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II Encontro Escravidão e Liberdade no Brasil Meridional

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Academic year: 2021

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II Encontro “Escravidão e Liberdade no Brasil Meridional”

O Fundo de Emancipação de Escravos: funcionamento e resultados no Termo de Lages, Santa Catarina.

Álvaro de Souza Gomes Neto1

RESUMO

Este artigo provém de um amplo projeto, envolvendo também outros pesquisadores, sobre a escravidão no Termo de Lages, região serrana de Santa Catarina, coordenado pelo autor e desenvolvido junto ao Curso de História das Faculdades Integradas Univest, de Lages.

Pretende formular algumas considerações sobre o funcionamento do Fundo de Emancipação de Escravos no Termo de Lages, a partir de um olhar sobre a Lei do Ventre Livre. Criado em 1871, o Fundo passou a funcionar efetivamente em Lages somente em 1875, quando recebeu a primeira cota disponibilizada para a compra de escravos na região serrana. O modo como agia o Fundo e sua conexão com o Governo Provincial torna-se importante no entendimento do processo de libertação dos cativos entre 1871 (Lei do Ventre Livre) e 1888 (Abolição da Escravatura).

Embora trabalhando com registros escassos, pudemos obter algumas informações valiosas sobre os mecanismos de libertação de cativos em Lages, a partir da ação do fundo de emancipação. As conclusões a que chegamos com a pesquisa nos levaram a perceber ratificações a respeito da manipulação de fundos públicos tanto no governo provincial quanto no municipal, o que corrobora para a ineficácia dos resultados obtidos por esses fundos de emancipação.

Somado a isso, foi-nos possível contribuir com os estudos que alguns historiadores estão realizando sobre a escravidão na região serrana catarinense, área muito pouco

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explorada pela pesquisa. As lacunas que estão sendo fechadas a partir dessas investigações, ajudam a diminuir as dificuldades enfrentadas ao pensarmos a escravidão longe de Desterro, capital da Província na época.

Pelo artigo 3º da Lei Rio Branco de 1871, ficava estipulado que seriam libertados anualmente, em cada província do Império, certa quantidade de escravos, correspondente à cota disponível no Fundo de Emancipação do respectivo município. Além disso, previa a Lei a obrigatoriedade de matrícula de todos os escravos, ação que permitiria aos governos provinciais e ao Central, saber a quantidade de escravos que compunham o contingente brasileiro, fazer cálculos monetários relativos às quantidades de dinheiro que deveriam ser despendidas na compra desses cativos, através do Fundo, e pressionar os proprietários para que entregassem seus escravos na medida em que as cotas de Emancipação fossem liberadas aos governos provinciais.

De outra parte, a Lei de 1871, em seu artigo 4º, estipulava o direito do escravo constituir um pecúlio, que poderia ser acumulado por diversos meios, tais como por doações, pelo trabalho dos cativos, que poderia gerar uma certa quantia à parte do dinheiro que deveria entregar a seu senhor, com o consentimento deste, por heranças ou qualquer outra ação legal. Chalhoub (1999, p.108) afirma que “as economias dos escravos, assim como a alforria mediante indenização de preço, eram práticas cotidianas relativamente comuns, porém não foram objetos de legislação específica antes de 1871”. Articulava-se assim, pela Lei, uma ação já usual, que possibilitava desde antes da Ventre Livre, a possibilidade do escravo libertar-se mediante pagamento feito por ele mesmo ou por terceiros.

Essa parece ser uma das poucas vantagens que a Lei de 28 de setembro de 1871 proporcionou aos cativos, ou seja, legalizou uma prática já vigente, o que facilitou a reivindicação por parte do escravo, pelo menos em tese.

Chalhoub (1999) corrobora nesse sentido quando diz que a manumissão forçada, agora expressa em lei, a partir do momento em que o escravo tivesse a soma suficiente para

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indenizar o senhor, abria uma porta a favor dos cativos, fazendo a diferença pelo amparo legal que a decisão do Governo Imperial impunha. Ressalte-se que, conforme o parágrafo 1º desse artigo, em caso de morte do escravo, a metade do pecúlio por ele formado, passava ao cônjuge sobrevivente, se houvesse, e a outra metade seria transmitida aos seus herdeiros, na forma da lei civil. Na falta de herdeiros, o pecúlio seria adjudicado ao Fundo de Emancipação, criado por esta mesma Lei.

