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As redes tentaculares de Haroldo de Campos: a pós-utopia

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Academic year: 2020

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HAROLDO DE CAMPOS’S TENTACULAR NETWORKS: THE POST-UTOPIA

Monalisa Medrado Bomfim* * monabomfim@gmail.com

Mestranda em Estudos de Literatura, Departamento de Letras, Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), São Carlos, SP, Brasil. Este artigo apresenta fragmentos da pesquisa de mestrado realizada com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES).

RESUMO: Poeta e advogado, Haroldo de Campos gere a legiti-midade do seu discurso com um gesto ativo e dominante, ele-vando o valor literário da sua criação por meio do diálogo com escritores já canonizados e da seleção estratégica dos suportes de inscrição. Tendo isso em mente, o presente trabalho se pro-põe discutir como o processo de legitimação da obra haroldiana como cânone da literatura brasileira se relacionou com a mate-rialidade do suporte no caso do concretismo, para em seguida compreender como essa mesma seleção de suportes interfere no caso da pós-utopia. Para isso, os dois movimentos que carac-terizam a produção de Campos, o concretismo e a pós-utopia, foram circunscritos e comparados em relação à inscrição mate-rial, à circulação social e à atribuição de valor literário. A partir dessas investigações foi possível compreender as dificuldades que se impõem no processo de legitimação da pós-utopia. Por fim, trazemos os poemas o. p. octogenário e dialética do agora – 1, presentes no livro Crisantempo: no espaço curvo nasce um, para ilustrar a importância da produção poética no movimento tentacular de legitimação de Haroldo de Campos.

PALAVRAS-CHAVE: poesia brasileira; poesia pós-utópica; su-porte de inscrição; circulação e valor literários.

ABSTRACT: Poet and lawyer, Haroldo de Campos manages the legitimacy of his discourse with an active and dominant gestu-re, raising the literary value of his creation through the dialogue with already canonized writers from the strategic selection of the inscription supports. Having this in mind, the present work proposed to discuss how the haroldian work legitimation pro-cess related to the support materiality in case of concretism, to understand how this same selection of this supports interferes in case of the post-utopia. In order to do this, both movements which concretize Campos’s production, concretism and post-u-topia, were circumscribed and compared regarding the material inscription, the social circulation and the attribution of literary value. From these investigations was possible understand the difficulties that are imposed in the process of legitimizing post-u-topia. Finally, we bring the poems: o. p. octogenário and dialé-tica do agora – 1, present in the book Crisantempo: no espaço curvo nasce um, to illustrate the importance of poetic production in Haroldo de Campos’s tentacular movement of legitimation. KEYWORDS: Brazilian poetry; post-utopian poetry; inscription support; circulation and literary value.

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EM TESE BELO HORIZONTE v. 25 n. 2 maio-ago. 2019 BONFIM. As redes tentaculares de Haroldo de Campos: a pós-utopia p. 135-210

Teoria, Crítica Literária, outras Artes e Mídias

Só eu tenho a chave desse desfile selvagem.

Arthur Rimbaud Onde quer que coloquem o eixo do mundo, tenho a flauta, e modulo Haroldo de Campos

Formado na Faculdade de Direito do Largo de São Fran-cisco, da Universidade de São Paulo, Haroldo de Campos (1929-2003) atuou como procurador da USP por muitos anos, mas era nas letras que encontrava sua verdadeira ambição. Mundialmente conhecido por integrar um dos vértices da tríade que inaugurou a poesia concreta bra-sileira junto com o irmão Augusto de Campos e o amigo Décio Pignatari, Haroldo de Campos dedicava seu tempo fora do trabalho como advogado à poesia, à tradução e à crítica literária. Entre os intensos diálogos que manti-nha com críticos e teóricos do seu tempo, podemos citar as correspondências com Roman Jakobson e Octavio Paz, como as mais relevantes para o desenvolvimento da poesia utópica haroldiana. O conceito de pós-utopia já aparecia timidamente na produção ensaística de Haroldo de Cam-pos desde o livro A arte no horizonte do provável (1969), contudo, só recebeu denominação e ganhou cada vez mais

espaço na produção do poeta a partir de 1979 com o en-saio Bufoneria, transcendental: o riso das esferas. Em 1984, a poesia pós-utópica se consolida com o ensaio Poesia e modernidade: da morte da arte à constelação. O poema pós-utópico, considerado pela crítica literária como um manifesto da pós-utopia haroldiana. Apesar da sua signifi-cativa expressão na obra haroldiana, a pós-utopia recebeu, e ainda recebe, muitas críticas de pesquisadores da área, principalmente das linhas mais conservadoras, isto é, que não consideram o aspecto dialético presente na produção de Campos. A hipótese desse trabalho é que a resistência da crítica literária à pós-utopia é um dos motivos que limita a circulação desse movimento estético ao polo acadêmico. Assim, o presente trabalho busca circunscrever o concretis-mo e a pósutopia na produção de Haroldo de Campos, com o objetivo de compreender como o processo de legitimação haroldiana se relacionou com a materialidade do suporte no caso da pós-utopia.

