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A responsabilidade civil do juiz por danos resultantes de culpa em sentido estrito no exercício da função: a tolerância à atuação negligente, imprudente e imperita do magistrado brasileiro (1939-2017)

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Moacir dos Santos Costa

A RESPONSABILIDADE CIVIL DO JUIZ POR DANOS RESULTANTES DE CULPA EM SENTIDO ESTRITO NO

EXERCÍCIO DA FUNÇÃO:

A TOLERÂNCIA À ATUAÇÃO NEGLIGENTE, IMPRUDENTE E IMPERITA DO MAGISTRADO BRASILEIRO (1939-2017).

Dissertação submetida ao Programa de Pós-Graduação em Direito do Centro de Ciências Jurídicas da Universidade Federal de Santa Catarina, em cumprimento a requisito parcial para obtenção do título de Mestre em Direito, área de concentração Direitos Fundamentais, linha de pesquisa Sociedade, Controle Social e Sistema de Justiça, sob orientação do Professor Doutor Arno Dal Ri Júnior.

Florianópolis 2017

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Ficha de identificação da obra elaborada pelo autor através do Programa de Geração Automática da Biblioteca Universitária

da UFSC.

Costa, Moacir dos Santos

A RESPONSABILIDADE CIVIL DO JUIZ POR DANOS RESULTANTES DE CULPA EM SENTIDO ESTRITO NO EXERCÍCIO DA FUNÇÃO : a tolerância à atuação negligente, imprudente e imperita do magistrado brasileiro (1939-2017) / Moacir dos Santos Costa ; orientador, Arno Dal Ri Júnior, 2017.

328 p.

Dissertação (mestrado) - Universidade Federal de Santa Catarina, Centro de Ciências Jurídicas, Programa de Pós-Graduação em Direito,

Florianópolis, 2017.

Inclui referências.

1. Direito. 2. Responsabilidade civil. 3. Responsabilidade civil do juiz. 4. Culpa em sentido estrito. I. Dal Ri Júnior, Arno. II. Universidade Federal de Santa Catarina. Programa de Pós-Graduação em Direito. III. Título.

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Moacir dos Santos Costa

A RESPONSABILIDADE CIVIL DO JUIZ POR DANOS RESULTANTES DE CULPA EM SENTIDO ESTRITO NO EXERCÍCIO DA FUNÇÃO: A TOLERÂNCIA À ATUAÇÃO

NEGLIGENTE, IMPRUDENTE E IMPERITA DO MAGISTRADO BRASILEIRO (1939-2017).

Esta Dissertação foi julgada adequada para obtenção do Título de ―Mestre em Direito‖, e aprovada em sua forma final pelo Programa de

Pós-Graduação em Direito do Centro de Ciências Jurídicas da Universidade Federal de Santa Catarina.

Florianópolis (SC), 7 de novembro de 2017. _______________________________

Prof. Dr. Arno Dal Ri Júnior Coordenador Banca Examinadora:

___________________________________________ Prof. Dr. Arno Dal Ri Júnior

Orientador

Universidade Federal de Santa Catarina ___________________________________________

Prof. Dr. José Isaac Pilati Universidade Federal de Santa Catarina ___________________________________________

Profa. Dra. Aline Beltrame de Moura Universidade Federal de Santa Catarina ___________________________________________

Prof. Dr. Brunello Souza Stancioli Universidade Federal de Minas Gerais

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AGRADECIMENTOS

Aos meus pais, Raimundo Nonato Costa (in memoriam) e Maria Valdíria dos Santos Costa, por me ensinarem antes de Caetano que tudo é perigoso e tudo é divino maravilhoso.

À minha avó materna, Maria Olintete Teixeira dos Santos (in memoriam), ser humano mais próximo à perfeição que tive a honra de conhecer.

Às minhas irmãs, Cláudia e Claudiene dos Santos Costa, por serem modelos tão bem-sucedidos de suas ascendentes, exemplos de força e sabedoria, coragem e resiliência.

Ao meu irmão, Raimundo Nonato Costa Filho, pela afeição e companheirismo, e pela alma de poeta que compartilhamos.

À minha esposa, Emanuelly Canuto Sousa Ribeiro Costa, por me proporcionar a paz que Belchior canta em Voz da América: ―E à noite, quando em minha cama for deitar minha cabeça, eu quero ter daquela que me ama um abraço que eu mereça, o beijo, o bem do corpo em paz que faz com que tudo aconteça, e o amor que traz a luz do dia e deixa que o sol apareça‖.

Aos meus filhos, Emanuel e Mateus, meu infinito em dobro, minha plenitude de felicidade, pelo amor que a tudo move.

Ao meu orientador, Arno Dal Ri Júnior, pelas lições inestimáveis, pela atenção briosa e pelo inspirador exemplo de jurista e de ser humano.

Aos colegas professores da Faculdade Luciano Feijão, especialmente aos do Mestrado Interinstitucional (MINTER), pela amizade e solidariedade neste percurso compartilhado.

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A virtude não tem senhor: cada um de vós, consoante a venera ou a desdenha, terá mais ou menos.

(Sócrates em A República, de Platão, livro X, século IV a.C.)

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RESUMO

A presente dissertação teve por escopo estudar a responsabilidade civil pessoal do juiz brasileiro por danos resultantes de culpa em sentido estrito no exercício da função, notadamente a juridicidade da exclusão legal da reparação dos prejuízos causados por negligência, imprudência e imperícia. Para tanto, foi desenvolvida ampla pesquisa com diversos autores nacionais, clássicos e hodiernos, alguns doutrinadores estrangeiros, bem como o exame da legislação atual da Itália, Espanha e Portugal acerca da responsabilidade civil do magistrado, principalmente da italiana, berço do regramento brasileiro sobre o tema. Indaga-se até que ponto restaria infensa ao ordenamento jurídico essa limitação de responsabilidade, prevista no artigo 143 do Código de Processo Civil e no artigo 49 da Lei Complementar n. 35, de 1979, com os olhos na noção de justiça corretiva plasmada desde Aristóteles e nos princípios republicano e da eficiência. O trabalho também se dedica a apreciar a independência do magistrado e do Poder Judiciário, inclusive sob o prisma da teoria do abuso de direito, para investigar sua harmonia com o cânone da responsabilidade, máxime considerando que há uma imensa gama de situações em que o juiz não está diante da valoração dos fatos e do direito, não havendo supedâneo para excluir a incidência do art. 37, § 6º, da Constituição Federal de 1988, que enuncia a responsabilidade do agente público, em sentido amplo, em caso de dolo ou culpa, sem restringir a natureza nem o grau desse elemento subjetivo. Mesmo nos atos judiciais típicos, em que prevalece a interpretação dos fatos e do direito, impõe-se a necessidade de examinar a responsabilização civil pessoal do juiz, pelo menos nas situações de dolo e culpa grave, bem como o direito de regresso estatal em face do magistrado culpado pelo dano.

Palavras-chave: Responsabilidade civil. Juiz. Culpa em sentido estrito. Justiça corretiva. Princípio republicano. Princípio da eficiência. Atos judiciais típicos. Dolo e culpa grave. Direito de regresso.

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ABSTRACT

The purpose of this dissertation was to study the personal civil liability of the Brazilian judge for damages resulting from fault in the strict sense in the exercise of the function, typically a jurisdiction of legal exclusion from compensation for damages caused by negligence, recklessness and malpractice. To do so, we have developed extensive research with several national authors, classic and modern, some foreign doctrinators, as well as examining current legislation in Italy, Spain and Portugal on the civil liability of the magistrate, especially an Italian, cradle of the Brazilian rule on the subject. It is questioned the extent to which this limitation of liability, as provided for in Article 143 of the Code of Civil Procedure and Article 49 of Complementary Law n. 35, of 1979, with the eyes on the notion of corrective justice embodied since Aristotle and the principles of republic and efficiency. The paper also examines the independence of the magistrate and the judiciary, including under the prism of the theory of abuse of law, to investigate its harmony with the canon of liability, especially considering that there is a wide range of situations in which the judge is not faced with the assessment of facts and law, and there is no possibility to exclude the incidence of art. 37, § 6, of the Federal Constitution of 1988, which establishes the liability of the public agent, in a broad sense, in case of fraud or guilt, without restricting the nature or degree of this subjective element. Even in typical judicial acts, where the interpretation of facts and law prevails, there is a need to examine the personal civil liability of the judge, at least in situations of fraud and gross guilt, as well as the State's right of return against the magistrate guilty of the damage. Keywords: Civil liability. Judge. Fault in the strict sense. Corrective justice. Principle of the republic. Principle of efficiency. Typical judicial acts. Fraud and gross guilt. Right of return.