Os senhores, por sua vez, não poderiam negar-se a conceder a liberdade ao cativo que possuísse o dinheiro para sua própria compra, já que tal direito ficava estabelecido através deste mesmo artigo 4º, parágrafo 2º da Lei Rio Branco. Nesse mesmo parágrafo vemos que o escravo que pertencesse a mais de um senhor, e fosse libertado por um deles, teria o direito à alforria, indenizando os outros senhores, da parte do valor que lhes pertencesse. Essa indenização poderia ser paga em dinheiro ou em serviços, por prazo não superior a sete anos. Essas decisões, encartadas na Lei de 1871, implicavam efeitos colaterais muitas vezes graves, que pediam novos ajustes, em relação aos trâmites rumo à libertação escrava.

Assim, pelo parágrafo 7º, do artigo 4º, em qualquer caso de alienação ou transmissão de cativos, ficava proibida, sob pena de anulação, a separação de cônjuges e filhos menores de doze anos do pai ou da mãe. Isso levou ao 8º artigo, que rezava que se a separação de bens entre herdeiros ou sócios não comportasse o mantenimento de uma família inteira de escravos, e nenhum dos senhores quisesse mantê-la sob seu domínio, mediante a respectiva indenização da cota que lhe coubesse, a família de cativos deveria ser vendida toda, e seu montante rateado proporcionalmente entre os respectivos senhores. Por outro lado se falhassem as negociações de alforria com os senhores, aqueles poderiam apresentar o pecúlio em juízo, e aguardar a decisão da justiça sobre sua liberdade (Chalhoub, 1999).

No que tratou do funcionamento do Fundo de Emancipação, este foi sancionado pelo Decreto 5.135, capítulo II, de 13 de novembro de 1872 e previa que a alocação dos recursos, que daria direito à emancipação do escravo, seguisse a seguinte ordem: seriam libertados, em primeiro lugar, os escravos que participassem de relações familiares e depois o restante.

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Na libertação por famílias ficava acordado a classificação que segue: primeiro os cônjuges que fossem escravos de diferentes proprietários; segundo os cônjuges que tivessem filhos livres, libertados pela Lei Rio Branco de 1871 e menores de oito anos; terceiro os cônjuges que possuíssem filhos menores de vinte e um anos; quarto os cônjuges com filhos menores escravos; quinto as mães com filhos menores escravos; sexto os cônjuges sem filhos menores.

Para o restante das situações dos escravos, ordenava-se que fossem libertados a mãe ou o pai com filhos livres, depois os cativos de doze a cinqüenta anos de idade, iniciando pelos mais jovens do século feminino, e pelos mais velhos do sexo masculino.

No termo de Lages, objeto de nossa pesquisa, a documentação encontrada no Museu Histórico Thiago de Castro mostra muitas lacunas, em relação à Lista de Classificação dos escravos. O maior número de matrícula encontrado foi 1.848, de um escravo registrado no ano de 1887. Não foi possível, com base apenas nos documentos até agora pesquisados em Lages, saber a quantidade de escravos matriculados e colocados à emancipação, em função de não haver sido encontrada uma relação de classificação única, mas somente listas classificatórias em nome de proprietários registrados individualmente. É provável que esta lista esteja nos arquivos da província, em Florianópolis.

Assim, em virtude da não existência de uma lista de classificação geral, mas apenas de umas poucas listas de escravos, em nome de senhores relacionados de forma individual, as poucas informações foram tomadas como exemplos, para que possamos, embora de maneira não aprofundada, ter uma idéia de como eram relacionados os cativos no Termo de Lages, nessa época.

De forma geral, nas relações individuais de escravos, de cada senhor, eram arrolados dados discriminatórios sobre o escravo declarado: nome, residência, naturalidade, idade, estado civil, cor, ofício, número de ordem na relação, lugar em que foi matriculado, data da matrícula, profissão, filiação, valor dado conforme a tabela, observações pertinentes. Nem todas as listas individuais de escravos, pertencentes a senhores, contemplavam todos os itens mencionados.

