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DESENVOLVIMENTO HUMANO, ADOLESCÊNCIA E CRIATIVIDADE: REFLEXÕES A PARTIR DA PSICOLOGIA HISTÓRICO CULTURAL

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DESENVOLVIMENTO HUMANO, ADOLESCÊNCIA E CRIATIVIDADE: REFLEXÕES A PARTIR DA PSICOLOGIA HISTÓRICO CULTURAL

Tatiane Superti (Universidade Paranaense, Cascavel – PR, Brasil)

contato: tatianesuperti@prof.unipar.br

Palavras-chave: Processos criativos. Arte. Psicologia histórico cultural. .

Desenvolvimento humano conforme a psicologia histórico cultural

Buscamos nestes escritos, a partir de revisão bibliográfica, abordar o desenvolvimento humano e sua periodização na perspectiva da psicologia histórico cultural. Mais especificamente, focaremos no período da adolescência e o desenvolvimento da criatividade. Nesta perspectiva o processo de desenvolvimento humano não é entendido de forma idealista, ou seja, como um fenômeno abstrato, a priori da vida concreta do indivíduo, independente das circunstâncias objetivas ou ainda conduzido exclusivamente pela dinâmica mental, o que podemos chamar de psicologismo.

Também são criticadas as concepções teóricas que tendem a naturalizar o homem, de modo que concebem como natural o desenvolvimento humano, determinado em última instância pela biologia ou maturação do próprio organismo. Esta naturalização tende a igualar o processo de desenvolvimento do homem ao animal, desconsiderando, então, os aspectos culturais que compõem a formação humana.

As teorias psicológicas de cunho idealista (psicanálise, gestalt, etc) como naturalizantes do desenvolvimento humano (construtivismo, associativismo, reflexologia) são estudadas por Vigotski (1996) no sentido de superá-las dialeticamente, destacando que a superação neste sentido compreende a incorporação para o avanço do objeto de estudo.

Vigotski, um dos principais autores da psicologia histórico cultural, construiu sua teoria sob base marxista para contribuir com a formação do novo homem comunista e a Revolução Russa de 1917 (Tuleski, 2002). Assim, o empenho do teórico foi ao encontro do projeto de superação da psicologia tradicional e burguesa. Já em 1927 (Vigotski, 2004) realiza um profundo estudo epistemológico das raízes filosóficas da psicologia, explicitando o caráter conservador, idealista e mecanicista desta ciência.

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Tais características apontadas por Vigotski (2004) no texto A Crise da Psicologia manifesta-se também nas explicações tradicionais desta ciência em se tratando de desenvolvimento humano, podemos observar isto nas críticas feitas pelo autor nas conferências contidas no Tomo IV. A psicologia tradicional é revisitada, porém não sem críticas, há a valorização das ideias descritas por outros autores, sobretudo Piaget, havendo também uma nova explicação a partir de uma nova base metodológica.

Com o exposto podemos afirmar que a psicologia histórico cultural busca a superação da psicologia tradicional e burguesa, fortemente marcada por idealismo, mecanicismo e naturalização do homem, de modo que tal superação é presente também na explicação sobre a periodização do desenvolvimento humano. Os autores da psicologia histórico cultural defendem que tal superação é possível assumindo o materialismo histórico dialético como método de investigação e produção de teoria e prática.

Assim, desenvolvimento humano é compreendido como o processo de humanização do homem, ou seja, a construção em cada indivíduo das características tipicamente humanas, destacando que este processo é essencialmente histórico e cultural. Filogeneticamente, ou seja, em se tratando do gênero humano, as características humanas foram construídas por meio do trabalho: ao transformar coletivamente a natureza, o homem produz história e cultura, produzindo também uma profunda transformação em si mesmo, considerando o impacto disto tanto em seu corpo como no psiquismo – homem enquanto unidade (Leontiev, 2004).

A transformação coletiva da natureza implica a produção intencional de relações sociais, linguagem e instrumentos, de modo que liberta o homem das determinações dos instintos, inaugurando então, a capacidade de criar e produzir cultura. Ao produzir cultura, a transmissão das características humanas não se dá via hereditariedade, mas por meio do legado cultural, fixado, cristalizado, objetivado nos objetos culturais. Nesta perspectiva, o desenvolvimento ontogenético ocorre por meio da apropriação do legado cultural, processo que se dá de forma ativa e mediada (Leontiev, 2004).

