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Repositório Institucional da UFPA: “Lérias, letras, alegres ou tristes” do conto: oralidade e amor em Guimarães Rosa

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Academic year: 2019

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARÁ INSTITUTO DE LETRAS E COMUNICAÇÃO MESTRADO EM LETRAS — ESTUDOS LITERÁRIOS

JORGE LUÍS FERREIRA PANTOJA

LÉRIAS, LETRAS, ALEGRES OU TRISTES

DO CONTO:

ORALIDADE E AMOR EM GUIMARÃES ROSA

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARÁ INSTITUTO DE LETRAS E COMUNICAÇÃO MESTRADO EM LETRAS — ESTUDOS LITERÁRIOS

JORGE LUÍS FERREIRA PANTOJA

LÉRIAS, LETRAS, ALEGRES OU TRISTES

DO CONTO:

ORALIDADE E AMOR EM GUIMARÃES ROSA

Dissertação de Mestrado apresentada ao Curso de Pós-Graduação em Letras do Instituto de Letras e Comunicação da Universidade Federal do Pará, como parte dos requisitos para obtenção do grau de Mestre em Letras.

Orientador:

Prof. Dr. Sílvio Augusto de Oliveira Holanda

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FOLHA DE APROVAÇÃO

JORGE LUÍS FERREIRA PANTOJA

―LÉRIAS, LETRAS, ALEGRES OU TRISTES‖ DO CONTO: ORALIDADE E AMOR EM GUIMARÃES ROSA

Dissertação de Mestrado apresentada ao Curso de Pós-Graduação em Letras do Instituto de Letras e Comunicação da Universidade Federal do Pará, como parte dos requisitos para obtenção do grau de Mestre em Letras.

Orientador:

Prof. Dr. Sílvio Augusto de Oliveira Holanda

Aprovado em: 28/ 02/ 2013 Conceito: Excelente

Menção:

Banca Examinadora Professor (a): Prof. Dr. André Teixeira Cordeiro

Instituição: Universidade Federal do Tocantins (UFT)

Professor (a): Prof. Dra. Socorro Simões (Examinadora interna) Instituição: Universidade Federal do Pará (UFPA)

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AGRADECIMENTOS

A Deus, por me nutrir de perseverança e paciência para vencer mais essa batalha em minha vida;

Ao meu orientador Prof. Sílvio Holanda, amigo e sábio conselheiro;

Ao meu pai, Raimundo Nonato, por me apoiar desde o início, irrestritamente;

A minha tia, mãe e amiga, Ilza Dias, pela disponibilidade, pela amizade e pelo grande apoio durante minhas aulas no Rio de Janeiro; sem esse anjo, metade deste sonho seria irrealizável;

A minha amada mãe, Maria Nilma, um porto seguro repleta de calma e compreensão;

A minha esposa, Milene Pantoja, uma prova viva da perfeição do ato criador de Deus: a mulher. Obrigado por me entender, mesmo quando a razão estivesse ausente de minhas atitudes;

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RESUMO

O estudo da novela ―Uma estória de amor‖, de Guimarães Rosa (1908-1967), que pretendemos desenvolver na realização desta Dissertação de Mestrado, traz como principal mote a recepção crítica e a interpretação das cantigas, narrativas e estórias cantadas e contadas durante a ―Festa de Manuelzão‖ (espécie de subtítulo de ―Uma estória de amor‖). Desse modo, nosso trabalho terá sua metodologia desenvolvida com fundamento na Estética da Recepção, formulada por Hans Robert Jauss (1921-1997), porém, não se trata de amparar a feitura dessa Dissertação, única e exclusivamente, nos métodos estético-recepcionais, mas, de amparados pelos estudos hermenêuticos, sobretudo os formulados por Jauss, constituir um cenário possível para a obra de Guimarães Rosa, considerando suas várias interpretações e sua importância para a afirmação do caráter vanguardista atribuído ao seu legado, em especial à ―Uma estória de amor‖. Durante a realização da festa que marcará a inauguração da fazenda, os muito contadores e cantadores chegam à Samarra (propriedade de Federico Freire, patrão de Manuelzão) com a missão de contar narrativas e cantigas que conduzirão o velho vaqueiro a um raro momento de parada dos seus afazeres na fazenda, levando-o a fazer parte da celebração de sua festa. Com vista a realizar o objetivo proposto nesta Dissertação, sua divisão estrutura-se na construção de três capítulos, sendo cada um, subdividido em duas partes. Tal divisão há de servir ao alcance das questões, conclusões e possibilidades interpretativas sobre ―Uma estória de amor‖. Assim é que, já no primeiro capítulo do texto, explorar-se-á a recepção crítica de ―Uma estória de amor‖, bem como seu caráter vanguardista, tomando como exemplo a Literatura oral, que torna a novela de Guimarães Rosa objeto mais do que suficiente aos estudos propostos por Jauss. No segundo capítulo, dissertar-se-á sobre o amor, segundo a discussão empreendida por Derrida acerca do

