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ROMPENDO O SILÊNCIO: O cotidiano do trabalho feminino nos garimpos do Alto Jequitinhonha

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O cotidiano do trabalho feminino nos garimpos do Alto Jequitinhonha

O cotidiano do trabalho feminino nos garimpos do Alto Jequitinhonha

O cotidiano do trabalho feminino nos garimpos do Alto Jequitinhonha

O cotidiano do trabalho feminino nos garimpos do Alto Jequitinhonha

O cotidiano do trabalho feminino nos garimpos do Alto Jequitinhonha

Breaking the silence:

Breaking the silence:

Breaking the silence:

Breaking the silence:

Breaking the silence:

The daily lives of working women in the garimpos of the High

The daily lives of working women in the garimpos of the High

The daily lives of working women in the garimpos of the High

The daily lives of working women in the garimpos of the High

The daily lives of working women in the garimpos of the High Jequitinhonha

Jequitinhonha

Jequitinhonha

Jequitinhonha

Jequitinhonha

Regina Célia Lima Caleiro * Graciele Mendes Rodrigues * *

* Doutora em História, professora do curso de História, do Programa de Mestrado em Desenvolvimento Social/PPGDS e do Programa de Mestrado em Letras/PPGL/UNIMONTES.

** Acadêmica do curso de História da UNIMONTES e bolsista PROBIC da Fundação de Amparo a Pesquisa do Estado de Minas Gerais/FAPEMIG.

Resumo: Resumo: Resumo: Resumo:

Resumo: O presente artigo tem por objetivo analisar as relações de gênero nos garimpos do Alto Jequitinhonha-MG, sobretudo as funções exercidas pelas mulheres garimpeiras. Para tanto, elaboramos um breve histórico do garimpo e uma revisão da literatura confrontada com entrevistas concedidas pelas garimpeiras.

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Palavras-chaves:alavras-chaves:alavras-chaves:alavras-chaves: Vale do Jequitinhonha, gênero, mulheres garimpeiras.alavras-chaves: Abstract:

Abstract: Abstract: Abstract:

Abstract: This article aims to examine the relationship of gender garimpos in the High Jequitinhonha-MG, especially the roles played by women garimpeiras. To do so, make a brief history of gold mining camps and a review of literature face interviews granted by garimpeiras.

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Introdução Introdução

Durante séculos, justificados por características biológicas, os estereótipos femininos foram reforçados e assimilados socialmente como verdadeiros. Ainda hoje, nas referências ao trabalho feminino, quando as mulheres se ocupam com funções pouco convencionais, prevalecem as antigas concepções, permeadas de preconceitos e ignorância.

Não por acaso, a inserção das mulheres no trabalho garimpeiro, tema alvo deste artigo, considerado popularmente como “serviço para homens”, tanto pela demanda de força física quanto pelo fato de ser julgado bastante perigoso devido às desavenças violentas que ocorrem frequentemente entre os que vivem no mundo do garimpo.

Ao longo da história, o registro da presença das mulheres nos garimpos como trabalhadoras ficou restrito a poucas variações, entre elas podemos destacar o ofício de cozinheira e de prestadoras de serviços sexuais aos garimpeiros. Com raras exceções, os registros históricos não tratam das trabalhadoras na extração de minérios e a historiografia acerca do tema também não se apresenta muito extensa.

Luciano Figueiredo em O avesso da memória analisa a atuação das mulheres nas Minas Gerais no séc. XVIII e aborda as diversas ocupações femininas na extração de ouro e diamantes. Entre essas mulheres encontram-se as garimpeiras, que a partir da análise das imagens imortalizadas por Rugendas, foram assim descritas por Luciano Figueiredo: mulheres “em segundo plano aparecem carregando gamelas com pedras que seriam lavadas. Não havia impedimentos formais a seu trabalho na mineração, mas diante de exigências de resistência e força física, restringiam-se à função de carregadoras de gamelas” (FIGUEIREDO, 2004, p. 143).

