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A criminalização e o medo do 'Outro' através da imprensa: a construção social do crime nas narrativas sobre o assassinato de Maria Ladenburger e o atentado ao Bataclan

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Academic year: 2020

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Alícia Menezes Wiedemann

A criminalização e o medo do 'Outro' através

da imprensa: a construção social do crime

nas narrativas sobre o assassinato de

Maria Ladenburger e o atentado ao Bataclan

Alícia Menezes Wiedemann

A criminalização e o medo do 'Outro' através da imprensa: a cons

trução social do crime nas narrativ

as sobre o assassinato de Maria Ladenburger e o atent

ado ao Bat

aclan

Universidade do Minho

Instituto de Ciências Sociais

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Dissertação de Mestrado

Crime, Diferença e Desigualdade

Trabalho efetuado sob a orientação da

Professora Doutora Helena Machado

Doutora Rafaela Granja

Universidade do Minho

Instituto de Ciências Sociais

Alícia Menezes Wiedemann

A criminalização e o medo do 'Outro' através

da imprensa: a construção social do crime

nas narrativas sobre o assassinato de

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DIREITOS DE AUTOR E CONDIÇÕES DE UTILIZAÇÃO DO TRABALHO POR TERCEIROS

Este é um trabalho académico que pode ser utilizado por terceiros desde que respeitadas as regras e boas práticas internacionalmente aceites, no que concerne aos direitos de autor e direitos conexos.

Assim, o presente trabalho pode ser utilizado nos termos previstos na licença abaixo indicada.

Caso o utilizador necessite de permissão para poder fazer um uso do trabalho em condições não previstas no licenciamento indicado, deverá contactar o autor, através do RepositóriUM da Universidade do Minho.

Licença concedida aos utilizadores deste trabalho

Atribuição CC BY

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Agradecimentos

Agradeço à Professora Helena, por toda a atenção e orientação recebida no âmbito dessa dissertação e pela oportunidade de trabalho junto à sua equipe de investigação1. Foi um ano de

muito aprendizado e espero que o começo de uma jornada profissional naquilo que realmente me identifico.

Agradeço à Rafaela, por estar sempre presente, pelas conversas e pela positividade. Obrigada por cada palavra dita, ajuda e ensinamento.

Agradeço, também, às demais meninas da minha equipe: Marta, Sara, Laura, Sheila, Nina e Filipa. Vocês são incríveis e cada uma fez toda a diferença nesse ano.

A toda equipe Exchange, portanto, o meu muito obrigada, de coração. Não tenho palavras para expressar o quanto agradeço. Desejo caminhos abertos sempre, muitas alegrias e sucesso a todas.

Agradeço à minha mãe, minha maior incentivadora e amiga, que me dá a mão mesmo que distante. Espero retribuir tudo o que você faz por mim. Estamos sempre juntas.

Ao meu avô Ued, minha maior inspiração, por ter me despertado o gosto pela investigação e a quem eu espero orgulhar sempre. Às minhas queridas avós, também digo muito obrigada.

Agradeço à Cristininha, que me trouxe para terras lusitanas e ao Mik, que me fez querer ficar desde o primeiro dia em que aqui cheguei.

Obrigada à toda minha família e aos amigos do Brasil. Estamos perto e conectados pelo coração. Guardo vocês comigo e não passo um dia sem me lembrar de momentos especiais de festa e de luta, todos acompanhados por largos sorrisos em nossos rostos. Nossa energia é mágica até mesmo em momentos de resistência.

Ao mundo, por todas as oportunidades: obrigada, obrigada, obrigada.

1Este trabalho recebeu financiamento do Conselho Europeu de Investigação (ERC) sob o programa de pesquisa e inovação da União Europeia

Horizonte 2020 (Contrato N.º [648608]), no âmbito do projeto “EXCHANGE – Geneticistas forenses e a partilha transnacional de informação genética na União Europeia: Relações entre ciência e controlo social, cidadania e democracia” liderado por Helena Machado e sedeado no Centro de Estudos de Comunicação e Sociedade, Instituto de Ciências Sociais da Universidade do Minho (Portugal).

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Declaração de Integridade

Declaro ter atuado com integridade na elaboração da presente tese. Confirmo que em todo o trabalho conducente à sua elaboração não recorri à prática de plágio ou a qualquer forma de falsificação de resultados.

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A criminalização e o medo do ‘Outro’ através da imprensa: a

construção social do crime nas narrativas sobre o assassinato

de Maria Ladenburger e o atentado ao Bataclan

RESUMO

Em um mundo global, os constantes fluxos migratórios e a antecipação de possíveis ameaças estão no centro das agendas governamental e midiática europeia. A presente investigação visa analisar a forma como a imprensa aborda comunidades suspeitas, num contexto social que exacerba o medo em relação ao crime e ao ‘Outro’. Esse ‘Outro’, por sua vez, é visto como sinônimo de ameaça e como alvo de monitoramento e exclusão por instâncias de poder. Nesse sentido, a metodologia da investigação é guiada pela Teoria Fundamentada na pesquisa empírica, focada na análise de conteúdo das mensagens transmitidas pela imprensa em relação a dois casos de estudo: o assassinato da Maria Ladenburger, na Alemanha e o atentado ao Bataclan, na França. Assim, pretende-se analisar quais as consequências da atribuição de crimes violentos a certos indivíduos e grupos sociais e como essa abordagem impacta ao nível do medo, dos mecanismos modernos de vigilância e controle e de políticas de exclusão, como a crimigração. Os resultados obtidos permitem observar quais os grupos considerados de risco, o papel da imprensa na criminalização dos mesmos e os impactos sociais daí decorrentes.

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Criminalization and fear of the 'Other' through the press: the

social construction of criminality in the narratives about the

murder of Maria Ladenburger and the attack on the Bataclan

ABSTRACT

In a global world, constant migratory flows and the anticipation of possible threats are at the center of european governmental and media agendas. The present investigation aims to analyze the way the press approaches suspect communities, in a societal context that exacerbates the fear of crime and the 'Other'. This 'Other', in turn, is seen as a synonym of threat and as a target of monitoring and exclusion by instances of power. In this sense, the methodology of the investigation is guided by the Grounded Theory in empirical research, focused on the content analysis of the messages transmitted by the press in relation to two cases of study: the murder of Maria Ladenburger, in Germany and the attack on Bataclan, in France. Thus, it is intended to analyze the consequences of the attribution of violent crimes to certain individuals and social groups and how this approach impacts on the level of fear, modern mechanisms of surveillance and control and exclusion policies, such as crimmigration. The results obtained allow us to observe which groups are considered as risk, the role of the press in criminalizing them and the resulting social impacts.

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ÍNDICE

RESUMO ... V ABSTRACT ... VI ÍNDICE DE FIGURAS ... IX ÍNDICE DE TABELAS ... IX LISTA DE SIGLAS ... X INTRODUÇÃO ________________________________________________________ 11 PARTE I - PROBLEMÁTICA DE INVESTIGAÇÃO _____________________________ 16

Capítulo 1 - Tendências atuais da governabilidade do crime ... 16

O mundo globalizado ... 16

A atual sociedade de risco ... 18

O crime sob o paradigma da sociedade de risco ... 19

As novas tecnologias de vigilância ... 21

Capítulo 2 - Criminalização de comunidades suspeitas ... 24

A raça e os novos mecanismos de vigilância ... 24

Grupos suspeitos e terrorismo ... 27

Movimentos migratórios ... 28

Desdobramentos da sobreposição entre terrorismo e movimentos migratórios ... 31

Crimigração ... 32

Capítulo 3 - A imprensa e o reforço das tendências sociais, culturais e políticas 35 A massificação da imprensa e seus impactos ... 35

A abordagem do crime ... 38

Os indivíduos criminalizados ... 40

Capítulo 4 - Pânico moral ... 43

Os conceitos tradicionais de pânico moral ... 43

A imprensa, o ‘discurso do medo’ e o pânico moral ... 46

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PARTE II – METODOLOGIA _____________________________________________ 53

Linhas orientadoras: questão de partida, hipótese de trabalho e objetivos ... 53

Metodologia: a Teoria Fundamentada (Grounded Theory)... 54

Análise de conteúdo versus análise de discurso ... 55

Técnica de pesquisa - análise de conteúdo de material da imprensa online ... 57

Casos de análise ... 60

Assassinato da Maria L. ... 61

Atentado ao Bataclan ... 63

PARTE III - ANÁLISE DE RESULTADOS ____________________________________ 66 Vítima ... 66 Autor do crime ... 69 Implicações sociais ... 78 Implicações políticas ... 82 CONCLUSÃO_________________________________________________________ 95 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ________________________________________ 99