Pensar as formas de inscrição material importa na medi-da em que elas constituem a obra, viabilizando sua trans-missão social. Nesse sentido, ambas, inscrição material e circulação social são produtoras de sentido e de valor, pois ampliam o contexto e variam a abordagem da análise de um determinado caso. Isso porque,

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efetivamente, uma obra sempre é lida ou ouvida em um de seus estados particulares. Segundo os tempos e os gêneros, suas variações são mais ou menos importante e podem con-cernir, separada ou simultaneamente, à materialidade do objeto, à grafia das palavras ou aos próprios enunciados. [...] No Ocidente, o neoplatonismo, a estética kantiana e a defi-nição da propriedade literária contribuíram para construir esse texto ideal que os leitores reconhecem inevitavelmente em cada um de seus estados. Mais do que tentar se desvenci-lhar dessa tensão irredutível ou de resolvê-la, de uma forma ou de outra, o que importa é identificar a maneira pela qual ela é construída em cada momento histórico. E, em primeiro lugar, nas e pelas próprias obras. 1

O papel das modalidades de inscrição, dessa forma, vai além de se relacionar com a sobrevivência do discurso, sendo relevante para pensar o público que esse suporte é capaz de atingir e, consequentemente, difundir o discurso em questão. Por outro lado, da mesma forma que as moda-lidades de inscrição estão ligadas com a disseminação social do discurso, elas também podem diminuir ou aumentar o valor literário agregado a ele, o que torna a escolha do suporte determinante. A própria ideia de valor é muito subjetiva, ela muda de acordo com os interesses políticos e culturais de uma sociedade, ou seja, ela é resultado de uma

interação coletiva, que reflete a importância que o coletivo agrega a uma determinada estrutura. 2 Com isso em mente,

destaca-se a relevância de estudos que desenvolvam uma abordagem crítica com relação às modalidades de inscrição dos discursos, o que nas palavras de Chartier é começar “nas e pelas próprias obras”, pois elas são capazes, frente a um recorte histórico e social, de fortalecer o processo de análise da temática mais abstrata de um caso.

Partindo dessa ideia, é interessante pensar que no nos-so tempo e cultura persiste uma correlação forte entre o valor literário e a inscrição em forma de texto escrito. Isso porque, segundo Rancière, “a escrita é, indissoluvelmente, duas coisas em uma: é o regime errante da letra órfã cuja legitimidade nenhum pai garante, mas é também a própria textura da lei, a inscrição imutável do que a comunidade tem em comum. 3 Dessa maneira, ainda que essa correlação

entre escrita e valor seja forte, pois o coletivo reconhece essa forma de inscrição como literária, ela não garante que todo escrito tenha valor literário significativo. É relativa-mente fácil entender essa contradição quando pensamos que nem todo material escrito é considerado literatura. Acompanhando o raciocínio, apenas o texto escrito tam-bém não será capaz de legitimar o escritor ou inseri-lo no cânone. Maingueneau descreve esse paradoxo do escritor da seguinte maneira:

1. CHARTIER. Mistério estético e materialidade da escrita, p. 16.

2. SMITH. Value/Evaluation, p. 177.

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Como estar seguro de que se está realizando uma obra de valor a partir do momento em que até a aprovação do pú-blico contemporâneo não é um critério garantido? Resta ao autor apenas multiplicar os gestos conjuradores, mostrar a si mesmo e ao público os signos de sua legitimidade. 4

Pensando na cibercultura na qual estamos inseridos, os suportes de inscrição da escrita são variados, podemos considerar como parte desse mundo os e-books, os blogs, os websites de notícias, ou seja, toda uma esfera de conteú-dos escritos disponíveis em diversas plataformas online e acessados por meio de diferentes dispositivos digitais, como notebooks, smartphones, tablets, etc. 5 Assim, a cibercultura,

inserida no contexto do mundo globalizado, define uma nova realidade analítica para a materialidade da inscrição escrita. O recorte histórico haroldiano, no entanto, está afastado do ciberespaço, restringindo os suportes possíveis. Portanto, nesse trabalho considerei a inscrição escrita e im-pressa associada à revista, ao jornal e ao livro. Com relação ao livro, existe algo de “sagrado” ou “platônico” vinculado a ele, pois, até mesmo na cibercultura, ele ainda guarda, simbolicamente, um elevado valor literário. 6, 7

Ainda que a utilização do livro impresso como suporte de inscrição pareça indispensável para a legitimação do escritor e de seu discurso, ele é apenas um dos critérios que

participam desse processo. Maingueneau explica o proces-so de legitimação como uma gestão ativa, realizada pelo próprio escritor, que envolve tanto a sua criação literária, como a produção que não necessariamente faz parte da sua obra, ou o que o linguista chama, respectivamente, de espaço canônico e espaço associado.

O “espaço associado” não é um espaço contingente que se somaria a partir de fora ao espaço canônico: os espaços ca-nônico e associado alimentam-se um do outro, sem contudo possuir a mesma natureza. Esse duplo espaço se mostra a si mesmo no conjunto mais amplo de marcas deixadas pelo autor, o que inclui também os cadernos escolares, a corres-pondência amorosa, cartas dirigidas à administração etc. 8

No espaço associado podemos encontrar não apenas outros textos atribuídos de menor valor literário, mas também cartas, performances, entrevistas, e porque não, a agenda de compromissos públicos do escritor, bem como as amizades cultivadas por ele. O que importa é a relação desse espaço associado com o material de valor literário, pois é a gestão desse lugar paratópico 9 que legitima o

dis-curso do escritor e firma seu nome no cânone literário. Haroldo de Campos tinha uma consciência muito cla-ra desse papel ativo na gestão da sua legitimidade, e isso

4. MAINGUENEAU. A vida e a obra, p. 51.

5. SALGADO. Cibercultura:

tecnoesfera e psicoesfera de alta potência difusora, p. 104-105.

6. SALGADO. Cibercultura:

tecnoesfera e psicoesfera de alta potência difusora, p. 110.

7. CHARTIER. Mistério estético e materialidade da escrita, p. 14.

8. MAINGUENEAU. Discurso Literário, p. 144.

9. Paratópico (ou paratopia) é o termo utilizado para qualificar a instabilidade dialética do lugar abstrato gerado pela coexistência do espaço canônico e do espaço associado.

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reflete diretamente na materialidade e na circulação da sua criação e também na construção da sua imagem de poeta engajado e bem relacionado. Esse trabalho busca ilustrar o lugar paratópico da legitimação da obra de Haroldo de Campos cotejando os dois momentos literários que confi-guram a sua produção: concretismo e pós-utopia.