Em relação à tabela citada, deduzimos que provavelmente deveria haver uma referência de preços de escravos, conforme critérios adotados (ainda a ser verificado). Essas

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listas individuais de proprietários, em que vinham arrolados seus escravos, apresentavam dois números de classificação: o número de ordem na matrícula, que o senhor deveria ter para cada escravo, após proceder seu registro de matrícula obrigatória, e o número de ordem da relação dos cativos possuídos pelo respectivo senhor.

Assim, para 1872, por exemplo, o maior número de ordem de matrícula encontrado nas listas foi 1.053, em documento de 16 de julho desse ano; no entanto, por não possuirmos uma listagem total dos matriculados, torna-se impossível saber quantos escravos existiam no município de Lages em cada ano entre 1871 e 1888. Apenas em registro de 1875, tratado mais adiante, aparece indicado a totalidade de escravos, em função da distribuição das cotas do Fundo de Emancipação.

A questão a que nos propomos analisar neste artigo trata mais do processo de articulação do Fundo de Emancipação de Lages, da forma como funcionava a libertação dos escravos por este Fundo, a partir da sua manipulação pelas várias pessoas nomeadas para tal fim, do que da forma técnica com que o Fundo era posto em funcionamento, embora, para entendermos a ação das pessoas, tenhamos que compreender também como funcionava tecnicamente o Fundo. Em função dos dados encontrados no Museu Histórico Thiago de Castro serem escassos no que tange a informações que permitam ter uma noção mais exata do funcionamento do Fundo, preocupamo-nos em tentar perceber a participação das pessoas que eram responsáveis por tocar adiante as obrigatoriedades de libertação, exigidas pela Lei 2.040 de 1871.

Sabemos que o controle do capital que girava em torno do Fundo ocasionava, não raras vezes, problemas de toda ordem, indo desde a formação do montante até a sua utilização-fim, que era justamente a compra da liberdade do cativo relacionado pela Junta Classificadora. Assim, interessa-nos perceber, mesmo que opacamente, de que forma se davam as relações intergovernamentais, desde os contatos com o Governo Provincial às ações individuais dos membros encarregados do Fundo localizado em Lages.

Embora sem muitos documentos, podemos perceber que a articulação do Fundo, envolvendo autoridades provinciais e locais, era complexa, pondo em evidência uma prática que nem sempre tinha como resultante a simples execução de ordens hierarquicamente mais elevadas. Assim, nem sempre as coisas funcionavam de forma clara

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e transparente, seguindo a corrente hierárquica constituída respectivamente pelos governos Imperial, Provincial e Regional, como era de se esperar. E nem agia com toda a probidade que a manipulação de fundos públicos deveria exigir.

As relações entre as autoridades Imperial, Provincial e Local

Ao Fundo de cada município caberia certa quantia em dinheiro (cota), que estaria disponibilizada, para a compra, pelo Estado, de um número certo de escravos, relacionados na lista de matrícula existente em cada município. Esta lista deveria conter, obrigatoriamente, o registro de todos os escravos do respectivo município, sendo obrigatório, aos senhores, matricular todos os seus cativos, sob pena de sofrerem sanções, em forma de multas em dinheiro, cujo valor era de 10.000 réis. Essa informação é-nos confirmada por uma Circular, expedida pelo governo provincial ao Juiz Municipal do Termo de Lages, em 29 de janeiro de 1872. 2

O montante a ser distribuído aos municípios, que corresponderia ao Fundo de Emancipação de cada um, tinha as mais diversas procedências. As informações foram recolhidas através do exame de documentos oficiais, que revelaram as seguintes fontes: a maior parte do dinheiro vinha do Diretório do Ministério da Fazenda, somados ao imposto provincial de meia siza (pago em transações envolvendo escravos).

No ofício de 25 de setembro de 1875, do governo provincial ao Juiz de Órfãos de Lages, essas duas fontes formavam a totalidade do montante distribuído para o município lageano, que foi de 3:097$499 (três contos, noventa e sete mil, quatrocentos e noventa e nove réis). No entanto, descobrimos que outras fontes também poderiam fornecer recursos aos Fundos, tais como a Assembléia Provincial e as Câmaras Municipais, como também quantias provenientes de doações ou legados instituídos para tal fim. 3 Nesse ano, único em que foi possível recolher dados de informes do montante e do número de escravos do município de Lages, apenas contribuíram para o Fundo o Ministério da Fazenda e o

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MUSEU HISTÓRICO THIAGO DE CASTRO. Pasta Nº. 115. Escravatura – Correspondências: Ofícios-Circulares. Correspondência Oficial – recebida pela Superintendência Municipal de Lages de 25 de junho de 1897 a 02 de maio de 1901. Lages, 1872.