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SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO... 17

2 A RESPONSABILIDADE CIVIL E SEUS PRESSUPOSTOS.... 25

2.1 A RESPONSABILIDADE CIVIL... 25

2.1.1 Evolução da responsabilidade civil no Brasil... 30

2.1.2 Classificações da responsabilidade civil... 37

2.2 OS PRESSUPOSTOS DO ILÍCITO CIVIL... 40

2.2.1 Conduta ilícita... 44 2.2.2 Culpa... 47 2.2.2.1 Espécies de culpa... 50 2.2.3 Dano... 60 2.2.3.1 Espécies de dano... 62 2.2.4 Nexo causal... 72

3 A RESPONSABILIDADE CIVIL DO ESTADO, INCLUSIVE PELOS ATOS DO PODER JUDICIÁRIO... 77

3.1 A RESPONSABILIDADE CIVIL DO ESTADO... 77

3.1.1 Evolução da responsabilidade civil do Estado... 86

3.1.1.1 Evolução da responsabilidade civil do Estado no Brasil... 97

3.1.2 Responsabilidade civil do Estado por atos lícitos... 108

3.1.3 Excludentes da responsabilidade civil do Estado... 113

3.1.4 Responsabilidade civil do Estado por omissão... 117

3.1.5 Responsabilidade civil do Estado por atos do Poder Legislativo... 122

3.2 A RESPONSABILIDADE CIVIL DO ESTADO PELOS ATOS DO PODER JUDICIÁRIO... 129

3.2.1 Crítica aos argumentos da tese da irresponsabilidade... 150

3.2.2 Dano causado por prisão cautelar seguida de absolvição... 158

4 A RESPONSABILIDADE CIVIL PESSOAL DO JUIZ NO EXERCÍCIO DA FUNÇÃO JURISDICIONAL... 165

4.1 A RESPONSABILIDADE CIVIL DO AGENTE PÚBLICO... 165

4.2 A LIMITAÇÃO DA RESPONSABILIDADE CIVIL PESSOAL DO JUIZ MEDIANTE EXCLUSÃO DAS CONDUTAS ACOIMADAS DE CULPA EM SENTIDO ESTRITO... 172

4.2.1 Os artigos 143 do Código de Processo Civil e 49 da Lei Orgânica da Magistratura Nacional... 176

4.2.2 A culpa no exercício da atividade jurisdicional... 184

4.2.2.1 Culpa lata dolo aequiparatur: a equiparação entre dolo e culpa grave no âmbito da responsabilidade civil... 187

4.2.3 A possível responsabilidade civil do juiz por culpa em sentido estrito... 192

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4.3 A RESPONSABILIDADE CIVIL DO JUIZ NO BRASIL COMPARADA À LEGISLAÇÃO VIGENTE DE ITÁLIA, ESPANHA

E PORTUGAL... 210

4.3.1 A responsabilidade civil do juiz na Itália, berço da legislação brasileira sobre o assunto... 210

4.3.2 A responsabilidade civil por atos do Poder Judiciário no direito português... 218

4.3.3 A responsabilidade civil por atos do Poder Judiciário no direito espanhol... 221

4.4 A AÇÃO REGRESSIVA EM FACE DO CULPADO POR DANO RESULTANTE DE AÇÃO OU OMISSÃO DO PODER JUDICIÁRIO... 226

4.4.1 A (im)possibilidade de denunciação da lide em face do agente público culpado, na ação interposta pela vítima contra o Estado... 234

4.4.2 A ação regressiva da administração pública contra o agente público no direito espanhol... 237

5 INDEPENDÊNCIA E RESPONSABILIDADE: CONVIVÊNCIA POSSÍVEL... 243

5.1 O GARANTISMO JURÍDICO DE LUIGI FERRAJOLI E A INDEPENDÊNCIA DO JUIZ NO BRASIL... 243

5.1.1 O garantismo jurídico de Luigi Ferrajoli... 245

5.1.2 A independência do juiz... 248

5.1.2.1 A independência e a (ir)responsabilidade civil do juiz... 253

5.1.3 O garantismo jurídico e as decisões judiciais... 258

5.2 A TEORIA DO ABUSO DE DIREITO E A INDEPENDÊNCIA DO JUIZ... 264

5.3 O PRINCÍPIO REPUBLICANO E A LIMITAÇÃO DA RESPONSABILIDADE CIVIL DO JUIZ... 273

5.4 A JUSTIÇA CORRETIVA ARISTOTÉLICA E A LIMITAÇÃO DA RESPONSABILIDADE CIVIL DO JUIZ... 278

5.5 O PRINCÍPIO DA EFICIÊNCIA E A LIMITAÇÃO DA RESPONSABILIDADE CIVIL DO JUIZ... 286

5.5.1 A análise econômica do direito... 288

5.5.2 O princípio da eficiência incorporado à atividade estatal.... 291

5.5.3 O princípio da eficiência incorporado à atividade judicial.. 295

6 CONSIDERAÇÕES FINAIS... 301

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1 INTRODUÇÃO

O magistrado brasileiro, de todos os tribunais e graus de jurisdição, não repara os danos que comete no exercício da função jurisdicional, nem mesmo na via regressiva, exceto nos casos de dolo ou fraude e de recusa, omissão ou retardamento de providência sem justo motivo. Essa é dicção legal vigente, emanada dos artigos 143 do Código de Processo Civil e 49 da Lei Orgânica da Magistratura Nacional – Lei Complementar n. 35, de 1979. Como a segunda hipótese trata, em sentido amplo, de omissão, pode-se dizer que no Brasil o juiz somente incorre em responsabilidade civil, pelas ações praticadas no desempenho de seu ofício típico, se proceder com dolo ou fraude.

No presente trabalho indaga-se até que ponto restaria infensa ao ordenamento jurídico essa limitação da responsabilidade civil do magistrado brasileiro, ante a exclusão dos danos decorrentes de culpa em sentido estrito, ou seja, negligência, imprudência e imperícia. Percebe-se que o regramento legal em vigor tratou como incompatíveis a independência e a responsabilidade do juiz, que possui crédito para a atuação negligente, imprudente e imperita.

No dia 2 de outubro de 2017, já concluída esta dissertação, tomou-nos de assalto a notícia da trágica morte do professor Luís Carlos Cancellier de Olivo, reitor da Universidade Federal de Santa Catarina. Segundo a imprensa, dias após a revogação de sua prisão provisória, e afastado do cargo por força de decisão judicial decretada no âmbito de operação que investiga supostos desvios em cursos de educação a distância, Cancellier cometeu suicídio atirando-se no vão central de um shopping1.

Consoante nota divulgada pela UFSC, a própria decisão judicial que ordenou a prisão revelou que as irregularidades apontadas aludem aos anos de 2011 e 2015, anteriores à gestão de Cancellier, iniciada em maio de 2016. Outrossim, segundo a Ordem dos Advogados do Brasil em Santa Catarina, a medida extrema da restrição de liberdade ocorreu antes de instaurado o devido processo legal e o contraditório. Não por acaso, no dia seguinte ao seu cumprimento, a prisão foi revogada2, malgrado tenham sido mantidos o afastamento do cargo e a proibição de

1 CONSULTOR JURÍDICO, 2017a.

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adentrar na UFSC3. Quatro dias antes do óbito, em 28 de setembro de 2017, Cancellier publicou artigo em que assevera, dentre outras coisas, que foi submetido a humilhação e vexame sem precedentes, que assumiu o comando da instituição apenas desde maio de 2016 e que não adotou qualquer atitude para obstruir as investigações4.

Gilmar Ferreira Mendes, ministro do Supremo Tribunal Federal, afirmou que o caso ―serve de alerta sobre as consequências de eventual abuso de poder por parte das autoridades‖. Para o ministro, ―o Conselho Nacional de Justiça, o Conselho Nacional do Ministério Público e o Ministério da Justiça deveriam abrir investigações sobre o fato‖, porquanto, ―algumas vezes, sanções vexatórias são impostas sem investigações concluídas‖5

. Paula Cesarino Costa, ombudsman do jornal Folha de S. Paulo, pontuou que ―a irresponsabilidade de agentes públicos‖ contribuiu ―para a morte de cidadão privado do direito à presunção da inocência‖6

.

