerese a erupção de uma originalidade a partir da dor, ou seja, como se as enfermidades dos dois fossem
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instrumentos preciosos na constituição de suas mais importantes descobertas, na medida em que possibilitaram o recolhimento e a reflexão neces sários para o advento de novas ideias. Além disso, ser doente, aqui, representou uma inversão de sen tido dado ao sofrimento, como será mostrado. os corpos doentes e frágeis desafiam o conjunto de saberes nos quais estavam inseridos. no embate pela vida, na luta contra a doença e contra o meio no qual estavam inseridos, os dois filósofos pa rem suas mais brilhantes teorias. A enfermidade teria supostamente gerado uma autonomia para que suas filosofias emergissem com originalidade diante da realidade estabelecida.Aquele eu mais ao fundo, quase enterrado, quase emudecido sob a constante imposição de ouvir ou tros eus (isto significa ler!), despertou lentamen te, tímida e hesitantemente – mas enfim voltou a falar. nunca fui tão feliz comigo mesmo como nas épocas mais doentias e dolorosas de minha vida: basta olhar Aurora, ou “o andarilho e sua som bra”, para compreender o que foi esse “retorno a mim”: uma suprema espécie de cura!... A outra apenas resultou dessa.2
eu vos louvo, meu deus, e vos bendirei todos os dias de minha vida por ter sido do vosso agrado me reduzir à incapacidade de gozar as doçuras da saúde [...]
[...] Que eu me estime feliz na aflição, e que, na im potência de agitarme por fora, purifiqueis de tal
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forma meus sentimentos que não repugnem mais aos vossos; e que assim eu vos encontre dentro de mim mesmo já que fora eu não posso mais vos procurar por causa da minha fragilidade.3
Ao tomar o tema do sofrimento oriundo da enfermidade como ponto de contato entre as filo sofias de nietzsche e Pascal, pretendese aqui pes quisar as relações estabelecidas entre a doença e o sofrimento no pensamento de ambos os filóso fos. Além disso, tratase de verificar os reflexos dessas relações no que diz respeito à afirmação da vida tanto na filosofia nietzschiana como na pascaliana.
tratase de mostrar que uma filosofia de afir mação da vida não pode excluir o sofrimento en quanto elemento da realidade. Para nietzsche, essa constatação da dor como fundamento tem origem na influência schopenhauriana, como será apresentado posteriormente. em Pascal, a afirmação do sofrimento é oriunda da queda adâmica, por ocasião do pecado original. toda via, a proposta aqui é verificar que nem a filosofia nietzschiana nem a pascaliana visam afugentar o sofrimento, ou simplesmente rejeitálo, sugerin do uma filosofia paliativa e superficial. Pelo con trário, ambos assumem a realidade da vida como dor e, ainda assim, não pretendem desprezála,
3 PAscAL, B. oração para pedir a deus o bom uso das doenças.
§ 3 e 9. in: O pensamento vivo de Pascal. são Paulo: martins fontes; editora da Universidade de são Paulo, 1975, p. 3135.
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mas assumila até as últimas consequências, em sua totalidade.4Uma filosofia de afirmação de si, que dê sen tido à vida, envolve a apropriação dela em sua to talidade, seja ela de alegria, seja de tristeza, seja de saúde, seja de enfermidade. A afirmação de si enquanto ser livre e original deverá partir de uma abrangência total da existência, mesmo quando esta for inóspita, como no caso da doença. Amar o destino tal como ele se apresenta, como se fosse necessário vivêlo uma vez mais e eternamente!5
Amar necessariamente o necessário!6 na afirma
ção das próprias vidas, doentes e passíveis de sus peita por aqueles que os rodeavam, nietzsche e Pascal superam a si mesmos, renovam as suas for ças e esperanças e estabelecem uma relação entre filosofia e doença, muito relevante para o pensa mento atual.
Pascal exerceu uma admiração em nietzsche. Por mais que possa ser paradoxal sugerir que o filósofo francês tenha causado uma influência no pensamento nietzschiano, buscarseá ressaltar o fato de o pensador alemão ter lido Pascal e se admirado com suas ideias. Além disso, tratase de notar a admiração de nietzsche pela relação do fi
4 nesse ponto percebese a diferença fundamental entre a com
preensão schopenhauriana da dor (marcada pelo pessimismo) e a proposta pela filosofia nietzschiana (afirmação de si, libertação).
5 Alusão à doutrina do Amor-Fati nietzschiana que será mais bem
apresentada adiante.
6 menção à ideia de conformação das próprias dores às dores de
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lósofo francês com o contexto no qual estava inse rido e pela forma aforística na qual Pascal destilou seus Pensées.
desse modo, é fundamental compreender o sentido do sofrimento na filosofia nietzschiana e sua relação com Pascal. A dor, principalmente a dor física, esteve presente na vida do filósofo e marcou sua forma de agir e pensar. Assim, ba seandose na relação estabelecida por nietzsche com a enfermidade que o acompanhou durante praticamente toda a vida, será estabelecida uma ligação entre seu sofrimento e a afirmação de si, através da dinâmica instintual por mais potên cia, que teve como resultado a libertação dos cír culos românticos e wagnerianos e a constituição de sua filosofia.7 Além disso, procurase aqui res
saltar a importância da afirmação da vida e suas implicações no pensamento sobre a tragédia da existência.
tal reflexão sobre o sentido do sofrimento pode ser notada na filosofia pascaliana. A partir de uma análise de dados biográficos, buscarseá verificar as relações estabelecidas entre o filósofo e a dor oriunda de uma saúde frágil e constante mente marcada pela enfermidade. A vida doente
7 Para esse capítulo, será de grande importância o trabalho rea
lizado por daniel Pereira Andrade em sua dissertação de mestrado concluído na Universidade de são Paulo em 2006, que aborda a ex periência de si em nietzsche como transgressão. AndrAde, d. P. Nietzsche: a experiência de si como transgressão (loucura e normali dade). são Paulo: Annablume; fapesp, 2007.
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teve grandes influências no pensamento de Pascal: a relação entre a enfermidade e a religião, a afir mação da vida e o sentido teológico do sofrimento são temas centrais para a compreensão dessa te mática.Por fim, tratase de estabelecer uma relação en tre as compreensões de nietzsche e Pascal quanto ao sentido do sofrimento. o objetivo principal será o de mostrar como a experiência de si em vidas marcadas pelo sofrimento, ocasionado pelas en fermidades, não obstruiu a manifestação de suas originalidades. Pelo contrário, supõese que, pelo modo como cada um se relacionou com a dor, as sumindo a totalidade da existência e utilizandose da dor para recolherse na própria simesmidade, a filosofia de ambos se manifestou de maneira original.
será realizada primeiro a análise da compre ensão nietzschiana do sofrimento e, posteriormen te, a pascaliana. optouse por esse método, que in verte a ordenação cronológica, por se julgar mais interessante levantar os conceitos de afirmação de si, de amor ao destino inicialmente em nietzsche e verificar se estes podem ser verificados em Pas cal. Assim, sugerese, paradoxalmente, que o fato de apenas nietzsche ter lido e conhecido Pascal, e não viceversa, não impede que se estabeleça uma relação interessante entre suas filosofias.
mais do que tudo, imaginase que, com essa forma e disposição, seja possível evidenciar que a comparação entre dois filósofos supera os limites
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cronológicos. A filosofia não se limita ao tempo, nem se detém nas peculiaridades históricas, con textuais ou religiosas de quem dela se aproxima. o verdadeiro filósofo supera a diferença e ousa pela relação, mesmo quando o outro lhe é definitiva mente diferente.