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MUSEU HISTÓRICO THIAGO DE CASTRO. Pasta Nº 115. Escravatura – Correspondência: Ofícios – Circulares. Cópia – N.1 – 1ª Secção – Diretoria Central, Rio de Janeiro, Ministério dos Negócios da Agricultura, Comércio e Obras Públicas. 14 de janeiro de 1875.

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imposto municipal de meia siza. Provavelmente, os recursos provindos de outras fontes de arrecadação foram, ao longo do período, escassos ou nulos.

Para que a ação de libertação dos escravos fosse realizada através do Fundo de Emancipação, deveria ser constituída uma Junta Classificadora, que funcionaria localmente, e daria conta do controle dos cativos que seriam libertados. A composição dessa Junta variava, podendo ser encontradas autoridades civis e militares. Em documento de 1886, na Ata de Reunião, vemos a Junta formada pelo Presidente da Comarca de Lages, pelo Promotor Público e pelo Coletor das Rendas Gerais4, sendo, portanto de três pessoas. Já, em um registro de 1881, a composição da Junta Classificadora era de duas pessoas: o presidente da Câmara Municipal e o Coletor das Rendas Gerais. De maneira geral, pelos documentos encontrados, o número de componentes era de duas pessoas, sendo na maior parte das vezes, formada pelo Promotor Público e pelo Coletor Estadual.

A convocação dos membros da Junta Classificadora era obrigatória, ficando os membros desta, pelas faltas de comparecimento sem motivos justificados, incursos na multa de dez a cinqüenta mil réis cada um, “a qual se fará effectiva, como determinam a Lei e varios Avisos do Ministério da Agricultura”.5 Os avisos de convocação da Junta de Classificação eram afixados nos “lugares mais públicos”.

Quando da reunião da Junta de Classificação, cuja data poderia ser marcada tanto pelo Presidente da Província de Santa Catarina, quanto pelos seus membros, de comum acordo, era elaborada uma relação de nomes de escravos, escolhidos para serem contemplados com a alforria. A relação era feita a partir do livro de classificação, que estava em poder do Juiz de Órfãos, em cujas anotações deveriam constar quais os escravos que foram anteriormente alforriados pelo Fundo, averbados pela própria Junta posteriormente. A lista dos alforriados era depois remetida ao Juiz de Órfãos, que se encarregava de sancionar a libertação, após conferidos os valores correspondentes, de acordo com o montante disponível no Fundo de Emancipação.

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MUSEU HISTÓRICO THIAGO DE CASTRO. Pasta Nº. 105. Escravatura: Junta Classificadora. Lages, 1886.

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MUSEU HISTÓRICO THIAGO DE CASTRO. Pasta Nº. 101. Escravatura – Edital. Lages, 8 de junho de 1886.

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Conforme a Circular expedida pelo Ministério dos Negócios de Agricultura, Comércio e Obras Públicas, em 6 de abril de 1875, ao Presidente da Província de Santa Catarina, Sr. José Fernandes da Costa Pereira Júnior, ficava estipulado que o governo provincial distribuísse as cotas do Fundo de Emancipação pelas diversas províncias, na proporção da respectiva população escrava. Ordenava o Ministério que fosse verificado, até o dia 31 de dezembro daquele mesmo ano, o valor de tantos escravos quantos pudessem ser libertados pela cota destinada a Santa Catarina.

Ficavam habilitados dois juizes de órfãos para sancionar a libertação dos respectivos escravos, entregando-lhes as cartas de liberdade, conforme o Decreto 5.135 de 13 de

novembro de 1872.6 Era a primeira cota recebida pela Província de Santa Catarina,

direcionada aos Fundos de Emancipação espalhados pelos diversos municípios.