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I

́NDICE DE FIGURAS

FIGURA 1 - CONCEITOS DO CAPÍTULO 1 ... 23

FIGURA 2 - CONCEITOS DO CAPÍTULO 2 ... 34

FIGURA 3 - CONCEITOS DO CAPÍTULO 3 ... 42

FIGURA 4 - CONCEITOS DO CAPÍTULO 4 ... 52

I

́NDICE DE TABELAS

TABELA 1 DAS PRINCIPAIS PREOCUPAÇÕES DOS ESTADOS EUROPEUS ATUALMENTE ... 22

TABELA 2 DOS CRITÉRIOS DAS NOTÍCIAS ACERCA DO CRIME, SEGUNDO JEWKES (2004) .. 39

TABELA 3 DOS AGENTES DO PÂNICO MORAL, SEGUNDO COHEN ... 44

TABELA 4 DOS ELEMENTOS FORMADORES DO PÂNICO MORAL, SEGUNDO GOODE & YEHUDA ... 45

TABELA 5 COM GRUPOS QUE SÃO CONSIDERADOS AMEAÇAS NO MUNDO ATUAL ... 49

TABELA 6 DAS REPORTAGENS ANALISADAS NO CASO MARIA LADENBURGER ... 62

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LISTA DE SIGLAS

DNA – Ácido desoxirribonucleico

EU – União Europeia

EURODAC – European Asylum Dactyloscopy Database PALOP – Países Africanos de Língua Oficial Portuguesa RATP – Régie Autonome des Transports Parisiens BAC – Brigade anti-criminalité

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INTRODUÇÃO

Nas últimas décadas, a relação tempo-espaço sofreu uma grande transformação e distâncias diminuíram pela maior rapidez de trocas entre diversos lugares. Em outras palavras, o mundo globalizado possibilitou a existência de redes transnacionais, possibilitando uma maior circulação de bens, capitais, pessoas, elementos culturais, relações sociais, ideias (Aas 2013). Dentro desse novo cenário, um dos desdobramentos foi a expansão dos grandes fluxos migratórios. Isso fez com que indivíduos não familiares e até mesmo indesejados por parte dos agentes de controle político e social tivessem maior liberdade de circulação. Pela associação dessas pessoas com o cometimento de crimes, estimulada ainda mais por discursos midiáticos, essa realidade permitiu a crença no aumento de uma insegurança global, tornando-os sujeitos de preocupações e medidas (Aas 2013).

Assim, por meio da análise de narrativas da imprensa em torno do assassinato de Maria Ladenburger e do atentado ao Bataclan, a questão de partida que orienta o trabalho é: “Qual o papel da imprensa na construção de comunidades suspeitas e como uma abordagem que as relacionam com a criminalidade violenta reflete na construção social do crime e na ampliação dos mecanismos de gestão e controle das mesmas?”. A hipótese que orienta a pesquisa essencialmente se baseia na ideia de que, em uma realidade em que a gestão antecipada de ameaças é vislumbrada por instituições de poder, a imprensa tem papel de relevância na definição de quem serão os sujeitos de medidas controladoras. Assim, por meio da análise dessas narrativas, a dissertação2 visa observar as consequências da divulgação de crimes violentos

associados a agentes pertencentes a grupos sociais mais vulneráveis à aplicação da lei e de medidas excludentes. Em outras palavras, a pesquisa busca compreender qual é o papel da imprensa na criminalização dos mesmos e no consequente pânico moral gerado face a eles, além dos impactos daí decorrentes. Diante disso, busca-se, também, verificar os efeitos dessa abordagem em relação ao desenvolvimento de mecanismos modernos de vigilância e controle populacional. Além disso, objetiva-se analisar como essa associação entre crimes e certos indivíduos provoca o surgimento de estigmas e marginalização não só face aos que cometeram os crimes, como também dos grupos aos quais eles pertencem, estimulando outras práticas excludentes contra eles, como a crimigração, por exemplo. Esse fenômeno da crimigração, por

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sua vez, consiste na sobreposição entre as leis criminais e de imigração de um país e, por isso, estimula cada vez mais a criminalização de atos imigratórios com o intuito de dificultar a inserção de algumas pessoas nos seus locais de destino.

Cabe dizer que o presente trabalho foi realizado com o financiamento do Conselho Europeu de Investigação (ERC), sob o programa de pesquisa e inovação da União Europeia Horizonte 2020 (Contrato N.º [648608]), no âmbito do projeto “EXCHANGE – Geneticistas forenses e a partilha transnacional de informação genética na União Europeia: Relações entre ciência e controlo social, cidadania e democracia”, que tem Helena Machado como investigadora principal e é sedeado no Centro de Estudos de Comunicação e Sociedade, do Instituto de Ciências Sociais da Universidade do Minho, em Portugal.

Perante a decisão de Prüm, ocorrida em 2008, o projeto EXCHANGE visa analisar o contexto das implicações culturais, políticas, éticas, sociais e regulamentárias daí decorrentes. O Tratado de Prüm tornou obrigatório que todos os países-membros da União Europeia viabilizassem condições para a busca automática, recíproca e para a comparação de informações sobre dados de DNA, com o objetivo de combater o crime transfronteiriço, o terrorismo e imigrações irregulares. Assim, o EXCHANGE visa entender como os geneticistas forenses percebem e aplicam seus conhecimentos altamente técnicos tendo em vista as vastas implicações de Prüm na realidade atual. Em outras termos, o projeto busca verificar os laços entre profissionais ligados à genética forense e a vigilância na EU, pensando em questões que envolvem a ciência e os valores sociais atribuídos ao controle social, cidadania e democracia.

A dissertação, ao ter como um dos eixos principais a análise de material da imprensa, se enquadra no subprojeto 3 do EXCHANGE. O mesmo pretende conceber, por meio de análise dos discursos sobre casos criminais transfronteiriços, como as trocas internacionais de DNA são mobilizadas e funcionam para o combate dos mesmos. Esses discursos circulam entre os diferentes domínios da prática, como a ciência forense, a justiça criminal e a mídia. Assim, com a seleção de dois casos criminais de relevância ocorridos na Alemanha e na França e a análise dos mesmos em textos da imprensa, o trabalho almeja perceber as representações da mídia acerca de quem são os suspeitos transnacionais e os consequentes estímulos a trocas transnacionais de dados e outras políticas para melhor controlá-los, compreendendo o significado social dessa realidade.

Assim, a respeito da metodologia do trabalho, seguindo o caráter qualitativo presente no projeto como um todo, ela possui base na Teoria Fundamentada aplicada à pesquisa empírica

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(Grounded Theory). O que se busca é uma relação entre a teoria exposta e análise de conteúdo do material empírico recolhido. Esse, por sua vez, consiste em notícias coletadas na imprensa alemã e francesa acerca de dois episódios ocorridos em 2015 e de forte divulgação midiática: o assassinato da estudante Maria Ladenburger, na Alemanha e o atentado ao Bataclan, na França. Ambos foram casos de amplas repercussões e consequências.

Já num viés mais teórico, cabe dizer que a sociedade global também se caracteriza pela presença constante de riscos, justamente pelas facilidades e desenvolvimentos que ela possibilitou. Esses riscos são considerados problemas incidentais dos avanços ocorridos no mundo globalizado, principalmente pelo aumento das possibilidades de locomoções e pelas evoluções tecnológicas (Beck 2011). Tudo isso, portanto, traduz a ideia do “potencial político de catástrofes”, cunhado por Beck (apud Ungar 2001:1), por conta da dimensão dos riscos que se pode ter com a globalização, como ambientais, nucleares e, sobretudo, no tocante à criminalidade transfronteiriça.

Em relação ao risco em um contexto criminal, atualmente é adotada uma postura antecipatória direcionada para a identificação e controle de possíveis ameaças antes que elas se transformem em atos concretos. Tal mudança de comportamento pode ser traduzida pela transição de “sociedades disciplinares” para as chamadas “sociedades de segurança” (Maciel & Machado apud Machado et al 2018:533). As “sociedades disciplinares” são traduzidas pela presença de uma vigilância panóptica, realizada após a ocorrência determinado ato e destinada a identificar e oferecer a resposta condenatória adequada ao comportamento problemático (Williams & Johnson 2004:11). Já as “sociedades de segurança” possuem uma postura antecipatória, com foco na previsão e combate de riscos, sobretudo daqueles oriundos de movimentos migratórios, que por sua vez possuem conexões com o terrorismo e crimes transfronteiriços (Garland 2008; Garland; Lyon apud Machado et al 2018:533). Toda essa realidade, então, se conecta com a ideia do ‘Outro’, a intimidação inerente a ele e a necessidade de vigiá-lo e controlá-lo.