No auge da mineração, as escravas que garimpavam eram mais valorizadas em relação àquelas que

oferecida aos seus donos. Por outro lado, apesar dessa valorização em períodos específicos, desde os primórdios da extração mineral no Brasil, percebe-se que a participação das mulheres nespercebe-se espaço sempre foi marcada por proibições e preconceitos. De modo geral, acreditava-se que a presença feminina representava ameaça para o bom funcionamento das atividades mineradoras, pois, eram consideradas como elementos desviantes da atenção masculina representando perdas econômicas para os proprietários das minas.

No entanto, as mulheres não se intimidavam com as interdições e desenvolviam as mais diversas estratégias para dar continuidade ao seu trabalho. Joaquim Felício dos Santos no livro Memórias do Distrito Diamantino, ao analisar o trabalho dos garimpeiros no século XVIII, descreve a prisão de um garimpeiro que, na verdade, era uma mulher vestida de homem.

No ano de 1742 uma partida de dragões sustentou um renhido combate com alguns garimpeiros nas vizinhanças do Rio Manso. Entre estes sobressaíra um mais jovem, que talvez por ser mais audaz e intrépido, foi aprisionado; os outros fugiram. Trazido preso e metido no tronco da cadeia, aí foi o escrivão da Intendência fazer o que se chamava auto de prisão, hábito e tonsura. Deste auto consta que o preso era “de estatura baixa e delicada, olhos e cabelos negros, cor morena, feições finas e reguladas, sem barba alguma; e sendo-lhe perguntado qual sua idade, naturalidade, filiação, profissão, estado e se tinha algumas ordens ou era professo em alguma religião, recusaria obstinamente responder a qualquer d’estas perguntas”. No mesmo dia, “ não sabemos por que meio, e nem o consta dos autos “, reconheceu-se que o garimpeiro era uma bela rapariga, disfarçada em homem. No dia seguinte, “ também ignoramos por que meio “, quando o escrivão voltou à cadeia só achou o tronco da bela prisioneira, que se tinha evadido durante a noite. De nada mais sabemos e nem ousaremos asseverar se nesta fuga houve cumplicidade da parte das autoridades. Quem o sabe? (SANTOS, 1978, p. 100).

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Segundo Maria Odila L. S. Dias, vestir-se como um homem e assumir papéis reconhecidos como masculinos não era atitude excepcional no Brasil colonial ou imperial. Diante da falta ou ausência temporária dos homens, a separação dos espaços de atuação de homens e mulheres tornava-se mais flexível ou desaparecia completamente. De acordo com a autora, não eram raras as referências “às mulheres vestidas de homem, menos na sua aura mítica do que como recurso de defesa, no quotidiano, fosse para viajar incógnita e a salvo da violência das estradas ou para melhor exercer ofícios masculinos” (DIAS, 2001, p. 55).

A partir de pesquisas como as da professora Maria Odila, a nova historiografia demonstrou a existência de muitas mulheres que, devido às dificuldades que as asperezas de suas vidas lhes impunham, acabaram por lançar mão de vários estratagemas para garantir com seu trabalho a própria sobrevivência e de sua prole. É certo que essa nova corrente historiográfica acabou por desmistificar o sistema patriarcal brasileiro como único modelo familiar do Brasil antigo, no qual apenas os homens figuram como provedores da família.

Carlos Renato Carola, em seu livro Dos subterrâneos da história: as trabalhadoras das minas de carvão de Santa Catarina, desenvolveu uma cuidadosa análise acerca do trabalho feminino na mineração carbonífera, ressaltando que as evidências históricas indicam a presença feminina nas diversas formas de mineração, desde os séculos XVI, e que esta força de trabalho era tão comum quanto a masculina. Conforme o autor, foi somente a partir do século XIX que uma mentalidade contrária ao trabalho de crianças e mulheres nas minas foi constituída com argumentos que giravam em torno da insalubridade e do desgaste físico provocado por este tipo de trabalho incompatível com sujeitos considerados biologicamente frágeis, havia também uma interdição de cunho moral/religioso ao trabalho feminino nas

minas. Portanto, além das interdições de cunho biológico “havia a moral religiosa que não via com bons olhos o fato de mulheres “seminuas” trabalharem ao lado de homens na escuridão subterrânea das minas” (CAROLA, 2002, p. 81). Vale lembrar que Luciano Figueiredo demonstrou que as mulheres desempenhavam um “papel apendicular” no trabalho de mineração. É fato que na atualidade essa função de complemento da força de trabalho feminina não se ajusta aos garimpos, pois, nesse espaço, as funções desempenhadas por homens ou mulheres dependem do momento, do local e da mão-de-obra disponível.