A apropriação do legado cultural não é espontânea ou natural, depende do que é oportunizado aos indivíduos, depende da atividade que o individuo desenvolve na sociedade. Este processo não é espontâneo nem natural porque não ocorre sem mediação, são as relações sociais que introduzem o indivíduo na cultura. Destacando ainda que as relações sociais são

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dialeticamente determinadas pelo modo de produção da sociedade, assim, na sociedade capitalista as relações sociais expressam a luta de classe, impactando, então, no que é culturalmente oportunizado aos indivíduos de acordo com a classe social pertencente.

Leontiev (2004) esclarece que o desenvolvimento humano ocorre por meio do processo de educação, podemos entende-lo como o processo de transmissão a nível singular do que foi desenvolvido pelo gênero humano (universal). O autor explicita também o quanto tal processo tem caráter de classe: a classe trabalhadora será oferecido o legado mais desenvolvido culturalmente ou o suficiente para a manutenção da sua força de trabalho?

Com o escrito até aqui pretendemos demonstrar que o processo de desenvolvimento do psiquismo para a psicologia histórico cultural é a própria humanização do homem, processo que ocorre, enquanto gênero humano, por meio do trabalho. No aspecto ontogenético (singular) não ocorre a repetição da filogênese, mas a apropriação do legado cultural construído por meio do trabalho.

Vigotski (2009) defende também que o desenvolvimento psicológico ocorre nos planos inter e intrapsicológico, isto quer dizer que objetividade e subjetividade mantem uma relação dialética, de modo que antes de ser subjetivo, o conteúdo foi relacional. Interpsicológico diz respeito às relações sociais que o sujeito vivencia para apropriação de determinado conteúdo. Intrapsicológico é o conjunto de conteúdo já apropriado e organizado psicologicamente.

O exposto acima demonstra o quanto, para a psicologia histórico cultural, a realidade objetiva compõe a subjetividade, sendo as relações sociais não apenas mais uma influência para o desenvolvimento do psiquismo, mas a base material para a sua construção. Nesta perspectiva a periodização do desenvolvimento humano é entendida a partir da atividade principal que o sujeito realiza nas diferentes etapas da vida e que lhe oportuniza o desenvolvimento das características tipicamente humanas, considerando que tal atividade é determinada pela sociedade, correspondendo ao que se espera do indivíduo nas diferentes fases.

Atividade principal é, então, aquela que conduz o desenvolvimento psicológico em determinado período, a qual oportuniza ao sujeito determinadas relações sociais e apropriação do legado cultural. A atividade principal é organizada socialmente, isto quer dizer que os indivíduos não escolhem livremente a atividade que desempenharão e os conteúdos que serão apropriados, tampouco os indivíduos são passivos neste processo.

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A atividade principal tem relação com a organização social: quais atividades são necessárias ao longo da vida para a manutenção da sociedade? Se a periodização ocorre por meio da atividade principal organizada socialmente, compreendemos, então, que a própria periodização é uma construção social, marcada inclusive pela desigualdade social.

Assim, a periodização para a psicologia histórico cultural não é fruto da maturação espontânea, ou influenciada pelo social, do organismo. É um período da vida organizado por uma atividade social que conduz as transformações mais importantes para a humanização. De modo que uma atividade oportuniza determinado nível de desenvolvimento psicológico, o qual será superado na próxima etapa de desenvolvimento.

Destacamos que a superação nesta perspectiva refere-se a incorporação, negação e formação de uma nova organização psicológica. Cada atividade principal oportuniza a apropriação de novos conteúdos e diferentes generalizações, possibilitando, então, o desenvolvimento de novas funções ou o avanço delas, de forma que todo o sistema psicológico é impactado.

Elkonin (1987) explica as atividades principais enquanto forças motrizes do desenvolvimento psíquico, forças que impulsionam tal processo, sendo elas as bases da evolução psicológica. Por conseguinte, a passagem de um período do desenvolvimento para outro ocorre por conta da transição de um tipo de atividade principal para outra.

Esta transição, como não poderia deixar de ser em uma perspectiva dialética, não ocorre linearmente ou de uma vez por todas, mas por meio de acúmulos, saltos e crises. Os nascentes períodos de desenvolvimento são transformações qualitativas que promovem mudanças radicais nas funções psiquicas superiores, na consciência e na própria personalidade.