Através do Ato de 21 de setembro de 1875, o já então Presidente da Província de Santa Catarina, Sr. João Capistrano Bandeira de Mello Filho, faz a distribuição das respectivas parcelas do Fundo aos municípios, cujo total do montante era de 25:974$991 réis (vinte e cinco contos, novecentos e setenta e quatro mil, novecentos e noventa e um réis), cabendo ao Termo de Lages, a quantia de 3:097$499 (três contos, noventa e sete mil, quatrocentos e noventa e nove réis).7 Pelo registro, encontrado no jornal “O Conservador”, Lages possuía na época 1.658 escravos, ocupando o segundo lugar em número de cativos, entre os municípios arrolados, conforme o gráfico 1, abaixo (gráfico 1):

Nº/Escravos Ano de 1875 Províncias

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MUSEU HISTÓRICO THIAGO DE CASTRO. Pasta Nº 115. Escravatura: Edital. Doc. Nº. 1652. Cópia – Nº 10 – Circular – 1ª Seção – Diretoria Central – Rio de Janeiro – 5 de abril de 1875.

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BIBLIOTECA PÚBLICA DO ESTADO DE SANTA CATARINA. Jornal “O Conservador”. Nº. 269. Pg. 02. Coluna 1. 25 de setembro de 1875.

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0 500 1000 1500 2000 2500 3000 3500 4000 Laguna Lages S.Fco.Sul Capital Tijucas Itajaí S.José S.Miguel Joinville Tubarão Gráfico-1

Em 1875, havia em Santa Catarina 9 municípios, e a capital, Desterro. Dentre eles, Laguna ocupava o primeiro lugar em número de escravos, com 3.537, seguido de Lages, que possuía 1.658, São Francisco do Sul (1.513), Desterro (1.418) e Tijucas (1.082). Das dez localidades, apenas quatro tinham mais de mil escravos, com Itajaí atingindo 831, São José 235, São Miguel 165, Joinville 67 e Tubarão com apenas 9. Ressalte-se que Lages possuía mais escravos do que a própria capital, Desterro, com uma diferença pró Lages de exatos 240 cativos. Um número significativo, levando-se em consideração a proporção de escravos em toda a província catarinense, o que eleva a importância da região lageana no trato escravista nesse período. No entanto, vemos claramente que o governo provincial não respeitou a proporcionalidade exigida para a distribuição das cotas, contemplando municípios com pouquíssimos escravos, com montantes equivalentes àqueles com maior número.

O quadro 1 abaixo nos mostra que os critérios adotados pela administração provincial foram outros, diferentes daqueles ordenados pelo governo central. Dos dez, cinco municípios receberam a mesma quantia, embora não tivessem o mesmo número de escravos, e a proporcionalidade entre eles fosse bastante variável. As seis localidades

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restantes, receberam apenas 1 conto de réis a menos do que as anteriores, porém apresentando uma quantidade bem menor de cativos, chegando tubarão a ter um número irrisório, apenas 9. LAGUNA 3:097$500 LAGES 3:097$499 S.FCO.SUL 3:097$499 CAPITAL 3:097$499 TIJUCAS 3:097$499 ITAJAÍ 2:097$499 SÃO JOSÉ 2:097$499 SÃO MIGUEL 2:097$499 JOINVILLE 2:097$499 TUBARÃO 2:097$499 Províncias Cotas 21 de setembro de 18758

O que podemos deduzir a respeito dessa distribuição desparelha do montante de mais de 25 contos de réis, para o ano de 1875, acaba ficando na simples conjectura. Como explicar que um município como Tubarão, com apenas 9 escravos, receba a mesma quantia de Itajaí, que possuía 831 cativos? Laguna, localidade com maior número de escravos recebeu o mesmo que Tijucas, cuja diferença a menos no número de cativos era de 2.455 indivíduos. Uma forte tendência quando procuramos uma resposta certamente virá da influência e do jogo político existente nos intestinos do governo provincial, em que o poder local acaba decidindo a seu favor, em detrimento do cumprimento de ordens expressas advindas de decretos imperiais.