phármakon, teorizado em A farmácia de Platão (1991), como recorrência, ao mesmo tempo, desencadeadora de um veneno e de um poder curativo, que atribuem, ao protagonista da novela em questão, o papel do ouvinte ainda capaz de se emocionar e surpreender-se com a simples audição de relatos, aparentemente tão ingênuos sobre estórias adquiridas e perpassadas ao longo dos anos pela oralidade. No capítulo final, intenta-se realizar uma análise de alguns cantos, e, especificamente, de três narrativas condicionadas em ―Uma estória de amor‖, dialogando com leituras mais recentes da obra (Sandra Vasconcelos, em

Puras Misturas [1997], por exemplo), para demonstrar a importância do relato transmitido pelas várias gerações que procedem à narrativa original, as quais, indiferente às mudanças de rumo constantes nesses possíveis textos, muitas vezes, parecem discordar do original.

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RESUMÉ

L'étude du roman ‟Uma estória de amor‖, Guimarães Rosa (1908-1967), nous avons l'intention de développer dans la réalisation de cette thèse, a comme thème principal la réception critique et l'interprétation des chansons, des récits et des histoires racontées et chantées au cours de ‟Festa de Manuelzão‖ (sorte de sous-titré ‟Uma estória de amor‖). Ainsi, notre travail aura sa méthodologie sur la base de l'esthétique de la réception, formulées par Hans Robert Jauss (1921-1997), cependant, il n'est pas soutenir la prise de cette thèse, uniquement et exclusivement, les méthodes recepcionais esthétique, mais , soutenue par les études herméneutiques, en particulier celles formulées par Jauss, constituent un scénario possible pour le travail de Guimarães Rosa, compte tenu de ses diverses interprétations et leur importance pour la déclaration attribuée à la nature avant-garde de son héritage, en particulier la ‟Uma estória de amor‖. Au cours de la réalisation du festival qui marque l'ouverture de la ferme, les comptables mêmes et chanteurs viennent à Samarra (détenue par Federico Freire, patron Manuelzão) dont la mission est de raconter des histoires et des chansons qui mènent le vieux cow-boy à un rare moment de son arrestation leurs travaux de la ferme, l'obligeant à faire partie de la célébration de sa fête. Afin d'atteindre l'objectif proposé dans cette thèse, la structure de division dans la construction de trois chapitres, chacun divisé en deux parties. Une telle division est de servir l'ensemble des questions, des conclusions et des interprétations possibles sur le thème ‟Uma estória de amor‖. Alors que, dans le premier chapitre du texte, il étudiera la réception critique de ‟Uma estória de amor‖, ainsi que son caractère d'avant-garde, en prenant comme exemple la littérature orale, ce qui rend le roman plus Guimarães Rosa objet assez que les études proposées par Jauss. Dans le deuxième chapitre, conférence sera l'amour, selon la discussion menée par Derrida à propos de pharmakon, théorisé dans la pharmacie de Platon (1991), la réapparition, tout en déclenchant un poison et un pouvoir de guérison, cet attribut, le protagoniste du roman en question, le rôle de l'auditeur encore capable de captiver et surprendre vous-même simplement en entendant des rapports, des histoires de apparemment naïve et pénétré acquise au fil des ans par l'oralité. Dans le dernier chapitre, a l'intention de procéder à quelques virages, et spécifiquement conditionnée par trois récits ‟Uma estória de amor‖, en dialoguant avec les dernières lectures de l'œuvre (Sandra Vasconcelos dans Pure Blends [1997], par exemple ), afin de démontrer l'importance du rapport transmis par les différentes générations qui portent récit original, qui, indifférent à ces changements constants de direction textes possibles semblent souvent être en désaccord avec l'original.

