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O problema da objetividade da representação nas Primeiras Objeções das Meditações Metafísicas de Descartes

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Academic year: 2021

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The problem of representation’s objectivity in First Objections in Metaphysical Meditation of Descartes

Guilherme Diniz da Silva1

Resumo: Este ensaio analisa os comentários de Caterus nas Primeiras Objeções das Meditações

Metafísicas de Descartes. O tema abordado trata da tese cartesiana dos graus de perfeição das

ideias e expõem o modo como Caterus a criticou. Com efeito, é notável a forma como assumiu completamente a tese contrária sobre a realidade das ideias. Por isso, nosso objetivo é apresentar o modo como cada pensador compreende a representação objetiva das ideias, isto é, vamos investigar brevemente a função do conceito de objetividade no interior do pensamento cartesiano, a partir das objeções de Caterus.

Palavras-chave: Conhecimento. Verdade. Realidade objetiva. Realidade formal. Causa.

Abstract: This paper analyzes Caterus’ reviews in the First Objections of Descartes’

Metaphysical Meditations. The theme deals with the Cartesian thesis of the degrees of

perfection of ideas and exhibits the way how Caterus criticizes it. In fact, it is noteworthy the way how he took over altogether the opposite thesis about the reality of ideias. Therefore, our aim is to present the way how each thinker understands the objective representation of ideas, namely, we will inquire quickly the concept of objectivity in the bottom of Descartes’ thought, as from Caterus’ objections.

Keywords: Knowledge. Truth. Objective reality. Formal reality. Cause.

***

Descartes publicou as suas Meditações Metafísicas2 juntamente com as chamadas Objeções e Respostas. Esse anexo, composto por uma série de críticas de diversos estudiosos e pelas respectivas respostas do autor, concedeu aos ensaios cartesianos um elemento marcantemente enriquecedor3. A grande obra metafísica do pai

1 Graduando em Filosofia pela Faculdade São Bento de São Paulo. Bolsista FAPESP. Orientador: Prof.

Dr. Franklin Leopoldo e Silva. E-mail: guilherme.diniz.op@hotmail.com

2 Publicada primeiramente em 1641 em latim com o título Meditationes de Prima Philosophia, esta obra

foi posteriormente traduzida para o francês em 1647 pelo Duque de Luynes com o título Méditations

Métaphysiques.

3 A riqueza das discussões das Objeções e Respostas deve-se, sobretudo, às frequentes adições que

Descartes fazia à sua filosofia quando respondia as críticas levantadas pelos seus interlocutores. Contudo, é preciso dizer que embora ele desenvolvesse novos argumentos, a correção do que havia dito era coisa rara, pois seu critério sistemático de ordenar todos os componentes de modo inviolavelmente coerente nunca foi abandonado (Cf. ARIEW, Roger. The Meditations and the Objections and Replies. In: GAUKROGER, Stephen. The blackwell guide to Descartes’ Meditations. Blackwell Publishing, 2006, p. 8).

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da filosofia moderna apresenta, nesses termos, uma estrutura tripartida: meditação, objeção e resposta. Por isso, seria possível dizer que essa obra não tem um único autor, mas vários autores, sendo Descartes o mais eminente4. Os textos que formam as

Objeções são no total seis e incluem grandes nomes da inteligência europeia da época como, por exemplo, Marin Mersenne, Thomas Hobbes, Antoine Arnauld e Pierre Gassendi. Contudo, o escopo do presente artigo versa tão somente sobre as objeções do padre holandês Caterus (Johannes de Kater).

Primeiramente, é oportuno observar os precedentes da questão discutida. Caterus, nas Primeiras Objeções5, concorda com o cogito6 e com a regra geral do conhecimento da verdade, a saber, que todas as coisas concebidas com clareza distinção são verdadeiras7. Tanto o sujeito do conhecimento quanto o modo verdadeiro de conhecer são concebidos como certos. Apesar dessa concordância inicial, ele pede a Descartes que esclareça o que é a objetividade das representações: “o que é ser objetivamente no entendimento?”8.