Dentro desse contexto securitário, a arrecadação do máximo de informações acerca de possíveis perigos torna-se essencial para a antecipação e prevenção de atos criminais (McCulloch & Pickering 2009). Nessa lógica, o termo “technosecurity”, proposto por David Skinner (2018), denota a intenção de se promover tecnologias em prol da vigilância e do combate às ameaças da sociedade de risco e global. Isso foi permitido, em grande parte, pelo desenvolvimento de biotecnologias de vigilância com capacidades de armazenamento de dados sobre suspeitos.

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Discursos midiáticos são responsáveis pelo reforço dos discursos acerca dos benefícios que as novas práticas trazem no combate a possíveis ameaças.

Por seu turno, o estímulo e a utilização não só dessas novas tecnologias, mas também de políticas de controle, como a crimigração, possuem forte direcionamento à gestão de comunidades suspeitas. Essas, como mencionado, seriam compostas pelos ‘Outros’, ou seja, aqueles que são associados à prática de atos que provocam o descontrole da harmonia social. O conceito de ‘Outro’ é central no presente trabalho. Indivíduos são considerados ‘Outros’ quando não possuem qualquer tipo de pertencimento histórico ao local em que se encontram, o que provoca uma escassez de reconhecimento, direitos e deveres dos mesmos (Bhambra 2017). Essa condição, que, inclusive, também é enfatizada pela imprensa, traduz a convicção de que eles não são passíveis de integração e personificam o risco. Por isso, os ‘Outros’, que são tidos como uma ameaça ao bem-estar social, são os principais focos de vigilância de mecanismos de exclusão. A ideia sobre ‘Outros’ e comunidades suspeitas é formada por instâncias de poder, como políticas, governamentais, públicas e midiáticas, que levam em conta uma combinação de fatores, como etnia, classe, sexo para consequentes exclusões e privações (Cole & Lynch 2006; Cole; Pantazis & Pemberton; M’Charek et al; Skinner apud Machado & Granja, no prelo). Historicamente, entretanto, questões de identidade e pertencimento sempre foram refletidas em políticas de controle (M´Charek et al 2014). Assim, mesmo sem indícios, as ameaças atuais são conectadas com determinados grupos, principalmente de imigrantes, minorias étnicas e religiosas (Bigo 2008).

Toda essa realidade é ainda mais enfatizada por discursos midiáticos, essencialmente da imprensa, e seus focos na apresentação de crimes violentos associados a esses sujeitos. A massificação dos meios de comunicação provocou uma necessidade de lucro, além de uma elevada conexão com os institutos de manutenção da ordem (Welch et al 1997). Isso fez com que a mídia optasse pela forte divulgação de notícias criminais, por seus potenciais de adesão pública (Jewkes 2004). Ocorre que, a busca pelo sensacional noticiável também estimula o medo e consequente exclusão não só daqueles apontados como criminosos nas reportagens como também das comunidades aos quais eles pertencem. Nesse sentido, o pânico moral nos dias atuais, surge pelo sentimento de insegurança provocado por narrativas criminais e aleatoriedade de vitimação, principalmente em relação aos grupos já referidos (Machado & Santos 2011). Isso acaba por gerar uma repulsa da sociedade e estimular ainda mais o crescimento das medidas tomadas face a eles, o que nos leva a discussões cada vez mais profundas sobre a história no que

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tange classe e poder e como isso se desdobra na maneira atual de se lidar com determinados indivíduos (Santos 2018).

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PARTE I - PROBLEMÁTICA DE INVESTIGAÇÃO

Capítulo 1 - Tendências atuais da governabilidade do crime

O mundo globalizado

A globalização é um tema que envolve longa história e modalidades, abrangendo uma multiplicidade de definições, dimensões e discussões a respeito. Em termos mais gerais, a ideia é relacionada a um crescimento dos contatos entre as comunidades humanas (Held apud Aas 2013), além de um grande desenvolvimento econômico e tecnológico (Aas 2013). O mundo moderno permitiu a existência de sistemas interativos (Appadurai 1996) que viabilizam, por meio de redes transnacionais, uma maior circulação de bens, capitais, pessoas, elementos culturais, relações sociais, ideias (Aas 2013). Atualmente, mais do que nunca, o fenômeno global se insere nas esferas da vida em sociedade e isso acaba por também ter influências sobre percepções comunitárias, identitárias e culturais dos indivíduos (Aas 2013).

Embora existam debates polarizados acerca do assunto, tendo, inclusive, quem critique o uso do termo ‘globalização’, ninguém com a intenção de compreender as relações modernas, como sociais, políticas e governamentais, pode abstrair o fenômeno e seus desdobramentos (Giddens apud Aas 2013:4). O vínculo entre tempo-espaço sofreu grande transformação e distâncias tornaram-se menores por conta de uma maior rapidez entre as trocas, como, por exemplo, a de informações. A velocidade, intensidade e impacto das comunicações e transações cresceram numa escala global (Castells apud Lyon 2004). Tais relações tornaram-se, também, cada vez mais abstratas e desencorpadas (Lyon 2004). A globalização, portanto, refere-se, essencialmente, às novas redes de conexão entre diferentes contextos sociais e regionais, com uma intensificação das relações entre esses múltiplos locais do mundo (Giddens 1991).

Segundo Aas (2013), é importante pontuar a subsistência de territórios e grupos sociais que foram deixados de fora e desconectados dessas relações. Quando pensamos, particularmente, nos aspectos cultural e econômico delas, de fato o fenômeno ainda se limita mais às trocas entre determinados países do hemisfério norte. Tal restrição se relaciona diretamente com questões de renda, riqueza e poder desses locais, que acabam por desencadear exclusões. Sendo assim, as conexões e desconexões globais, ambas características da manifestação da globalização, são complexas e nos forçam a analisar a sociedade e seus aspectos sob uma nova perspectiva (Aas 2013).

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Ainda de acordo com Aas (2013), o novo cenário mundial também se caracteriza pela presença de grandes fluxos migratórios, que transpõem as fronteiras nacionais dos Estados. Aos poucos, os mesmos revelaram um novo significado aos sentidos de casa, comunidade, nação e cidadania, atenuando a ideia de limites territoriais e de pertencimento entre comunidades e sociedades. Todavia, a constância desses movimentos faz com que, às vezes, pessoas, ideias, atividades não familiares e até mesmo indesejadas por parte dos agentes de controle político e social, também se conectem (Aas 2013). Além disso, a mobilidade global provocou uma dificuldade de atribuição de identidades estáveis, por parte dos Estados, a grupos de pessoas tão móveis e versáteis e uma consequente necessidade e aspiração de controlar os mesmos (Aas 2006).

Já em relação ao contexto criminal, a autora menciona que as mudanças provocadas por relações e trocas globais, inclusive a flexibilização das fronteiras, são as bases para se repensar o medo do crime e a insegurança vivenciados nas últimas décadas. A perda de poder dos Estados em relação aos movimentos dos indivíduos e a reconfiguração dos ideais acerca da criminalidade e de seus agentes desencadearam a necessidade de maior controle populacional em busca de se prevenir o que, ou quem, é tido como indesejado por instituições de poder. Conforme será observado, isso fomenta o controle e a exclusão de determinadas populações, por meio de políticas e mecanismos tecnológicos de vigilância, em uma tentativa de se conter o risco que as mesmas representam para alguns (Aas 2013).

Relevante para o presente trabalho, um dos pontos complexos da realidade global a ser analisado é o fato de que, dicotomicamente, ao mesmo tempo que as relações sociais são ampliadas e reforçadas no processo de globalização, podemos observar pressões no sentido de uma autonomia e identidade cultural locais (Giddens 1991) e de supressão de certos grupos. Em outras palavras, ao passo que interconexões globais crescem rapidamente, podemos verificar a ideia de rejeição daquilo que ‘não pertence’ a determinado contexto social e local, que seria visto sob o prisma de ameaça. Isso nos chama a atenção quando pensamos que valores e concepções contemporâneos, inclusive acerca dos movimentos migratórios, da criminalidade e seus agentes e de mecanismos para o seu combate, como o desenvolvimento de tecnologias modernas de vigilância, são pautados a partir dessa conjuntura.