Na hipótese de restar demonstrado que o ingente dano oriundo do evento morte tenha sido causado, ainda que parcialmente, pela atuação imprudente da magistrada, ao determinar de forma açodada a prisão e/ou o afastamento do reitor, sua responsabilização patrimonial encontrará obstáculo no artigo 143 do Código de Processo Civil e no artigo 49 da Lei Orgânica da Magistratura Nacional, fartamente dissecados neste trabalho.

A tragédia motivou a realização de sessão solene no Congresso Nacional, bem como a proposta7 de batizar com o nome de Cancellier o Projeto de Lei n. 85, de 2017, aprovado no Senado e ora tramitando na Câmara dos Deputados, que tipifica alguns crimes de abuso de

3 <https://g1.globo.com/sc/santa-catarina/noticia/justica-decide-soltar-os-7-presos-em-operacao-na-ufsc-entre-eles-reitor-da-universidade.ghtml>. Acesso em: 9 out. 2017.

4 <https://oglobo.globo.com/opiniao/reitor-exilado-21879420>. Acesso em: 9 out. 2017.

5 CONSULTOR JURÍDICO, 2017a.

6 <http://www1.folha.uol.com.br/colunas/paula-cesarino-costa-ombudsman/2017/10/1925311-jornalismo-de-ouvidos-moucos.shtml>. Acesso em: 9 out. 2017.

7 <https://www12.senado.leg.br/noticias/materias/2017/10/27/congresso-fara-sessao-solene-em-homenagem-ao-ex-reitor-luiz-carlos-cancellier>. Acesso em: 18 jul. 2017.

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autoridade praticáveis por juízes, como o emprego desnecessário de algemas e a decretação de condução coercitiva sem intimação prévia. Entretanto, esse Projeto de Lei não revoga os artigos 143 do CPC e 49 da LOMAN, referidos acima, deixando de estabelecer uma cláusula geral de responsabilidade civil dos juízes independentemente de conduta dolosa ou criminosa. Na verdade, como a prática de abuso de autoridade pressupõe ação dolosa8, a proposição legislativa em nada modificará o regime atual de responsabilidade civil pessoal dos magistrados, porquanto os dispositivos legais citados acima já preveem essa espécie de reparação de dano pelo juiz.

Doutro lado, o Superior Tribunal de Justiça tem decidido que os magistrados podem incorrer em improbidade administrativa, sujeitando-se aos ditames da Lei n. 8.429, de 19929. Como umas das consequências da improbidade administrativa, na forma do artigo 37, § 4º da Constituição Federal e do art. 12 da Lei 8.429/1992, é o ressarcimento ao erário, poder-se-ia dizer que o STJ estaria admitindo por via reflexa a ampla responsabilidade civil dos juízes.

Contudo, tal assertiva não seria verdadeira. De início, nem todo ilícito civil configura improbidade administrativa, de modo que resta possível causar dano sem cometer improbidade. De fato, a maioria dos casos de improbidade administrativa pressupõe dolo10. Mesmo na hipótese do artigo 10 da Lei n. 8.429/1992, que admite a modalidade culposa, faz-se necessária a presença de um elemento subjetivo com repercussão e densidade11, ―um mínimo de má-fé‖ compatível com a intenção do constituinte ―de assegurar a probidade, a moralidade, a honestidade dentro da Administração Pública‖12.

8 O texto oficial aprovado pelo Senado Federal e remetido à Câmara dos Deputados se encontra disponível em: <https://legis.senado.leg.br/sdleg-getter/documento?dm=5207832&disposition=inline>. Acesso em: 18 jul. 2017. 9 V. REsp n. 1.174.603/RN, rel. min. Benedito Gonçalves, primeira turma, julgado em 3/3/2011, e REsp n. 1.249.531/RN, rel. min. Mauro Campbell Marques, segunda turma, julgado em 20/11/2012. No primeiro caso, um juiz de direito determinou a realização de interceptações telefônicas indevidas; no segundo, uma juíza eleitoral cujo marido era candidato a deputado estadual teria ocultado e retardado o trâmite de processos eleitorais contra pessoa ligada à campanha de seu cônjuge.

10 Artigos 9 a 11 da Lei n. 8.429, de 1992. 11 CARVALHO FILHO, 2016, p. 1181. 12 DI PIETRO, 2012, p. 837.

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Demais disso, o STJ pontuou no Recurso Especial n. 1.249.531, julgado em 20/11/2012, que somente os atos não jurisdicionais praticados pelos magistrados poderiam ensejar improbidade administrativa, a exemplo da ―omissão injustificada no cumprimento dos deveres do cargo‖, que, para o ministro relator, Mauro Campbell Marques, ―está vinculada aos atos funcionais, relativos aos serviços forenses, e não diretamente à atividade judicante, ou seja, à atividade finalística do Poder Judiciário‖13

.

Na verdade, outrora o Superior Tribunal de Justiça chegou a admitir que, mesmo no exercício da função judicante, o juiz poderia ser processado por improbidade administrativa, seja ou não considerado agente político, como se infere do Recurso Especial n. 1.127.182, julgado em 28/9/2010. Naquela ocasião, a corte pontuou que os magistrados restam albergados pelo amplo conceito de agente público estampado no art. 2º da Lei n. 8.429/1992, ―especialmente, se, no exercício da função judicante, eles praticarem condutas enquadráveis, em tese, pelos arts. 9º, 10 e 11 daquele diploma normativo‖14

.

Todavia, como dito, no REsp n. 1.249.531, julgado em 20/11/2012, a corte passou a entender que os atos judiciais típicos, ou jurisdicionais, não poderiam ocasionar ações por improbidade administrativa. Portanto, como o entendimento do STJ pela admissão de processos de improbidade administrativa contra magistrados alcança apenas os danos resultantes de condutas dolosas15 e não jurisdicionais, consequentemente não afeta o regime de responsabilização civil pessoal de juízes abordado na presente dissertação, emanado dos artigos 143 do CPC e 49 da LOMAN. De um lado, esses dispositivos já contemplam o dolo; do outro, os atos não jurisdicionais dos magistrados têm recebido o mesmo tratamento dos atos administrativos em geral, sujeitos à

13 CONSULTOR JURÍDICO, 2012.

14 STJ, REsp n. 1.127.182/RN, rel. min. Mauro Campbell Marques, segunda turma, julgado em 28/9/2010.

15 Maria Sylvia Zanella Di Pietro chega a defender que apenas as condutas dolosas podem consubstanciar ato de improbidade administrativa, vez que a referência à culpa no artigo 10 da Lei 8.429/92 teria decorrido de provável ―falha do legislador‖, eis que ―não há razão que justifique essa diversidade de tratamento‖ (2012, p. 837).

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responsabilidade do agente público por dolo ou culpa, nos termos do artigo 37, § 6º da Constituição16.

Inicialmente, tratar-se-á do instituto da responsabilidade civil e de seus pressupostos, buscando fundamentar a ideia da reparação dos prejuízos em geral. Após, será visitada a responsabilidade extracontratual do Estado e seus contornos hodiernos, que prestigiam a ampla incidência da teoria do risco e da igual repartição dos ônus decorrentes da atividade estatal, cada vez mais tendentes a alargar o alcance da sujeição do Estado.

Em seguida, cuidar-se-á da responsabilidade civil do Estado pelos atos do Poder Judiciário, que, se antes era apontada como fenômeno juridicamente impossível, pelos motivos que serão examinados oportunamente, máxime a soberania e a coisa julgada, hoje vem ganhando mais cada vez mais arautos, sustentando que não é possível excluir uma atividade estatal do âmbito da responsabilidade, pena de retorno à fase do brocardo the king can do no wrong. Nesse ponto também será estudada a eventual reparação do dano injusto causado por prisão cautelar seguida de absolvição.

Como tópico central do problema, investigar-se-á a responsabilidade civil pessoal do juiz no exercício de sua função típica, para se debater a juridicidade da restrição legal aos casos de dolo ou fraude, além da omissão, restando isentos de reparação os danos oriundos de conduta comissiva imprudente, negligente e imperita do magistrado. Preliminarmente, sondar-se-á o pertencimento do juiz à categoria dos agentes públicos, malgrado com óbvias peculiaridades. Logo após, serão esmiuçados os dispositivos de lei sobre o tema, a culpa no exercício da atividade jurisdicional e a possível responsabilidade civil do magistrado por culpa em sentido estrito, além de perscrutarem-se os estudos de Pontes de Miranda acerca da matéria.