O encontro dos irmãos Campos com Décio Pignatari na Faculdade de Direito do Largo de São Francisco foi um acontecimento decisivo na vida do trio. Apaixonados por poesia e deslocados em meio aos escritores do Clube de Poesia de São Paulo, o trio optou por empreender o seu próprio projeto poético, e em 1952 publicaram a revista Noigandres 1, que ainda não era propriamente concreta, mas apresentava diferenças significativas em comparação a Revista de Novíssimos da Clube, sobretudo com rela-ção a experimentarela-ção da estética visual. 10 É justamente a

pegada experimental verbivocovisual 11 que caracteriza o

concretismo, impulsionado principalmente pelo desafio mallarmeano de Un coup de dés 12. A revolução da forma,

que colocava no plano interpretativo a comunicação não--verbal do poema, retomava, em um gesto antropofágico, a Geração Moderna de 22, que constituía, junto com outros precursores, o que os concretistas chamavam de paideu-ma. O ensaio Poesia e modernidade: da morte da arte à constelação. O poema pós-utópico traz uma descrição do

contexto histórico favorável no qual a poesia concreta se desenvolve:

Juscelino Kubitschek arbitrava, com envergadura de estadis-ta, o momento político-administrativo brasileiro, consegui-do, com seu “Plano de Metas”, equilibrar forças em conflito e propiciar um dos raros interregnos de plenitude democrá-tica que foram dados viver à minha geração. [...] Mas a então jovem poesia concreta, conquanto independente em relação ao centro político de decisões, e marginal em sua evolução circunscrita preferencialmente ao plano literário e artísti-co, não poderia deixar de refletir esse momento generoso de otimismo projetual. Como o Plano Diretor de Brasília, nosso manifesto de 1958 intitulou-se Plano Piloto e pro-punha “uma responsabilidade integral perante a linguagem, realismo total; contra uma poesia de expressão, subjetiva e hedonista, criar problemas exatos e resolvê-los em termos de linguagem sensível; uma arte geral da palavra, o poema--produto: objeto útil”. 14

A jovem poesia concreta aposta nos suportes materiais da revista e do jornal impressos para se desenvolver, res-tringindo a sua circulação sobretudo ao polo acadêmico. É curioso notar que o primeiro livro de textos criativos concretos de Haroldo de Campos, Xadrez de Estrelas, que

10. ANTUNES e BANDEIRA. De Gatos a Galáxias: trajetória poética de Haroldo de Campos, p. 30.

11. A expressão verbivocovisual une na poesia concreta elementos gráficos-sonoros, que antes de romper com sintaxe, criam uma sintaxe analógica, pois tratam as “palavras como figuras, como imagens que a gente monta no espaço e no tempo”. (PIGNATARI. O que é comunicação poética, p. 53)

12. MALLARMÉ. Un coup de dés jamais n’abolira le hasard. Publicado pela primeira vez em 1897.

13. Entendemos aqui o termo paideuma como o conceito desenvolvido por Ezra Pound, que o define como a “ordenação do conhecimento de modo que o próprio homem (ou geração) possa achar, o mais rápido possível, a parte viva dele e gastar um mínimo de tempo com itens obsoletos”. (CAMPOS. As antenas de Ezra Pound, p. 12)

14. CAMPOS. Poesia da modernidade: da morte da arte à constelação. O poema pós-utópico, p. 267.

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reúne sua produção de 1949 a 1974, só é publicado em 1976, ou seja, o livro, supostamente o material de inscrição indispensável à legitimação, aparece para fechar o período concretista de Campos. Pensando em termos de materiais de inscrição, é como se o poeta encerrasse essa fase com um grande trunfo agregador de valor, que inseriu o seu nome no cânone literário brasileiro. Isto porque a pro-dução concreta de Haroldo de Campos já estava em uma fase madura quando o livro é publicado, do modo que ela já havia extrapolado o polo acadêmico e já chegava em outros públicos, em outros nichos.

Penso que existem dois marcos que, no contexto brasilei-ro, caracterizam a expansão da circulação social da poesia concreta em um público para além do polo acadêmico e dos consumidores da revista Noigandres. O primeiro, é a publicação de uma série sobre o concretismo na revista Ad: arquitetura e decoração, entre 1956 e 57, pois por ser uma revista de arquitetura, paisagismo e decoração, ela é consumida tanto pelo público engajado em engenharia e arquitetura, como por aqueles que têm apenas um remoto interesse por decoração. Nesse cenário, o concretismo não está mais restrito ao polo literário, ele se expande para novos nichos, porém continua limitado a uma camada privilegiada da população e à materialidade do suporte impresso.

O segundo marco ocorre em 1973, quando Caetano Ve-loso lança o disco Araçá azul, que tem forte influência da experimentação verbivocovisual concreta. Com esse disco o movimento concretista passa a explorar não apenas as possibilidades da palavra, mas também as possibilidades dos meios e dos suportes. Araçá azul representa, portanto, a poesia concreta experimentando outro suporte, que uti-lizava a música e a oralidade para transmitir os poemas. Com esse álbum, a poesia concreta começa a circular por um público diferente da elite paulistana leitora. Contudo, atingir meios diversificados não significava a populariza-ção da poesia concreta, na realidade ela encontrava uma forte resistência da crítica e do público, que muitas vezes não compreendiam os poemas.

Para que a conquista de novos meios e suportes se con-vertesse em ganho de valor literário, Haroldo de Campos desenvolveu uma gestão estratégica do lugar paratópico de seus espaços canônico e associado, isto é, enquanto no es-paço canônico a poesia haroldiana segue explorando novos suportes e se difundindo em outros meios, como expus ante-riormente, no espaço associado o poeta produzia incansáveis traduções e artigos, que visavam esclarecer o público sobre a poesia concreta. 15 Publicados incialmente nos jornais,

es-ses textos ficaram restritos à sociedade letrada, no entanto, começaram a construir a imagem de intelectual do poeta.