Na pesquisa que empreendemos, notamos que nos garimpos, as relações sociais na organização e exploração do trabalho são complexas e diversas, tornando simplista a análise que considera a mão-de-obra feminina um complemento da masculina. Mesmo considerando-se que em algumas “catas”1 as mulheres exerçam funções consideradas mais leves e compatíveis com o estereótipo feminino, nos garimpos os espaços de trabalho tornam-se cada vez mais flexíveis, na medida em que as mulheres passam a assumir as mais diversas funções.

A regulamentação do trabalho feminino neste espaço e em outros setores trabalhistas só ocorreu com o decreto n° 21.417-A, de 17 de maio de 1932 e, segundo a advogada Izabel Campos Mendes, apesar de ter sido de 1923 o decreto pioneiro que tratou do trabalho da mulher, foi o decreto n° 21.417-A que efetivamente regulamentou o trabalho feminino no Brasil com rigor e certa eficácia (MENDES, 1999, p. 234).

O decreto n° 21.417-A, de 17 de maio de 1932 foi aprovado pelo então chefe do Governo Provisório da República Getúlio Vargas. Esse decreto regulamentou as condições de trabalho das mulheres. Assim, sem retirar a importância e inovação do decreto no tratamento da questão trabalhista feminina, percebe-se que, o mesmo impõe restrições

1 Local onde se faz escavação para mineração.

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la incapaz de exercer ofícios tidos como pesados devido à exigência de força física. Esse decreto no art. 5°, alínea A, estabelece como proibido o trabalho da mulher “nos subterrâneos, nas minerações em subsolo, pedreiras e obras de construção pública e particular”. E no art. 4° “Às mulheres empregadas em estabelecimentos industriais e comerciais é vedado remover materiais de peso superior ao estabelecido nos regulamentos elaborados pela autoridade pública”, dessa forma, é imposto pelas autoridades o peso máximo que a mulher poderia suportar, ficando proibido a execução de funções que excedessem o peso permitido. O não cumprimento do decreto n° 21.417-A, imputava ao empregador multas variadas.

Objetivos e Metodologia Objetivos e Metodologia Objetivos e Metodologia Objetivos e Metodologia Objetivos e Metodologia

Este trabalho tem por objetivo, analisar as relações sociais e de gênero tecidas no cotidiano do garimpo de extração do quartzo, procurando conhecer e compreender os fatores que levaram as mulheres a se dedicarem ao trabalho no garimpo.

Para tanto, privilegiamos em nossa pesquisa garimpeiras que atuam na região do Alto Jequitinhonha, Estado de Minas Gerais, na cidade de Cristália, a partir da década de 1990, período em que o garimpo foi regulamentado pela lei federal nº. 7.805/89.

Para atender ao objetivo proposto, utilizamos como metodologia a História Oral, pois acreditamos que a mesma possibilita a (re)construção da memória daquelas que, durante anos, foram silenciadas pela história oficial. “A História Oral é uma história construída em torno de pessoas. Ela lança a vida para dentro da própria história e isso alarga seu campo de ação. Admite heróis vindos não só dentre os líderes, mas dentre a maioria desconhecida do povo” (THOMPSON, 1998, p. 44).

Para a constituição das nossas fontes selecionamos seis informantes; dessa forma, gravamos os

Posteriormente, os depoimentos foram transcritos e analisados qualitativamente. Optamos também por transcrever sem correções as falas das depoentes.

Resultados da Pesquisa e Discussão Resultados da Pesquisa e Discussão Resultados da Pesquisa e Discussão Resultados da Pesquisa e Discussão Resultados da Pesquisa e Discussão

De modo geral, o trabalho das mulheres no espaço garimpeiro não é bem visto; para muitos, a atuação feminina nesse local se resume à cozinha ou à venda de seus corpos. A realização dos trabalhos de extração mineral pelas mulheres não corresponde às imagens e representações estereotipadas que a sociedade, com poucas exceções, ainda aceita como verídicas.

