Kitsch
Com todas as suas ambivalências, será que oKitsch tem relevância social? Talvez, se nos conseguirmos pensar enquanto sociedade que se espelha na estética do Kitsclt; se for-José
Machado Pais
mos capazes de decifrar os laços de sentido que ligam os portugueses a coisas sem aparente sentido; enfim, se o Kitsch nos permitir descobrir a alienação que se encapota num K potencialmente revelador do país que somos. Tenha-se presente o sentido etimológico dapalavraKitscÍt (do alemão kitschen, kits-chtraeger), apelando ao supérfluo, à trapaça, ao inautêntico. As estéticas do quotidiano são reveladoras dessa artificialidade a que não escapa a própria natureza: as relvas tornam-se sintéticas, as carecas acolhem perucas, o leite
de vaca vende-se em pó, as unhas alongam-se em gel, as pestanas piscam
extensões, os seios avolumam-se com silicone e até bonecos de plástico insu-fláveljá adquiriram o estatuto de parceiros sexuais. Expressão da cultura de massas, o Kitsch é um indicador de alienação cultural mas também de mobi-lidade social, a medida do que se mede projetada num quotidiano onde a distinção social resvala para o indistinto e o snobismo se alia à frivolidade, do mesmo jeito que o útil se junta ao fútil. Eis-nos em busca do retrato de um
país ao espelho de uma cultura tanto mais traída quanto mais distrativa, por isso tida como arte de uma pretensa felicidade.
se o Kitsch está presente num fetichismo que arrasta os consumi-dores para estados possessivos, Portugal é Kitsclt quando, em fato de
trei-no'
se passeia em excursões domingueiraspor
centros comerciais, aoritmo
de uma sinfonia de toques de telemóvel reproduzindo latidos de 13ocães, descargas de autoclismo, pratos a quebrar ou toques Gospel. O Kits-ch é uma celebração da repetição, uma bengala ontológica ante tropeços na imprevisibilidade. Porém, às horas de ponta, brigas nos parqueamen-tos dão raziao aMilan Kundera quando vê no Kitsh uma extensáo da con-diçdo humana, em sua versão agressiva. Mas no Kitsh hâ também lugar paraùafetividade. Nos bancos traseiros de alguns carros, almofadas ren-dilhadas por mãos prendadas aconchegam animais de peluche; e,
penden-do
dos
espelhosretrovisores, amuletos
e
galhardetes
expressam identificações clubísticas, religiosas e territoriais. No K¿7så tudo pode ser avaliado como peça decorativa ou obra de arte, a estética sobrelevada pela irrefutabilidade de experiências que-
valor supremo-
exprimem subjetividades, sobretudo quando se afirmam através de um culto narci-sístico do excessivo. Adesivos pespegados nos vidros traseiros dos auto-móveis (*génio a bordo", "uip a bordo", "sexologistø s, bordo"'..) dão contade um individualismo Kitsch qruefaz rimar ostentaçáo com reputaçáo. Nos hipermercados, como nas lojas de um Euro, encontramos um dos principais atributos do Kitsch, o do empilhamento: latas de tomate invadindo o espaço vital das salsichas, velas de incenso acasaladas com rolos de papel higiénico, mochilas emparelhadas com alparcatas, os
Lusí-ødas piscando o olho ao Nouo Kamasutrø llustrado.No Kitsch o excesso é a chave do sucesso, ainda que efémero. n Xítsch a propensáo inadiável de
abrir mão do que a máo agàrra, de descartar o que se apreçava, de aban-donar na dispensa das velharias o que antes se olhava como novidade. O consumismo estimula a embriaguez da posse. Esta é uma das facetas do Portugal kitsch: acumulações supérfluas, consumos conspícuos, sinais
de riqueza empobrecedora, alegria de viver alimentada por frivolidades. Dificilmente se encontrarão livros sobte Kitsch nos espaços livreiros
dos hipermercados. Todavia, os amontoados de literatura light, com cheiro
de bacalhau à ilharga, fazem-nos sentir num ambiente Kitsch. As
estatísti-cas culturais podem dar conta dos hábitos de leitura dos portugueses mas nada nos dizem sobre o que leem. A cultura transformou-se numa merca-doria onde o valor das ideias gira em torno do vendável. Como é sugerido por alguns títulos de livros, quase tudo gira em torno do dinheiro, embora em choque com valores morais (As Boas Rapørigøs nõo Sobem na Vida).