15. ANTUNES e BANDEIRA. De Gatos a Galáxias: trajetória poética de Haroldo de Campos, p. 51.

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Conforme esses textos passam a ser reunidos e publicados em forma de livros, começam a ganhar um valor literário significativo e, assim, migram do espaço associado para o espaço canônico. Ademais, estas traduções e ensaios estabe-leceram diálogos com grandes críticos e teóricos nacionais e internacionais, muitos com os quais o poeta desenvolveu amizades pessoais, com troca de correspondências 16.

Tanto a mudança do suporte, do jornal para o livro, quanto o diálogo dos textos com escritores já canoniza-dos, contribuíram para a dinâmica entre espaço associa-do e espaço canônico, além de atribuírem valor literário aos escritos do poeta. A alimentação constante do espaço canônico e a construção da imagem do poeta no espaço associado, moldada principalmente a partir dos escritores que ele escolhia traduzir e estabelecer relações de amiza-de, representam a gestão ativa que Haroldo de Campos exercia sobre a legitimação do seu discurso, cujo objetivo era a inserção do seu nome no cânone literário. Para com-preender como as redes de contatos de Campos interagem com o seu processo de legitimação e desenvolvimento como poeta e crítico, utilizarei como exemplo a interlocução com Roman Jakobson e Octávio Paz.

Depois de se conhecerem pessoalmente em 1966, na Ca-lifórnia, Campos e Jakobson estabeleceram uma troca de

cartas que perdurou até próximo da morte de Jakobson, em 1982. 18 Entre os frutos dessa correspondência podemos

destacar o livro Poesia Russa Moderna, publicado em 1968, que reúne textos dos irmãos Campos e de Boris Schnaider-man; e as traduções dos textos de estudo de Jakobson, que resultaram na publicação, em 1970, do livro Lingüística. Poética. Cinema. Os dois livros, além de estarem vinculados a um suporte com alto potencial legitimador, também dia-logam diretamente com Jakobson, um nome já consagrado no cânone do formalismo russo. Nos ensaios haroldianos, essa estratégia ampara-se, sobretudo, nas coincidências textuais, nas quais Campos se coloca no mesmo nível de Jakobson, de modo a valorizar o seu próprio discurso.

Uma seleção das correspondências trocadas entre Ha-roldo de Campos e Roman Jakobson foi exposta em 2011 no projeto Ocupação Haroldo de Campos – H Láxia, de-senvolvido pelo Itaú Cultural, com curadoria de Frederico Barbosa, Gênese Andrade, Livio Tragtenberg e Marcelo Tápia. Atualmente essa correspondência é o objeto de estu-do estu-do pesquisaestu-dor Max Nácher, que investiga as cartas de Jakobson disponíveis para consulta no MIT (Massachusetts Institute of Technology). Segundo a pesquisa de Nácher, as cartas são as práticas que Campos utiliza para constituir “toda uma política literária e intelectual”. Ainda de acordo com o pesquisador, apesar dessa atividade ser intencional,

16. A fortuna crítica de Haroldo de Campos destaca vários nomes que tinham uma correspondência ativa com o poeta, entre eles podemos citar, além de Octávio Paz e Roman Jakobson, Jacques Derrida, Ezra Pound, Leyla Perrone-Moisés e Celso Lafer.

17. Podemos evidenciar as apropriações que Haroldo de Campos realiza no período concreto no livro A arte no

horizonte do provável, cujos textos estabelecem diálogos com Ezra Pound, James Joyce e Mallarmé, para citar apenas alguns nomes.

18. DICK. Breve cronologia da vida e obra de Haroldo de Campos, p. 286.

19. Algumas fotos das cartas estão disponíveis em <https:// www.itaucultural.org.br/ ocupacao/haroldo-de-campos/ dialogos/?content_link=23>.

20. NÁCHER. Redes intelectuais e constelações textuais: a biblioteca de Haroldo de Campos como espaço de crítica e de criação, p. 47.

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ela “não aspira à exaustividade”, ela é articulada apenas “para dar conta da estratégia de Haroldo”. 21

A análise desenvolvida por Nácher consolida a hipótese de que a gestão ativa e precisa de Haroldo de Campos sobre a própria legitimidade é altamente dependente das redes intelectuais que o poeta desenvolve para si. Para Reinaldo Marques, essas redes intelectuais podem ser reconstruídas mediante a um estudo dos arquivos pessoais do poeta, in-cluindo materiais como cartas, dedicatórias e diários pes-soais do escritor, que revelam sobre as suas articulações mais discretas. Podemos então sugerir que ao guardar suas cartas e seus manuscritos Haroldo de Campos realizou um “arquivamento de si” 22, conceito desenvolvido por

Mar-ques. Nesse trabalho consideramos o arquivo pessoal do poeta como parte do seu espaço associado, desse modo, o arquivamento de si de Haroldo de Campos também con-tribui para compreender a gestão do lugar paratópico de legitimação da sua obra.

Metaforicamente, podemos ainda entender o gerencia-mento do lugar paratópico de Haroldo como tentacular23,

pois ele se apropria de suas amizades, aproximando-as de seus textos e livros, com o objetivo de construir a sua imagem de poeta engajado e, sobretudo, a legitimar seu discurso dentro do concretismo. De outro ponto de vista,

a comunicação entre Haroldo e Jakobson foi importante para o desenvolvimento crítico dos dois escritores, prin-cipalmente no desenvolvimento da teoria sincrônicodia-crônica 24, fundamental para o posterior desenvolvimento

da poesia pós-utópica.