Em sequência, efetuar-se-á breve exame comparativo entre a responsabilidade civil do juiz no Brasil e na Itália, berço da legislação brasileira sobre o assunto, bem como será analisado pontualmente o regramento atual espanhol e português acerca do tema. Ademais, será descortinada a obrigatoriedade do ajuizamento da ação regressiva pelo Estado, contra o(s) culpado(s) por dano decorrente de ação ou omissão

16 CARVALHO FILHO, 2016, p. 734.

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do Poder Judiciário, com arrimo no princípio da indisponibilidade do patrimônio público, que repudia o desfalque dos cofres públicos, através do pagamento da indenização, sem a perspectiva de valer-se do direito de regresso.

Nota-se que há imensa gama de situações em que o juiz não está diante da valoração dos fatos e do direito, não havendo supedâneo para excluir a incidência do art. 37, § 6º da Constituição Federal de 1988, que enuncia a responsabilidade do agente público em caso de dolo ou culpa. Mesmo nos atos judiciais típicos17, ou jurisdicionais, em que prevalece a interpretação dos fatos e do direito, impõe-se a necessidade de ponderar a responsabilização civil pessoal do juiz, especialmente nas situações de dolo e culpa grave.

Por fim, avaliar-se-á a possibilidade de coexistência entre a independência e a responsabilidade do magistrado brasileiro, com os olhos no garantismo jurídico de Luigi Ferrajoli, na teoria do abuso de direito, no princípio republicano, no justo corretivo aristotélico e no princípio da eficiência.

O embasamento teórico decorre do estudo da obra de inúmeros doutrinadores nacionais, como Oreste Nestor de Souza Laspro (2000), Giovanni Ettore Nanni (1999), Paulo de Tarso Vieira Sanseverino (2010), Arno Dal Ri Júnior (2006), Pontes de Miranda (1973), Sérgio Cavalieri Filho (2015), Sílvio de Salvo Venosa (2010), Flávio Tartuce (2010), Paulo Nader (2010), Carlos Roberto Gonçalves (2011), José dos Santos Carvalho Filho (2016), Irene Patrícia Nohara (2011), Maria Sylvia Zanella Di Pietro (2012), Bruno Miragem (2013), bem assim do escólio de diversos autores estrangeiros, como Luigi Ferrajoli (2015), Piero Calamandrei (2013), Hans-Georg Gadamer (1997), e os espanhóis Eduardo García de Enterría e Tomás-Ramón Fernández (2014).

Para trabalhar os conceitos afetos à responsabilidade civil geral, como dano, culpa em sentido estrito, culpa grave e direito de regresso, lança-se mão, sobretudo, das obras de Sérgio Cavalieri Filho (2015), Sílvio de Salvo Venosa (2010) e Paulo de Tarso Vieira Sanseverino (2010).

17 Cuida-se da atividade jurisdicional, ―realizada exclusivamente pelos juízes, através de atos judiciais típicos, como decisões, sentenças, liminares, acórdão, específicos da função de julgar‖ (CAVALIERI FILHO, 2015, p. 361).

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Doutro lado, na abordagem das variáveis específicas, atinentes à delimitação do tema – como responsabilidade civil do juiz e atos judiciais típicos –, utiliza-se precipuamente os livros de Oreste Nestor de Souza Laspro (2000) e de Giovanni Ettore Nanni (1999), ambos intitulados A responsabilidade civil do juiz, bem como a obra de Pontes de Miranda (1973), sem prejuízo do legado de diversos outros autores, notadamente administrativistas consagrados como Maria Sylvia Zanella Di Pietro (2012), José dos Santos Carvalho Filho (2016) e Celso Antônio Bandeira de Mello (2015).

No tocante ao princípio da eficiência, o trabalho se serve da teoria esposada pelos professores Everton das Neves Gonçalves e Joana Stelzer, da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), ao apresentarem o princípio da eficiência econômico-social18.

Impende frisar que alguns autores conhecidos de responsabilidade civil e de direito administrativo pouco ou nada versam sobre a responsabilidade pelos atos do Poder Judiciário, simplesmente omitindo a relevância do assunto, tal qual o baiano Pablo Stolze Gagliano, que sequer aborda a questão, embora trate da responsabilidade civil do Estado e dos agentes públicos19.

Outrossim, demarca-se que o presente trabalho não almeja censurar, e não censura, os juízes proativos e criativos, que interpretam e reinterpretam o direito de modo construtivo, dinâmico e vanguardista. Deveras, a estes não se poderia imputar qualquer modalidade de culpa.

Utilizar-se-á o método indutivo de abordagem, bem como o método de procedimento monográfico20. A temática será desenvolvida através da técnica de documentação indireta, envolvendo mormente a pesquisa bibliográfica. Por seu turno, a estrutura básica da dissertação leva em conta as recomendações da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC)21 e as regras da Associação Brasileira de Normas Técnicas (ABNT)22.

18 GONÇALVES e STELZER, 2014.

19 GAGLIANO e PAMPLONA FILHO, 2012. 20 OLIVEIRA, 2003.

21 GARCIA; ALVES; BEM, 2012. 22 NBR 14724, 2011.

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2 A RESPONSABILIDADE CIVIL E SEUS PRESSUPOSTOS Neste capítulo será examinada a responsabilidade civil em geral e seus pressupostos, com os olhos no alcance cada vez mais amplo de seus preceitos, seja em relação ao plano material de incidência e principalmente no tocante aos seus destinatários, como realização do ideal de justiça.

2.1 A RESPONSABILIDADE CIVIL

A noção de responsabilidade civil pode parecer singela num primeiro momento, porquanto alude à simples reparação de um dano23. Contudo, possui meandros que descortinam a complexidade da matéria, como adverte Irene Patrícia Nohara24:

[...] toda essa simplicidade é ilusória. O assunto da responsabilidade civil é por vezes tratado na doutrina sem que sejam aprofundadas as sutilezas das diferentes noções adotadas. A própria denominação do tema já parte de um pressuposto, pois houve no histórico da responsabilização dois fundamentos básicos para a responsabilização estatal: a doutrina da culpa, amparada precipuamente no Direito Civil, e a doutrina do risco, que é a adotada pelo Direito Administrativo brasileiro da atualidade. Portanto, trata-se de assunto controvertido, repleto de sutis divergências que levam a repercussões práticas distintas.

Não se deve confundi-la com responsabilidade patrimonial, porquanto ―pois há sanções penais e confiscatórias que também têm tal caráter‖25

. Logo, o termo responsabilidade civil possui feitio específico. Hodiernamente, a doutrina preconiza que a responsabilidade civil enseja o ―favorecimento daquele que sofreu o dano‖26

, vez que amiúde não é possível a reparação em si. Para Charles Eisenmann, seriam mais

23 EINSENMANN, 1983, p. 798.

24 NOHARA, 2011, p. 733. 25 Ibidem, p. 735.

(26)

adequadas as expressões responsabilidade reparadora, restituidora ou compensatória27.

A disciplina que se estuda nas academias é fenômeno contemporâneo, surgido ―pela primeira vez no final do século XVIII, no âmbito do direito revolucionário francês‖, de modo que sua ―primeira formulação expressa está no Código Civil francês, espalhando-se daí para todas as codificações posteriores‖28

.

Entretanto, a ideia da reparação de um dano é tão longeva29 e corrente quanto a de justiça. Não por acaso, Sérgio Cavalieri Filho pontua que o ―anseio de obrigar o agente, causador do dano, a repará-lo inspira-se no mais elementar sentimento de justiça‖, decorrendo da fundamental necessidade de restabelecer o equilíbrio rompido pelo ato ilícito, ―o que se procura fazer recolocando o prejudicado no status quo ante‖30.

O embrião da noção moderna de responsabilidade civil repousa na concepção aristotélica de justiça corretiva, como assevera Paulo de Tarso Vieira Sanseverino31. Este tema será aprofundado no item 5.4, quando se investigará se a limitação da responsabilidade civil do juiz no exercício da função viola a ideia de justiça, especialmente a de justiça corretiva descrita por Aristóteles no livro Ética a Nicômaco32, posteriormente revisitada por Tomás de Aquino com o nome de justiça comutativa33.

A seara epistêmica da responsabilidade civil se encontra inserida no campo do direito obrigacional, como leciona Sílvio de Salvo Venosa,

27 EINSENMANN, 1983, p. 790.

28 VENOSA, 2010, p. 2.

29 ―O famoso princípio da Lei do Talião, da retribuição do mal pelo mal, ‗olho por olho‘, já denota uma forma de reparação do dano. Na verdade, o princípio é da natureza humana, qual seja, reagir a qualquer mal injusto perpetrado contra a pessoa, a família ou o grupo social. A sociedade primitiva reagia com a violência. O homem de todas as épocas também o faria, não fosse reprimido pelo ordenamento jurídico‖ (VENOSA, 2010, p. 18).