Ora, Caterus compreende o significado da existência do ego como uma coisa que pensa. Na sua carta a Descartes, ele declara que não pretende discordar dessa opinião9. Não obstante, questiona o modo como o filósofo francês pretendeu sustentar a objetividade das representações. Ou ainda, o modo como as ideias do cogito encerram em si a objetividade representativa. Em linhas gerais, a principal crítica do teólogo holandês refere-se à validade dos graus de realidade objetiva10. Isto é, à pretensão de estabelecer um concatenamento objetivo de ideias cujo princípio encontra-se unicamente na própria realidade do pensamento. Noutros termos, as Primeiras Objeções acusam uma contradição em conceber uma gradação de ideias cujo fundamento objetivo deriva do próprio eu pensante. Por essa razão, Caterus irá escrever na sua carta a

4 BEYSSADE, J-M. Études sur Descartes: l’histoire d’um esprit. Paris: Éditions du Seuil, 2001, p. 85. 5 AT, IX, 74. Usaremos a tradução francesa das Meditações Metafísicas da edição franco-latina: ADAM,

Charles; TANNERY, Paul. Œuvres de Descartes. 11 vols. Paris: Vrin, 1996.

6 Inicialmente ele afirma a sua adesão ao argumento de que existe um eu que pensa: “Eu penso que eu

sou; até mesmo que eu sou o próprio pensamento ou um espírito. Isso é verdade” Primeiras Objeções: AT, IX, 74 (tradução nossa).

7 Terceira Meditação: AT, IX, 27.

8 Primeiras Objeções: AT, IX, 74 (tradução nossa).

9 “Eu concordo, eu nego, eu aprovo, eu refuto; não quero me afastar da opinião desse grande homem

[Descartes]” Primeiras Objeções: AT, IX, 74 (tradução nossa).

10 “O termos ‘objetivo’, aqui, significa não o que está diante do sujeito no sentido de exterior a ele, mas o

que está na mente do sujeito e lhe é primeiramente acessível, na exata medida em que o pensamento é primeiramente acessível”. Por isso, a ideia não é uma representação de uma coisa externa ao pensamento, mas algo real que configura um conteúdo objetivo no pensamento. (cf. SILVA, Franklin L. Descartes: a metafísica da modernidade. 2. ed. São Paulo: Moderna, 2006, p. 57).

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Descartes: “dê-me a razão porque uma ideia contém mais realidade objetiva do que outra”11.

A despeito da clareza e distinção das ideias, o teólogo observa que o conhecimento verdadeiro dispensa essa teoria extravagante. Se, por um lado, a validade da regra geral é aceitável, por outro lado, a teoria da realidade objetiva das ideias não encontra tanta felicidade. Ela não poderia adequar-se ao modo como o conhecimento verdadeiro se efetua, pois “a realidade objetiva é uma pura denominação; atualmente ela não existe”12. Desse modo, as representações não seriam coisas, mas sinais formais das

coisas. Com essa afirmação, as Primeiras Objeções procuram sustentar que as representações concebidas unicamente a partir do sujeito pensante não tem nenhuma realidade atual e, portanto, são simplesmente nada13.

A inexistência atual da objetividade das ideias é explicada segundo outra concepção teórica que contempla apenas as representações em si e o próprio cogito enquanto agente representativo. A tese que Caterus procura invocar é a de que a construção do conhecimento verdadeiro supõe apenas o sujeito pensante e a essência das coisas14. Segundo essa visão, o sujeito pensante apreende conceitualmente as quididades das coisas através de um processo de abstração. Isso significa que o conceito alcançado pela abstração das coisas seria a condição de possibilidade do conhecimento verdadeiro. Esse sinal formal do conhecimento não seria uma coisa, mas apenas um meio de conhecer. Tal é o motivo pelo qual o objetor de Descartes pode afirmar: “eu tenho ideias, mas não posso ser a causa dessas ideias”15.