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO... 09

1. ANÁLISE TEÓRICA E EXPERIÊNCIA ESTÉTICA DE “UMA ESTÓRIA DE AMOR”... 15

1.1. O post festum à luz da Hermenêutica... 16

1.2. Leitor e personagem no ―torto encanto‖ do conto... 28

2. “UMA ESTÓRIA DE AMOR” COMO PHÁRMAKON: A PROSA ROSIANA À LUZ DA FILOSOFIA PLATÔNICA... 40

2.1. Arte e inspiração: fontes mitológicas em um legado moderno... 41

2.2. Phármakon: a cura e o veneno em ―Uma estória de amor‖... 53

3. “TORTO ENCANTO”: ANÁLISE CRÍTICA DAS NARRATIVAS ORAIS EM “UMA ESTÓRIA DE AMOR”... 66

3.1. Estórias de amor na Samarra: interpretação dos contos e dos cantos em ―Uma estória de amor‖... 67

3.2. ―Lérias, letras‖ antes e depois da festa... 83

CONCLUSÃO... 98

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INTRODUÇÃO

Joana Xaviel demonstrava uma dureza por dentro, uma inclinação brava. Quando garrava a falar as estórias, desde o alumeio da lamparina, a gente recebia um desavisado de ilusão, ela se remoçando beleza, aos repentes, um endemônio de jeito por formosura. Aquela mulher, mulher, morando de ninguém não querer, por essas chapadas, por aí, sem dono, em cafuas. Pegava a contar estórias — gerava torto encanto.1

Não há maior comprovação sobre a existência do homem do que os relatos de sua própria história. O que se conta sobre uma cena ou um acontecimento, seguindo a linha da realidade quase pura ou alicerçada pelos tantos ―pontos‖ que seguem aumentando os ―contos‖, inflam as narrativas com tantas e tão variadas possibilidades, que o acontecimento em si já não é o mais relevante, mas, em detrimento deste, os detalhes adicionados à história original; minudências que têm, na capacidade envolvente do contador, o grande fascínio que o fato narrado exerce para o ouvinte ou para o leitor.

Ao transportar para as páginas de seus livros o típico trato do homem com o ato de perpassar experiências muitas vezes não vividas por esse fictício ser humano, Guimarães Rosa nos apresenta outra visão sobre o saber literário. O autor, nascido em Cordisburgo no ano de 1908, ganhou notoriedade durante o desenvolvimento do Modernismo brasileiro, acontecimento artístico que, desde o início, impôs perspectivas controversas às bases românticas europeias. Era preciso mudar, e isso já havia começado com Monteiro Lobato (Urupês, 1918), Mário de Andrade (Macunaíma, 1928) e Graciliano Ramos (Vidas secas, 1938), mas faltava quem passasse, literalmente, a palavra ao homem simples e o alçasse à categoria de narrador de sua própria história.

Os narradores, em Guimarães Rosa, mais do que meros instrumentos alegóricos a serviço da obra — esse ―estranho pião‖2, que segue traçando interpretações não produzidas pelo autor, — emprestam novas concepções ao leitor, que compreenderá em suas mais variadas percepções os microuniversos criados a partir da realização artística do escritor e de suas variadas possibilidades interpretativas. Dessa realização, pode-se compreender, por exemplo, Riobaldo (Grande sertão: veredas, 1956), Lina (―A estória de Lélio e Lina‖, 1956)

e Manuelzão (―Uma estória de amor‖, 1956), como semelhantes em um ponto, além de

1 ROSA, João Guimarães. ―Uma estória de amor‖. In: Corpo de Baile: sete novelas. Rio de Janeiro: J. Olympio,

1956. v. 1, p. 173. Grafia do autor.

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pertencerem ao universo criado por Guimarães Rosa: eles representam, ainda que ficcionalmente, a aquisição de experiências diversas, pois os atos de narrar (Riobaldo), perceber (Lina) ou, simplesmente, ouvir (Manuelzão) aproximarão cada uma dessas personagens do leitor.