A título de ilustração, poderemos pegar Tubarão, com seus mais de dois contos de réis e dividirmos pelo número de cativos, 9, o que equivaleria a 233 mil réis o valor de cada cativo, contrapondo-se a Laguna, que teria pouco mais de 87 mil réis atribuído a cada escravo. A disparidade é tão grande, que não existe uma explicação racional para tal

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BIBLIOTECA PÚBLICA DO ESTADO DE SANTA CATARINA. Jornal “O Conservador”. Nº.269. Pg..02. Coluna 01. 21 de setembro de 1875.

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diferença, a não ser soluções a partir de conchavos políticos e influências individuais no interior do governo da província.

Não encontramos a relação de classificação dos escravos que seriam alforriados pela cota de 1875. Sem esses registros, fica no momento impossível saber se houve realmente a libertação de cativos, logo após o montante estar disponibilizado. No entanto, encontramos, para 1877, alguns indícios.

Os dados achados levam-nos a duas observações que parecem fundamentais: a primeira indica que somente 1 ano e meio depois foi que a Junta Classificadora agiu em função da libertação, elaborando uma lista de escravos, em número de nove, que pretensamente deveriam ser alforriados; a segunda indica possível manipulação do dinheiro público, a partir da liberdade de apenas dois cativos, que não temos certeza pertencessem à lista divulgada pela Junta. A má distribuição dos recursos para o Fundo, referida anteriormente, já corrobora para que captemos desvios na ação dessas cotas. Outro indício de corrupção é que o montante referido tem o mesmo valor de 3:097$499 do de 1875., levando-nos a pensar que era o mesmo dinheiro que ainda estava disponível no Fundo.

Não foi possível perceber que critérios eram adotados pelos membros da Junta Classificadora, na escolha dos chamados “preferenciais”, conforme eram chamados os cativos eleitos para alforria, como consta nos documentos expedidos pela Junta de 1877. Apesar de termos citado anteriormente as normas a serem respeitadas para a libertação dos cativos, advindas da Lei Rio Branco, percebemos que deveriam ser mais explícitas as decisões da Junta relatadas na Ata (o que facilitaria nossa análise), embora esse registro venha acompanhado da respectiva relação, que tomaremos como exemplo.

Assim, em 1877, foram escolhidos 9 escravos para serem libertados pelos recursos do Fundo de Lages. Todos os cativos eram casados, única condição comum entre eles; 7 eram do sexo masculino, com idades variando entre 24 e 50 anos; as duas mulheres libertadas, Josepha e Benedita, tinham, respectivamente, 35 e 60 anos de idade. Portanto, pelas informações, foram contemplados nesse referencial que tomamos, escravos participantes de relações familiares (todos), cônjuges de diferentes senhores, homens a partir dos mais velhos (idades decrescentes: 50, 40, 35, 33, 30, 28, 24), e mulheres a partir das mais jovens (idades crescentes: 35, 60).

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Como não temos a relação total dos escravos classificados na relação do Fundo de Emancipação, não podemos saber se os critérios adotados foram aqueles impostos pela Lei de 1871, embora aceitemos que a Junta tenha procurado seguir as ordens a este respeito.

Em documento datado de 7 de julho de 1877, encontramos indícios do que poderemos pensar ser um desvio de verbas ou superfaturamento (termos muito em voga nos dias de hoje). Examinamos um ofício enviado pelo Governo Provincial ao Juiz de Órfãos do Termo de Lages, confirmando as ordens relativas ao pagamento de dois escravos, que haviam sido libertados pela cota do fundo de emancipação distribuída ao município lageano. Nesse documento, além da comunicação da ordem de pagamento de apenas dois escravos, libertados pelo Fundo, o representante do governo provincial expressa seu parecer sobre o excessivo valor desses cativos, que era da ordem de 3:200$000 (três contos e duzentos mil réis). Contesta que o coletor do município deveria ter impugnado, na forma da lei, e que não tivesse sido aceita a proposta dos senhores dos mesmos escravos, que estava acima da cota distribuída ao município lageano, que era de 3:097$499 réis.9

As declarações feitas pelo representante do governo provincial, ao Juiz de Órfãos do Termo de Lages, foram além do absurdo, revelando, sem sombra de dúvida que houve desvio de verba ou mesmo um superfaturamento, no pagamento aos senhores de mais de três contos de réis, por apenas dois escravos.