O dinheiro sujo parece circular bem na economia nacional (Mtifiø dø Noite:
Todos Suspeitømos que Estas Coisas Acontecem em Portugal' Agora Temos
a Certezø). O problema é quem nem todos conseguem satisfazer as legíti-mas aspirações de consumo (Até onde Vais com
looo
Euros), restando{hesC D t: I G t"t M N (-) P a R ! t-IJ X Y 7, r31
Portugal Social de A a Z:
Temos em aberto
Kitsch
José Macltado Pais
sobreviver (viuer nø corda Bambø). os desempregados não são esquecidos (como Procurør e conseguir Emprego), nem os descrentes da vida (Rein-uentar-se: a sua Segunda Oportunidade).
o Kitsch associa-se a aspirações de mobilidade, embora fugidias da ética de trabalho (Trabalhør é uma seca...).4 cultura de massas nivela por
baixo, mas o Kitsclt pode ser um trampolim de ascensão social.
o
empre-endedorismo é encorajado e a motivação incentivada, através do tarô (cartøs da Møya: o Dilema) ou do acaso (AHistória
Rear de como um Gato Mudou a vida de um Homem). para os desiludidos da vida há cha-mamentos à crença(o
rempo dos Milagres) e apelos ao além (como ver,ouuir
e sentir os ly'ossos Anjos). Promessas terapêuticas são anunciadas por livros apostados em despertar e purgar emoções (viuer sem Medo: Os/
Princípios da Paz de Espírito).Abraham Moles tinha razão .
o
Kitsch é muito mais que uma prefe-rência estética. É uma forma de vida que persegue uma suposta arte da felicidade. No entanto, os títulos de livros que inundam os hipermercadosde literatura
light
dizem-nos muito sobre os dilemas da sociedade con-temporânea, entre os quais sobressaem os da sexualidade. As traições amorosas inundam as bancas delivros
e os imaginários dos leitores (Adultériopara
Principiøntes), sob a fogosidade de impulsos sexuais imprevisíveis (Quando oAmor
sobe à cøbeçø) ou de prazeres viciantes (AHora
do sexo). As intimidades de alcova são coscuvilhadas (Zonøs intimas) e as intrigas de género espicaçadas (solteiros, casødos e Diuor-ciados: como Perceber ø cabeça dos Homens;A
segunda virgindade: o Poder sexual da Mulher). Quando as palavras dão lugar às reticências convocam o que fraudulentamente negam ou apenas insinuam (Amor ecltocolate. Dizem que o cltocolate cura todos os males...). É através de
su-bentendidos enlatados em clichês que o produto se torna vendável, é por efeito de languidezes românticas que o Kitsch se assume como vulgarida-de euforicamente sedutora, uma arte dafeticidade.
Misturando receitas práticas de autoajuda, guiões de felicidade e
segredos de bem-estar, a literaturapastiche provoca movimentos de vai-vém entre o imaginário e o real. os ídolos das revistas cor-de-rosa cum-prem, como os mitos, a função de evacuar o real.
o
trânsito temático destaliteratura
vai dos segredos do sucess o (Mourinho: porquê tantas vitórias?) à pura bisbilhotice (os segredos dos outros), dela nãoesca-pando discretas
figuras
à
sombra
de
destacadas personalidades(o
cao de sócrates; D. Mariø, a Empregada de cauaco).o
que se valorizar32
é o escândalo, a frivolidade, o sensacionalismo, a arte de sofisticar o banal. A identidade nacional turva-se ao espelho desta literatura. O brio lusitano sobrevive à custa de heróis
solitários
(ChoqueCultural:
AsExtraordintirias
Viøgens de um Lusítano à Descoberta dos5
Contínen-tes) on revive nas patas de qualquerrafeiro
(Daan: Um Cãa Portuguêscom Pøtínhas de Veludo).