30 CAVALIERI FILHO, 2015, p. 28. 31 SANSEVERINO, 2010, p. 53.

32 1991. Tradução de Leonel Vallandro e Gerd Bornheim da versão inglesa de W.D. Ross.

(27)

―sendo a reparação dos danos algo sucessivo à transgressão de uma obrigação, dever jurídico ou direito‖34

. No mesmo tom, Sérgio Cavalieri Filho explica o ilícito e a responsabilidade civil frisando sua característica essencial de dever jurídico sucessivo ou secundário, decorrente da transgressão de um dever originário. Vejamos35:

A violação de um dever jurídico configura o ilícito, que, quase sempre, acarreta dano para outrem, gerando um novo dever jurídico, qual seja, o de reparar o dano. Há, assim, um dever jurídico originário, chamado por alguns de primário, cuja violação gera um dever jurídico sucessivo, também chamado de secundário, que é o de indenizar o prejuízo. A título de exemplo, lembramos que todos têm o dever de respeitar a integridade física do ser humano. Tem-se, aí, um dever jurídico originário, correspondente a um direito absoluto. Para aquele que descumprir esse dever surgirá um outro dever jurídico: o da reparação do dano. É aqui que entra a noção de responsabilidade civil.

Disso se extrai que o dano faz nascer uma obrigação jurídica sucessiva, resultante do descumprimento de uma obrigação anterior e consistente na responsabilidade civil. Por isso a responsabilidade é chamada de dever jurídico sucessivo, enquanto a obrigação é denominada dever jurídico originário. Logo, rompida a obrigação, nasce a responsabilidade.

Ao mesmo tempo em que resulta da violação de uma obrigação (o neminem laedere), a responsabilidade civil configura um múnus oriundo do ato ilícito, que é o propulsor dessa obrigação sucessiva de reparar o dano. Como vaticina Cavalieri Filho, a ―responsabilidade civil opera a partir do ato ilícito, com o nascimento da obrigação de indenizar‖ e a finalidade de ―colocar a vítima na situação em que estaria sem a ocorrência do fato danoso‖36.

Segundo tradicional classificação, o ato ilícito é um fato jurídico voluntário. Este pode ser lícito ou ilícito. Os lícitos são os atos jurídicos e os negócios jurídicos, cuja distinção repousa no fato de que os

34 Op. cit., p. 2.

35 Op. cit., p. 16.

(28)

primeiros têm seus efeitos designados na lei, enquanto os efeitos dos negócios jurídicos são escolhidos por seus signatários. Sobre o ato ilícito, escolia a doutrina37:

Trata-se de uma conquista do Direito moderno, devida à obra monumental dos pandectistas alemães do século XIX, que criaram a parte geral do Direito Civil e, por conseguinte, deram-nos os fundamentos científicos de toda a teoria da responsabilidade hoje estudada. O Código Civil Alemão - BGB 1897 - foi o primeiro a abandonar a tradicional classificação romanista de delito e quase-delito e, no lugar dessa dicotomia, erigiu um conceito único - o conceito do ato ilícito.

Por seu turno, a função primordial da responsabilidade civil consiste na reparação integral do dano, princípio retratado na máxima francesa tout le dommage, mais rien que le dommage – todo o dano, mas nada além do dano38. Como aduz Sérgio Cavalieri Filho, cuida-se de exigência fundamental de justiça e princípio inequivocamente esposado por nosso ordenamento jurídico39:

A Constituição de 1988, ao estabelecer a dignidade da pessoa humana como princípio fundamental da República (art. 1º, III), implicitamente determinou a cabal reparação de todos os danos causados injustamente à pessoa humana. No Código de Defesa do Consumidor, o princípio foi expressamente consagrado em seu art. 6º, VI, ao estabelecer, entre os direitos básicos do consumidor, ‗a efetiva prevenção e reparação de danos patrimoniais e morais, individuais, coletivos e difusos‘. O Código Civil de 2002, por sua vez, foi ainda mais explícito no seu art. 944, caput, ao dispor: ‗A indenização mede-se pela extensão do dano.‘

Entrementes, o Código Civil de 2002 emana exceção ao princípio da reparação integral do dano, no parágrafo único de seu artigo 944,

37 Ibidem, p. 21-22.

38 Tradução livre.

(29)

assim transcrito: ―Se houver excessiva desproporção entre a gravidade da culpa e o dano, poderá o juiz reduzir, equitativamente, a indenização‖. Como diz Cavalieri, a finalidade dessa norma é ―evitar que a reparação integral dos danos prive o ofensor do mínimo necessário à sua sobrevivência, em prestígio dos princípios da dignidade humana e da solidariedade‖40

.

Tal redução equitativa da indenização, para Cavalieri Filho, não se aplica aos casos de dolo e culpa grave e de responsabilidade objetiva41. Todavia, Sanseverino, revendo posicionamento anterior, sustenta que a atenuação indenizatória prevista no parágrafo único do artigo 944 do Código Civil aplica-se, sim, aos casos de responsabilidade objetiva, bastando substituir a expressão culpa por causa. Vejamos42:

Já tive oportunidade de manifestar publicamente o entendimento de que apenas seria cabível a utilização da redução na responsabilidade subjetiva, em função da referência à culpa pelo parágrafo único do art. 944, tendo, inclusive, apresentado um enunciado em jornada promovida pelo Centro de Estudos do STJ, em 2002, quando o CC/2002 estava ainda na sua vacatio legis. Posteriormente, porém, em minha Tese de Doutorado, revisei essa posição, em face da possibilidade de se substituir a expressão culpa por causa. Tratando-se de um processo causal complexo, embora a causa imputada ao réu da indenizatória não tenha sido a mais relevante, pode-se, reconhecida a sua responsabilidade, reduzir o montante da indenização. Isso é possível porque essa norma dirige-se exatamente para o problema da quantificação da indenização.

Contudo, nesses casos de responsabilidade objetiva, o aludido redutor indenizatório deve ser aplicado com grande cuidado, ―limitando-se aos danos meramente patrimoniais, e jamais aos danos pessoais, hipótese em que se observaria a transferência de todos os riscos do evento danoso para a vítima, e não para o seu responsável.‖. A ressalva quanto aos danos pessoais, como morte, lesão corporal e

40 Ibidem, p. 31.

41 Ibidem, p. 31 e p. 57-58. 42 SANSEVERINO, 2009.

(30)

incapacidade, decorre do princípio da dignidade da pessoa humana, ao qual remete a expressão ―equitativamente‖ constante do artigo 944, parágrafo único, do Código Civil43.

A responsabilidade civil é fenômeno extremamente dinâmico, a cada momento surgindo ―teorias e linhas de pensamento, na doutrina e na jurisprudência, fruto não só do pensamento jurídico como também das novas necessidades sociais‖44

. Exemplo disso são as novéis formas de indenização, como a perda de uma chance, e a ―criação de fundos especiais para determinadas espécies de dano, como os danos ecológicos‖, tudo refletindo ―um desejo permanente de adequação social‖45

.

2.1.1 Evolução da responsabilidade civil no Brasil

O ministro do Superior Tribunal de Justiça, Paulo de Tarso Vieira Sanseverino, obtempera que o Brasil se encontra na quarta fase do modelo legislativo de reparação de danos, introduzida pelo Código Civil de 2002 e assim caracterizada46:

[...] uma estrutura flexível que alia o método das cláusulas gerais de responsabilidade subjetiva (art. 186) e objetiva (art. 927, parágrafo único) ao método da tipificação dos efeitos dos principais atos ilícitos, introduzindo, na parte final dos arts. 948 (dano-morte) e 949 (lesões corporais), verdadeiras pontes normativas ensejadoras de ampliações intersistemáticas concernentes às ofensas à integridade corporal da vítima, assim deixando expresso que o elenco de parcelas indenizatórias é meramente exemplificativo, admitindo ampliação por via de interpretação. Dessas quatro fases, a primeira é aquela anterior ao Código Civil de 1916, em que prevalecia a atipicidade do dano ilícito, franqueando vasto espaço à jurisprudência. A segunda adveio com o próprio Código de 1916, caraterizada pela adoção de uma cláusula geral de

43 SANSEVERINO, 2009.

44 VENOSA, 2010, p. 2. 45 Ibidem, p. 20.

(31)

responsabilidade civil (art. 159), porém com limitação das parcelas indenizatórias nos principais danos – homicídio e lesões corporais –, provavelmente para evitar o arbítrio47. A terceira fase chegou com a Constituição Federal de 1988, que assegurou a indenização por danos morais, instigando um rosário de controvérsias interpretativas acerca dos danos indenizáveis e seus limites. A fase atual, quarta, procura aliar segurança e porosidade, como explicado acima48.