Logo, ao relacionarmos o aumento dos fluxos migratórios e um novo olhar sobre a criminalidade sob o prisma de um mundo globalizado, verificamos uma conexão entre o ‘Outro’ e a ideia de ameaça à harmonia e ordem sociais. A terminologia ‘Outro’, por sua vez, é usada para

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se referir àquele que se move ou que está em determinado local sem que possua um pertencimento histórico a ele (Bhambra 2017), que seria um pré-requisito para a obtenção de reconhecimento, direitos e deveres. O rótulo ‘Outro’ simboliza a crença na não integração e no risco que tal sujeito pode trazer para a sociedade na qual passa a se inserir. Em outros termos, aquele que é considerado não pertencente a um local, principalmente quando proveniente de determinados lugares e grupos populacionais, representa um risco para sua coesão e bem-estar. Por isso, ele deveria ser constantemente vigiado e afastado em ordem de se prevenir a consumação de qualquer tipo de risco.

Nessa perspectiva, um dos desdobramentos do mundo globalizado, que aqui será analisado, é o crescimento de uma insegurança global. Ela se manifesta pelo medo de ameaças externas a um certo lugar. Isso se dá dentro de uma sociedade de risco, de uma guerra ao crime e por conta das facilidades de locomoção dos indivíduos, que estimulam cada vez mais mecanismos de vigilância e exclusão dos considerados socialmente ‘indesejáveis’, sobretudo a partir de narrativas construídas pela imprensa e de desenvolvimentos de tecnologias de controle. A atual sociedade de risco

Dentre os diferentes desdobramentos de um mundo marcado por trocas de dimensões globais, as novas ameaças, assim como a dualidade apresentada acima, traduzida por inclusão/exclusão e mobilidade/vigilância de indivíduos, é melhor elaborada quando temos em mente a denominada sociedade de risco.

A concepção da expressão foi desenvolvida representando uma mudança de paradigma em relação ao que é caracterizado como risco, as inseguranças dele derivadas e o comportamento de enfrentamento a tudo isso. Os perigos e ameaças de hoje em dia diferem dos antigos devido às suas naturezas globais e são considerados problemas incidentais dos avanços ocorridos no mundo (Beck 2011), que oferecem riscos à saúde e ao bem-estar de determinada população (Garland 2008). Segundo Beck (2011:21), os mesmos passaram a ser vistos como consequências da modernização e de sua força ameaçadora, que leva a uma chamada “globalização da dúvida”. O medo, aqui, refere-se às incertezas derivadas de determinados riscos não mensuráveis (Garland 2008). É um momento em que surgem novos perigos ecológicos, tecnológicos, industriais e sociais, por exemplo, com grandes potenciais de destruição (Beck 2011). Os riscos são, deste modo, vistos a partir dos seus “potenciais políticos de catástrofes” e essa capacidade desencadeia

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esforços científicos e críticas frente ao desenvolvimento de novas tecnologias e trocas (Beck apud Ungar 2001:271).

No âmbito do presente trabalho, é relevante mencionar os desdobramentos da sociedade de risco em relação ao contexto criminal, em que se adota uma postura antecipatória. Esse comportamento é direcionado para a identificação e controle de possíveis ameaças antes que elas se transformem em atos concretos. Isso desencadeia uma série de implicações, essencialmente para os grupos associados com o cometimento de crimes.

O crime sob o paradigma da sociedade de risco

Desde o Século XIX, a temática criminal e seu controle se desvinculam cada vez mais da exclusividade da esfera da justiça penal, sendo mobilizados e operacionalizados em várias outras facetas da sociedade, como em controles migratórios. O objetivo é, não só a prevenção de atos de graves efeitos, como a manutenção da ordem pública, o controle da delinquência e de práticas antissociais atreladas a alguns indivíduos (Rose 2000). Entretanto, os ataques terroristas contribuíram fortemente para a mudança de abordagem e enfrentamento de questões criminais hoje em dia. Principalmente após os atentados de 11 de setembro de 2001, dos de Madrid, em 2004 e Londres, 2005, os Estados soberanos modernos passaram a se orientar com base na ideia de segurança e de que, embora as possibilidades de ocorrências de eventos como esses sejam baixas, se acontecem, geram grandes consequências (Amoore 2013). Portanto, são necessários esforços a fim de se evitar que probabilidades não se tornem realidades.

Com isso, orientando a ideia de sociedade de risco para uma dimensão criminal, podemos

abordar a transição das chamadas “sociedades disciplinares” para as “sociedades de segurança” (Maciel & Machado apud Machado et al 2018:533). A primeira denota a presença de uma vigilância panóptica, realizada após o acontecimento de determinado ato e destinada a identificar e oferecer a resposta condenatória adequada ao comportamento problemático (Williams & Johnson 2004:11). A vigilância é reativa, ou seja, é uma reação ao comportamento de um suspeito, como sanção e reclusão (Williams & Johnson 2004:4). Já as “sociedades de segurança” possuem uma postura antecipatória, com o foco na previsão e no combate de riscos, que se deu por uma ênfase na gestão da ameaça criminal (Garland 2008; Garland; Lyon apud Machado et al 2018:533). As bases para essa transformação foram as ações e os desenvolvimentos de atos criminais, o medo proveniente da locomoção de pessoas e a construção política e social em torno das representações de ameaça e risco (Bigo 2008). A ameaça, como dito, ultrapassa fronteiras

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na conjuntura do mundo moderno e, diante da impossibilidade de se calcular a dimensão dos efeitos de determinados atos, o objetivo é, então, controlá-los antes mesmo deles se concretizarem. Na Europa, por exemplo, países buscam incessantemente a descoberta, intervenção e o desfazimento de atividades relacionadas a redes de terrorismo e de crimes transfronteiriços para que ataques futuros sejam evitados (Zedner 2016).

Nesse âmbito, a inteligência, ou seja, a arrecadação do máximo de informações sobre possíveis perigos torna-se essencial para que haja uma antecipação e prevenção de atos criminais (McCulloch & Pickering 2009). Isso é possibilitado por novos mecanismos de controle, focados no armazenamento de dados de indivíduos considerados suspeitos. Sob a premissa de que o combate de futuros eventos indesejáveis seria possibilitado por meio de cálculos no presente, a administração do risco se baseia muito mais em técnicas de identificação, classificação e controle de grupos e condutas consideradas perigosas do que nos atos em si (Rose 2000). McCulloch & Pickering (2009:628-629) se referem ao termo “pre-crime”, que está relacionado à antecipação de ameaças para prevenção de crimes. Aqui, não podemos associá-lo com medidas de prevenção de crimes no sentido criminológico, que seriam não punitivas e com o intuito de reduzir a ocorrência de atos criminais dentro de um contexto mais amplo. Isso se dá, pois, as determinações de “pre-crime” ignoram o contexto social que permite a ocorrência de crimes e se direcionam a ameaças específicas, criminalizando quem se acredita que irá ser responsável por elas (McCulloch & Pickering 2009).

De acordo com Didier Bigo (2008), embora o foco no combate à criminalidade tenha mudado e, ao mesmo tempo, se desenvolvido, verifica-se que, estatisticamente, não é observado um aumento nos índices de violência no mundo globalizado. O que pode representar a ideia de aumento da criminalidade é o surgimento de armas de impactos globais, o aumento dos movimentos populacionais e a ideia de interconexão entre diferentes formas de violência. Segundo ele, o que ocorre, na verdade, é muito mais uma globalização de “medos e desconfortos” (Bigo 2008:103) e a necessidade de exclusão social de determinados sujeitos, sobretudo pertencentes a minorias étnicas, religiosas e imigrantes. Desde, pelo menos, o Século XVIII ocorre uma associação entre determinadas figuras à ideia de desordem e ameaça à civilidade (Rose 2000). Essas figuras, por sua vez, não são incluídas na concepção de cidadania universal global e possuem estratégias de administração de risco voltadas para elas (Rose 2000). Sendo assim, essa mudança de abordagem está muito mais relacionada com um governo de ordem moral do que na gestão do crime em si (Rose 2000), tanto é que determinados grupos sociais, como os acima

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expostos, sofrem um controle muito mais incisivo do que outros, sob o discurso de prevenção do risco e de defesa da sociedade (Machado et al 2018).