Vistos de uma certa [sic] distância, os traços grandes e simples que caracterizam o narrador se destacam nele. Ou melhor, esses traços aparecem, como um rosto humano ou um corpo de animal aparecem num rochedo, para um observador localizado numa distância apropriada e num ângulo favorável. Uma experiência quase cotidiana nos impõe a exigência dessa distância e desse ângulo de observação. É a experiência de que a arte de narrar está em vias de extinção. São cada vez mais raras as pessoas que sabem narrar devidamente.3

Esse ―narrador em vias de extinção‖, de que nos fala Walter Benjamin (1842-1940), em

Magia e técnica, arte e poética, na realidade reside sobre a própria experiência de narrar; a motivação desencadeada nos vários públicos, com o valor atribuído à narrativa graças ao narrador, faz-se presente em Guimarães Rosa, especialmente em ―Uma estória de amor‖. O desenho no rochedo, que nos remete ao corpo de um animal ou ao rosto de um homem, desempenha o mesmo papel na percepção que ocorrerá com o leitor em relação à obra escrita ou contada. Na narrativa, o narrador perpassa o fato, a experiência apreendida em uma determinada época às comunidades de leitores e ouvintes em qualquer tempo.

Assim, considerando tal importância, por que se fala em um narrador em vias de extinção? O que, afinal, explica um possível desinteresse pelas narrativas, por parte do leitor e mesmo do ouvinte, que possa ter diminuído a importância outrora atribuída ao ato de ler um livro, uma pintura ou mesmo os pontos aumentados nos tantos contos narrados por anônimos ao redor do mundo? A essas questões, responder-se-á, inicialmente, com excertos de Roger Chartier em A aventura do livro: do leitor ao navegador (1998), onde se observa a perda, cada vez mais acentuada, da importância do livro na vida do leitor e, exatamente por isso, a mudança de postura desse leitor, que, imbuído de outros conhecimentos e formas de apreender o mundo ao seu redor, parece abandonar, gradativamente, o ato primaz da percepção de conhecimento.

Do rolo antigo ao códex medieval, do livro impresso ao texto eletrônico, várias rupturas maiores dividem a longa história das maneiras de ler. Elas colocam em jogo a relação entre o corpo e o livro [por exemplo], os possíveis usos da escrita e as categorias intelectuais que asseguram sua

3 BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e poética: ensaios sobre Literatura e História da Cultura. Trad.

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compreensão.4

Roger Chartier, em A aventura do livro: do leitor ao navegador, faz-se necessário nesse momento, pois sua obra trata diretamente do uso do livro, esclarecendo que, assim como a forma a que nos habituamos lidar com as tantas histórias contadas ou cantadas ao longo da existência humana, se tornou necessária a renovação da leitura, para utilizar métodos que trouxessem ou criassem um público que andava (e anda) cada vez mais distante daquilo que proporciona o simples ato de ler um livro ou ouvir uma história: provocar sensações em possíveis leitores ou ouvintes.

Desde os antigos rolos até o advento da informática, testemunhou-se a necessidade de se reconfigurar a narrativa, pois já não há como manter ou cativar um público leitor, ouvinte, espectador, etc., englobando os mesmo métodos aplicados antes das tantas inovações contemporâneas (a informática, principalmente, mas, além disso, o cinema, a televisão, o rádio, etc.). Em parte, a explicação para uma possível extinção da narrativa e do narrador pode residir no fato de que outras tecnologias, como as citadas anteriormente, desviaram, de uma forma cada vez mais veloz, o interesse dos tantos públicos que se sucederam ao longo da existência da escrita, que, como bem diz Chartier, se colocou em jogo o trato do leitor com o livro, ou, em consonância com as palavras do autor de A aventura do livro: do ouvinte com o narrador. Assim, cabe recorrer, neste momento, a uma afirmação de Walter Benjamin em

Magia e técnica, arte e poética, que apresenta essa perda de valor da experiência vivida pelo leitor com o livro, como um dos principais fatores para o interesse cada vez menor do leitor pelo livro.

As ações da experiência estão em baixa, e tudo indica que continuarão caindo até que seu valor desapareça de todo. Basta olharmos um jornal para percebermos que seu nível está mais baixo que nunca, e que da noite para o dia não somente a imagem do mundo exterior mas também a do mundo ético sofreram transformações que antes não julgaríamos possíveis.5

E não se trata de exaltar o combalido discurso dos saudosistas, que parecem buscar, na sociedade atual, os resquícios de uma pretensa ―era de ouro‖ que jamais voltará. A queda na qualidade da experiência que o leitor tem com os textos impressos nos livros, nas revistas ou nos jornais, como lembra Benjamin, é evidente e, mais do que isso, expõe-nos a fragilidade a que estão submetidas as gerações sob o jugo dessa pobreza da experiência, cada vez mais

4 CHARTIER, Roger. A aventura do livro: do leitor ao navegador. Trad. Reginaldo Carmello Corrêa de Moraes.

São Paulo: UNESP, 1998, p. 77.