Cumpre ressaltar que o garimpo, ambiente marcado pelo preconceito, é considerado um local impróprio para as mulheres, uma vez que é um espaço masculinizado, associado à promiscuidade e que para a execução das funções a força é imprescindível, portanto, um serviço incompatível com o estereótipo da fragilidade feminina.

É notório que as mulheres garimpeiras do Alto Jequitinhonha sofrem o estigma de uma profissão desvalorizada pela sociedade e que não são reconhecidas enquanto trabalhadoras. A garimpeira M. G. S. foi para o garimpo, mesmo sendo, questionada sempre por deixar a sua família na cidade e ir trabalhar na extração do quartzo como mostra a sua fala:

[...] eu saí prá trabalha, muita gente as veize teve umas pessoa que ainda fala assim: Ah! como que cê sai prá trabaiá pra longe e “larga” a sua família. Falei, meu Deus do céu, eu to é tentano ajudá a minha família, num é disprezano ela não, eu to trabalhano prá mim ajudá, eu to tentano traze prá casa, um futuro prá casa, ne distruí não, é traze um futuro. (M. G. S., 47 anos)

O depoimento demonstra que para a comunidade local, a mulher está sempre relacionada à família. As suas motivações, mesmo quando norteadas pela

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preocupação com o bem estar de seus familiares, não justificam seu trabalho no garimpo.

Nas regiões garimpeiras, percebemos que os estereótipos femininos também são reforçados pela comunidade. As mulheres quando vão para o garimpo, principalmente sem um homem (companheiro) são muitas vezes consideradas como “safadas”; se as casadas deixam os maridos na cidade são marcadas como “infiéis”.

Essas mulheres necessitam provar sistematicamente para seus familiares e para a comunidade que estão no garimpo trabalhando. A garimpeira M. G. S., relatou que vai sozinha para o garimpo, sem o seu marido, mas é sempre indagada e culpabilizada por deixar a sua família na cidade de Cristália. Por esse motivo, sente a necessidade de trazer os materiais extraídos como prova do que foi fazer no garimpo. A entrevistada destaca sempre em sua fala que, não vai para o garimpo passear e sim para trabalhar e, em seu depoimento, podemos perceber o tom de indignação por duvidarem do seu comportamento.

[...] É, acho que isso aí, oh, eu num to in, to ino lá prá passiá, eu num saí daqui pra e pro garimpo prá passiá não é prá trabalha, que dá hora que eu chego lá eu pego pesado, eu num vô lá passiá. Ah, tô ino lá prá passiá, ta, ta, ta, junto com a turma não, eu chego lá eu pego pesado pra vê se eu trago prá mostrá prá es o que eu fui fazê lá, então, vô trabalha prá mim traze a mostra, vô mostra prá es o que, o que eu fui fazê lá, aí es, todo mundo concorda que é isso aí mês. (M. G. S., 47 anos)

O trabalho no garimpo, pesado e desgastante, exige muita força física, o que não impede que muitas mulheres exerçam a função de garimpeira. Despertou a nossa atenção o fato, não raro, de encontrá-las trabalhando grávidas, e exercendo suas funções até o dia do nascimento da criança. Criança nascida, as mulheres retornam com elas ao garimpo, como é o caso da garimpeira N. B. S. de 29 anos, que lembra: “Eu tinha trêis filho na época que eu comecei depois eu arrumei mais um, trabalhei lá a gravidez, grávida trabalhando, até que ele nasceu, ele piquininim eu levava pra lá.”

Muitas mulheres deixam família, filhos e maridos e vão trabalhar para ajudar no sustento da casa. Ao chegar ao garimpo constroem as chamadas “barracas”, que são feitas de pau-a-pique e cobertas com lona. Essas habitações, geralmente, são compostas por um cômodo, cada família ou indivíduo solteiro tem a sua própria barraca. Existem algumas “casas” que possuem a sua própria cozinha quando são barracas com famílias ou quando a barraca é daquela garimpeira que faz a alimentação para vários homens, dispensando assim, a cozinha em todas as barracas.