A retórica em torno de novas formas de violência e que elas podem ser usadas contra todos é considerada uma verdade absoluta por muitos, mas é muito mais uma fala dos atores de controle para ilustrar as transformações dos últimos anos e novas inquietações (Bigo 2008). O medo do crime acaba por legitimar uma das esferas da sociedade de risco, que é a união de esforços a fim de evitá-lo. Diante disso, o desenvolvimento e a confiança em tecnologias de vigilância e controle são defendidos por instituições de poder e ganham validade na aflição pública, na divulgação midiática e na credibilidade que o campo tecnológico traz para muitos (Wayman apud Machado et al 2018).

Nesse seguimento, como será abordado a seguir, dentro de um contexto de prevenção de riscos, a vigilância e o controle sobre determinados grupos torna-se cada vez mais integrada e baseada em mecanismos modernos de suspeição e controle. Além disso, torna-se muito mais dispersa pelos aspectos da vida cotidiana (Rose 2000). Considerando o exposto por Foucault (apud Galič & Timan 2017), a dispersão em relação à disciplina dos corpos é intrínseca aos mecanismos modernos e tecnológicos de vigilância.

As novas tecnologias de vigilância

Diferentes racionalidades políticas em relação ao controle da criminalidade (Rose 2000) surgiram no mundo global e diante da necessidade de prevenção de ameaças. Instituições de controle, como políticas, governamentais e midiáticas, voltaram suas atenções ao aparecimento de ameaças transnacionais, desenvolvendo, assim, novas formas para lidarem com a questão (Aas 2013), isto é, mecanismos de vigilância e controle. Em vista disso, a vigilância deve ser analisada juntamente com as expressões políticas de um determinado contexto histórico e cultural de relações de poder (Gilliom apud Broeders 2007:78).

A globalização possui enfoques nas esferas cultural, política, econômica e social das sociedades. A vigilância, por sua vez, se relaciona com cada uma dessas dimensões, que a experimentam em diferentes maneiras (Lyon 2004). Ela também está intrinsecamente ligada com a administração do crime hoje em dia, que está muito mais preocupada em gerir possíveis atos criminais e seus autores do que abordar e tratar questões mais profundas sobre sua ocorrência (Skinner 2018). Diante do mundo de trocas globais e do risco sentido perante possíveis ameaças de efeitos catastróficos, democracias liberais estão presenciando diversos desenvolvimentos em

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regimes de controle (Rose 2000) e, como exemplo, podemos citar a aposta em novos formatos de vigilância. Esses são muito mais tecnológicos, abstratos e permeáveis pela vida diária dos indivíduos, como o raio-X, o reconhecimento de íris, e as tecnologias de DNA.

O desenvolvimento de novas tecnologias possui importante papel no governo atual, no controle de ações sociais, de indivíduos e na própria ordem social em si (Williams & Johnson 2004). A natureza das instituições modernas de controle baseia-se na ideia de que esses novos sistemas tecnológicos especializados propiciam uma verdade absoluta, embora existam diversas contestações (Giddens 1991). Assim, há uma crença na máxima de que os desenvolvimentos tecnológicos, em convergência com a criação de novos formatos de vigilância, podem ser a solução no combate do risco e da insegurança do mundo global, de uma forma preventiva (Skinner 2018). Com a globalização, portanto, a criação de diferentes sistemas e redes permite um “arquipélago de policiamento”, que envolve diversas instâncias da sociedade (Bigo 2008:98), expressando o forte potencial totalitário de redes atuais de vigilância (Rose 2000).

Atualmente, as preocupações estatais, sobretudo na União Europeia, estão direcionadas a três principais questões que possuem ligações entre si, sendo elas:

Movimentos migratórios Crimes transfronteiriços

Terrorismo

Tabela 1das principais preocupações dos Estados europeus atualmente

Nesse sentido, novos sistemas de vigilância estão cada vez mais sendo desenvolvidos e utilizados para manejar tais incertezas e atenuar seus riscos (Skinner 2018). Os antigos mecanismos panópticos de observação, focados nos territórios e em estratégias de vigilância e disciplina foram substituídos, ou associados, a mecanismos extraterritoriais, direcionados para as mobilidades globais (Bauman apud Broeders 2007). Nas palavras de Didier Bigo (2008), a confiança em aparatos tecnológicos surge com a possibilidade que eles têm de reunir informações sobre indivíduos em constante movimento, além de as partilhar rapidamente entre diferentes instituições e países e solucionar possíveis ameaças ligadas ao terrorismo, crime e imigrações:

“a technological fix then appears with the idea that gathering information, tracing people on the move, sharing information between agencies of different kinds and between different countries, and even of different regimes, is the solution against terrorism, crime and migration” (Bigo 2008:7-8).

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Novas formas de vigilância são “práticas orientadas para o futuro” (Valier apud Williams & Johnson 2004:4). Nesse aspecto, o termo “technosecurity”, cunhado por David Skinner (2018), representa a necessidade e vontade de se promover tecnologias em prol do combate às ameaças da sociedade de risco. O conceito enfatiza a ideia de interdependência entre o desenvolvimento tecnológico e o reforço da segurança. Isso se dá, por sua vez, com o direcionamento de tecnologias para o controle de corpos e seus traços, por meio da captura, uso e armazenamento de dados (Skinner 2018), principalmente de grupos suspeitos ou de pessoas com status sociais não adequados aos padrões (Aas 2006). Entretanto, esses novos mecanismos e a crença na infalibilidade e neutralidade dos aparatos tecnológicos são passíveis de estudos, análises críticas, controvérsias e desafios de caráter ético (Machado & Granja 2018).

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Capítulo 2 - Criminalização de comunidades suspeitas

A raça e os novos mecanismos de vigilância

Perante o cenário de um mundo globalizado, da sociedade de risco, da abertura de fronteiras e do desenvolvimento de tecnologias de controle, conforme mencionado, a segurança interna do continente europeu passou a se preocupar com três principais questões, conectadas entre si: terrorismo, movimentos migratórios, sobretudo irregulares e de refugiados, e outras atividades criminais transfronteiriças (Bigo 2008). Os temores perante possíveis ameaças, estimulados também pela ocorrência de atentados terroristas, e avanços tecnológicos ocorridos facilitaram o desenvolvimento de programas de vigilância (Broeders 2007). Nesse sentido, um conjunto de sistemas operacionais interligados, atrelados a diferentes contextos históricos, políticos e sociais (M’Charek et al 2014), buscam controlar para além das fronteiras físicas hoje em dia. Os mesmos visam a ordem social e levam a governança da mobilidade e de ameaças para diversos aspectos do cotidiano (Amoore apud M’Charek et al 2014),

Com o tempo, um paradigma de administração do crime, preocupado em identificar e administrar possíveis ameaças, foi se cristalizando como forma preventiva de controle (Williams & Johnson apud Tutton et al 2014). Levando isso em conta, um dos objetivos dos novos formatos de vigilância é o de classificar populações de risco (Lyon 2004; Broeders 2007). Uma vez que seus novos formatos dependem da quantidade de informação e conhecimento adquiridos acerca dos indivíduos, foi o desenvolvimento digital de sistemas que possibilitou o armazenamento de dados e o consequente controle dos mesmos (Broeders 2007). Nas tecnologias modernas, principalmente as que envolvem a recolha e armazenamento de perfis genéticos de suspeitos, observamos um aumento de pessoas consideradas suspeitas em detrimento daquelas que assim eram consideradas em métodos tradicionais de investigação (Donnelly & Friedman apud Cole & Lynch 2006). Essa triagem em massa cria múltiplas desconfianças, abalando direitos e liberdades civis (Cole & Lynch 2006). As novas formas fluidas e flexíveis de suspeição acabam por apontar populações já criminalizadas e tidas como problemáticas (Machado & Granja, no prelo).

O foco se voltou para determinados grupos suspeitos (Bigo 2008), quais sejam imigrantes e minorias étnicas e religiosas, considerados ameaças no que tange ao terrorismo e demais crimes transfronteiriços. Assim, o direcionamento das tecnologias que utilizam traços corporais está relacionado com determinadas condições sociais, o que denota uma mudança nos mecanismos de exclusão (Muller apud Aas 2006). Logo, por trás das ditas neutralidade e veracidade absolutas

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que as novas tecnologias de vigilância proporcionam, que aparentemente são consideradas imparciais acerca da raça, o que temos é uma realidade diferente. Tecnologias permitiram a criação de novas categorias de sujeitos, possibilitando diferentes tratamentos entre eles, baseadas na ideia de que alguns seriam ameaças e outros não (Williams & Johnson 2004). Nesse sentido, bases de dados criminais, na verdade, são fortemente enviesadas para características relativas ao sexo, etnia e classe (Cole & Lynch 2006).