Elkonin (1987) também destaca o quanto as atividades principais tem relação com a organização social, sobretudo com o modelo de educação de determinada sociedade, considerando que é a atividade principal a força geradora de desenvolvimento psicológico, quais objetos culturais são mobilizados ou oportunizados para o desempenho de determinada atividade? O autor afirma que na sociedade de classes a educação forma uma parte das crianças apenas para a reprodução da sua futura força de trabalho e outras são formadas para pensar, refletir sobre o próprio trabalho e vida.

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A comunicação íntima pessoal é a atividade principal do período da adolescência, caracteriza a relação entre os pares, na qual refletem a ética das relações sociais ou a tentativa de superação delas, ou seja, é na relação com os pares que o adolescente vivencia e exercita a consciência crítica e seus novos interesses. Na adolescência o desenvolvimento das funções superiores está maximizado pelo acúmulo ou salto do que foi apropriado anteriormente, ampliando a capacidade crítica de si e do mundo.

Entendemos que a referida criticidade não é natural, espontânea, ou surgirá necessariamente passando-se por este período, consideramos a consciência crítica, enquanto reflexão criteriosa da realidade e de si, como uma potencialidade que pode ser promovida e objetivada, no entanto, depende das apropriações anteriores, do que foi oportunizado aos indivíduos e da complexidade das atividades desenvolvidas. Trataremos mais especificamente do período da adolescência na próxima seção.

Adolescência e criatividade

Vigotski (1996) auxilia na compreensão de que as funções psíquicas superiores são desenvolvidas de acordo com o período do desenvolvimento, mantendo relação com a atividade desenvolvida, desta forma, uma função, em geral, destaca-se, toma a frente do desenvolvimento, subordinando as demais. Assim na infância precoce, com a atividade objetal manipulatória, a percepção é a função predominante. Nos períodos subseqüentes, a memória toma a função central.

Já na adolescência por acúmulo de conhecimento científico, filosófico e artístico, a função predominante é o pensamento. Ou seja, é o pensamento que norteia as demais funções psíquicas, quanto mais desenvolvido o pensamento, mais potentes são as demais funções. Vigotski (1996, 2009) não se refere à uniformidade no nível de desenvolvimento das funções, mas subordinação e organização hierárquica.

A centralidade do pensamento na adolescência tem relação com o desenvolvimento interno do significado da palavra. Vigotski (2009) expressa que o significado cresce no psiquismo da criança, deixando de ser apenas comunicativo para ser unidade de categorização e generalização. O pensamento é central na adolescência porque a estrutura psicológica passa a ser conceitual, organizada a partir de conceitos científicos e subordinando as demais funções a esta lógica de funcionamento.

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Cada atividade principal implica em determinado nível de desenvolvimento do significado da palavra, permeando as capacidades de categorização e generalização. Há um longo desenvolvimento interno do significado até o pensamento conceitual. De início a inteligência é prática, objetal manipulatória, a organização interna dá-se por meio de generalizações do particular ao particular, os significados são organizados por nexos subjetivos.

Os jogos e as brincadeiras colocam em movimento a memória, o desenvolvimento interno do significado evolui para vínculos mais objetivos e permanentes, a atividade de estudo complexifica a estrutura semântica do psiquismo. Na adolescência, os conceitos estão, pela primeira vez, na centralidade da organização psicológica, isto subordina todo o desenvolvimento, intelectualizando a conduta e as funções psicológicas. A estrutura conceitual possibilitada na adolescência não quer dizer que todo pensamento é conceitual, o pensamento por complexo ainda se faz presente.

Vigotski (2009) coloca que as funções mantem entre si relações de generalidade, ou seja, o nível de desenvolvimento do significado (do sincrético ao conceito) condiciona o nível de abstração e complexidade das funções, sendo que, determinadas funções em diferentes períodos expressam o máximo da medida de generalidade, subordinando as demais.

A consciência, enquanto unidade das funções psíquicas, na adolescência fica maximizada porque também nela ocorre uma profunda transformação qualitativa. O adolescente passa a ter uma consciência conceitual, teórica, a respeito da sociedade, suas relações e seus próprios sentimentos. E é na atividade de comunicação íntima que tal consciência é objetivada.

O pensamento conceitual na adolescência proporciona a lógica de desenvolvimento às demais funções. Assim, torna-se conceitual, pelo menos parcialmente, a percepção, memória, atenção, criatividade, sentimentos. A transição para medida de generalidade conceitual implica em tornar as funções e a estrutura psicológica como um todo em voluntária e intencional.