Visto isso, é possível compreender a posição de Descartes que defende a objetividade das representações. O tema dos graus de perfeição16 trata do

relacionamento das ideias entre si onde cada uma representa uma realidade objetiva com maior ou menor grau de ser. Isto é, cada ideia tem um grau específico de perfeição conforma o conteúdo que apresentam. Por exemplo, as ideias que representam

11 Primeiras Objeções: AT, IX, 74 (tradução nossa). 12 Primeiras Objeções: AT, IX, 74 (tradução nossa).

13 “essa palavra Nada é a mesma coisa que não ser atualmente, na verdade não é nada porque ela não é

atualmente, e assim ela vem do nada, isto é, ela não tem nenhuma causa” Primeiras Objeções: AT, IX, 75 (tradução nossa).

14 “Caterus, nas 1ª Objeções, opondo-se a Descartes, procura mostrar que apenas dois termos são

necessários para explicar o conhecimento verdadeiro: a realidade do sujeito cognoscente e a coisa mesma na sua realidade formal ou em si” (LANDIM FILHO, Raul. Evidência e verdade no sistema cartesiano. São Paulo: Loyola, 1992, p. 75).

15 Primeiras Objeções: AT, IX, 74 (tradução nossa). 16 Terceira Meditação: AT, IX, 31.

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substâncias são superiores, pois possuem maior grau de ser do que as que representam acidentes, visto que a substância tem mais perfeição do que o acidente17. Assim, a realidade da noção de substância (aquilo que subsiste por si) indica um grau maior de perfeição do que a noção de acidente (aquilo que é fortuito e relativo).

Além disso, a realidade representativa é um efeito gerado a partir de uma causa formal ou de um causa eminente18. A definição formal da causa enuncia que ela possui

tanta perfeição quanto o seu efeito; já a definição eminente esclarece que a causa possui mais perfeição do que o efeito correspondente. Enquanto que o produto da causa formal revela a mesma quantidade de ser, o da causa eminente demonstra menos quantidade ser19. Portanto, toda realidade exige uma causa, seja ela formal (tão perfeita quanto o efeito) ou eminente (mais perfeita do que o efeito). Noutros termos, o conteúdo objetivo é definido por uma realidade que contém em si tanta perfeição ou mais ainda do que a encontrada nas ideias.

É possível, por exemplo, que uma realidade muito perfeita conceda à outra realidade um grau de perfeição igual ou menor a sua própria realidade. Por exemplo, uma realidade a cuja perfeição x pode ser a causa formal de uma realidade b de perfeição também x ou pode ser a causa eminente de uma realidade c de perfeição y, sendo x maior que y. Desse modo, o conteúdo objetivo do efeito b é tão perfeito quanto a sua causa formal e o conteúdo objetivo do efeito c é menos perfeito que a sua causa eminente. Por isso, as ideias são engendradas por uma realidade igual ou superior. Isso permite dizer que as realidades objetivas têm uma realidade formal20 que é a sua causa

formal ou eminente.

Visto isso, é possível compreender que a razão da realidade das ideias deve ser a realidade do sujeito pensante. Pois, que causa poderia conceder um grau de perfeição às ideias se não fosse o próprio pensamento, uma vez que nenhuma outra existência foi

17 “a ideia que tem como conteúdo representativo uma substância é hierarquicamente superior a uma outra

ideia cujo conteúdo representativo é um acidente, na medida em que uma substância possui maior grau de

ser que um acidente: uma substância pode existir sem um ou outro de seus acidentes, mas nenhum

acidente pode existir se não estiver associado a uma substância” (cf. SILVA, op. cit., p. 56).

18 Terceira Meditação: AT, IX, 31.

19 “‘Causa formal’ designa a causa que contém tanta perfeição, ou realidade, quanto o seu efeito.

Distingue-se da causa eminente, que contém um maior grau de perfeição do que o seu efeito” (LANDIM FILHO, op. cit., 1992, p. 66).

20 A realidade formal enuncia que as coisas são por si (independentes do pensamento); já a realidade

objetiva (realidade pensada) afirma que as coisas são representadas (portanto, dependentes do pensamento). A determinação da dependência das ideias ao sujeito pensante está atrelada à modalidade formal que as constituem. As ideias inatas (realidades formais) são, por um lado, independente enquanto que as ideias representadas (realidades objetivas) são, por outro lado, dependentes (LANDIM FILHO, op. cit., p. 64).