Sistemas modernos de administração de fronteiras e de populações, ao contrário das constantes negativas, nos permitem ver diferenças raciais como nunca antes e reproduzem, sim, tratamentos desiguais (M’Charek et al 2014; Nakamura apud Skinner 2018). Essas inovações entram em um contexto histórico em que certos grupos já objetos de enfáticos controles fronteiriço e policial, passaram a ser sujeitos a tecnologias de identificação e monitoramento (Skinner 2018). A título exemplificativo, podemos citar a desproporção de pessoas afrodescendentes na base nacional de dados de DNA do Reino Unido que, inclusive, possui classificações relacionadas com aparências étnicas (M’Charek et al 2014; Skinner 2013). Visto isso, é possível afirmar que tais tecnologias denotam questões de raça e pertencimento, ou seja, são acompanhadas por políticas de identidade mesmo que não explicitamente, refletindo práticas legais, discursivas e governamentais (Goldberg apud Skinner 2018; Skinner 2018).

Aqui, também podemos expor a pesquisa de Brouwer et al (2018) acerca de procedimentos de controle em fronteiras dos Países Baixos. Por mais que, nesse caso, não haja o recurso a tecnologias, no que tange ao comportamento dos policiais acerca das abordagens para verificação de regularidade de quem está cruzando as bordas, eles assim o fazem com bases em seus próprios julgamentos de seleção, principalmente em relação a raça, etnia e nacionalidade. A cor da pele, por exemplo, é um requisito relevante de seleção. Entretanto, segundo os oficiais, eles não observam nenhuma ilegitimidade, uma vez que suas seleções são feitas levando em consideração “experiência e inteligência” (Brouwer et al 2018:631). A observância da tonalidade de pele seria, então, uma consequência lógica do foco no controle de imigrantes já que a maioria holandesa é branca (Brouwer et al 2018).

A temática em torno de raça é relevante não só nos comportamentos de autoridades, como também nas recentes tecnologias de identificação uma vez que elas conectam corpos, dados e discursos (Skinner 2018). Para se entender os diferentes tipos de tratamento de indivíduos e exclusões na Europa, é necessária uma contextualização entre o desenvolvimento no campo da genética humana e mudanças nas dinâmicas tecnológicas, populacionais e identitárias

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(M’Charek et al 2014). Essas transformações foram provocadas, sobretudo, pela globalização, facilidades de deslocamentos e riscos provenientes dessa nova realidade. Portanto, para uma melhor compreensão acerca desse cenário, é necessária a observância de uma conjuntura mais ampla que envolve história, relações de poder e desigualdades (Skinner 2018). Assim, é interessante mencionar que o passado colonial possui influências sobre rotinas atuais. Boaventura de Sousa Santos (2018) considera a permanência do colonialismo como forma de dominação e de separação étnico-racial de determinadas parcelas da população em pleno Século XXI. Nesse sentido, os dominados, ou seja, grupos racializados que não possuem poder e voz, são vistos como classes inferiores, oprimidas, indesejáveis:

“mas o modo de dominação colonial continuou sob outras formas e, se as considerarmos como tal, o colonialismo está talvez hoje tão vigente e violento como no passado. Para justificar esta asserção é necessário especificar em que consiste o colonialismo enquanto modo de dominação. Colonialismo é todo o modo de dominação assente na degradação ontológica das populações dominadas por razões etno-raciais. Às populações e aos corpos racializados não é reconhecida a mesma dignidade humana que é atribuída aos que os dominam. São populações e corpos que, apesar de todas as declarações universais dos direitos humanos, são existencialmente considerados sub-humanos, seres inferiores na escala do ser, e as suas vidas pouco valor têm para quem os oprime, sendo, por isso, facilmente descartáveis” (Santos, 2018).

Além disso, questões de identidade e pertencimento são refletidas em políticas de controle desde a 2ª Guerra Mundial (M’Charek et al 2014).

Ainda de acordo com o trabalho realizado por M’Charek et al (2014), há múltiplas conexões entre as esferas política, científica e social e essa abordagem histórica possibilita a compreensão das relações raciais na Europa, que sempre foram ligadas com questões administrativas e de gestão populacional. Detalhes históricos também explicam a hegemonia do Oeste e Centro Europeus, que, inclusive, são responsáveis pela produção simplificada de ideias sobre raça no continente. Assim, embora o tema se configure em diferentes práticas, inclusive nas tecnologias atreladas à identificação, ele tende a ser ofuscado e discussões a respeito, quando ocorrem, voltam-se para o uso de outras nomenclaturas que não ‘raça’. Por isso, ela é vista como uma “presença-ausência” em dois sentidos (M’Charek et al 2014:462). Normativamente, embora presente em sociedades europeias, a questão da raça é vista como um ‘tabu’ e sempre silenciada em discursos, por se relacionar com o passado colonial, com o racismo científico e com o genocídio ocorrido na Alemanha. Já metodologicamente, a ideia de “presença-ausência” nos faz observar o caráter incerto de raça e que sua presença permeia diferentes formas na sociedade (M’Charek et al 2014:462). Mesmo que nas entrelinhas, questões raciais são aparentes no cerne

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de trabalhos policiais e das políticas europeias que consideram o terrorismo, crimes, movimentos migratórios, segurança, bem-estar social (M’Charek et al 2014).

Grupos suspeitos e terrorismo

Sobretudo após os ataques de 2001 nos Estados Unidos, mas também dos ocorridos em Madrid, em 2004, e em Londres, em 2005, presenciamos formas de seleção racial, de classe e religiosa sobre pessoas cruzando limites, principalmente na Europa e nos Estados Unidos (Bigo 2008). Diante da intenção e necessidade de se monitorar e administrar movimentos populacionais e ameaças transnacionais, embora a União Europeia vise, de uma maneira geral, a integração e liberdade entre seus países, ela é uma espécie de “poder disciplinador” e uma de suas facetas se configura pela rejeição e imposição de dificuldades à inserção do ‘Outro’ nela (Kuus 2004:477).

No corrente panorama de guerra ao terrorismo e a crimes transfronteiriços, as chamadas comunidades suspeitas tornaram-se o foco das atenções (Cole & Lynch 2006). Atualmente, o suspeito por excelência seria o terrorista (Cole apud Cole & Lynch 2006), que, por sua vez, está relacionado com movimentos migratórios. Nessa linha, cabe dizer que os crimes transfronteiriços também são associados às mobilidades populacionais. Assim, todos os esforços são direcionados para o monitoramento de imigrações, identificação de prováveis terroristas e prevenção de crimes. Ademais, não só a gestão da mobilidade, mas também da residência e cidadania são passíveis de controle e discricionariedades legais, morais e sociais (M’Charek et al 2014). Em um momento de anseios acerca do terrorismo, crimes que ultrapassam fronteiras e de elevados movimentos migratórios, a suspeição e a criminalização de não-cidadãos se foca em grupos específicos (Hussain & Bagguley apud Skinner 2018).

Relativamente ao terrorismo, dentre as variadas definições, Pantazis & Pemberton (2009) citam o Terrorism Act 2000, elaborado pelo Reino Unido, que o descreve como um ato ou ameaça de ato face a pessoa, propriedade ou sistema eletrônico, incitados por questões políticas, religiosas ou ideológicas. O intuito do mesmo seria de intimidação do público e do governo de determinado local (Pantazis & Pemberton 2009). Segundo Balzacq et al (2006), pela subjetividade da definição do conceito, diversas ofensas são associadas a atos de terrorismo. Não existe um acordo sobre o que caracteriza uma ameaça à ordem pública, assim, por medidas cautelares, indivíduos com determinados comportamentos e origens acabam por serem perseguidos (Balzacq et al 2006). Mesmo sem indícios, há uma ideia de que as ameaças transnacionais provocadas pelo terrorismo não só se conectam com imigrações irregulares, como também com o crime organizado, tráfico,

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refugiados, lavagem de dinheiro, radicalização religiosa (Bigo 2008). Há, portanto, uma nítida conexão entre práticas terroristas e religião, além de movimentos migratórios. Ademais, terroristas possuiriam armas de destruição em massa, o que agrava as apreensões sobre eles (Laqueur apud Pantazis & Pemberton 2009). Assim, o ‘novo’ terrorismo se diferencia em termos dos seus atores, suas motivações, ações e recursos (Spencer apud Pantazis & Pemberton 2009), mas o seu conceito é subjetivo e a lógica de reunião de informações para se definir o tema não é recente.