Os rótulos publicitários assemelham-se a sedativos para as incerte-zas de quem se sente inseguro de si, de quem busca uma identificaçáo com produtos que acabarão por o
produzit.Uma
marca de cosméticos lançou quatro tipos de gel com efeitos distintos: o eriçado, o despenteado, o surfista e o molhado. Para casos extremos de identidade fragilizada forjou-se um "gel fixante, efeito cimento,. Apublicidade cria falsas identi-dades, alimentando a crença de que no ato de consumo mais se afirma aindividualidade. A publicidade é KitscÍt ao promover a necessidade de um reconhecimento no espelho do engano. E porque a aparência precisa da realidade para existir, através da aparência podemos chegar, sociologica-mente, à realidade que a produz. Aerctização da publicidade faz crer que as coisas do amor são antes de mais o amor às coisas. A pulsáo sexual re-duz-se ao desejo de consumo. O que se vende são ficções, alegorias, sím-bolos, mitos. Por exemplo, a publicidade dos preservativos vai muito para além de uma função preventiva, incitando um imaginário de descobertas: de sensações olfatiuas (Tuttifruti), pontos misteriosos (G-Sensatíon), zonas erógenas (Spiral), uoos oníricos (Tropical delirium).
O mundo vê-se representado na publicidade porque esta prescreve os gostos do mundo. A distinção social caminha para a vulgarização, a
criação
cavalgaa
falsificação,a
realidade submergeem
sua ficção. No D-MAIL temos o sugestivo exemplo da cuecø push-up:,,Quer melhoraras suas nádegas e eliminar o efeito ,,achatado,,? Uma ideia genial, too% discreta e o efeito lOOoÁ garøntido! Tem dois bolsos, correspondendo cøda ttm a ttma ncídega, com inserções de silicone: o resultado é absolutqmente garantido!>> As simulações atingem o autenticamente falso. O Kitsch ê uma arte da corrupção, da trapaça, da mentira, do faz de conta. Algumas cartadas de Kitsch erótico: os estímulos artificiais ("Coloca um pouco de
Play Touch no teu dedo e transforma as tuas carícias numa uibrønte
expe-riência"); a malícia como garantia da falsidade de vida (Boobie Pillow: "Almofada em forma de seios e com ventosas"); a chama de desejos extra-vagantes (Pocket Polly: ,,Mini boneca insuflduel lourø [...J. Muito
fticil
de encher e depois de uazia cøbe no bolso").IJ t_ D
--t
' (ì þt I I -L tu4 i\ () P û tì:
t-U X Y z 133/-Soberbo e majestosamente reinante nas mesas natalícias de ricos e pobres, o bolo-rei não escapa à sedução kitsclt: todo ele é uma pretensão de arte quando a sua crostA aparece transformada numa.pista de aterragem de
frutas cristalizadas. Para os apreciadores, é
tm
Kítsch saboroso, outrora doloroso quando à dentadura saía a fava ou um brinde metálico. Porém, o símbolo mus kitschdos comensais será o inefâvelpølito, habilmenteesgrimi-do como um brioso espadachim na remoção dos resíduos de comida entrin-cheirados nos esconderijos dentais. Situação embaraçosa surge quando, usados como metáfora (estd magra como um palito!), os palitos se juntam
para, verbalmente, denunciarem traições (pôs-lhe os pølitos!).A mutação da
trama (coito) em tramado (coitado), traço específico da cultura de vitimiza-ção, afirma-se através de um reconhecimento individual (estou tramado) mas também social(coitado, tramou-sef . Alinguagem dávoz ao social,
espe-cialmente em situações de crise, quando parecemos um país de coitados' A frustração é o reverso do ato falhado (estou lixado), mesmo quando não passa de uma ameaça (uaùte lixar), ou de uma renúncia(que se lixe a Troika).