Ser um escritor engajado é assinar petições, tomar a palavra em assembleias, exprimir-se sobre os grandes problemas da sociedade; mas é igualmente exceder por sua escrita qual-quer território ideológico, de maneira que tenha o direito de se colocar como sentinela do Bem. A dificuldade consiste em encontrar o improvável ponto de equilíbrio entre as duas exigências. 25

Após o golpe de 64, o contexto político-econômico bra-sileiro não era mais tão favorável como na década de 50. A censura e a repressão exigiam que os intelectuais re-pensassem as ideologias e a poética, de maneira que a sua produção permanecesse em um plano valorizado. Nesse período, propriamente no ano de 1968, Haroldo de Cam-pos intensifica a comunicação com Jakobson, e inicia a correspondência com Octávio Paz, cuja amizade, assim como com Jakobson, rendeu, em 1986, a publicação do livro Transblanco, que explorava a tradução empreendida por Campos, em 68, do poema pazeano Blanco, além de incluir

47.

22. MARQUES. Arquivos literários: teorias, histórias, desafios. p. 174. 23. Esse trabalho utiliza o termo

tentacular como uma metáfora para compreender como se dá a gestão do lugar paratópico de legitimação da obra de Haroldo de Campos. O movimento com o qual os cefalópodes, animais como águas-vivas e polvos, se movem e se alimentam é tentacular. Os cefalópodes possuem vários tentáculos que tem movimentos independentes, mas cooperativos, que lhes permitem ocupar diferentes

espaços simultaneamente, ou seja, enquanto um grupo de tentáculos domina o alimento, trazendo-o para perto, outro grupo de tentáculos reconhece o ambiente e se movimenta, reagindo a possíveis predadores. Apesar de distintos, os movimentos tentaculares são simultâneos, e se articulam de modo a atingir o mesmo objetivo de zelar pela sobrevivência do animal. Esse dinamismo do movimento tentacular faz dele a metáfora adequada para abordar a questão da gestão do lugar paratópico de legitimação da obra haroldiana, uma vez que os tentáculos de Campos aproximam teóricos importantes de seus textos e ao mesmo tempo reconhecem o meio de circulação de suas produções, em processos que visam a sobrevivência do nome do poeta no cânone literário brasileiro.

24. A teoria sincrônica-diacrônica se refere a um modo crítico de compreender a história e a tradição, que considera a maneira diacrônica de conceber o passado, organizado em uma sucessão de fatos ao longo do tempo; no entanto, propõe uma consulta desse passado que não é linear e contemplativa, mas sincrônica e crítica, pois o passado e a tradição se tornam relevantes de acordo com a demanda do presente. Assim, para a teoria sincrônica-diacrônica passado e futuro

importam na medida que dialogam com o agora, em uma articulação consciente da história.

25. MAINGUENEAU. A vida e a obra, p. 54.

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uma seleção de cartas, nas quais os poetas conversam sobre a tradução de Blanco trazendo algumas reflexões poéticas. Ainda em 1968, Haroldo de Campos estabelece a ponte entre Paz e Jakobson, que iniciam entre si uma troca de cartas e de textos. Conforme já observado por Max Nácher em sua pesquisa, a correspondência entre Paz e Jakobson é evidenciada no trecho final de uma carta enviada de Paz para Campos em 9 de outubro de 1968, que diz “já enviei os livros e escrevi a Jakobson” 26.

Por compartilharem ideias semelhantes, o diálogo entre esses escritores resultou no desenvolvimento de uma nova perspectiva histórica, passível de ser explorada pela poe-sia, que visava compreender e resistir ao Estado ditatorial. Haroldo de Campos tem uma visão muito incisiva sobre esse momento histórico:

Veio o golpe de 64, o recrudescimento ditatorial de 68, os longos anos de autoritarismo e frustração de expectativas no plano nacional: poesia em tempo de sufoco. No plano internacional, acelerou-se a crise das ideologias. [...] A poesia esvazia-se de sua função utópica. 27

Assim, já na década de 60, o foco da criação harol-diana começa a mudar, a revolução da forma proposta pelo concretismo perde destaque, enquanto a abordagem

sincrônica-diacrônica de compreensão da história começa a se manifestar, aparecendo como uma pósutopia ainda embrionária e sem nome no texto Comunicação na poesia de vanguarda, publicado pela primeira vez em 1968 e de-pois integrado no livro de ensaios do poeta, A arte no ho-rizonte do provável de 1969. É apenas em 1979, no ensaio Bufoneria, transcendental: o riso das esferas, que a pós-u-topia se apresenta não apenas no conceito, mas também com denominação própria. No ensaio, ao finalizar a análise que propõe sobre Fausto de Goethe, Campos assinala que “estamos numa época que já há quem chame de ‘pós-mo-derna’, mas que, inegavelmente, poderá ser melhor definida como ‘pós-utópica’”, e acrescenta: “o deslugar da u-topia, à direita e à esquerda, “regressiva” ou “progressiva”, quan-do se tentou ubicar – “encarnar na história” (como diria Octávio Paz) -, culminou invariavelmente por redundar numa tópica do poder”. 28 Como podemos observar já nesse

ensaio, na pós-utopia é Octávio Paz que recebe destaque na manobra tentacular de Haroldo de Campos. Os tentá-culos de Campos envolvem Paz de maneira completa em 1984, com o texto Poesia e modernidade: da morte da arte à constelação. O poema pós-utópico. Escrito incialmente como homenagem aos 70 anos de Paz, esse ensaio, que atualmente compõe o livro O arco-íris branco (1997), é considerado pela crítica literária como o próprio manifesto

26. PAZ e CAMPOS. Transblanco, p. 104.

27. CAMPOS. Poesia da modernidade: da morte da arte à constelação. O poema pós-utópico, p. 268.

28. CAMPOS. Bufoneria,

transcendental: o riso das esferas, p. 176, grifos do poeta.

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da poesia pós-utópica haroldiana, uma vez que ele carac-teriza e localiza o movimento concretista no cânone, até desaguar, consequentemente, na poesia pós-utópica.

