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Quando pensamos nas relações entre a matemática e outras disciplinas

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Academic year: 2021

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De Morgan, Brougham e a SDUK:

Matemática a Serviço da Religião

John A. Fossa

Q

uando pensamos nas relações entre a matemática e outras dis-ciplinas geralmente pensamos nas ciências e na tecnologia. Ocasionalmente podemos lembrar-nos das relações entre a geometria e a arte (pintura), mas dificilmente atinamos para a influência da mate-mática sobre a filosofia ou a religião. No entanto, a referida influência tem sido de grande importância, como pode ser constatada, no pri-meiro caso, por Erickson e Fossa (2006) e, no segundo, por Koetsier e Bergmans (2005). No presente trabalho, apresentaremos um exem-plo, do século XVIII, desta relação que não foi abordado em Koetsier e Bergmans (2005). Trata-se do pensamento de Augustus de Morgan e Henry Peter Brougham em referência à Sociedade para a Propagação de Conhecimento Útil (SDUK – Soc ie ty for the Diffusion of Use ful

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De Morgan

Augustus De Morgan (Figura 1) nasceu, em 1806, em Madura no sul da Índia, onde seu pai, John De Morgan, era um coronel no exér-cito inglês. A família voltou para a Inglaterra quando De Morgan tinha sete meses de idade. Sofreu bullying na escola, devido ao fato de que havia perdido um olho e não podia participar nas brincadeiras dos outros alunos. Certo dia, contudo, pôs fim ao problema, dando uma surra num dos seus atormentadores. Formou-se na Universidade de Cambridge, em 1827, mas parecia que não poderia continuar na car-reira acadêmica, devido a escrúpulos religiosos. De fato, embora os pais fossem evangélicos convictos, De Morgan simpatizava com os unitaria-nos, um grupo dissidente cuja marca principal era a negação da Trindade de Deus. Era necessário, para continuar em Cambridge, jurar fidelidade aos 39 artigos da igreja anglicana e, visto que não podia fazer o jura-mento em sã consciência, decidiu entrar na profissão de direito.

Foi, no entanto, exatamente nesta época que se fundou uma nova universidade “secular”, a Universidade de Londres. De Morgan, recém-graduado e com apenas 21 anos de idade, venceu o concurso aberto pela nova instituição e, em 1828, foi contratado como o primeiro

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Professor de Matemática da Universidade de Londres. Em 1831, porém, a Universidade demitiu o Professor de Anatomia sem explicação e De Morgan, indignado com tal procedimento, se demitiu. Foi, contudo, recontratado em 1836, depois de averiguar que a Universidade tinha reformado seus estatutos de forma satisfatória. Ficaria na Universidade de Londres para mais 30 anos, onde se dedicou à Matemática, à Lógica e à Educação Matemática. Faleceu em 1871 depois de alguns anos de enfraquecimento gradual.

Brougham e a Fundação da SDUK

Henry Peter Brougham nasceu, em 1778, em Edimburgo, na Escócia. Formou-se na Universidade de Edimburgo, onde ficou encan-tado com a matemática. Mesmo assim, estudou as humanidades e a filo-sofia, exerceu, por pouco tempo, a profissão de advogado e entrou na política, sendo eleito ao parlamento em 1810, em oposição ao governo. Através da sua habilidade em defender tais propostas como a abolição da escravidão e o fortalecimento da liberdade da imprensa, sua influ-ência cresceu bastante e, em 1830, foi designado, pelo Rei William IV, Lorde Chanceler. A posição é a segunda mais poderosa no gabinete inglês, pois o Chanceler é responsável pelo sistema judiciário e ainda, no século XIX, era presidente da Câmera dos Lordes. Manteve a referida

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posição até 1834. Voltou ao parlamento por alguns anos, mas eventual-mente se dedicou a uma vida literária, escrevendo muitas crônicas para tais revistas como a Edinburg Re vie w. Faleceu em 1868.1

Como vários outros pensadores da época, Brougham estava preocupado com a moralidade do povo inglês. Para melhorar a situa-ção, concebeu a formação de uma sociedade que forneceria materiais baratos, adequados para a autoinstrução, para os operários ingleses. O referido material, contudo, não rezaria sobre questões éticas e religiosas, mas sobre a matemática e a ciência, pois Brougham acreditava que a ciência, eleva o cientista do mundano para o divino.