Em suma, a guerra ao terrorismo é um dos principais problemas das atuais democracias liberais e valores e práticas democráticas estão sendo sobrepostas em prol da segurança e do combate à proliferação de organizações terroristas (Pantazis & Pemberton 2009). De uma forma geral, os ‘Outros’, ou seja, aqueles que não são vistos como pertencentes ao local em que se encontram (Bhambra 2017) são os sujeitos de discursos criminalizadores nas esferas política, legal, midiática e pública. ‘Outros’ aqui, são, sobretudo, sinônimos de imigrantes irregulares, requerentes de asilo, refugiados e membros de minorias étnicas e religiosas (Malloch & Stanley; Calavita; Pickering & Weber; Bosworth & Guild; Aas; Tutton et al apud Machado & Granja, no prelo). Todavia, o foco em determinados grupos sociais considerados suspeitos não só é ineficaz para os objetivos de prevenção de atos terroristas, como também contribuem para o medo social em relação a eles. Isso faz com que esses indivíduos sofram com preconceitos e até mesmo crimes de ódio (Pantazis & Pemberton 2009).

Movimentos migratórios

A respeito dos movimentos migratórios, com a crise do petróleo e a desindustrialização consequente da recessão econômica, além dessas preocupações com atos terroristas e crimes transfronteiriços, imigrantes passaram a ser vistos como sinônimos de problema (Sciortino; Bigo; Engbersen apud Broeders 2007). Em seu trabalho, Guia (2012) diz que, historicamente, a conexão entre criminalidade e imigração surge em estudos sobre pobreza e crime, com base em conflitos culturais e desordens sociais. A ligação seria oriunda de restrições econômicas, desigualdades no acesso ao mercado laboral, justiça e xenofobia. Por isso, ao passo que os mesmos trazem importantes contribuições para os países onde se fixam, os Estados têm dificultado a entrada e permanência dos mesmos e estão cada vez mais intolerantes face a irregularidades (Guia 2012), visando, progressivamente, a restrição de não-cidadãos por meio de diferentes práticas (Bosworth & Guild 2008).

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A imigração irregular, por sua vez, também não possui um conceito único definido. Balzacq et al (2006) mencionam que são as leis nacionais dos países europeus que estabelecem as definições sobre o tema e com isso não existem referências comuns sobre quem cumpre os requisitos da regularidade ou não. Instituições da União Europeia tendem a definir uma imigração irregular antes mesmo de determinado indivíduo cruzar as fronteiras, o que é delicado, pois se o mesmo sequer atravessou, ele não poderia ser assim considerado. Ainda sobre esses movimentos, cabe mencionar que eles se configuram de diferentes formas, por isso, fronteiras e controles migratórios não conseguem pará-los (Balzacq et al 2006).

Dessa maneira, a vigilância e exclusão dos imigrantes irregulares, assim como dos movimentos daqueles pertencentes a minorias étnico-religiosas, refugiados e requerentes de asilo, têm se dado também em instituições sociais, com a intenção de desencorajar ainda mais a permanência dos mesmos (Bigo & Guild; Deleuze apud Broeders 2007; Balzacq et al 2006). Registro, documentação e bases de dados conectadas entre si não só são relevantes para o combate de ameaças criminais, como também se tornaram as principais ferramentas de manejo e exclusão populacional (Broeders 2007). Fundos, inclusive, são destinados a organizações de controle migratório (Broeders 2007). A título exemplificativo, Broeders (2007:82) cita sistemas como o “EURODAC”, para combater o asylum shopping, que se configura quando um requente de asilo o solicita em mais de um país, são criados. Já o “Visa Information System” armazena dados daqueles que entraram com visto legal, no intuito de observar casos de futuras irregularidades (Broeders 2007:85).

As imigrações, principalmente as irregulares e os movimentos de refugiados e de indivíduos de certas origens, também são uma questão social e política no cenário europeu, sendo os imigrantes vistos sob a ótica de “inimigos públicos”, sobretudo quando pensamos no terrorismo e em crimes transfronteiriços (Broeders 2007:72). Atualmente, muitos países acreditam no contributo deles na formação e reforço de redes terroristas e de crimes transnacionais e no consequente caos social (Bales apud Guia 2012). Assim, além das instâncias de poder, o inconsciente coletivo acaba por traduzir sentimentos de insegurança e desconfiança em relação ao imigrante, uma vez que ele traduziria a criminalidade, além da concorrência no mercado de trabalho (Guia 2012). Isso ainda é mais estimulado por discursos midiáticos (Gomes 2013). Nesse sentido, ao mesmo tempo em que fronteiras são relaxadas com os desenvolvimentos e facilidades na União Europeia, uma outra Europa, dessa vez fortificada, foi direcionada, essencialmente, para determinados sujeitos, uma vez que eles são associados com atos de risco (Broeders 2007).

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Finalmente, como citado, os indivíduos suspeitos e ligados aos movimentos migratórios, ao terrorismo e demais atos criminosos transfronteiriços, são imigrantes, principalmente requerentes de asilo e refugiados e aqueles que pertencem a minorias étnicas e religiosas (Broeders 2007).

Sobre os refugiados, segundo Bhambra (2017), os países que integram a União Europeia são signatários da Declaração Universal dos Direitos Humanos e da Convenção Europeia de Direitos Humanos. Esses documentos os obrigam a aceitar pedidos de refúgio em casos de guerra, violência ou perseguição. Ocorre que, desenvolvimentos nas políticas de imigração da União Europeia desde a década de 90 tendem a limitar as suas entradas (Tutton et al 2014). Assim, embora os Estados promovam algum esforço frente a essa realidade, a maioria vê a questão de forma negativa, procurando fugir de suas obrigações e priorizando discursos de segurança interna, que acreditam ser abalada com o recebimento dos ‘Outros’. A negativa dos aspectos multiculturais históricos no continente impacta o projeto europeu e seus ideais cosmopolitas, além de prejudicar um acordo comum diante dos fluxos não só de refugiados, mas dos demais imigrantes também (Bhambra 2017).

Pessoas vindas de países africanos, ou seja, de antigas colônias dos países europeus, são enquadrados como populações de risco (M’Charek et al 2014). Indivíduos de países do Leste Europeu, mesmo com a recente entrada de alguns na União Europeia, também são passíveis de controle e estigmatização. Entre as bases de dados dos países do Oeste e Centro Europeus, por exemplo, é observada uma tendência em se armazenar dados de pessoas do Leste (Santos e Machado apud Machado & Granja, no prelo) e de afrodescendentes (M’Charek et al 2014; Skinner 2013). Para além de imigrantes, entidades de controle focam em suspeitos tidos como “usuais”, ou seja, pobres, moradores de rua, beneficiários do governo, pequenos criminosos, antigos pacientes psiquiátricos (Rose 2000:333).

Há, também, uma crescente associação entre populações do Oriente Médio e o terrorismo, que reflete no controle de seus movimentos. Atualmente, citando Pantazis & Pemberton (2009), o discurso político e legal também é direcionado aos muçulmanos, substituindo antigas preocupações acerca dos irlandeses. Os mesmos tornaram-se os novos alvos e o discurso sobre eles é baseado em uma série de simplificações e rótulos. O quadro legal desenvolvido mediante a conclusão de que eles representam ameaças terroristas e que, por isso, seus movimentos são problemáticos, os enquadra como principais alvos de atenção por parte dos Estados. Consequentemente, relações desiguais e de suspeição face a esse grupo acabam por fomentar a radicalização e diminuir os fluxos de informações sobre eles. Portanto, mecanismos

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pensados para promoverem a segurança, muitas vezes podem provocar efeitos indesejáveis (Pantazis & Pemberton 2009).