Convém relembrar que as mulheres exercem as mais diferentes tarefas no garimpo. Geralmente, acordam às 5 horas fazem o almoço para todos os trabalhadores e já deixam o almoço pronto; às 7 horas elas vão para o garimpo onde trabalham até a hora do almoço, logo após, voltam para o garimpo e ficam até as 20 horas. Quando chegam às suas barracas vão lavar as “vasilhas do almoço”, tomar banho no rio e depois preparar o jantar. Essa jornada e horários de trabalho podem mudar conforme cada garimpo, pois dependem das relações firmadas entre seus componentes.

A historiadora Maurides B. Macêdo Oliveira em seu artigo Garimpos doAraguaia: mito e sobrevivência, ao analisar os garimpos de diamantes do Rio Araguaia nas décadas de 1920 a 1950 analisa a jornada de trabalho dessa população garimpeira e ressalta que “a noção de tempo aqui é pautada por atividades, por obrigações da profissão (tempo da natureza)” (OLIVEIRA, 1996, p. 229).

Essa mesma noção de tempo pode ser percebida nos garimpos do Vale do Jequitinhonha. As falas das garimpeiras demonstram que o tempo é orientado pelas tarefas executadas. “[...] na hora que eu entrava pro serviço eu não queria para não, eu só queria para depois que eu limpava a minha cata” (M. G. S., 47 anos).

Apesar da jornada exaustiva, as garimpeiras demonstram orgulho do trabalho que executam. “Mais eu tinha orgulho de tá lá trabalhano eu cabava

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chegava de noite ia pro rio tomava banho, lavava as vasilha de almoço voltava e inda terminava a janta” (J. M. F., 23 anos).

Podemos dizer que algumas situações aproximam as garimpeiras das mulheres que habitam grandes centros urbanos. Apesar de enfrentarem um dia pesado de labuta no espaço da casa “as mulheres continuaram arcando com todo o trabalho doméstico, realizado durante a jornada extensa e intensíssima. Suas vidas, especialmente se mães, resumem-se ao trabalho” (SILVA, 2000, p. 564).

As conquistas sociais e sexuais das mulheres foram e são significativas, pois muitas reivindicam o seu espaço na sociedade, lutam pelo seu crescimento profissional e pela realização pessoal. Mas, apesar das mudanças e conquistas, muitas mulheres continuam arcando sozinhas, no espaço da casa, com as funções domésticas exercendo dupla jornada de trabalho. Atualmente, apesar da “considerável participação das mulheres no espaço público, o espaço privado continua a ser em grande parte de sua inteira responsabilidade, donde se deduz que o trabalho realizado pelas mulheres, ao invés de ter diminuído, dobra [...]” (BORGES, 2005, p. 181). A jornada de trabalho das mulheres no garimpo é dobrada, pois elas exercem todas as funções que a profissão de garimpeira exige e ainda executam todo o trabalho doméstico, especialmente cuidam da alimentação. Nos finais de semana fazem a limpeza de suas barracas e lavam as roupas, conforme se percebe no depoimento de J.M.F: “[...] tinha vez quando ia lava roupa e juntava nós tudo, falava hoje nós num vai pra Cristália, final de semana nós num vai não, vamo junta a ropa de cama tudo e vamo lava, porque nós num tem tempo no meio da semana, porque nós tamo trabalhano” (J. M. F., 23 anos). No artigo “De colona a bóia-fria”, de Maria Aparecida Moraes Silva, sobre a jornada de trabalho das mulheres que trabalham nos cafezais, nota-se que não há diferenças marcantes das jornadas enfrentadas

fato de que nas duas situações as mulheres acabam por trabalhar mais que os homens. De acordo com a autora, “as mulheres que trabalhavam no cafezal aproveitavam as noites e as madrugadas para o serviço doméstico. A jornada de trabalho feminina acabava sendo maior que a do homem” (SILVA, 2000, p. 558).

Sabemos que, a divisão sexual do trabalho, a partir de características biológicas, é construída culturalmente, uma vez que, trabalhos reconhecidos como masculinos em uma sociedade, em outra, podem ser considerados femininos ou vice-versa.