A descrença no destino é entáo enfrentada pela magia do kitsch, nos seus apelos à evasão pela diversão. A chamada música pimbø
atmpte
essa funçáo. Ela propicia um relaxamento em relação aos problemas do quotidiano, sublimando-os através de uma catarse social temperada por um sentimentalismo brejeiro, satírico, melodramático:Agora pegou de moda o povo ficar a dever
Já não há quem ponha a mão no governo e no poder Eu não consigo poupar p'ra pagar as prestações Vou tentar a minha sorte jogando no Euromilhões. (Vida de Teso, Lusitano
Mix
6,2oL2)São músicas que cantam os dissabores da vida, mas também a esperteza, o desenrascanço, os golpes de sorte. No kitsch pimba
encontra-mos uma
espontaneidadehedonista,
uma
extravagância
que
seordinariza, uma estilística do exagero: floreados vocais, gestualidade
des-bragada, batida repetida de sons, letras provocantes em sua brejeirice. No kitsh musical conta mais o corpo do que a voz que canta, tudo se con-jugando numa postura de imposturas: de padrões estereotipados a estili-zações afetadas.
E
não esquecer: janelas do carro abertas para que abatida do som alastre. A alienação surge quando os ouvidos amolecem o
pensamento por subjugaçáo ao vira o disco e toca o mesmo.
135 A I
,:
l) L I G H I I K L M N û !) : {) ¡ì. T U_:_
v.
1_., 7.t--l
Portugal Social de A a Z: Temas em aberto Kitsch.losé Macltado Pais
A
excitação como fundamento do erotismo é um atributo Kitsch que se alia à pornografia para melhor se afirmar em sua falsidade. Porisso o Kitsclt assentou arraiais nas sexsÍtops de um país sexualmente repri-mido e que se tem libertado no insólito, no burlesco, no imagético. É o caso da cerâmica pícara, com garrafas em forma de bundas ou bustos de mulher... objetos marcados por desvios em relaçáo à função que suposta-mente deveriam cumprir, sobreposição de realidades distintas que a figu-ração pseudoartística faz convergir em sua perversidade estética: o travesso reclamando o direito de se atravessar no inesperado; a batina do frade, puxada por uma guita, colocando a nu o seu lado fálico. Estamos perante inadequações inscritas numa temporalidade histórica e cultural. É bem sugestivo o exemplo da remota doçaria conventual. Toda ela se encontra impregnada de um erotismo indicioso (Barrigas defreira, Bolos
de amor, Suspiros, Tabefes, Toucinho do céu...).
No campo erótico como no gastronómico, o sentido estético sofre um rombo nos modos embrutecedores de comer ou fazer à bruta. Hoje vive-se sob o império dofast sex e dafastfood.Porém, o Kítsch também vai à mesa com requinte. Com um senão. O que sobra em ornamento pode faltar em alimento. A tradicional cozinha portuguesa resiste, com dificuldades, aos
estrangeirismos de moda. A mercantilizaçáo da estética é visível na decora-ção das comidas e nos nomes pomposos dos menus dos mais conceituados restaurantes: "Emincé de Vitela Zurichoise, fatias de lombo de vitela à ma-neira suíça num molho de natas com cogumelos,
selido
combatata Rösti,, (São Gabríel, Loulé); "Do Coelho, a sela recheada com lingueirão, tomateseco e braseada, arroz de carqueja e vinho tinto a
brilhar"
(VølleFIor,Lis-boa);
"Tornedó de boi corado e queijo serra em cama de Portobello (Centu-rium,Braga); "Mousse de pudim abade de priscos e um cítrico coração de
filigrana num refrescante copo de gelo" (Ferrugem, Minho). Há designa-ções tão misteriosas que o cliente desprevenido ou bem que
envergonhada-mente bajula ao maître
um
<pequeno esclarecimento" ou arrisca um qualquer prato para náo fazer figura de parvo, denunciando o choque deuma condição plebeia com linhagens semânticas de cunho nobre.