5 BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e poética: ensaios sobre Literatura e História da Cultura. Trad.

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acentuada entre os públicos das mais variadas expressões artísticas possíveis, pois o computador, a televisão, o cinema e mesmo o rádio jamais poderão substituir a força e a renovação, isenta de intromissões naquilo que se possa perceber, a que representa um livro ou, como no exemplo da ficção em ―Uma estória de amor‖: um simples relato oral.

Em um mundo regido pela frenética velocidade da informação online, a experiência, o ―experienciar‖, parece ter-se tornado obsoleto à sociedade. Há ainda a mesma ânsia por informação que já se presenciou nas sucessões das fases que envolvem a escrita, desde os escritos rupestres nas paredes dos vários parques arqueológicos, passando pelos escritos de Pompeia até a invenção de Johannes Gutenberg, o que parece haver de novo, que deprecie de forma bastante peculiar o momento em que se deveria valorizar ainda mais a escrita graças ao acesso fácil à informação oferecido pelo computador, é que a experiência deu lugar a um imediatismo quase tão tacanho quanto o saudosismo de um tempo que já não é mais como antes, pois a mudança se demonstrou necessária e inevitável.

Mas, feitas as adequações de praxe, mesmo a mudança, ao longo de sua aceitabilidade, acaba tornando-se oportuna, e aí reside a diferença em relação à maneira de lidar atualmente com os livros ou com os relatos orais. Não há assimilação da representatividade do livro, nem da importância do relato oral pelas gerações que ―navegam‖ no ciberespaço, ao contrário disso, há, sim, uma crescente aversão ao livro impresso. A situação cômoda de possuir em um aparelho (computador, notebook, tablet, etc.) uma quantidade de arquivos em forma de texto, que nada mais são do que os livros outrora impressos, parece cooperar para a ―aposentadoria‖ imediata do livro não apenas em sua conhecida estrutura (capa, páginas, índice, etc.), mas a própria experiência do leitor com a obra e a capacidade de despertar os mais variados tipos de leitores a curiosidade pelo desfecho da narrativa ou o porquê de seus elementos dispostos ao longo da obra.

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Benedito Nunes (1929-2011) nos questiona:

Se as obras não são mais o que foram, como nos alcançam? [...] se depararmos com as obras nas exposições, não encontramos mais o mundo a que a obra pertencia. As obras vêm ao nosso encontro no tempo, enquanto temporalidade ek-stática, na continuidade entre passado e presente.6

Por isso se pode dizer que os meios mudam, mas, como bem nos esclarece Benedito Nunes em Hermenêutica e poesia (1999), a obra continua alcançando parcelas consideráveis de um público cativo, que não se demonstra muito disposto a fazer cessar a leitura. A obra enquanto temporalidade ek-stática no presente alicerça as vigas que servirão ao futuro, o que tornará possíveis as tantas interpretações, para além daquela concebida pelo escritor no passado.

Interpretação ou, como diz Guimarães Rosa na realização da fictícia personagem Manuelzão, ―estória!‖7 É com o que lida a Estética da Recepção: a interpretação de determinada ―estória‖, obra, etc., no tempo em que é concebida e de que forma os possíveis cenários que servem a estas tantas vertentes da experiência humana, seja em seu lançamento, ou em sua consagração, se constituirão como o alicerce para a confirmação ou não de sua importância para a Literatura.

Uma renovação da história da literatura demanda que se ponham abaixo os preconceitos do objetivismo histórico e que se fundamentem as estéticas tradicionais da produção e da representação numa estética da recepção e do efeito.8

Como diz Hans Robert Jauss, em A História da Literatura como provocação à teoria literária (1994), não se trata de considerar apenas a interpretação de determinada obra ou o valor artístico atribuído por causa da importância de seu autor; importância maior há no reconhecimento de livros como Grande sertão: veredas e Manuelzão e Miguilim como obras que sempre estiveram na vanguarda de seu tempo por serem conferidas da capacidade de provocar efeito à percepção do leitor.