Por funções psíquicas superiores entendemos as capacidades mentais que expressam no psiquismo as atividades mediadas do homem, dando origem às características tipicamente humanas. Deste modo são frutos da atuação indireta do homem na natureza, frutos da produção de cultura e sociedade, as quais provocam um salto qualitativo na organização psicológica, livrando o homem da determinação dos instintos, possibilitando, então, a voluntariedade e controle do próprio comportamento.

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Os instrumentos psicológicos (ferramentas e signos) são criações artificiais; estruturalmente, são dispositivos sociais e não orgânicos ou individuais; destinam-se ao domínio dos processos próprios ou alheios, assim como a técnica se destina ao domínio dos processos da natureza (Vigotski, 2004, p. 93).

As funções superiores são voluntárias ou intencionais porque os processos mediados que as compõem possibilitam a reflexão e auto controle de suas atividades, sendo que na adolescência tais processos estão em auge pois passam a ser organizados de forma conceitual. Desmistificamos, então, o referido período enquanto puramente emotivo ou passional, mas é altamente reflexivo e com possibilidade de auto controle.

A comunicação entre os pares é fundamental para o exercício da reflexão e do controle da conduta, é nesta atividade que se apuram as funções psíquicas superiores. Podemos entender nesta atividade principal o desenvolvimento do interesse por ciência, filosofia e arte pois estas alavancam a comunicação a níveis mais profundos e radicais.

Vigotski (1999) expressa a força da arte para o desenvolvimento humano, colocando-a como um potente objeto cultural que objetiva sentimentos, colocando em movimento ainda as demais funções psiquicas porque estão presentes também na produção artística e na fruição da obra. O autor coloca que os sentimentos que envolvem a obra de arte são inteligentes já que contemplam o pensamento, a percepção, a criatividade, a imaginação.

A arte além de encarnar, expressar sentimentos é um refinado objeto de criação, pois é livre de utilidade prática cotidiana, a arte é criada para a transformação estética e política da própria cultura. O processo criativo surge com o homem, ao transformar a natureza, o homem cria instrumentos e sua história. Fischer (1976) afirma que a arte nasce também com o homem, marcando a liberdade do instinto e a necessidade de comunicação, de inventar a si e ao mundo humanizado.

A criatividade enquanto função psiquica é a capacidade de produzir algo novo, superando o que já está dado, ou seja, produzir algo novo a partir do que já existe. Isto demonstra a profunda relação entre criatividade e realidade, criar implica em ir além da realidade, mas retirar dela os elementos necessários à produção. De modo que a criatividade exige bagagem cultural, ou seja, apropriações culturais anteriores para a objetivação. A função criadora é aquela que não

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reproduz, mas cria a partir do que já existe na realidade, e ao criar, impacta na realidade com o novo.

Barroco (2007) trata mais profundamente da relação entre criação e realidade. Afirma que é necessário não apenas a apropriação, mas também a elaboração do que foi apropriado, de modo que a criação não acontece espontânea e imediatamente após a apropriação, mas exige elaboração e exercício. A criação pode partir da apropriação da experiência de outras pessoas, ou seja, de modo indireto, por meio da arte, por exemplo, pode ocorrer apropriação de vivência e histórias que não são garantidas no cotidiano. Bem como, a função criadora contempla emoções, sentimentos e afetos que a realidade ou as relações sociais suscitam. Por fim, o produto da criação ao se materializar em uma obra, volta à realidade podendo transformá-la.

Entendemos, então, que a criatividade é uma função que define o homem, sobretudo, porque o possibilita ir além do já instituído e das atividades reprodutoras. A criatividade capacita o homem a criar uma nova realidade e até mesmo forjar sua própria personalidade. Lembrando que na adolescência as funções estão sob centralidade do pensamento, fato que torna a criatividade altamente potente, capaz de uma criação conceitual e profunda. Citamos aqui o poema Sargaços de Waly Salomão (2014) por consideramos que expressa a relevância e força da criação, a qual pode estar em movimento na adolescência:

Criar é não se adequar à vida como ela é,

Nem tampouco se grudar às lembranças pretéritas Que não sobrenadam mais.

Nem ancorar à beira-cais estagnado,

Nem malhar a batida bigorna à beira-mágoa. Nascer não é antes, não é ficar a ver navios,

Nascer é depois, é nadar após se afundar e se afogar. Braçadas e mais braçadas até perder o fôlego

(Sargaços ofegam o peito opresso),

Bombear gás do tanque de reserva localizado em algum ponto Do corpo

E não parar de nadar,

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Plasmar

bancos de areias, recifes de corais, ilhas, arquipélagos, baías,

espumas e salitres, ondas e maresias. Mar de sargaços

Nadar, nadar, nadar e inventar a viagem, o mapa, o astrolábio de sete faces,

O zumbido dos ventos em redemunho, o leme, as velas, as cordas, Os ferros, o júbilo e o luto.