O Código Civil de 2002, marco da fase atual, conceituou o ato ilícito em seus artigos 18649 e 18750, com especial relevância para dois fatores, não albergados expressamente pelo diploma anterior: a inclusão da indenização por danos morais, na trilha do texto constitucional em vigor, e a menção explícita ao abuso de direito como ato ilícito.

Quanto à evolução e ao futuro da responsabilidade civil no Brasil, Sérgio Cavalieri Filho, de início, observa que durante longo tempo nosso sistema era singelo, limitando-se ao artigo 159 do Código Civil de 191651: era uma espécie de ―samba de uma nota só‖, onde a ―culpa era a grande vedete‖ e ―nada acontecia sem a sua participação‖. Em suma, ―não era preciso estudar responsabilidade civil, bastava conhecer o art. 159‖ 52

.

Segundo esse autor, dois fatores essenciais foram responsáveis pela inovação havida na área: o primeiro foi a ―revolução industrial, [...] incluindo o desenvolvimento científico e tecnológico‖; o segundo foi a ―busca da justiça social na construção de uma sociedade solidária‖, que

47 V. artigos 1.537 a 1.539 do Código Civil de 1916. 48 SANSEVERINO, 2010, p. 7-9.

49 Art. 186. Aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar direito e causar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral, comete ato ilícito.

50 Art. 187. Também comete ato ilícito o titular de um direito que, ao exercê-lo, excede manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes.

51 Art. 159. Aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência, ou imprudência, violar direito, ou causar prejuízo a outrem, fica obrigado a reparar o dano. A verificação da culpa e a avaliação da responsabilidade regulam-se pelo disposto neste Código, artigos 1.518 a 1532 e 1.537 a 1.553.

(32)

exigiu maior intervenção do Estado ―para garantir o acesso de todos os cidadãos aos bens e serviços necessários a uma vida digna‖53

.

A mudança começou pelo sentimento de insuficiência em relação ao sistema da culpa provada, inserto no referido artigo 159 do Código de 1916. Na verdade, esse paradigma abonava as aspirações liberalistas da época: ―Livre, o homem é responsável, e a culpa o corolário da liberdade‖54

. Porém, o sistema que funcionou ―por milênios, desde a lex aquilia55 do Direito Romano, revelou-se insuficiente antes mesmo da entrada em vigor do Código de 1916‖56

. Isso porque o Decreto n. 2.681, de 1912, já previa a responsabilidade civil objetiva das estradas de ferro ―pelos desastres que nas suas linhas sucederem aos viajantes e de que resulte a morte, ferimento ou lesão corpórea‖57.

De fato, a indústria, o maquinismo e a multiplicação dos acidentes foram o cenário desencadeante das teorias da responsabilidade objetiva, construídas ―nas obras pioneiras de Raymond Saleilles, Louis Josserand, Georges Ripert e outros‖, ―como exigência social e de justiça para determinados casos‖58

. Nessa trilha, algumas leis específicas foram trilhando o mesmo caminho da lei das estradas de ferro (Dec. n. 2.681, de 1912), como as legislações sobre acidente do trabalho (Lei n. 5.316, de 1967 e Dec. n. 61.784, de 1967), seguro obrigatório de danos causados por veículos (Lei n. 6.194, de 1974), e dano ao meio ambiente (Lei n. 6.938, de 1981).

53 Ibidem, p. 3.

54 Ibidem, p. 5.

55 Embora tenha atingido seu ápice na era de Justiniano, a Lex Aquilia ―foi um plebiscito aprovado provavelmente em fins do século III ou início do século II a.C., que possibilitou atribuir ao titular de bens o direito de obter o pagamento de uma penalidade em dinheiro de quem tivesse destruído ou deteriorado seus bens.[...] A ideia de culpa é centralizadora nesse intuito de reparação. Em princípio, a culpa é punível, traduzida pela imprudência, negligência ou imperícia, ou pelo dolo‖. Destarte, a Lex Aquilia foi um ―divisor de águas da responsabilidade civil‖, porquanto deu origem à responsabilidade extracontratual, baseada na culpa (VENOSA, 2010, p. 19).

56 CAVALIERI FILHO, 2015, p. 5. 57 Artigo 17 do Dec. n. 2.681, de 1912.

58 CAVALIERI FILHO, 2015, p. 5. No mesmo sentido, Flávio Tartuce aduz que as primeiras publicações sobre responsabilidade civil objetiva são fruto dos estudos de Saleilles e Josserand acerca da teoria do risco, a partir de 1897 (TARTUCE, 2010, p. 306-307).

(33)

Entretanto, foi a Constituição Federal de 1988 que ofereceu a maior contribuição para o desenvolvimento da responsabilidade civil brasileira, emprestando relevância constitucional à matéria e prevendo expressamente, por exemplo, a indenização por dano moral59 e por erro judiciário60, que será examinada nos capítulos seguintes, a responsabilidade objetiva de todos os prestadores de serviço público, não apenas do Estado61, e por dano nuclear62, bem como a reparação dos danos ambientais63.

Também representou forte golpe na responsabilidade civil subjetiva o advento do Código de Defesa do Consumidor (Lei n. 8.078, de 1990), cujos artigos 12 a 14 previram a reparação dos danos causados aos consumidores independentemente da existência de culpa, por fato do produto ou do serviço, sem falar na responsabilidade por vício do produto ou do serviço estampada nos artigos 18 a 25.

O Código Civil de 2002, por seu turno, embora também estabeleça como regra, em seus artigos 927 e 186, a responsabilidade subjetiva, afirmou três cláusulas gerais de responsabilidade objetiva, como obtempera Sérgio Cavalieri Filho64:

A primeira, vamos encontrá-la ainda conjugando o art. 927 com o art. 187, que define o abuso do direito como ato ilícito, abuso esse que ocorre sempre que o direito for exercido com excesso manifesto aos limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes.

Sobre o abuso de direito (art. 187), porém, discorrerá o capítulo 5.2 da presente dissertação, para investigar o uso abusivo da independência do juiz em contraposição à responsabilidade que deve sopesar a conduta de todos os agentes públicos.

59 Art. 5º, V e X. 60 Art. 5º, LXXV. 61 Art. 37, § 6º. 62 Art. 21, XXIII, d. 63 Art. 225, § 3º. 64 CAVALIERI FILHO, 2015, p. 7.

(34)

A segunda cláusula geral de responsabilidade objetiva do Code de 2002 é precisamente a segunda parte do parágrafo único do art. 927, que cuida da teoria do risco, ―quando a atividade normalmente desenvolvida pelo autor do dano implicar, por sua natureza, risco para os direitos de outrem‖. Sérgio Cavalieri Filho explica que se trata da teoria do risco criado65:

Em síntese, há no parágrafo único do art. 927 do Código Civil uma norma aberta de responsabilidade objetiva, que transfere para a doutrina e jurisprudência a conceituação de atividade de risco no caso concreto. Não há, a priori, como especificar, exaustivamente, quais são as atividades de risco, mas pode-se adotar, em face à teoria do risco criado, o critério do risco inerente como elemento orientador.

No mesmo sentido, enuncia Sílvio de Salvo, sobre responsabilidade objetiva e teoria do risco66:

Ao se analisar a teoria do risco, mais exatamente do chamado risco criado, nesta fase de responsabilidade civil de pós-modernidade, o que se leva em conta é a potencialidade de ocasionar danos; a atividade ou conduta do agente que resulta por si só na exposição a um perigo, noção introduzida pelo Código Civil italiano de 1942 (art. 2.050).