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comprovada até o momento? Ora, se o pensamento atual é real enquanto consciência de si, então cada ideia que reside nele participa da sua realidade com maior ou menor grau de perfeição. O pensamento do sujeito é a primeira realidade comprovada por Descartes, logo toda representação objetiva participa dessa realidade primeira. Sendo o cogito o princípio fundamental de todo o conhecimento verdadeiro, não há porque negar que ele seja a causa formal ou eminente das ideias.

Contudo, Caterus ainda encontra razões para questionar a veracidade desses argumentos. O fato de que as ideias podem representar realidades com perfeições distintas não implica a proveniência subjetiva de suas realidades. Isto é, nada impede que a realidade das representações seja um efeito não do sujeito pensante, mas sim do conceito abstraído das coisas. Em última análise, a grande questão que Caterus levanta refere-se à causalidade das ideias. Por essa razão ele diz: “que causa requer uma ideia?”21.

A solução de Descartes encontra-se, como vimos, na realidade formal do pensamento. Para o autor das Meditações, as ideias participam da própria realidade do pensamento, uma vez que todas as coisas foram posta em dúvida, exceto o próprio pensamento. As ideias são modos distintos da mesma realidade formal (sujeito pensante). A princípio, não haveria como as representações surgirem a partir de uma realidade estranha ao pensamento, justamente porque não há nada verdadeiro além do próprio cogito. É, antes de tudo, a realidade formal do pensamento que define as ideias enquanto formas de pensar e enquanto conteúdos representativos22. Isto é, enquanto

formas de pensar, todas as ideias são indistintas; mas enquanto conteúdos representativos, elas são diferentes entre si. Por exemplo, a ideia x e a ideia y são, do ponto de vista formal, apenas representações indiscerníveis, pois não levam em conta os conteúdos representados, mas apenas o fato de serem ideias. Contudo, do ponto de vista do conteúdo, a ideia x e a ideia y são diferenciáveis, pois representam os objetos x e y. Para Descartes, a razão da igualdade e da diferença das ideias é sempre o sujeito pensante, porém, para Caterus, o pensamento é a causa apenas da igualdade das ideias e não da diferença.

A diferença entre os dois pensadores surge graças ao ponto de partida que cada um assumiu. Se, por um lado, Caterus interpreta que o conhecimento verdadeiro

21 Primeiras Objeções: AT, IX, 74. 22 SILVA, op. cit., p. 56.

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se segundo a adequação da representação conceitual à coisa exterior ao pensamento, por outro lado, Descartes defende que o conhecimento verdadeiro efetua-se a partir da realidade primeira do pensamento. Isto é, sendo o cogito a primeira verdade metafísica na ordem das demonstrações, é preciso que as ideias sejam definidas como realidades objetivas ou realidades formais. Por isso, cada um, partindo de pressupostos diferentes, considera a representação de um modo particular. Por isso, não haveria como as implicações considerarem igualmente as mesmas coisas se cada um assume pontos de partida distintos.

Podemos observar que no âmbito da filosofia cartesiana a precedência do sujeito pensante tem um valor considerável frente às demais demonstrações. A realidade do pensamento é, antes de tudo, a condição original de todas as representações objetivas, pois o pensamento é uma substância, ou seja, uma coisa23. Por isso, é correto dizer que a exterioridade é menos real do que a interioridade. O cogito é mais verdadeiro do que as representações porque a realidade interior do pensamento que duvida é mais perfeita do que a realidade exterior percebida sensivelmente, isto é, o cogito tem mais realidade do que as coisas que percebe pelos sentidos ou pelo corpo. Descartes, ao se perguntar se é possível que o ego contenha algum dos atributos do corpo (figura, lugar, sensação e locomoção), compreende que nenhum desses atributos é adequado ao ego.24 A avaliação de todos os atributos conformes à existência do ego mostra que apenas o pensamento é essencialmente próprio a essa realidade.