A luta face ao terrorismo e a ideia de que ele está relacionado com movimentos migratórios, sobretudo de comunidades suspeitas, provoca uma série de desdobramentos, principalmente em relação às dificuldades impostas aos imigrantes de entrarem e se estabelecerem em determinados países europeus. Esses países, mais uma vez, sob a lógica da prevenção de ameaças e gestão de riscos, criam não só formas de vigilância e controle, como também possuem uma série de outras atitudes em prol da exclusão dos vistos como ‘indesejados’. Desdobramentos da sobreposição entre terrorismo e movimentos migratórios

Dentro dos três principais objetos de preocupações no mundo atual (terrorismo, movimentos migratórios e crimes transfronteiriços), são os atos terroristas objetos de maiores inquietações. Eles são diretamente relacionados com movimentos migratórios de certos indivíduos. Eventos ocorreram levando à imposição de medidas mais restritivas face aos imigrantes e, assim, observamos uma convergência entre o terrorismo e imigração e, em consequência, da luta contra eles (Guia 2012). A necessidade de se combater o terrorismo está diretamente relacionada com as hostilidades impostas aos imigrantes, sobretudo dos grupos já mencionados. Com isso, nos últimos anos, legislações acerca do combate ao terrorismo se proliferaram em diversos países (Lyon 2004). Controles de identidade são centrais em relação à imigração e ao terrorismo (Broeders 2007). Assim, desde a segunda metade do Século XX, o exercício do direito à liberdade requer intermináveis comprovações de legitimidade identitária (Rose 2000).

Saindo um pouco da abordagem de imigrantes, mas para exemplificar um mecanismo de controle em prol do combate ao terrorismo, segundo Zedner (2016), uma das medidas usadas pelo Reino Unido é a privação de cidadania daqueles que representam uma ameaça. Embora isso seja feito em relação a nacionais, eles geralmente são de origens minoritárias. Isso tem sido um mecanismo utilizado como resposta ao recrutamento de combatentes estrangeiros e ao crescimento do Estado Islâmico (EI). Essa realidade se tornou problemática no sentido de que, além da ampliação das chances de atentados terroristas, esses combatentes recrutados, quando retornassem aos seus países, ameaçariam a segurança nacional. Diante disso, a ideia é promover a perda de direitos dos mesmos, por meio do impedimento do retorno de nacionais às suas casas ou com o confisco de documentos de viagem, objetivando a prevenção de futuros riscos. Essa

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medida é usada sob o escopo da prevalência das seguranças nacional e pública e da realidade econômica. Segundo autoridades, ela é feita em conformidade com garantias formais e corresponde a matéria de soberania estatal. Porém, a retirada de direitos e proteções de determinados indivíduos, nesses termos, implica em uma atitude regressiva e desproporcional, além de uma violação à Declaração Universal dos Direitos Humanos. Em outras palavras, ações como essas podem acarretar em uma afronta aos direitos básicos da população, podendo, inclusive, tornar cidadãos apátridas, submetidos ao poder estatal e sem garantias (Zedner 2016). A detenção de requerentes de asilo (Malloch & Stanley 2005) e o policiamento em comunidades também são ferramentas utilizadas na tentativa de se obter informações e combater o terrorismo (Pantazis & Pemberton 2009). Relações entre comunidades e polícia estão se deteriorando e isso impacta de forma negativa as trocas de dados. Em certos locais, poderes discricionários foram atribuídos à polícia para, com finalidades de fiscalização, pararem, investigarem e até prenderem sem ordem aqueles considerados suspeitos de práticas ou vínculos terroristas. Como poucas detenções foram efetivadas dentro de diversas buscas e investigações, a eficácia desse e de outros tipos de medidas é colocada em xeque (Pantazis & Pemberton 2009). De acordo com Zedner (2016), para além de todos os sistemas e formas de controle implementados na Europa acima citados, nos últimos anos, o apoio sobre as disposições de leis de imigração torna-se relevante e preocupante. A confiança nessas leis como mais uma estratégia de segurança traduz a conexão entre controle migratório e o combate ao terrorismo na esfera pública. Isso reforça a ideia de que os ‘Outros’ seriam ameaças à uma ordem social coerente. Nesse âmbito, o recurso aos dispositivos normativos que versam sobre a imigração se dá porque eles possuem proteções em relação aos procedimentos e padrões probatórios mais fracos do que os que envolvem lei criminais. Portanto, ao mesmo tempo, leis criminais e imigratórias são utilizadas para controle de mobilidade em fronteiras e seleção de indivíduos (Zedner 2016). Crimigração

Ao entrelaçamento desses dois campos, quais sejam imigração e crime, damos o nome de crimigração. Essa é uma das consequências mais fortes da sobreposição entre criminalidade de movimentos migratórios. O fenômeno é resultado de um processo discursivo onde imigrantes são vistos como ameaças (Brouwer et al 2017). Ele veio reforçar ainda mais a fragilidade deles, dentro de um contexto de globalização das ameaças e da criminalidade transnacional (Guia 2012). Crimigração é o nome atribuído ao processo de convergência entre as leis criminal e de imigração,

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com origem norte-americana, mas que também se expandiu para Europa e Canadá, embora com manifestações diferentes em cada local, devido às particularidades que cada um possui ao relacionar esses dois temas (Guia et al 2012).

Originalmente, a lei criminal é usada no sentido de prevenir e combater os danos causados por atos ilegais na sociedade. Entretanto, não podemos deixar de levar em consideração que ela possui um viés de controle dos grupos sociais que despertam desconfiança (Guia et al 2012). Já a lei de imigração sempre se relacionou mais com a política externa e a esfera civil, determinando quem deve ou não ficar em um país. Ambos são sistemas de inclusão e exclusão social, mas cabe a ressalva de que ainda existem diferenças significativas entre eles, que acabam sendo desprezadas no momento da sobreposição (Stumpf 2006). Com a convergência dos dois, observamos o aumento das leis criminais e das dificuldades impostas perante procedimentos de regularização das imigrações (Guia et al 2012). Essa realidade acabou por alterar a percepção do não-cidadão, saindo de um contexto ligado com história e cultura e se relacionando mais com invasão, desvio criminal e risco à segurança nacional (Guia et al 2012).

As sanções criminais para questões exclusivas de imigração eram muito mais limitadas. No entanto, uma série de documentos tornaram várias outras ofensas passíveis de exclusão, detenção e deportação dos ditos “aliens”, ou seja, aqueles indesejáveis dentro da sociedade (Stumpf 2006; Stumpf 2010). A abordagem de questões de imigração se tornou muito mais criminal, com uma dura fiscalização sobre sujeitos de determinadas origens (Stumpf 2006). O fenômeno possui uma nítida dimensão sociopolítica a partir do momento em que a seleção étnica ou racial é um processo social de contenção de movimentos migratórios por meio da justiça criminal (Guia et al 2012). Por intermédio da sanção de deportação por crimes cometidos e pela criminalização de violações referentes à imigração, o Estado acaba por expressar seu poder punitivo e sua condenação moral tanto pelo delito praticado, como também pelo status de ofensor não-cidadão. Isso é atrativo do ponto de vista político (Stumpf 2006) e com uma grande aceitação pública, por se tratar de ferramentas para a manutenção da segurança nacional (Guia et al 2012).

Na teoria, todas essas regras são neutras, mas na prática é observado um forte caráter de exclusão racial e cultural de grupos. Há uma desproporção das medidas tomadas face a indivíduos integrantes de minorias étnicas e religiosas. Elas transformam ofensores em deviant outsiders, e os desproveem do status de cidadãos e dos direitos que o acompanham (Stumpf 2006). Para ilustrar, além dos mecanismos controladores já expostos, podemos citar o “Mobile Security Monitor”. Ele é utilizado para fins de policiamento nas fronteiras dos Países Baixos com

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Alemanha e Bélgica e também reflete a ideia de crimigração, uma vez que combina a gestão migratória com elementos de controle de criminalidade (Brouwer et al 2018:449).

Concluímos, então, que políticas e medidas tomadas para dificultar a entrada e permanência de determinadas pessoas na União Europeia, aproximando assuntos criminais e imigratórios, não possuem efeitos positivos no combate ao terrorismo e no aumento da segurança (Zedner 2016). Pelo contrário, o efeito pode ser oposto ao que se objetiva, uma vez que a exclusão e hostilidade tornam os indivíduos ainda mais vulneráveis à associação com o terrorismo, gera desacordos por parte das populações estigmatizadas e, em casos em que os nacionais ficam em seus países, mesmo que sem direitos, eles não deixam de representar a suposta ameaça tão temida (Zedner 2016). Outras relevantes implicações das restrições e dificuldades da imigração na Europa é o aumento do recurso a formas clandestinas de entrada (Schuster apud Tutton et al 2014) e os constantes abusos aos direitos humanos estabelecidos em acordos e tratados (Malloch & Stanley 2005).

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Tabela 1das principais preocupações dos Estados europeus atualmente
Figura 1 - Conceitos do Capítulo 1
Figura 2 - Conceitos do Capítulo 2
Tabela 2 dos critérios das notícias acerca do crime, segundo Jewkes (2004)
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Referências

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