Nesse ponto, é interessante notar que todo o desenvolvi-mento da jovem poesia pós-utópica se desdobra no plano acadêmico, utilizando como suporte, majoritariamente, o livro impresso. Essas escolhas de suporte e meio de circu-lação, notoriamente diferentes das realizadas no concre-tismo, podem ser esclarecidas se pensarmos na natureza política da pós-utopia:

A revolução poética moderna tem como princípio a liber-dade entendida como uma maneira de que o poeta dispõe para acompanhar seu dito. Esse acompanhamento tem como condição de possibilidade uma nova experiência po-lítica do sensível, uma maneira nova que a popo-lítica tem de se tornar sensível e afetar o ethos cidadão na era das revo-luções modernas. 29

Nesses termos, a poesia pós-utópica assume uma função política, pois apresenta, sobretudo, uma nova maneira, sin-crônico-diacrônica, de compreender a história e o tempo, dando origem a uma nova cultura, em outras palavras, a pós-utopia propõe uma nova experiência política sensível, uma vez que representa e age sobre o coletivo. No ensaio,

Poesia e modernidade: da morte da arte à constelação. O poema pós-utópico, Haroldo de Campos utiliza o diálo-go com o livro Os filhos do barro, de Paz, para construir a abordagem sincrônico-diacrônica e conceituar a poesia pós-utópica. É fundamental apontar, que neste momento o movimento tentacular de Haroldo de Campos está bem articulado e consolidado, portanto, podemos inferir que a amizade com Paz contribuiu tanto para o desenvolvimento crítico da pós-utopia, como para a própria legitimação do seu discurso.

Tanto a posição política sustentada pela poesia, quanto o domínio do poeta sobre seus tentáculos legitimadores, ordenam a escolha do suporte de inscrição e circulação social da pós-utopia. Já experiente, Campos tinha cons-ciência da ousadia que era propor uma nova abordagem político-cultural da história, principalmente diante do forte conservadorismo da crítica literária brasileira, sua estraté-gia foi introduzir a pós-utopia difusamente nos seus textos críticos, que alimentavam gradativamente seu espaço canô-nico legitimado. Vinculados a um suporte simbolicamente valorizado, os livros de ensaio, que sucederam a publicação de Xadrez de Estrelas, incluíam o desenvolvimento da pers-pectiva sincrônico-diacrônica, proposta pela pós-utopia, de forma singular, incorporando-a nas discussões acadêmicas pouco a pouco, até conquistar o seu próprio espaço como

29. RANCIÈRE. Políticas da escrita, p. 109.

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movimento literário na criação haroldiana. Nesse cenário, a escolha do momento de vincular os textos ao suporte do livro também foi estratégica, os livros de ensaio só come-çam a ser publicados depois do livro de textos criativos do concretismo, isto é, o nome de Haroldo de Campos já circulava no cânone da literatura brasileira quando ele ini-cia a ressignificação do seu discurso pela ótica sincrônica. Apesar da manobra haroldiana, a recepção da crítica ao ensaio Poesia e modernidade: da morte da arte à constela-ção. O poema pós-utópico ainda foi ácida, entre os trechos mais polemizados podemos citar:

Sem perspectiva utópica, o movimento de vanguarda perde o seu sentido. Nessa acepção, a poesia viável do presente é uma poesia de pós-vanguarda, não porque seja pós-mo-derna ou antimopós-mo-derna, mas porque é pós-utópica. Ao pro-jeto totalizador da vanguarda, que, no limite, só a utopia redentora pode sustentar, sucede a pluralização das poéticas possíveis. 30

Para Haroldo de Campos o concretismo se destaca como o último movimento poético, grupal e anônimo, de van-guarda. Isto porque a estética do concretismo como movi-mento artístico se desenvolve de maneira semelhante em países diferentes - entre os quais podemos destacar, além

do Brasil, a Alemanha e a Rússia -, mesmo com pouco ou nenhum diálogo entre os escritores, em decorrência das limitações de comunicação da época. Assim, em seu ensaio, Haroldo de Campos entende a vanguarda como um objeto coletivo, que exige um horizonte utópico compartilhado.

Portanto, após o golpe de 64, o esvaziamento utópico resultou em um contexto pós-vanguarda melhor definido como pós-utópico do que como pós-moderno, uma vez que para Haroldo de Campos ainda não esgotamos o espaço da modernidade, sendo esse um dos pontos da teoria pós-utó-pica que enfrenta resistência da crítica literária. No ensaio O “pós-utópico” em questão (2018), por exemplo, Antonio Risério aponta que “o utópico, em seu sentido geral, nunca implicou e não implica, necessariamente, a existência de uma vanguarda, ou sustentação de qualquer vanguardismo estético”. 31 Devido a isso, para ele “não existe poema

pós-u-tópico desde que a humanidade nunca deixará de acreditar que outros mundos são possíveis, nem de imaginar esses mundos e de propor caminhos para a sua realização”. 32

Antonio Risério, antropólogo, poeta e ensaísta, nasceu em 1953 e suas publicações começam efetivamente na dé-cada de 80. Nesse período, Haroldo de Campos já era con-siderado um poeta do cânone literário brasileiro, sobretudo um poeta concreto. Risério, portanto, aproxima-se como

30. CAMPOS. Poesia da modernidade: da morte da arte à constelação. O poema pós-utópico, p. 268.

31. RISÉRIO. O “pós-utópico” em questão, p. 81.

32. RISÉRIO. O “pós-utópico” em questão, p. 87.

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leitor e crítico de um Haroldo de Campos concreto, e não como conseguimos distingui-lo atualmente, como um Ha-roldo de Campos que propõe a dialética entre concretismo e pós-utopia. Desse modo, em consequência do contexto no qual Risério se insere, a sua análise assume um cará-ter conservador, pois incará-terpreta o cará-termo pós-utopia como ausência de utopia ou esperança, que resultaria em uma humanidade que não consegue acreditar em mundos futu-ros possíveis. No entanto, a pós-utopia haroldiana possui uma dialética endógena a toda produção de Haroldo de Campos, que representa a coexistência dos contrastes hu-manos. Assim, existe um resíduo de utopia na pós-utopia, que decorre justamente da dialética entre princípio-espe-rança e princípio-realidade.