Mas é importante notar nesse contexto que o pensamento compreende tanto o entendimento, quanto a vontade, a imaginação e o sentimento inclusive25. Por isso, o cogito realiza a unidade da vontade, da imaginação, do sentimento e do entendimento. Ainda que as coisas imaginadas sejam falsas, é certo que o pensamento tem o poder de imaginar26. Do mesmo modo, ainda que as coisas sentidas pelos órgãos do corpo sejam falsas, é certo que a sensação existe. Portanto, a investigação sobre a natureza do ego define a coisa que pensa, contudo a compreensão das qualidades dessa coisa pensante indica que até mesmo a imaginação e o sentir enquanto faculdades do espírito são atributos do pensamento. Visto que é indubitável a existência do cogito como substância cujo pensamento é o atributo essencial, é seguro afirmar que o entendimento, a

23 “É primeiro como ser, e como substância, que o sujeito conhecedor se revela” (ALQUIÉ, F. A filosofia

de Descartes. Lisboa: Presença, 1993, p. 76).

24 Segunda Meditação: AT, IX, 21. 25 Segunda Meditação: AT, IX, 22. 26 Segunda Meditação: AT, IX, 22.

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imaginação, a vontade e a sensação são modos do pensamento. Pela mesma razão, o sentido primeiro da natureza do cogito não é o entendimento puro que apreende as quididades (como Caterus parece ter entendido), mas o ser que pensa. Portanto, em última análise, as ideias são modos do ser do próprio sujeito que as pensa. Nesses termos, o cogito é a causa da realidade das ideias, ou seja, a razão de ser das realidades objetivas.

Ora, qual seria a posição de fato de Caterus? Parece que o entendimento que ele faz do sujeito pensante remete à ideia de uma inteligência pura. Com efeito, as Meditações aparentemente permitem uma compreensão assim quando definem o ego como “um espírito, um entendimento ou uma razão”27. Contudo, como poderia o

teólogo holandês partir da ideia de que o sujeito é um pensamento puro que apreende as essências e, ao mesmo tempo, aceitar a participação das coisas exteriores no processo de conhecimento? Se o cogito é efetivamente a primeira verdade, então as coisas exteriores não podem concorrer para a construção do conhecimento. Assim, mesmo se o cogito fosse um pensamento puro, não seria possível negar a causalidade das ideias segundo os termos precisados por Descartes.

Descartes, por sua vez, parte da necessidade metódica da ordem28 como condição primeira para que o sujeito pensante possa alcançar o conhecimento verdadeiro. Por essa razão, a precedência do cogito manifesta que as considerações só podem ser corretamente entendidas no âmbito da realidade do pensamento. A primeira consideração do espírito quando parte em busca de uma verdade tão profunda que nem mesmo as mais extravagantes críticas do ceticismo poderiam negar29, não é outra senão a realidade do pensamento.

Um fator que corrobora com essa asserção é o princípio da unidade do espírito defendido anteriormente por Descartes30. Para refutar o mau hábito de fazer aproximações impróprias entre as ciências que são eminentemente intelectuais e as artes que exigem habilidades práticas e corporais, o filósofo assume a posição de que as ciências não seguem o mesmo procedimento que as artes, visto que são na verdade a própria sabedoria humana que considera os diversos objetos sem multiplicar-se a si

27 Segunda Meditação: AT, IX, 20.

28 GUENANCIA, Pierre. Lire Descartes. Paris: Gallimard, 2000, p. 138. 29 Discurso, Parte IV: AT, VI, 32, 18-23.

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mesma31. Desse modo, é mais fácil apreender todas as ciências inseparavelmente do que distingui-las segundo as coisas que abordam, uma vez que a “universalis Sapientia”32 é “semper una”33, isto é, a razão nunca perde a sua unidade frente aos múltiplos objetos

que considera.

De modo diametralmente oposto aos comentários das Primeiras Objeções, Descartes empreende uma inversão da relação entre sujeito cognoscente e objeto conhecido. Se para Caterus o objeto resguarda o primado do conhecimento, uma vez que a essência apreendida provém da coisa mesma, para Descartes o conhecimento é fruto do primado da razão, justamente porque é no bom senso onde recai a inteligibilidade das coisas. É, antes de tudo, a luz natural da razão que põe em marcha a unificação das ciências particulares de modo que seja possível ao espírito efetuar juízos corretos sobre todas as coisas. Por isso, a razão é não somente una como também unificante34.

