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A crueldade humana no conto A causa secreta

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Academic year: 2021

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A crueldade humana no conto A causa secreta

Jonatas T. B.1 Ao levantar-se deu com o médico e teve um sobressalto. Então, mostrou-se enraivecido contra o animal, que lhe comera o papel; mas a cólera evidentemente era fingida.

- Castiga sem raiva, pensou o médico, pela necessidade de achar uma sensação de prazer, que só a dor alheia lhe pode dar: é o segredo deste homem. (ASSIS, 2005, p. 243)

Joaquim Maria Machado de Assis nasceu na cidade do Rio de Janeiro em 21 de junho de 1839 e faleceu em 29 de setembro de 1908, também no Rio de Janeiro. No que diz respeito à fama e prestígio do autor, dispensaremos a pompa nesta apresentação. Ao longo de sua vida, Machado de Assis nos legou uma longa lista de crônicas, contos, peças, artigos jornalísticos, poesias, novelas, romances, críticas e ensaios, classificados com unanimidade como obras-primas da literatura universal, o que não consideramos mera pompa, mas fato.

Uma das facetas do estilo machadiano é a análise do comportamento social que encobre e antagoniza a natureza humana. Podemos dizer que a leitura de Machado produz o efeito de espelho, através do qual o leitor não só participa como ouvinte, mas é posto frente às reflexões de sua própria “natureza”.

Em nossa leitura de “A causa secreta” trataremos de um dos pormenores desta “natureza” que se oculta sob as máscaras dos padrões de comportamento consolidado. Destacaremos algumas partes interessantes do conto e faremos uma breve análise sobre a crueldade, representada no conto pelo misterioso personagem chamado Fortunato, no sentido inferido por Clément Rosset.

Cruor, de onde deriva crudelis (cruel) assim como crudus (cru, não digerido, indigesto) designa a carne escorchada e ensanguentada: ou seja, a coisa mesma privada de seus ornamentos (...) no presente caso a pele, e reduzida assim à sua única realidade, tão sangrenta como indigesta. (Rosset, 2002, p. 17-18)

1 Graduando do Curso de Letras da UERJ e membro do Grupo de Estudos “O medo como prazer

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“A causa secreta”, publicado pela primeira vez em 1885 e posteriormente publicado em Várias Histórias (1896), tem como cenário o Rio de Janeiro da década de sessenta do século XIX. Passa-se no cotidiano de típicos indivíduos burgueses da época.

Na cena inicial são apresentados os personagens centrais da trama (Garcia, o médico, Fortunato, o capitalista e Maria Luísa, sua esposa com quem se casara recentemente). O leitor fica ciente de que algo grave abalara o cotidiano dos três, como descrito no trecho:

Tinham falado também de outra cousa, além daquelas três, cousa tão feia e grave, que não lhes deixou muito gosto para tratar do dia, do bairro e da casa de saúde. Toda a conversação a este respeito foi constrangida. Agora mesmo, os dedos de Maria Luísa parecem ainda trêmulos, ao passo que há no rosto de Garcia uma expressão de severidade, que lhe não é habitual. (ASSIS, 2005, p. 237)

A pouca descrição de detalhes substanciais, de espaço e objetos em cena faz com que os gestos, impressões dos personagens junto aos seus traços de personalidade deem tom à atmosfera ao longo da história, que, diga-se de passagem, flui de maneira tensa.

A narrativa, mantendo o ar de casualidade, retrocede ao ano que Garcia encontrara Fortunato pela primeira vez “à porta da Santa Casa”, na mesma época em que estudava na Escola medicina. Entretanto, é no segundo encontro, poucos dias depois quando vai assistir a uma peça, que o estudante sente algo no outro que atiça sua curiosidade.

Notemos que a peça é descrita como “um dramalhão, cosido a facadas, ouriçado de imprecações e remorsos”. Enquanto Garcia o observa, aparece a primeira pista sobre a personalidade sádica de Fortunato.