Tocque-ville deu-se bem conta destas tensões sociais ao constatar que na (confu-são" social originada pela mobilidade social, o ser passa a ser o parecer, a
hipocrisia davirtude cede lugar à da luxúria. O kitsch favorece socializøções
por øntecipøç ãa na base de díssimulações por imitaç ãa mas também já foi uma rebelião aristocrática contra a burguesia que a imita. Ou seja, o Kitsch não é apenas atributo das culturas populares ou pequeno-burguesas.
134
7
Portugal Social de A a Z:-l
Temas em aberto
Kitsch
Josê Machado País
Se ê Kitsch o que está fora do lugar, aí estão os estendais clandesti-nos de roupa íntima expondo a privacidade de um país aparentemente recatado, os incivis carros estacionados nos passeios, os falatórios dos velórios, o <<tttdo bem?" quando tudo vai mal. A ambivalência do Kitsclt retrata um povo preocupado em não estalar o uerniz,mas que também se pode desunhar, exceder. Ou seja, um povo contido, tido pelo que pode não ser, cultor de aparências mas também de irreverências. Portugal é Kitsch quando vai do oito ao oitenta, do coitadinhos de nós ao somos os maiores, quando se agacha para logo se pôr em bicos de pés, quando tem mais olhos que barriga, umas vezes poupadinho outras esbanjador, quando com tiques de novo-riquismo se faz passar pelo que não é, ostentando uma falsa sofisticação, atuando para Inglês uer, ntJmaparódia de catarse, numa vulgaridade que aspira a parecer refinada. Portugal ê Kitsch em suas grandezas e minudências: em obras públicas inacabadas, rodovias rápidas desertas, aeroportos fantasmas; mas também ê Kitsch nas deco-rações domésticas: nos gatos de porcelana; nas frutas artificiais da ban-deja a imitar prata; nos suportes de folhos rendados para a colocação do papel higiénico; nas enciclopédias jamais lidas, bolorentas por fora e ocas
por dentro, onde se guardam certificados de garantia de eletrodomésti-cos. Na quadra natalícia lá vêm os pais natais insuflados, escaladores de
varandas e, a caminho dos presépios, os figurantes de barro. O Kitsch coisifica a cultura mas também a pode romantizar.
Portugal ê Kitsch quando diariamente desfalece em frente do tele-visor (sonho desfeito de evasões falaciosas), hipnotizado por concursos parolos, melodramas telenovelísticos e tricas futebolísticas.
o
futebol por-tuguês, quando abusa do estilo rendilhado, mastigado, de fintas inconse-quentese
faltas simuladas,é
obviamente kitsch. OKitsch
surge na frivolidade de comportamentos pindéricos que se repetem dia-a-dia. por exemplo, nos cuidados de higiene descuidados.o
dedo indicador, sujeitoa uma severa educaçáo (não apontes que é feio!), à caça dos macacos das
narinas, ludicamente amassados e arremessados pela janela do carro, como um berlinde. O dedo mindinho, orgulhoso de sua alongada unha, em laboriosa prospeção e extração da cera produzida por orelhas esquivas ao banho diário. sáo Kitsch as fachadas corporais que levam ao ridículo
a sua artificialização (cirurgias plásticas, tatuagens, piercings, perucas, mamas de silicone ou lábios botox). O Kitsch produz um mundo postiço em que o pretensamente artístico se converte numa arte da mentira, o gato vendido por lebre. Portugal ê Kitsch quando adere à cultura copy and
136
Å
paste, quando se rodeia de réplicas, modelos, figurinos e protótipos. Portugal é Kitsch no seu chico-espertismo, mas também na versão dócil do "ctiuamos cantando e
rindl",
arremedo de um Kitsch totalitário habi-tado por contentinhos dø Silua.Portugal é KitscÍt quando os sentimentos religiosos sáo devorados por bijuterias profanas, santidades escarrapachadas em canecas de cerveja; calendários religiosos confraternizando com os de mulheres nuas; terços e crucifixos baloiçando com mascotes e talismãs nos espelhos retrovisores dos carros. Enfim, a arte religiosa ameaçada pela indústria do souuenir, bugigangas ridiculamente profanadas pela cultura Kitsch, apesar de sua dimensão religiosa e carismática. É esta banalização da espiritualidade que empurra a crença para a crendice, onde tudo parece ter um valor religioso, das orações de santinhos aos incensos curativos, dos sabonetes terapêuticos
aos tarôs egípcios. O acúmulo de devoções corresponde a um estado de privação, a uma debilidade do ser, a uma necessidade de religação que, subliminarmente, o Kitsch assegura enquanto ícone de religiosidade, encan-tamento, contemplação.