Tal responsabilidade também se ancora ―em um princípio de equidade: quem aufere os cômodos de uma situação deve também suportar os incômodos‖67

. Note-se que, embora esse Código Civil italiano tenha servido de base para as disposições do Código Civil brasileiro vigente sobre responsabilidade civil, nosso artigo 927, parágrafo único, foi além no concernente à teoria do risco, porquanto optou expressamente ―pela responsabilidade objetiva, e não por um sistema intermediário de presunção de culpa, como fizeram os estatutos italiano e português‖. Para Venosa, tal alargamento é ―a maior inovação

65 Ibidem, p. 8.

66 VENOSA, 2010, p. 10-11. 67 VENOSA, 2010, p. 15.

(35)

do Código deste século em matéria de responsabilidade e requererá, sem dúvida, um cuidado extremo da nova jurisprudência‖68

.

Entrementes, ainda sobre a teoria do risco perfilhada no parágrafo único, art. 927 do Código Civil de 2002, a responsabilidade sem culpa ali prevista somente pode ser aplicada quando o dano resultar de atividade normalmente desenvolvida, ou seja, ―atividade costumeira do ofensor e não uma atividade esporádica ou eventual‖, sob pena de ―transformar em regra o que o legislador colocou como exceção‖69

. Outros matizes da teoria do risco são realçados pela doutrina, como o risco profissional, decorrente ―de uma atividade laborativa‖, e o risco excepcional, em que ―o dever de indenizar surge de atividade que acarreta excepcional risco, como é o caso da transmissão de energia elétrica, exploração de energia nuclear, transporte de explosivos etc.‖70

. Porém, como dito, o código adotou a teoria do risco criado.

A terceira cláusula geral de responsabilidade objetiva no Código de 2002 resta expressa no art. 931: ―Ressalvados outros casos previstos em lei especial, os empresários individuais e as empresas respondem independentemente de culpa pelos danos causados pelos produtos postos em circulação‖. Cavalieri obtempera que esse dispositivo simplesmente estendeu ―a responsabilidade objetiva pelo fato do produto aos empresários individuais e às empresas nos casos em que não houver relação de consumo‖ 71.

Frise-se que a responsabilidade sem necessidade de culpa tem aumentado gradativamente, abarcando ―situações nas quais sua comprovação inviabilizaria a indenização para a parte presumivelmente mais vulnerável‖72, e privilegiando ―os aspectos de causalidade e reparação do dano, em detrimento da imputabilidade e culpabilidade de seu causador‖73

. Exemplo disso é a previsão da responsabilidade do

68 Ibidem, p. 9. 69 Ibidem, p. 14. 70 Ibidem, p. 16 71 CAVALIERI FILHO, 2015, p. 8. 72 VENOSA, 2010, p. 7-8. 73 Ibidem, p. 13.

(36)

incapaz no artigo 928 do Código Civil74, ainda que subsidiária e mitigada75.

Venosa ainda ressalta que a jurisprudência tem admitido a chamada responsabilidade objetiva agravada, atinente ―a riscos específicos que merecem uma indenização mais ampla, de evidente cunho punitivo‖76

. É o caso do artigo art. 735 do Código Civil: ―A responsabilidade contratual do transportador por acidente com o passageiro não é elidida por culpa de terceiro, contra o qual tem ação regressiva‖.

Atualmente, nosso sistema de responsabilidade civil exige verdadeiro ―diálogo das fontes‖, ―reflexo da complexidade da sociedade moderna‖77

, a exigir do intérprete a aplicação de normas de espécies variadas, a partir da Constituição, do Código Civil e das diversas leis especiais.

Em relação ao futuro da responsabilidade civil, Cavalieri Filho demonstra especial preocupação com os riscos provocados pelo homem contra o planeta e a espécie, especialmente com os danos ao meio ambiente. E alerta78:

O quinto relatório do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC), divulgado em 27 de setembro de 2013 pela ONU em Estocolmo, traz sérias e assustadoras advertências. Subiu para 95% o grau de certeza entre os cientistas de que o aquecimento global é influenciado pelo homem. Se o mundo continuar a queimar combustíveis fósseis no ritmo atual, terá apenas mais cerca de 30 anos antes que as temperaturas atinjam níveis arriscados para a vida na terra; até o fim deste século, o

74 Art. 928. O incapaz responde pelos prejuízos que causar, se as pessoas por ele responsáveis não tiverem obrigação de fazê-lo ou não dispuserem de meios suficientes.

75 Parágrafo único. A indenização prevista neste artigo, que deverá ser equitativa, não terá lugar se privar do necessário o incapaz ou as pessoas que dele dependem.

76 VENOSA, 2010, p. 13.

77 CAVALIERI FILHO, 2015, p. 8-9. 78 Ibidem, p. 10.

(37)

aquecimento será provavelmente superior a 2 graus Celsius - as chances são de 66% -, superando o limite considerado seguro [...] Os cientistas procuraram tornar as conclusões mais palpáveis para as populações, no intuito de levá-las a alterar os hábitos e as práticas há muito tempo adotadas nas esferas do consumo, no gasto de energia, na produção industrial e em praticamente todas as atividades humanas, no sentido de reduzir emissão de gases estufa. As previsões para o Brasil indicam que as temperaturas no país podem aumentar de 2 a 3 graus Celsius até 2100, com as máximas diárias subindo em até sete graus, e isso seria catastrófico (O Globo, 28 set. 2013).

Nesse contexto, mostra-se necessária ―a passagem de um sistema repressivo para um proativo, preventivo, que se antecede à ocorrência de danos. Diante dos riscos da vida moderna, deve-se agir logo para se prevenir‖79

. Os contratos de seguro representam de modo eficaz essa abordagem preventiva dos riscos sociais, inclusive para enfrentar o corriqueiro problema da não identificação dos ofensores, evitando que as vítimas suportem injustamente o prejuízo. Como vaticina Silvio de Salvo Venosa, no ―século XXI descortina-se uma amplitude para os seguros que deverão, em futuro não distante, dar cobertura a todos os danos sociais, segundo a tendência que se pode divisar‖80.

2.1.2 Classificações da responsabilidade civil

Dentre as espécies de responsabilidade, a primeira distinção que se sobressai é aquela entre a responsabilidade civil e a penal, assim explicada pela doutrina81:

Será chamada de ilicitude penal ou civil tendo exclusivamente em vista a norma jurídica que impõe o dever violado pelo agente. No caso de ilícito penal, o agente infringe uma norma penal, de Direito Público; no ilícito civil, a norma violada é de Direito Privado. A separação entre uma e outra ilicitude atende apenas a critérios de conveniência

79 CAVALIERI FILHO, 2015, p. 12. 80 VENOSA, 2010, p. 5.

(38)

ou de oportunidade, afeiçoados à medida do interesse da sociedade e do Estado, variável no tempo e no espaço. [...] A punição de certos ilícitos na esfera do Direito Civil, portanto, ao invés de ser na órbita do Direito Penal, obedece a razões puramente de conveniência política. Para o Direito Penal, é transportado apenas o ilícito de maior gravidade objetiva, ou que afeta mais diretamente o interesse público, passando, assim, a ilícito penal. No que toca à responsabilidade civil, algumas classificações são correntemente utilizadas, sendo uma delas a divisão entre responsabilidade civil contratual e extracontratual82:

Se a transgressão se refere a um dever gerado em negócio jurídico, há um ilícito negocial comumente chamado ilícito contratual, por isso que mais frequentemente os deveres jurídicos têm como fonte os contratos. Se a transgressão pertine a um dever jurídico imposto pela lei, o ilícito é extracontratual, por isso que gerado fora dos contratos, mais precisamente fora dos negócios jurídicos.

Tal separação, entretanto, não é pacífica, porquanto as ―regras previstas no Código para a responsabilidade contratual (arts. 393, 402 e 403) são também aplicadas à responsabilidade extracontratual‖. Há, portanto, ―simbiose entre esses dois tipos de responsabilidade‖, a justificar uma teoria unitária ou monista, para a qual ―pouco importam os aspectos sobre os quais se apresente a responsabilidade civil no cenário jurídico, já que os seus efeitos são uniformes‖83.

Sérgio Cavalieri Filho diz que, ―nos códigos dos países em geral, inclusive no Brasil, tem sido acolhida a tese dualista ou clássica‖84

. Contudo, o Código de Defesa do Consumidor adotou a teoria unitária ou monista, porquanto seu artigo 17 reza que, no tocante à responsabilidade pelo fato do produto e do serviço, ―equiparam-se aos consumidores todas as vítimas do evento‖. Na verdade, a teoria unitária é razoável, pois sempre haverá a violação de um dever jurídico

82 Ibidem, p. 33.

83 CAVALIERI FILHO, 2015, p. 33-34. 84 Ibidem, p. 34.

(39)

preexistente. De qualquer maneira, é inegável que a responsabilidade contratual ou negocial pode ter especificidades avençadas que interfiram na existência, nos contornos e nos limites da indenização, tal como se dá na cláusula de não indenizar a na cláusula penal.