Mas, alguém poderia objetar dizendo que a ideia de coisa pensante é uma quididade inteligível devido à abstração conceitual. Por causa disso, o próprio pensamento deveria adequar-se ao esquema de Caterus. Se fosse assim, o cogito estaria aberto a interpretações que tendem a considerá-lo como uma inteligência pura e não como uma coisa pensante. Ora, a verdade é que a noção de pensamento para Descartes não se confunde com esse modelo, pois seu fundamento encontra-se nos primeiros rudimentos da razão: as naturezas simples35. O pensamento é uma ideia composta de duas naturezas simples: uma comum e outra intelectual36. A primeira lhe confere a

substância, isto é, existência, enquanto que a segunda lhe fornece a propriedade do pensamento. Daí a noção de substância pensante. Visto que as naturezas simples são

31 Regra I: AT, X, 360, 7-15. 32 Regra I: AT, X, 360, 19-20. 33 Regra I: AT, X, 360, 8-9.

34 MARION, Jean-Luc. Sobre a ontologia cinzenta de Descartes. Lisboa: Instituto Piaget, [s/d], p. 43. 35 Essas naturezas simples são entendidas como os objetos primários do conhecimento. Esse conceito é

desenvolvido primeiramente na Regra XI: AT, X, 407. Elas não são as essências das coisas justapostas em categorias de ser, mas os “objetos cognoscíveis” por excelências. Contudo, a simplicidade desses objetos não provém de sua realidade intrínseca, mas da relação com o cogito: as naturezas são simples para o pensamento, pois a simplicidade não está na coisa mesma, mas na apreensão. Por causa disso, as naturezas simples são primárias no sentido epistemológico e nunca no ontológico (MARION, Jean-Luc. A metafísica cartesiana e o papel das naturezas simples. In: COTTINGHAM, John. Descartes. Aparecida: Ideias e letras, 2009, p. 144).

36 É possível distinguir três categorias de naturezas simples: as intelectuais, as materiais e as comuns que

podem ser reais como, por exemplo, a existência e a unidade ou podem ser lógicas, isto é, vínculos entre as demais naturezas (MARION, 2009, p. 145).

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compreendidas graças ao alcance da intuição intelectual, a noção de pensamento não poderia ser o resultado de uma formulação conceitual, mas de uma apreensão intuitiva.

Portanto, é possível afirmar, ainda que brevemente, que a discussão sobre a objetividade das ideias referida por Caterus nas Primeiras Objeções obriga uma releitura pelo menos da função e gênese do cogito no seio da filosofia cartesiana. A compreensão dessa noção demonstra o caráter imprescindível da realidade do pensamento para o debate da teoria das ideias. Por isso, a refutação da realidade objetiva produz como efeito o questionamento da causalidade das ideias, pois o que fica implicado nessa altercação é a proveniência das ideias, ou ainda, das realidades representadas objetividade.

Referências

ADAM, C; TANNERY, P. Œuvres de Descartes. 11 vols. Paris: Vrin, 1996. ALQUIÉ, F. A filosofia de Descartes. Lisboa: Presença, 1993.

BEYSSADE, J-M. Études sur Descartes: l’histoire d’um esprit. Paris: Éditions du Seuil, 2001.

GAUKROGER, S. The blackwell guide to Descartes’ Meditations. Blackwell Publishing, 2006.

GUENANCIA, P. Lire Descartes. Paris: Gallimard, 2000.

LANDIM FILHO, R. Evidência e verdade no sistema cartesiano. São Paulo: Loyola, 1992.

MARION, J-L. A metafísica cartesiana e o papel das naturezas simples. In: COTTINGHAM, J. Descartes. Aparecida: Ideias e Letras, 2009.

_____. Sobre a ontologia cinzenta de Descartes. Lisboa: Instituto Piaget, [s/d].

SILVA, F. L. Descartes: a metafísica da modernidade. 2. ed. São Paulo: Moderna, 2006.

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