Se o Kitsch sobrevive por alimentar uma ilusão de realidade, é Kitsch o mundo dos discursos políticos vazios de conteúdo , o dizer que nada diz, a
mentira anunciada por promessas de mundos e fundos, a caça ao voto com apelos demagógicos a utopias inalcançáveis, o voto em consciência dando lugar ao devoto inconsciente. Alguns políticos rodeiam-se de consultores de
imagem porque os votos dependem mais de visuais do que de ideais, muito mais das artes de palrar do que das capacidades de governar. No Kitsch como na política, a popularidade é essencial, o carismaé glamour. O
suces-so passa inevitavelmente por náo ter papas na línguø, por atropelar adver-sários em debates televisivos, tornar-se respeitável pela falta de respeito, ganhar relevância em sua insignificância, deixar que o vício preste homena-gem à falsa virtude, ocultar abusos de poder sob a capa de uma falsa trans-parência. Se
é Kitsch
a
adtlaçãodo
supérfluo, uma boa
parte
da administração pública ê Kitsch. Estáo em causa as "bugigangas" damáqui-na burocrática, como a elas se referia Balzac. Dessa pesada herança faz parte a cultura da papelada, mexida e remexida por zelosos funcionários especializados em engavetar relatórios e pareceres cuja obscuridade é real por raramente verem a luz do dia. É uma cultura de esbanjamento que está em jogo, despesas supérfluas que agravam o défice das contas públicas.
Enfim, estes são alguns traços do Portugal Kítsch de hoje. O que as ciências sociais nos mostram é que as propriedades do mundo estético não
ß C I' l1 t-t l) I l K
-.:
L M N o p {) l1 5 I IJ V, x Y 7 r37Poltugal Social de A a Z:
Temas em al)erto
Kitsch
José Machtdo pais
são alheias às características da sociedade que o produ
z.
A
originalidade tem um valor própric mas, na sociedade contemporânea,a cultura pos-sessiva satisfaz-se com a cópia, a réplica,
o embuste.
o
statusartístico tern sido desvalo rizado pela merca dorizaçã.o da estética.o
que mais conta é o status social baseado na aparência. Por isso, a mobilidadesocial reclama uma estilização de modos de vida assentes em consumos ostentativos
e conspícuos. Na sociedade afluente afluem, sobretudo, as propriedades corrosivas de um sistema económico que leva os consumidã..s
a consu_
mirem-se em desejos de consumo supérfluo
-
mas também patético e pa-tológico, termos com uma comum raiz etimológica (do grego pathos), de onde brota a ideia de sofrimento. Neste sentido, o Kítscrté uma arte adap_ tada à vida que aproduz,preenchendo vaziosexistenciais, atuando como uma terapia que torna o enfermo dependente dela. Este é
o patltos de
uma sociedade patética porque sofrida em sua
sofreguidão de existência. De onde vem a mediocridade coletiva senão de um estado de
arienação generalizada? Portugal é Kitschquando perde
a sua identidade, quando se
anula no que o descaracteriza, quando agonia no que
o consome, quando
se afirma na falsificação do que, culturalmente,
o poderia distinguir. No entanto, Portugal é muito mais do que este retrato Kitsch,espelho de uma
cultura de massas investida em simulacros de felicidade.
Nada nos impe_ de de nos reinventarmos nas diferenças.
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