Igualmente importante é o fato de que aquilo que é definido como tarefa de homem numa sociedade, pode ser classificado como atividade feminina em outra, o que indica que a maior parte da divisão é culturalmente definida ou baseada num complexo de fatores do qual o biológico é apenas um elemento. (LIMA, 2003, p. 118)

Nesse sentido, foi criada a categoria gênero para expressar a construção de desigualdades sociais fundadas em determinismos biológicos. Scott, ao analisar a categoria gênero, teorizando a questão da diferença sexual, afirma:

[...] o gênero é igualmente utilizado para designar as relações sociais entre os sexos. Seu uso rejeita explicitamente explicações biológicas como aquelas que encontram um denominador comum, para diversas formas de subordinação [...]. O gênero torna-se, antes, uma maneira de indicar “construções sociais”-a criação inteiramente social de idéias sobre os papéis adequados aos homens e às mulheres. (SCOTT, 1991, p. 7)

William J. Goode no livro A família, ao falar sobre os papéis assumidos pelas mulheres e homens nas relações sociais, afirma que “as diferenças entre os papéis atribuídos aos sexos aparecem de modo acentuado na divisão sexual do trabalho. Em todas as sociedades uma série de tarefas é atribuída às mulheres e uma outra aos homens e há algumas que

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podem ser desempenhadas por ambos” (GOODE, 1970, p. 118).

No mundo do trabalho a divisão das tarefas é feita de forma a reforçar a oposição binária masculino/ feminino, mesmo quando um assume funções tradicionalmente do sexo oposto. Aos homens é reservado o trabalho reconhecido como mais pesado e às mulheres o trabalho mais leve, sobretudo, os trabalhos ligados à casa.

O trabalho no garimpo é feito em conjunto, muitas vezes ocupam quase toda a família, e, quase sempre, a mulher e o marido. A divisão sexual no processo de trabalho do garimpo não é rígida. Contudo, há em algumas catas o predomínio de mulheres nas ocupações consideradas mais leves. No garimpo, as tarefas reconhecidas como leves poderiam ser consideradas bastante pesadas em outros contextos, pois demandam muita força física devido às condições do local.

O garimpo é um ambiente marcado pela representação de espaços de trabalho, tanto na casa (barraca) quanto na cata. As relações de trabalho, estabelecidas nesse local, são complexas e variadas. No espaço da casa, a divisão das tarefas domésticas varia de garimpo para garimpo. Em alguns as mulheres recebem um pequeno pagamento para fazer os serviços domésticos, em outros cada trabalhador faz seus próprios afazeres domésticos ou o trabalho doméstico é dividido entre homens e mulheres. De modo geral, as mulheres se encarregam de executar todo o trabalho relacionado à esfera domiciliar. No garimpo de extração de quartzo há o predomínio de mulheres exercendo todo o trabalho doméstico, pois, nesse tipo de extração, os trabalhadores ficam muito tempo fora de casa e os homens não se encarregam das funções domésticas, preferindo pagar uma mulher para fazer os trabalhos quando a esposa não está no garimpo.

Importa ressaltar que na divisão dos trabalhos domésticos há dentro do espaço domiciliar uma divisão das tarefas reconhecidas como próprias para

as mulheres e as consideradas próprias para os homens. As mulheres, no espaço da casa, são encarregadas de fazer a comida, lavar as vasilhas, lavar roupas e limpar a casa, aos homens é reservado os trabalhos de buscar lenha e pegar água no rio. No trabalho da extração do quartzo, as representações sociais das tarefas exercidas por cada sexo também é recorrente. Aos homens é reservado o controle das máquinas de compressão, o manuseio com as bombas e outros trabalhos que são considerados pesados e perigosos, que exijam uma técnica especializada para a realização. A mulher tem como função empurrar carrinhos com entulho e fazer lasca, como observa a garimpeira N. B. S. de 29 anos:

Igual, meu marido trabalhava com uma coisa, as vez eu trabalhava com outra, mais geralmente é tudo difícil, né, que meu marido ele trabalhava mais assim de, de fura mina, com compressor e tudo e, e, as mulhê geralmente é só assim marreta, é carrim, impurrá carrim, os tempo de folga a gente faz lasca, que é cum martelozim piquininim.