Além disso, é de perguntarmos por que o governo mandou pagar tal quantia, acima daquela disponibilizada pelo Fundo, se não concordava com o preço sancionado pelo Juiz de Órfãos? De outra parte, este dinheiro deveria ter libertado uma quantidade muito grande de cativos. Levando-se em conta uma média de 150.000 réis por escravo na época, a quantia disponibilizava a libertação de cerca de vinte indivíduos, e não apenas dois. O que pensar a respeito? Talvez aí esteja um dos fatores porque os Fundos de Emancipação de escravos, espalhados pelo Império, acabaram não dando os resultados esperados. A corrupção, o jogo de poder entre os municípios, os conchavos coronelísticos existentes em todo o território, provavelmente entravaram a manutenção, e impediram uma maior viabilidade na libertação da escravaria.

De outra parte, em ofício de 11 de janeiro do mesmo ano de 1877, o Secretário do Ministério da Agricultura, Comércio e Obras Públicas, comunicou ao então presidente da

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MUSEU HISTÓRICO THIAGO DE CASTRO. Pasta Nº. 115. Escravatura-Correspondência:Ofícios-Circulares. Lages, 7 de fevereiro de 1876.

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província de Santa Catarina, Sr. Thomas José Coelho de Almeida, que nada impedia o Coletor das Vendas de proceder ao arbitramento de escravos, que haviam sido classificados anteriormente (essa informação leva a crer que já havia uma lista elaborada entre 1875 e 1877, que não conseguimos encontrar).

Afirmava que o valor podia variar e não seria justo que fosse mantida a avaliação anterior, se esta não correspondesse mais ao valor estipulado antes. No entanto, seria conveniente que o Coletor usasse este recurso, quando “exigências menos razoáveis dos senhores não permittam accordo acerca do preço”.10

Mandava o Secretário, que o presidente provincial comunicasse estas decisões ao Juiz de Órfãos e ao Coletor das Rendas Gerais, para que tomassem as devidas providências, quando da distribuição de uma nova cota ao Fundo. Em relação ao possível ato de corrupção antes mencionado, podemos perceber que o Coletor das Rendas Públicas tinha pleno direito de intervir e arbitrar em relação a valores a serem pagos por escravos, pela cota do Fundo de Emancipação. Dessa forma, deduzimos que ou o Coletor não participou da negociação, ou de alguma maneira foi conivente com a majoração dos valores pagos aos senhores pelos respectivos dois escravos libertados.

No entanto, o Governo Imperial, antes mesmo da liberação pelos governos provinciais das cotas dos Fundos, em 1875, preocupava-se com a manutenção das decisões expressas pela Lei de 1871. Um ofício circular, do Ministério da Agricultura, datado de 14 de janeiro de 1875, solicitava, aos governos das províncias, informes precisos do que estava sendo feito para agilizar a manumissão dos escravos.

Assim, perguntava se em Santa Catarina, existiam as associações criadas pela Lei Rio Branco, que resultados estas tinham obtido até aquele momento, quais os meios de que dispunham, os serviços que tinham prestado e as medidas que fossem convenientes serem adotadas, para o seu desenvolvimento.11 Vemos que, na realidade, a criação das associações que dariam amparo aos filhos de mães escravas não foram frutos do Governo Imperial diretamente, mas ficaram a cargo dos governos provinciais, o que veio, acreditamos, de encontro a uma maior viabilidade dessa ação.

10 .MUSEU HISTÓRICO THIAGO DE CASTRO. Pasta Nº 115. Escravtura- Correspondência:

Ofícios-Circulares. Lages, 11 de janeiro de 1877.

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MUSEU HISTÓRICO THIAGO DE CASTRO. Pasta Nº 115. Escravatura – Correspondência: Ofícios – Circulares. Lages, 14 de janeiro de 1875.

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Em relação aos Fundos de Emancipação, o Ministério queria saber qual a cota que a Assembléia Provincial e as Câmaras Municipais tinham contribuído; se todos os municípios tinham organizado Juntas classificadoras dos escravos que deveriam ser libertados; se as respectivas juntas trabalhavam regularmente, e quais os motivos por que teriam deixado de se organizar em algumas localidades; além disso, solicitavam saber o número de escravos classificados e o processo observado, conforme o Regulamento de 13 de novembro de 1872; qual a importância disponíbilizada pelo Fundo de Emancipação, consignando as quantias provenientes de doações ou legados e qual o número de escravos alforriados pela liberdade particular, desde 1871 até aquele momento. Somando-se a essas informações, solicitava ainda saber se os encarregados da matrícula especial, que eram os párocos e outras autoridades consignadas, tinham seguido à risca suas obrigações, relativo à transferências e falecimentos dos escravos, e o assentamento de batismo e óbito dos filhos livres de mulheres escravas.