Encasquetar-se na captura da canção que inventa Orfeu Ou daquela outra que conduz ao mar

Só e outros poemas Soledades

Solitude, récif, étoile.

Através dos anéis escancarados pelos velhos horizontes Parir,

desvelar,

desocultar novos horizontes.

Mamar o leite primevo, o colostro, da Via Láctea E, mormente,

remar contra a maré numa canoa furada Somente

para martelar um padrão estoico-tresloucado De desaceitar o naufrágio.

Criar é se desacostumar do fado fixo E ser arbitrário.

Sendo os remos imateriais. (Remos figurados no ar pelos círculos das palavras.)

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Como coloca o poeta: “criar é se desacostumar do fado fixo e ser arbitrário”, isto é, não naturalizar a realidade e agir criativamente nela, o adolescente, pela primeira vez, pode pensar a realidade de forma filosófica, debatê-la e criar a partir dela. No entanto, como vimos, a criatividade depende das apropriações anteriores. Vimos também que a arte pode ser considerada um apurado objeto cultural fundamental, então, para a plena humanização dos indivíduos. Mas, na sociedade de classes, quem tem acesso a arte? O que é garantido enquanto apropriação de ciência, filosofia e arte aos adolescentes da classe trabalhadora?

A arte na sociedade capitalista é produzida em escala industrial com valor de mercadoria, o que Adorno e Horkheimer (1997) chamam de Indústria Cultural. Nesta perspectiva a obra tem a aparência de arte, mas revela como objetivo não a objetivação de sentimentos e humanização, antes disso, volta-se para o consumo imediato, sem reflexão. Assim, reproduz a alienação inerente ao capitalismo.

A obra de arte tem sua riqueza justamente por ser a “técnica social do sentimento” como coloca Vigotski (1999), por trazer a vivência indireta de sentimentos não cotidianos, transformando, então, todo o psiquismo. De modo que a arte tem a potência de transformar as funções superiores além do sentimento, como pensamento abstrato, criatividade, imaginação etc. No produto da indústria cultural tais funções são pouco mobilizadas, oferecendo material empobrecido, de pouca criatividade e muita repetição de conteúdo e forma. Tal esvaziamento e repetição tende ao não desenvolvimento das funções superiores ou, além disso, o rebaixamento delas. Os produtos da indústria cultural são disponibilizados também em escala industrial para consumo massificado: novelas, rádio, filmes, programas de humor etc. Em geral são estes os produtos de fácil acesso à população.

A arte fica distanciada da maior parte das pessoas, restrita a espaços ou festivais em grandes centros ou nas regiões centrais das cidades. A burguesia consome a arte como status porque assim é construída sua necessidade. Defendemos que a arte é fundamental para a humanização de todos os homens, ainda mais para a formação da criatividade.

No entanto o neoliberalismo presente na gestão do estado não garante via políticas públicas o acesso a arte, esta é mercadoria de luxo distante do cotidiano, sobretudo, da classe trabalhadora. Não somente a arte, como também a ciência e a filosofia são de difícil acesso ao trabalhador porque a escola pública está sucateada, intencionalmente esvaziada de conteúdo, e a

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universidade ainda é elitizada. O adolescente da classe trabalhadora é formado por esta escola sucateada gestada pelo neoliberalismo.

Contraditoriamente, mesmo na escola sucateada e nas demais políticas públicas (assistência social, cultura, saúde, etc) os trabalhadores destes espaços podem investir na formação humana, na transmissão do legado cultural, no desenvolvimento das funções superiores e da criatividade.

A criatividade está, primeiro, na cultura, nas relações sociais, e depois, dialeticamente, torna-se função psíquica, de modo que é preciso vivenciar a criatividade, é preciso planejar e oferecer atividades criativas para os adolescentes da classe trabalhadora enquanto investimento para a transformação criativa da sociedade e dos próprios adolescentes. Isto pode ocorrer nos espaços das políticas públicas: escolas, CRAS, CREAS, CAPS, centros de convivência, etc.