Para efetuar seu plano, Brougham precisava de colaborado-res que confeccionariam o material proposto. Felizmente, ele também estava envolvido na organização da nova Universidade de Londres, onde De Morgan já estava enfrentando, segundo Richards2 (2002, p. 139), “o

desafio fundamental ... de achar maneiras de redefinir a razão de forma que a compreensão religiosa pudesse ser separada de outros tipos de conhecimento”. Assim, a aliança entre Brougham e De Morgan foi quase inevitável; de fato, De Morgan se tornou um dos principais escritores da SDUK, produzindo, por exemplo, mais do que 850 artigos somente para a Pe nny Cyc lopae dia, uma publicação da referida sociedade.

Antes de investigar mais cuidadosamente as ideias de Brougham e De Morgan sobre a relação entre a matemática e a religião, devemos observar que a caracterização da Universidade de Londres feita por Richards e citada no parágrafo anterior, não é completamente correta. Quando essa Universidade era chamada uma instituição “secular”, a intenção não era apontar para o afastamento dela da religião (que, aliás, não seria consoante com as ideias de Brougham e De Morgan), mas apenas o afastamento dela de uma ligação mais estreita com a igreja anglicana. De fato, Sophia De Morgan (2010, p. 25) indicou que a

1 Os dados sobre a vida de Brougham foram retirados de Hunt (2011). 2 Todas as citações no presente trabalho são traduções minhas.

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Universidade era, em primeiro lugar, para os “judeus e Disse nte rs3” e,

em segundo lugar, para alunos de famílias que não podiam arcar com os custos das universidades tradicionais. Assim, não se trata da ausência da religião, mas da tolerância de várias formas de religião.

Matemática e Religião

Já vimos que a ideia básica de Brougham e De Morgan foi a de que a matemática e a ciência elevam o homem do mundano para o divino. Em si, a referida ideia era muito comum na história da huma-nidade, sendo compartilhada, por exemplo, pelos antigos pitagóricos e sendo também à raiz da prova cosmológica da existência de Deus. Assim, devemos investigar um pouco mais como a ideia básica foi ela-borada pelos dois mencionados pensadores ingleses. Phillips (2005) resume o pensamento deles nos seguintes termos:

1. A matemática revela a perfeição de Deus.

2. A matemática é prazerosa e, portanto, moralmente correta. 3. A matemática revela a glória de Deus.

Explicaremos cada um desses conceitos a seguir.

1. A matemática revela a perfeição de Deus.

A matemática é conhecimento perfeito, absolutamente claro e indubitável. Mas, toda a perfeição tem como fonte Deus, o ser perfeito. Portanto, o raciocínio racional é uma maneira de participar na perfeição divina. De Morgan insistiu sobre esse ponto em várias das suas produ-ções para a SDUK. Em De Morgan (1830, p. 2), por exemplo, ele afirma que “hábitos de investigação e julgamento apurado são mais úteis do que o conhecimento de qualquer fato”. Na verdade, ele continua, a

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matemática seria útil mesmo se não tivesse qualquer aplicação prática, pois sua verdadeira utilidade consiste no fato de que promove o pensa-mento racional.