Parece que, de maneira geral, o Governo Central procurava manter-se informado, o mais detalhadamente possível, do que estava ocorrendo em relação à população escrava do país. Para isso, naturalmente, deveria contar com a boa vontade e a honestidade dos governantes provinciais e locais, o que dificultava muito o recebimento desses informes necessários.

Não sabemos, em contrapartida, se os governos provinciais devolviam, em forma de relatórios ou mesmo de simples respostas, as solicitações, e nem se estas continham os devidos esclarecimentos, para um controle mais claro do que estava acontecendo.

Acreditamos, baseados nesses poucos indícios, que a realidade era escamoteada pelos governantes regionais, que estes não cumpriam minimamente as ordens de uma distribuição proporcional dos recursos alocados para a libertação dos escravos, pelos fundos de emancipação, e que o Governo Imperial não conseguiu ter uma visão clara dessa realidade da escravidão no país, nesse final do século XIX.

Considerações finais

Pelo que pudemos perceber nesse breve trabalho, a Lei do Ventre Livre não teve a eficácia que o Governo Imperial esperava que tivesse. Funcionando mais como um

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instrumento de entrave do processo de abolição, essa Lei apenas diminuiu a velocidade das manumissões, embora tenha, positivamente, contribuído para a legalização das alforrias por pecúlios de escravos. As associações, criadas pela Lei 2.040, não tiveram êxito, já que dependiam de ajudas externas, não apenas do Governo Central, mas de outros recursos e, principalmente, interesses das camadas dominantes, em investir na liberdade dos filhos menores de escravas, o que não ocorreu.

De outra parte, não sabemos também até que ponto interessava-se o Império em informar-se sobre o funcionamento do processo de libertação, pós-1871, e o que faria exatamente com as informações que pedia aos municípios, contudo, sem investigar ideologias, acreditamos que foi impossível uma percepção clara do funcionamento, por parte do governo Imperial, em específico, dos fundos de emancipação, e que, na verdade, o Governo Central trabalhou com projeções equivocadas, não colhendo resultados eficazes.

Esses resultados falhos, que acabaram tornando a criação dos fundos de emancipação mecanismos quase nulos em relação a um processo efetivo de alforria do contingente de escravos, existente em cada um dos municípios brasileiros, se deram em parte pela incapacidade de o Império em prever ações futuras, em parte por sonegação e/ou manipulação de informações, omissões de todo o tipo, favorecimentos, corrupção e outros desvios na manutenção desses fundos, em parte também pelo próprio desinteresse do Estado e pela ineficiência de seu aparelho fiscal e burocrático.

Os resultados foram irrisórios, servindo apenas para o enriquecimento dos cofres dos municípios e, certamente, de alguns de seus governantes, já que sabemos que, mais do que hoje, as camadas dominantes desse período imperial eram formadas por grupos locais, conchavados em interesses particularistas, impermeáveis às sanções da Lei, o que dificultava ainda mais a libertação somente pela ação dos senhores de escravos.

Foi preciso que a conjuntura econômica internacional mudasse de maneira irreversível, pressionando velhas aristocracias conservadoras, como a brasileira; foi preciso a ação dos próprios cativos, abrindo espaços, criando sociabilidades entre si, exercendo resistências, algumas vezes mudas outras escancaradas, para que o sistema escravista ruísse definitivamente, em 1888.

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Bibliografia

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Museu Histórico Thiago de Castro. Pastas: 101 – Edital (convocação da Junta Classificatória de escravos); 105 - Escravatura – Ata de Reunião da Junta Classificadora, 1861; 115 - Escravatura: Escravatura, Relação de escravos para o Fundo de Emancipação, Documentos sobre a distribuição de cotas para o Fundo de Escravos, 1875.

Referências

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