Considerações finais

Com base na psicologia histórico cultural, afirmamos a necessidade de não naturalizar o desenvolvimento humano, bem como, não tomá-lo a partir de uma perspectiva idealista, pois tais concepções tendem a produzir práticas que descomprometem a sociedade e ações transformadoras. Assim, vimos que a periodização é construção social pautada em atividades organizadas socialmente, demarcando, inclusive, as classes sociais.

Como vimos, a humanização depende do que é garantido enquanto apropriação nas atividades principais, depende do que é repassado do legado cultural aos indivíduos. Considerando a organização social vigente e as atividades da classe trabalhadora, temos que o projeto político da sociedade capitalista para os trabalhadores é o desenvolvimento do psiquismo suficiente ao trabalho alienado, assim, o adolescente da classe trabalhadora é formado também nesta intencionalidade..

Assim, para o trabalho alienado, são necessárias muito mais as funções reprodutivas e de obediência do que de criação e voluntariedade, ainda que no discurso ideológico, sobretudo da área de administração, afirma-se a criatividade como requisito para o emprego. Mas criatividade neste sentido está ligada à flexibilização (estar à disposição da empresa em tempo integral) e assumir várias frentes de trabalho, ou seja, está voltada, exclusivamente, para o aumento da produtividade.

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O adolescente, pela primeira vez, tem a capacidade de crítica da sociedade e de seu próprio futuro, de modo que pode criar novas possibilidades a si e ao coletivo. No entanto este processo precisa de mediação, precisa ser viabilizado e vivenciado pelos adolescentes. O senso comum e a indústria cultural tende a infantilizar e rebaixar as potências da adolescência, justamente porque é um período fértil para transformações criativas.

O coletivo é espaço importante para o adolescente, é junto aos seus pares que a criticidade e o máximo de desenvolvimento do psiquismo é exercitado, as transformações deste período ocorrem, então, também no coletivo, nos grupos que os adolescentes circulam. Se ocorrem mediações que oportunizam o desenvolvimento neste grupos, tanto o indivíduo como o coletivo pode ser impactado.

Entendemos os serviços que atendem os adolescentes em políticas públicas como brechas para a negação da formação do psiquismo para o trabalho alienado. Os serviços podem investir na formação do pensamento crítico e da criatividade, empreitada assumida como compromisso ético e político, dizemos empreitada porque sabemos dos desafios e dificuldades de enfrentar a gestão neoliberal do estado.

Afirmamos, então, a criatividade como uma função psíquica necessária para a criação libertária de si e transformação da sociedade, entendemos a arte como um instrumento fundamental para forjar um novo homem não limitado ao trabalho alienado. Nas palavras de Vigotski (1999, p. 329):

Não se pode nem imaginar que papel caberá à arte nessa refusão do homem, quais das forças que existem mas não atuam no nosso organismo ela irá incorporar à formação do novo homem. Só não há dúvida de que, nesse processo, a arte dirá a palavra decisiva e de maior peso.

Referências

BARROCO, S. M. S. (2007). Psicologia educacional e arte: uma leitura histórico-cultural da figura humana. Maringa: Eduem.

ELKONIN, D. (1987). Sobre el problema de la periodización del desarrollo psíquico en la infancia. In: DAVIDOV, V; SHUARE, M. (Org.). La psicología evolutiva y pedagógica en la URSS (antologia). Moscou: Progresso, p. 125-142.

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FACCI, M.G.D. (2004). Caderno Cedes, Campinas, vol. 24, n. 62, p. 64-81. Disponível em

http://www.cedes.unicamp.br/.

FISCHER, E. (1976). A necessidade da arte. Rio de Janeiro: Zahar Editores.

HORKHEIMER, M. ADORNO, T. W. (1997). Dialética do esclarecimento: fragmentos filosóficos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar.

LEONTIEV, A. L. (2004). Desenvolvimento do psiquismo. São Paulo: Centauro. SALOMÃO, W. (2014). Poesia total. São Paulo: Companhia das Letras.

TULESKI, S.C. (2002). Vygotski:a construção de uma psicologia marxista. Maringá: EDUEM. VIGOTSKI, L.S. (1996). Obras escogidas IV. Madrid: Centro de Publicaciones del M.E.C. y VisorDistribuiciones.

VIGOTSKI, L. S. (1999). Psicologia da Arte. São Paulo: Martins Fontes.

VIGOTSKI, L. S. (2004). Teoria e Método em Psicologia. São Paulo: Martins Fontes.

VIGOTSKI, L. S. (2009). A construção do pensamento e da linguagem. São Paulo: Martins Fontes.

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