(...) mas Fortunato ouvia-a com singular interesse. Nos lances dolorosos, a atenção dele redobrava, os olhos iam avidamente de um personagem a outro, a tal ponto que o estudante suspeitou haver na peça reminiscências pessoais do vizinho. (ASSIS, p. 238)

Apesar de Garcia não perceber imediatamente, Fortunato não está ali com o objetivo de apreciar a obra apenas como arte dramática. A narrativa, o enredo, os

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personagens, os protagonista, os antagonista, ou seja, os pormenores que definem a peça não são relevantes para Fortunato. Ele está ali exclusivamente para se deleitar com a representação dramática da violência (física e psicológica), a exaustiva transgressão moral encenada no palco. De repente, o homem resolve sair no fim do drama, momento que se inicia a farsa, gênero de aspecto naturalmente cômico. Se assistisse até o fim, diluiria toda a impressão brutal que a peça expressara até então.

Passaram algumas semanas até que os dois se encontrassem pela terceira vez. Gouveia, um homem que morava no primeiro andar da casa de Garcia, havia sido apunhalado por meliantes, sendo ferido gravemente. Fortunato vira tudo enquanto passava por perto, e o salvara levando-o para casa. Fortunato ofereceu auxílio para os cuidados médicos. Depois de tratarem do ferido, Garcia se encontra a sós com Gouveia e Fortunato. O último se limita a sentar-se como um espectador, alternando entre perguntas sobre Gouveia e observar atentamente seu sofrimento. Esta cena guarda semelhanças com o encontro no teatro, em que Fortunato se apetecia com o sofrimento representado. Todavia, a ferida, a agonia e a carne exposta de Gouveia não são meras representações da peça de teatro, são reais.

Neste ponto da narrativa nos aproximamos das impressões psicológicas ainda obscuras de Garcia acerca de Fortunato.

A sensação que o estudante recebia era de repulsa ao mesmo tempo que de curiosidade; não podia negar que estava assistindo a um ato de rara dedicação, e se era desinteressado como parecia, não havia mais que aceitar o coração humano como um poço de mistérios. (ASSIS, 2005, p. 239)

Garcia gradativamente sente atração ao mesmo tempo que sente repulsa por Fortunato. Seu comportamento benevolente o confunde. Não é capaz de suspeitar de um homem que pratica tão boas ações.

Fortunato continua a visitar o convalescente até que demonstrou sinais de melhora. Sendo assim, não volta mais. Existe aí outra semelhança com a peça do início da história. Apenas permanece lá enquanto durava o sofrimento, a atmosfera lúgubre da trama, antes que fosse interrompida pela farsa.

Tempos depois, Garcia, formado em medicina, encontra Fortunato recém casado. Em pouco tempo fica íntimo dele e passa a frequentar sua casa. Não demora para que Garcia se encante com a esposa do novo amigo, que, sob sua perspectiva,

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parece antítese da personalidade fria de Fortunato: “Maria Luísa é que possuía ambos os feitiços, pessoa e modos. Era esbelta, airosa, olhos meigos e submissos; tinha vinte e cinco anos e parecia não passar de dezenove” (ASSIS, 2005, p. 240).

Os dois, durante uma conversa irreverente, decidem abrir uma casa de saúde. Fortunato encarrega-se de administrar e chefiar os enfermeiros. Sua dedicação no tratamento dos pacientes é reconhecida de forma unânime. Nesse momento da história, o prazer sentido por Fortunato é encoberto por camadas superficiais que projetam a imagem de um homem de negócios, casado, de personalidade aparentemente exemplar, que obscurecem o real motivo de dedicação filantrópica. Ao seguir as regras de comportamento e costumes, Fortunato camufla seu sadismo elementar, o que possibilita aproximar-se daqueles que sofrem, e saciar seu apetite pela desgraça alheia sem ser notado.