É interessante ver como a questão religiosa afetava a controvér-sia sobre os números negativos. Os anglicanos do século XIX, de modo geral, aceitavam os números negativos porque, como algo inexplicá-vel, refletiam, para eles, os mistérios de Deus. Nessas alturas, o prin-cipal defensor do repúdio aos números negativos era William Frend (1757-1841), sogro de De Morgan. Como unitariano, Frend rejeitava os números negativos, pois, como sendo menores do que o nada, eram inin-teligíveis. Assim, rejeitava o mistério dos números negativos da mesma forma em que rejeitava o mistério da Trindade. De Morgan, porém, um dos maiores matemáticos do seu tempo, não conseguia rejeitar os negativos, mas aceitava a rejeição de Frend de tudo que era “misterioso”. Assim, ele se empenhava, em De Morgan (1910), por exemplo, a fazer uma explicação absolutamente clara e racional dos referidos números.

2. A matemática é prazerosa e, portanto, moralmente correta.

Uma das mais importantes teorias éticas do século XIX era a de utilitarismo. Segundo a referida teoria, o moralmente correto é o que proporciona o maior prazer para o maior número de pessoas. O maior prazer, no entanto, para, entre outros, Brougham e De Morgan, era o que resultava do pensamento racional. De Morgan (em Anderson, 2006, p. 6) afirmou que “... os poderes de raciocínio, que todo mundo precisa usar para distinguir entre o certo e o errado, não são adequados para esse fim, a não ser que o hábito de usá-los corretamente tenha sido for-mado previamente”. Quando o referido hábito estiver alcançado, porém, o homem sentirá o prazer em racionalmente discernir o que é moral-mente correto, o que, por sua vez, promove comportamento moral.

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3. A matemática revela a glória de Deus.

Finalmente, a matemática nos ajuda a compreender a obra de Deus, ou seja, a criação. Isto proporciona ao homem a possibilidade de estabelecer relacionamentos apropriados com o próprio Deus e com a sua criação, infundindo, assim, a sua vida com o sagrado.

Conclusão

Em todo seu trabalho de Educação Matemática, De Morgan enfatizou que a matemática não é um conjunto de fatos, mas um pro-cesso de pensamento. É nesse sentido que a matemática é verdadeira-mente útil, pois eleva o homem do mundano para o divino, no sentido de que ele é levado a

1. pensar como Deus, 2. regozijar como Deus 3. e viver como Deus.

Desta forma, a religião fará parte da vida do homem no seu dia a dia, não como uma doutrina imposta por uma seita ou outra, mas como uma presença divina que regerá sua vida.4

Referências

ANDERSON, Ronald. Augustus De Morgan’s Inaugural Lecture of 1828. The

Mathe matic al Inte llig e nc e r, v. 28, p. 19-28. 2006. [Contém transcrito do discurso

de De Morgan.]

4 Agradeço à colega Enne Karol Venâncio de Sousa pelas sugestões referentes à correção gramatical do presente trabalho.

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DE MORGAN, Augustus. Remarks on elementary education in Science. 1830. Disponível em <www2.bc.edu/anderso/demorgan.1828/a.demorgan.1830.html>. Acesso em: 14/02/2014.

______. On the Study and Diffic ultie s of Mathe matic s. Chicago: Open Court, 1910. [Originalmente 1831.]

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KOETSIER, T.; L. BERGMANS, Eds. Mathe matic s and the Divine . Amsterdam: Elsevier, 2005.

PHILLIPS, Christopher. Augustus De Morgan and the propagation of moral mathematics. Studie s in the Histor y and Philosophy of Sc ie nc e , v. 36, p. 105-133. 2005.

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RICHARDS, Joan L. “In a rational world all radicals would be exterminated”: Mathematics, logic and secular thinking in Augustus De Morgan’s England. Sc ie nc e

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STEPHEN, Leslie. De Morgan, Augustus. Dic tionar y of National Biog raphy, v. 14. 2012. Disponível em <en.wikisource.org/wiki/De_Morgan,_Augustus_(DNB00)>. Acesso em: 14/02/2014. [Originalmente 1895-1900.]

WIKIPEDIA. Henry Brougham, 1st Baron Brougham and Vaux. 2013. Disponível

em <en.wikisource.org/wiki/Henry_Brougham,_1st_Baron_Brougham_and_

Referências

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