No ensaio Poesia e modernidade: da morte da arte à constelação. O poema pós-utópico, Campos escreve que na perspectiva pós-utópica o “princípio-esperança, vol-tado para o futuro, sucede o princípio-realidade, fundado ancorado no presente” 33. Considerando que Haroldo de

Campos começou a formular a sua teoria pós-utópica em 1968, um dos anos mais repressivos da ditadura brasilei-ra, podemos sugerir que a leitura sincrônico-diacrônica da pós-utopia, em essência, é a tentativa de atingir algum futuro possível, mas tendo a hostilidade do presente com horizonte. É relevante lembrar ainda que Campos pensa a

pós-utopia em um contexto pós-guerra, no qual o fracasso do nazismo corrobora para a resistência de um resíduo de utopia, ou princípio-esperança; o olhar, entretanto, está no presente, no princípio-realidade. Desse modo, princípio-es-perança e princípio-realidade não se anulam mutualmente, mas coexistem na pós-utopia haroldiana.

A crítica de Risério, portanto, pode ser vista como uma análise conservadora do ensaio de Campos, pois ela não explora todo o potencial dialético do discurso do poeta. Contudo, é importante destacar que o artigo de Risério compõe o livro de ensaios Que pós-utopia é esta? (2018), que contém as críticas literárias de diferentes pesquisadores interessados na pós-utopia haroldiana. Nesse livro pode-mos encontrar textos, como o de Risério, que discordam da perspectiva de Campos, mas também outros que con-cordam com o fato de estarmos inseridos em um momento pós-utópico. O importante é observar que a pós-utopia compõe um cenário democrático, no qual críticas opostas coexistem e discutem. Curioso notar também que apesar de muitos dos textos já circularem como artigos no meio acadêmico, eles foram reunidos e vinculados ao suporte do livro, sugerindo uma atribuição de valor que colabora com a legitimação da pós-utopia como movimento literário.

Outro fator que desfavorece a discussão de Risério é o fato da sua análise se restringir ao plano teórico e não

33. CAMPOS. Poesia e modernidade: da morte da arte à constelação. O poema pós-utópico, p. 268. Grifos do autor.

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incluir a ressignificação da produção criativa de Haroldo de Campos. Considerar a criação de poemas do período pós-utópico haroldiano é relevante, sobretudo, porque ela é vasta, iniciando-se em 1985 com a publicação do livro Educação dos cinco sentidos, e incluindo livros como Cri-santempo: no espaço curvo nasce um de 1998, A máquina do mundo repensada de 2000 e Entremilenios, livro post morte publicado em 2009. Em Crisantempo: no espaço cur-vo nasce um, por exemplo, podemos destacar dois poemas: o. p. octogenário e dialética do agora - 1.

O poema o. p. octogenário é relativamente curto, com-posto por cinco estrofes irregulares de versos livres, to-talizando 29 versos. Ele foi escrito em 1984, em ocasião do aniversário de oitenta anos de Octávio Paz. Logo nos primeiros versos, o poema traz para o plano poético as redes tentaculares haroldianas, envolvendo justamente a comunicação entre Paz e Jakobson (cito a primeira estrofe):

octávio paz evoca roman jakobson na new school for social sciences new york

onde roman e lévi-strauss se encontraram no exílio durante a

segunda guerra mundial 34

O encontro que contextualiza o poema ocorreu em Nova York e foi promovido pela The Academy of American Poets, ou como Campos prefere chamá-la “new school for so-cial sciences”. O que pretendemos destacar aqui é o trecho “octávio paz evoca roman jakobson”, que evidentemente considera o enjambement para a frase ser construída sin-taticamente. No trecho o termo evocar nos remete a frase da carta de 9 de outubro de 1968 de Paz, “já enviei os livros e escrevi a Jakobson” 35, isso porque, em uma carta com um

tom cotidiano, Paz evoca Jakobson no comentário final, confirmando haver entre eles uma troca de correspondên-cias, que, conforme sabemos, foi articulada por Campos. Assim, quando o poeta Haroldo de Campos escreve “oc-távio paz evoca roman jakobson”, ele está colocando em forma poética o estreitamento da relação de dois teóricos importantes, estreitamento este promovido por ele, pelo seu movimento tentacular.

O poema continua com suas próprias evocações, o ter-ceiro nome citado é de Claude Lévi-Strauss (1908-2009), importante antropólogo estruturalista da década de 50. A aproximação dos nomes de Jakobson e Lévi-Strauss, ilustra a relevante influência que o formalismo russo exerceu nos pensamentos estruturalistas. Entretanto, no poema essa justaposição dos dois nomes também foi relevante para trazer ao poema o contexto histórico da segunda guer-ra, que como vimos foi um momento importante para o

34. CAMPOS. Crisantempo: no espaço curvo nasce um. p. 297. Grifos do autor.

35. PAZ e CAMPOS. Transblanco, p. 104.

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desenvolvimento da teoria da pós-utopia. Isso porque, a se-gunda guerra foi um momento hostil da história humana, que foi sucedido por um futuro possível, no qual o nazis-mo fracassou, configurando assim uma esperança residual mesmo no contexto pós-utópico.