Desse modo, já no primeiro capítulo, intitulado ―Análise teórica e experiência estética de ‗Uma estória de amor‘‖, os conceitos proposto por Hans Robert Jauss são trazidos como parte relevante da análise que cerceia a interpretação da novela ―Uma estória de amor‖. Nesse capítulo, além das considerações de Hans Robert Jauss sobre Estética da Recepção, também

6 NUNES, Benedito. Hermenêutica e poesia: o pensamento poético. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 1999, p. 112. 7 ROSA, João Guimarães. ―Uma estória de amor‖. In: Corpo de Baile: sete novelas. Rio de Janeiro: J. Olympio,

1956, v. 1, p 160.

8 JAUSS, Hans Robert. A História da Literatura como provocação à teoria literária. Trad. Sérgio Tellaroli. São

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há as de Wolfgang Iser, em O ato da leitura: uma teoria do efeito estético (1996-1999), de Jean-Paul Sartre, em Que é Literatura? (1993), e de Sandra Vasconcelos, em Puras Misturas

(1997), entre outros. Esse primeiro momento se divide em outros dois subcapítulos, a saber: ―O post festum à luz da Hermenêutica‖ e ―O leitor e a personagem no ‗torto encanto‘ do conto‖, nestes subcapítulos as narrativas aparecem apenas como exemplos à teoria proposta: o estudo do valor da literatura oral.

No segundo momento, intitulado ―‗Uma estória de amor‘ como phármakon: a prosa rosiana à luz da filosofia platônica‖, para além de uma simples interpretação sobre a novela ―Uma estória de amor‖, propor-se-á uma análise do amor desperto com o auxílio das narrativas, como uma espécie de cura e veneno, de acordo com os estudos de Derrida em A farmácia Platão. Desse modo, esse segundo capítulo dividir-se-á em outros dois subcapítulos: ―Arte e inspiração: fontes mitológicas em um legado moderno‖ e ―Phármakon: a cura e o veneno em ‗Uma estória deamor‘‖.

O terceiro e último momento, ―‗Torto encanto‘: análise crítica de três narrativas orais em ‗Uma estória de amor‘‖ nos permitirá antepor, comparar e analisar as modificações aplicadas, por exemplo, pelas fictícias personagens Joana Xaviel e velho Camilo às principais histórias contadas durante a festa, as quais, na realidade, são representações literárias das diferenças textuais existentes em um relato, oral quando relacionado com um texto escrito em outro momento histórico. Esse capítulo está dicidido em outros dois subcapítulos: ―Estórias de amor na Samarra: interpretação de contos e cantos em ‗Uma estória de amor‘‖ e ―‗Lérias, letras‘ antes e depois da festa‖.

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1. ANÁLISE TEÓRICA E EXPERIÊNCIA ESTÉTICA DE “UMAESTÓRIA DE AMOR”

A literatura como acontecimento cumpre-se primordialmente no horizonte de expectativa dos leitores, críticos e autores, seus contemporâneos e pósteros, ao experienciar a obra.9

O valor estético de uma obra não pode estar vinculado apenas à consagração de determinado escritor no presente ou em um futuro reconhecimento por parte dos críticos de seus livros. Como bem esclarece Hans Robert Jauss na citação acima, retirada de A História da Literatura como provocação à teoria literária, acima de qualquer outra condição, deve-se primeiramente considerar a interpretação, ou seja, a experiência com o objeto artístico, e o efeito produzido por esse objeto no leitor.

O leitor pode reconhecer as ―lacunas‖ colocadas pelo autor em determinado texto; o leitor pode criá-las ou ignorá-las, essas ―lacunas‖ são os silêncios mais significativos, presentes em ―Uma estória de amor‖, de Guimarães Rosa. Aliás, a insistência em vincular a obra ao seu autor não ocorre à toa, como se sabe, há no mundo da Literatura, do Cinema e da teledramaturgia de uma forma geral, inúmeras ―histórias de amor‖, porém, quando se fala em Guimarães Rosa, pode-se afirmar, principalmente em relação à ―Festa de Manuelzão‖, que não há uma história de amor convencional e específica; aquele que poderíamos ver como a personagem título, Manuelzão, inicia a narrativa e a termina na mais absoluta solidão. Joana Xaviel e velho Camilo, apontados por alguns críticos como os responsáveis pelo ―amor‖ que intitula a novela, não chegam a demonstrar isso, o leitor o sabe por intermédio de um narrador, e aqui reside o ponto nevrálgico desta narrativa.