Via-o servir como nenhum dos fâmulos. Não recuava diante de nada, não conhecia moléstia aflitiva ou repelente, e estava sempre pronto para tudo, a qualquer hora do dia ou da noite. Toda a gente pasmava e aplaudia. Fortunato estudava, acompanhava as operações, e nenhum outro curava os cáusticos. (ASSIS, 2005, p. 241)

Garcia também nota a melancolia crescente de Maria Luísa causada pela presença fria e atitudes patológicas de seu próprio esposo. Fortunato começa a praticar estudos de anatomia em cães e gatos, rasgando-lhes e envenenando-lhes. Não se limita a observar, como fez das outras vezes, mas participa ativamente provocando a morte dos animais. Maria Luísa aflige-se ao ponto de adoecer e implora a Garcia que fale com seu marido. Preocupado com o estado de saúde da esposa do amigo, Garcia pede para que Fortunato acabe com seus “estudos” em sua casa. Fortunato atende ao pedido, mas permanece a dúvida sobre ter realmente cessado com as atrocidades. Novamente, através da dúvida, temos a sensação de que narrador partilha ou é influenciado pelas impressões de Garcia acerca de Fortunato, tendo ele a própria: “Garcia alcançou prontamente que o outro acabasse com tais estudos. Se os foi fazer em outra parte, ninguém o soube, mas pode ser que sim”. (ASSIS, 2005, p. 242)

A relação de prazer que Fortunato sente com o sofrimento alheio é obscura aos olhos de Garcia. Até então, ele não demonstra perceber com clareza a crueldade de

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Fortunato, sendo seduzido pelo mistério de seu comportamento. A aparente boa intenção do sádico homem, apreciada principalmente pelos indivíduos que se recuperavam sob seus cuidados, se opõe à frieza severa com que trata a mulher e às eviscerações desnecessárias de animais.

Mas toda a dúvida é desfeita na seguinte cena, quando Garcia observa Fortunato sem que este o soubesse. Ele capturara o rato que supostamente destruíra um papel importante no dia anterior e iniciara uma longa sessão de tortura:

Viu Fortunato sentado à mesa, que havia no centro do gabinete, e sobre a qual pusera um prato com espírito de vinho. O líquido flamejava. Entre o polegar e o índice da mão esquerda segurava um barbante, de cuja ponta pendia o rato atado pela cauda. Na direita tinha uma tesoura. (...) E com um sorriso único, reflexo de alma satisfeita, alguma coisa que traduzia a delícia íntima das sensações supremas, Fortunato cortou a terceira pata ao rato, e fez pela terceira vez o mesmo movimento até a chama. O miserável estorcia-se, guinchando, ensangüentado, chamuscado, e não acabava de morrer. (...) Faltava cortar a última pata; Fortunato cortou-a muito devagar, acompanhando a tesoura com os olhos; a pata caiu, e ele ficou olhando para o rato meio cadáver. Ao descê-lo pela quarta vez, até a chama, deu ainda mais rapidez ao gesto, para salvar, se pudesse, alguns farrapos de vida. (ASSIS, p. 242, 243)

Segundo a concepção de Stephen King em seu livro Danse Macabre (1981), a repulsa é uma sensação causada por algo repugnante que é relacionado com cenas fisicamente perturbadoras. Esta é uma definição apropriada para a repulsa explícita na cena em que Fortunato mutila vagarosamente sua vítima, com o pretexto de vingança. E é diante da agressão lenta e perturbadora que é revelado a Garcia e ao leitor as verdadeiras motivações sádicas que o aproximavam dos pacientes e vítimas.

É interessante notar que, no conto, a crueldade não é posta em evidência como mera forma de transgredir conceitos morais e protesto, mas como fonte de prazer do sádico.

Garcia, por sua vez, representa a curiosidade ambígua do homem, que o impele a desvendar as regiões mais escuras de sua natureza, causando-lhe asco, horror ou até encanto, o que nos leva a questões, de certa maneira, éticas como: por que desejamos

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ouvir (ler, assistir) histórias de terror, experimentar sensações através de representações de coisas desagradáveis e ruins? Quando podemos afirmar que é o somente pelo prazer do processo catártico ou pelo mais profundo sadismo?

Referências:

ASSIS, Machado. A casa secreta. In: COSTA, Flavio M. da. Os melhores contos de horror e morte. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2005, p. 238-245.

ROSSET, Clément. O princípio da Crueldade. Prefácio e tradução de José Thoamz Brum. Rio de Janeiro: Rocco, 1989.

KING, Stephen. Dança macabra; o fenômeno do horror no cinema, na literatura e na televisão dissecado pelo mestre do gênero. Tradução de Louisa Ibañez. Rio de Janeiro: Objetiva, 2007.

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