Percebe-se que, ao falar das funções exercidas pelos trabalhadores dentro do garimpo, a depoente confirma claramente a separação existente entre o trabalho das mulheres e o dos homens. Na sua fala, ao utilizar as palavras no diminutivo “carrinho”, “martelozinho pequenininho” para descrever as ferramentas de trabalho da mulher, depreende-se que, o mesmo é caracterizado como sendo de fácil manejo e execução, uma vez que as ferramentas são leves. Nessa divisão a mulher fica encarregada de fazer serviços julgados como leves, referentes à esfera doméstica, e os homens fazem os ser viços considerados pesados. Entretanto, a divisão do trabalho não é rígida. Percebe-se na fala da garimpeira que, quando os homens não executam as funções mais pesadas elas fazem o trabalho:

Faço tudo, pego água, pego lenha se pricisá. Os home sempre pega água e lenha, algum deles, né, que tem uns que fica meio sem quere. O dia que tem um que fica meio escorano, eu mesma vô, pego minha água, a

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pego lenha, ah, num fico sem fazê minha cumida não, terminei, maumitinha na mão, na muchila, e ferramenta na carcunda e vão bora pro sirviço. (M. G. S., 47 anos)

Como também afirma a garimpeira J. M. F. que o seu marido, por ser doente, exercia a mesma função que ela, demonstrando, assim, a flexibilização na ocupação dos espaços de trabalho dentro do garimpo:

[...], havia assim, porque meu marido ele era mais, mais doente, né, ele ajudava eu carrega a terra do tune, que dava muita terra, aí o otro cara que trabaiava com nós, nós trabaiava em três, era ieu, o cara e meu marido, aí eu carregava a terra mas meu marido e o cara abria os buraco pra coloca as bomba, aí ele abria os buraco que expludia, aí abria o buraco, fazia a bomba, curria lá punha fogo e sai pra fora correno, quando chegava cá expludia e tal, que saía aquela fumaça e eu e meu marido, ia carrega e aí ele ficava cá de fora. (J. M. F., 23 anos)

As falas acima revelam que mais forte que a divisão do trabalho por gênero, as necessidades do garimpo redefinem os espaços de trabalho. Do mesmo modo, segundo Cláudia de Jesus Maia, percebe-se nas comunidades camponesas do vale do Jequitinhonha, a redefinição de papéis masculinos e femininos em decorrência da dinâmica social e das necessidades vivenciadas pelos grupos domésticos. A falta ou insuficiência da mão de obra masculina para os mais diversos tipos de trabalhos “impõe na prática, constantes redefinições do lugar ocupado por cada um nos espaços de trabalho, embora a classificação destes espaços permaneça em suas representações” (MAIA, 2004, p. 140). Segundo a autora, essas redefinições são expressas no momento de precisão. Na falta dos homens para executar as atividades ditas masculinas cabe às mulheres desempenhar essas atividades. Considerações Finais Considerações Finais Considerações Finais Considerações Finais Considerações Finais

Apesar das várias representações estereotipadas acerca do trabalho feminino no garimpo e da

no Alto Jequitinhonha a presença das mulheres nesse espaço é significativa e representa uma importante fonte de renda para muitas famílias em tempos de maiores dificuldades, principalmente nos períodos marcados pela seca.

Muitas mulheres casadas, solteiras, viúvas vão para o garimpo e desempenham as mais diversas atividades. Enfrentam corajosamente o pesado e desgastante trabalho de extração mineral e encaram uma jornada dupla de trabalho, visto que, muitas vezes, são elas que cuidam de quase todo o trabalho doméstico. Nem por isso elas deixam de ser alegres e vaidosas. Frequentemente cantam, se enfeitam e sonham com dias melhores.

A pesquisa efetuada com garimpeiras do Alto Jequitinhonha demonstra que a predeterminação de espaços de trabalho é culturalmente construída e adaptada a localidades e condições específicas de cada sociedade, variando conforme os valores que cada uma delas alimenta, mas também pelas necessidades que a dinâmica da própria vida impõe tanto aos homens quanto às mulheres.

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Disponível em meio eletrônico. •

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