Sílvio de Salvo Venosa também discorre sobre a responsabilidade civil contratual e a extracontratual, também chamadas, respectivamente, de responsabilidade negocial e extranegocial. Diz que a ―grande questão nessa matéria é saber se o ato danoso ocorreu em razão de uma obrigação preexistente, contrato ou negócio jurídico unilateral‖85

; se não, tem-se a responsabilidade extracontratual ou extranegocial. Entretanto, corrobora a tendência de aproximação dessas duas espécies de responsabilidade civil86:

[...] nem sempre resta muito clara a existência de um contrato ou de um negócio, porque tanto a responsabilidade contratual como a extracontratual com frequência se interpenetram e ontologicamente não são distintas: quem transgride um dever de conduta, com ou sem negócio jurídico, pode ser obrigado a ressarcir o dano. O dever violado será o ponto de partida, não importando se dentro ou fora de uma relação contratual. [...] A doutrina contemporânea, sob certos aspectos, aproxima as duas modalidades, pois a culpa vista de forma unitária é fundamento genérico da responsabilidade. Uma e outra fundam-se na culpa.

Nesse contexto, filio-me a essa visão unitária da responsabilidade civil, por não vislumbrar diferença ontológica entre a responsabilidade contratual ou negocial, de um lado e, do outro, a responsabilidade extracontratual ou extranegocial, também denominada de aquiliana, mas apenas uma dualidade meramente didática. Como pontua Venosa, o ―fato de existirem princípios próprios dos contratos e da responsabilidade fora deles não altera essa afirmação‖, porquanto é o mesmo o ―paradigma abstrato para o dever de indenizar‖87

. Exatamente por isso, no presente trabalho, todas as vezes que se fizer referência à

85 VENOSA, 2010, p. 22.

86 Ibidem, p. 22-23. 87 VENOSA, 2010, p. 24.

(40)

responsabilidade civil, estar-se-á diante da responsabilidade civil extracontratual, extranegocial ou aquiliana.

A classificação mais importante, todavia, alude à dicotomia entre responsabilidade civil subjetiva e objetiva, a primeira exigindo e a segunda dispensando a culpa como elemento condicionante da reparação do dano. Aqui se trata da culpa em sentido lato, abrangendo o dolo e a culpa stricto sensu – negligência, imprudência e imperícia.

O Código Civil vigente manteve a regra da responsabilidade subjetiva (art. 186), porém, como já dito, trouxe pelo menos três cláusulas gerais de responsabilidade objetiva, referentes ao abuso de direito (art. 187), à teoria do risco (art. 927, parágrafo único) e à responsabilidade pelo fato do produto (art. 931)88.

Infere-se que a responsabilidade com culpa ainda é ―o princípio gravitador da responsabilidade extracontratual no Código Civil‖, porém a responsabilidade objetiva ―pode ser aplicada quando existe lei expressa que a autorize ou no julgamento do caso concreto, na forma facultada pelo parágrafo único do art. 927‖89

. Nessa trilha, Flávio Tartuce afirma que ―o Direito Civil pátrio continua consagrando como regra a responsabilidade com culpa, denominada responsabilidade civil subjetiva, apesar das resistências que surgem na doutrina‖90

.

Vislumbra-se ainda a distinção entre responsabilidade civil direta e indireta, como explica Sílvio de Salvo Venosa: a responsabilidade ―pode ser direta, se diz respeito ao próprio causador do dano, ou indireta, quando se refere a terceiro, o qual, de uma forma ou de outra no ordenamento, está ligado ao ofensor‖91.

2.2 OS PRESSUPOSTOS DO ILÍCITO CIVIL

O direito positivo brasileiro assinala os pressupostos do ilícito civil no artigo 186 do Código de 2002, assim transcrito: ―Aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar

88 CAVALIERI FILHO, 2015, p. 7, 8 e 34. 89 VENOSA, 2010, p. 14.

90 TARTUCE, 2010, p. 306-307. 91 Op. cit., p. 5.

(41)

direito e causar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral, comete ato ilícito‖.

Tal dispositivo mantém-se fiel à clássica doutrina francesa e aos artigos 1.382 e 1.383 do Código Civil Napoleónico92, conservando os elementos tradicionais da reparação civil, quais sejam, no dizer de Flávio Tartuce, ―a conduta do agente (comissiva ou omissiva), a culpa em sentido amplo (englobando o dolo e a culpa stricto sensu), o nexo de causalidade e o dano causado‖93

.

Comentando o artigo 186 do Código Civil brasileiro, Sílvio de Salvo Venosa observa que ―nele estão presentes os requisitos para a configuração do dever de indenizar: ação ou omissão voluntária, relação de causalidade ou nexo causal, dano e, finalmente, culpa‖. Naturalmente, em relação à culpa, não se pode olvidar a tendência ―cada vez mais marcante de alargar seu conceito, ou de dispensá-lo como requisito para o dever de indenizar‖94

.

Sanseverino, dissecando o referido artigo 186, obtempera que são cinco os elementos ou pressupostos do ato ilícito civil: ato humano, contrariedade ao direito, culpa, dano e nexo causal95. Contudo, o ato humano e a contrariedade ao direito podem ser fundidos num só elemento, a conduta ilícita. Nesse diapasão, esclarece Sérgio Cavalieri Filho96:

Na verdade, a responsabilidade civil é um fenômeno complexo, oriundo de requisitos diversos intimamente unidos; surge e se caracteriza uma vez que seus elementos se integram. Na responsabilidade subjetiva, como veremos, serão

92 1.382. Tout fait quelconque de L'homme, qui cause à autrui un dommage, oblige celui par la faute duquel il est arrivé, à le réparer. 1.383. Chacun est responsable du dommage qu‘il a causé non-seulement par son fait, mais encore par sa négligence ou par son imprudence. Em tradução livre: 1.382. Qualquer conduta do homem, que causa dano a outrem, obriga o culpado à reparação. 1383. Cada um é responsável pelos danos que causou não só por seu ato, mas também pela sua negligência ou imprudência.

93 TARTUCE, 2010, p. 306-307. 94 VENOSA, 2010, p. 6.

95 SANSEVERINO, 2010, p. 151. 96 CAVALIERI FILHO, 2015, p. 25.

(42)

necessários, além da conduta ilícita, a culpa, o dano e o nexo causal.

O autor explica essa composição do rol de pressupostos do ilícito civil, formado por conduta ilícita, culpa, dano e nexo causal, elementos facilmente identificáveis no próprio texto do art. 186 do Código Civil de 200297:

Há primeiramente um elemento formal, que é a violação de um dever jurídico mediante conduta voluntária; um elemento subjetivo, que pode ser o dolo ou a culpa; e, ainda, um elemento causal-material, que é o dano e a respectiva relação de causalidade.

Obviamente, a inclusão da culpa como pressuposto do ilícito civil se dá apenas na visão tradicional, subjetiva, centrada na valoração da conduta e não do resultado antijurídico. Essa constatação invoca a necessidade de separar ato ilícito em sentido amplo e ato ilícito em sentido estrito: o primeiro, concernente à responsabilidade objetiva, decorre da ―mera contrariedade entre a conduta e a ordem jurídica‖, tendo por base ―as relações entre o indivíduo e o grupo (Estado, empresas, fornecedores de serviços, produtos etc.)‖ e ―sem qualquer referência ao elemento subjetivo ou psicológico‖; o segundo alude à responsabilidade com culpa, ―fulcrada no ato ilícito stricto sensu (art. 186), com aplicação nas relações interindividuais‖98

.

Portanto, o ilícito civil, conjunto de pressupostos da responsabilidade, compreende a conduta ilícita, a culpa, o dano e o nexo causal. Contudo, para a responsabilidade objetiva basta o ato ilícito em sentido amplo, que dispensa a culpa e se funda na simples ―violação de um dever jurídico preexistente por conduta voluntária‖99.

De qualquer maneira, o elemento primordial sempre será o dano. Segundo Clóvis Veríssimo do Couto e Silva, ―Sem que se estabeleça noção de dano, não se pode ter uma ideia exata da responsabilidade civil num determinado país‖100. A professora Judith Martins-Costa, ao

97 CAVALIERI FILHO, 2015, p. 35. 98 Ibidem, p. 25-27.

99 Ibidem, p. 27. 100 SILVA, 1991, p. 9.

Referências

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