O poema dialética do agora – 1, por sua vez, é longo, sendo composto por 5 estrofes irregulares de versos livres, totalizando 99 versos construídos com um vocabulário sin-tético, que abusa das figuras de linguagem da assonância e da epístrofe. A repetição da palavra “agora”, por exemplo, perpassa todo o poema, que intenta justamente discutir o seu conceito, conforme podemos observar no trecho a seguir (cito fragmento da segunda estrofe):

o agora ele mesmo por certo se conserva mas como um tal que não é noite:

no que também se conserva por igual quanto ao dia

[...] 36

O poema, portanto, pensa o agora, ou o horizonte do presente vislumbrado pela pós-utopia. A epístrofe da pa-lavra “agora”, preenche o poema de figuras de agora e a discussão conceito de agora reintegra e concentra essa agoridade, de modo que o poema pode ser interpretado como o próprio agora. De acordo com o poema, o agora é algo que se “conserva”, ou seja, que não muda, no entanto, é curioso como ao mesmo tempo que ele se conserva “noite” ele também se conserva “dia”, sugerindo que noite e dia são opostos que coexistem no agora em uma relação dialética. Essa análise ilustra bem o conceito de pós-utopia, que é a coexistência dialética entre princípio-esperança, “dia”, e o princípio-realidade, “noite”, em um momento presente, o “agora”.

Assim, os poemas de Campos contribuem dialeticamen-te com a legitimação do espaço canônico da pós-utopia, uma vez que ilustram, em alguma medida, as teorias que fundamentam o movimento poético, não por acaso elas são inicialmente vinculadas ao suporte do livro impresso, para só depois se aventurar em outros suportes. Haroldo de Campos discorre sobre essa experimentação dos suportes em entrevista para a pesquisadora Maria Esther Maciel:

No passado, nos anos 50, houve momentos em que a gen-te pensava em letras luminosas para fazer um poema, mas aquilo era realmente utópico. Hoje não, pois já projetamos

36. CAMPOS. Crisantempo: no espaço curvo nasce um. p. 218-219.

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aqui em São Paulo, na Av. Paulista, poemas em raio laser nos edifícios. O laboratório de computação gráfica da Escola Politécnica da USP já fez comigo um poema num imenso computador que eles têm, que é uma coisa maravilhosa; o resultado, meu vídeo-poema “crisântempo”, parece um bu-raco cósmico aparecendo na tela. Então, por aí, se poderá até pensar que futuramente grandes possibilidades se evi-denciarão em termos de linguagem e de repente isso pode coincidir com um momento de uma esperança projetual. O fato de dizermos que estamos vivendo uma crise das ideo-logias, num momento pós-utópico, não significa que outros momentos utópicos não possam surgir no futuro e em ou-tras partes do mundo. 37

Podemos sugerir que, no plano dos textos criativos, a pós-utopia continua a experiência pelos suportes de ins-crição iniciado no concretismo, com o objetivo não de al-cançar uma valorização dos poemas como cânone, pois isto Haroldo de Campos já realizava com o gerenciamento tentacular do lugar paratópico de seus espaços canônico e associado, mas de propriamente experimentar as possibi-lidades de suporte oferecidas pela década de 90 e difundir a circulação da pós-utopia. Contudo, como nesse perío-do Harolperío-do de Campos já tinha um lugar, definiperío-do pelo concretismo, no cânone da literatura brasileira, muitas das

poesias projetadas em prédios ou vinculadas ao ambiente digital eram tidas como poesias concretas. A resistência que a crítica literária operava sobre a teoria pós-utópica colaborava para a manutenção desse cenário, pois limitava a circulação e a discussão desse movimento estético ao polo acadêmico. Nesse sentido, a análise dos poemas, tanto com relação ao suporte como da ressignificação o seu discurso, é um território fértil para estudos que buscam compreender a teoria pós-utópica, uma vez que até então eles têm sido interpretados pelo viés do concretismo.

Ainda sobre a fala de Campos, é importante depreender que para o poeta a pósutopia também inclui um esvazia-mento da utopia das possibilidades do suporte, pelo menos dos suportes disponíveis na década de 90, quando os compu-tadores e a internet começam a chegar no Brasil. Haroldo de Campos, no entanto, não descarta a probabilidade de ascen-são de um novo momento utópico, ou seja, a pósutopia não é o destino final da literatura brasileira, mas sim um recorte histórico no qual ainda estamos inseridos. Desse modo, ele deixa claro que o momento pósutópico não anula a capa-cidade humana de acreditar em outros mundos melhores, contradizendo, assim, a crítica que se opõe ao movimento.

Desdobrada a partir de ensaios e correspondências que permeiam a trajetória de Haroldo de Campos desde o

37. CAMPOS. Entrevista com Haroldo de Campos sobre Octavio Paz, p. 54.

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concretismo, podemos afirmar que a pós-utopia só existe porque Campos foi um poeta concreto, que experimentou mallarmeanamente as possibilidades da forma, dos suportes e das teorias. Antecipando-se a chegada da cibercultura, a morte de Haroldo de Campos nos faz refletir sobre a res-trição em relação a diversidade de suportes imposta à poe-sia pós-utópica de Campos. Os tentáculos haroldianos, que orquestravam com confiança sua estratégia legitimadora, foram tirados de cena antes que a pós-utopia extrapolasse a esfera acadêmica e recebesse valor de movimento literário. Como Haroldo de Campos tinha o domínio da legitimação de sua criação, a sua ausência reflete na atual restrição da discussão da pós-utopia ainda ao polo acadêmico, bem como nas tentativas de valorização do movimento com a publica-ção de artigos e livros. Nesse sentido, a ressignificapublica-ção dos seus poemas se destaca como uma manobra que possibili-ta entender a pós-utopia enquanto teoria e legitimá-la. No cenário pós-utópico atual, cabe à crítica literária a tarefa de apropriar-se antropofagicamente das redes tentaculares de Haroldo de Campos, para assim determinar o lugar da pós-utopia na literatura brasileira.

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Recebido em: 25/02/2019 Aceito em: 28/06/2019

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