Ao confluirmos para essa espécie de espectador, o narrador, que costura a história de Manuelzão, de Joana Xaviel, do velho Camilo, etc., — como a própria Šahrāzād o faz no clássico das narrativas As Mil e Uma Noites, — percebemos o verdadeiro amor da estória; exatamente assim, sem o ―h‖ etimológico, da maneira precisa como Guimarães Rosa estabeleceu a realização do signo que remeta o seu público leitor às narrativas inventadas, sem compromisso com uma verdade pré-estabelecida, mas, ainda assim, capazes de despertar no leitor sentimentos diversos.

A experiência que passa de pessoa a pessoa é a fonte a que recorreram todos os narradores. E, entre as narrativas escritas, as melhores são as que menos se distinguem das histórias orais contadas pelos inúmeros narradores

9 JAUSS, Hans Robert. A História da Literatura como provocação à teoria literária. Trad. Sérgio Tellaroli. São

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anônimos.10

Anônimos como Joana Xaviel e velho Camilo e os tantos cantadores e contadores de histórias que chegam à Samarra por ocasião da festa organizada por Manuelzão. Essa experiência, de que nos fala Walter Benjamin em Magia e técnica, arte e poética, nada mais é do que a experiência do leitor com o livro, por exemplo — uma relação necessária; insubstituível como o contador de histórias para as narrativas orais, — Joana Xaviel, o velho Camilo e todos os outros narradores que desfilam pela festa de Manuelzão, contribuem para as fictícias demonstrações de percepção, em especial as de Manuelzão.

1.1.O post festum à luz da hermenêutica

O papel da obra de arte no atual panorama da Literatura parece cada vez mais conflituoso. O artista contemporâneo, engajado na produção de um trabalho que não esteja submetido ao capital apenas, busca um caminho que proporcione ao leitor mais do que o mero prazer, porém, nem tanto que não a torne (a obra de arte) perceptível ou imperceptível a sua compreensão (do leitor).

A obra de arte pode também transmitir um conhecimento que não se encaixa no esquema platônico; ela o faz quando antecipa caminhos da experiência futura, imagina modelos de pensamento e comportamento ainda não experimentados ou contém uma resposta a novas perguntas.11

A citação, retirada de A História da Literatura como provocação à Teoria Literária, de Hans Robert Jauss (1921-1997), apresenta-nos um pouco da inquietação ―orquestrada‖ em torno da obra de arte; inquietação que pretendemos discutir em diálogo com a recepção crítica da novela ―Uma estória de amor‖, de João Guimarães Rosa e que, como o Batuque das Gerais‖ ao abrir o texto de ―Uma estória de amor‖, logo faz pensar acerca da função e da importância do contador de histórias para as relações humanas.

―O tear o tear o tear o tear

quando pega a tecer

10 BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e poética: ensaios sobre Literatura e História da Cultura. Trad.

Sergio Paulo Rouanet. São Paulo: Brasiliense, 1994, p. 198.

11 JAUSS, Hans Robert. A História da Literatura como provocação à teoria literária. Trad. Sérgio Tellaroli. São

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vai até ao amanhecer quando pega

a tecer,vai até ao amanhecer...‖12

O ―Batuque das Gerais‖ principia a novela ―Uma estória de amor‖ desde sua primeira edição, ainda no volume Corpo de baile, e tal qual uma cantiga que propõe e remete ao ato de narrar, que se alinhava de homens e mulheres para descendentes e desconhecidos, as ―estórias‖ são contadas e ganham versões diferentes a cada novo intérprete, reelaborando a percepção que se faça de uma simples cantiga como o ―Batuque das Gerais‖, até as histórias exibidas nas sessões de cinemas ou na programação da televisão; ou seja, mudam-se os meios, mas os fins continuam os mesmos: contar; contar ―estórias‖ e histórias; entreter, ensinar, transformar sentidos, percepções, ideias consideradas imutáveis. Ao espectador; ao leitor; ao ouvinte; permite-se estar à mercê da representação; do livro; do narrador; e se deixar conduzir pelo universo de uma simples narrativa. O contador ―[...] quando pega a tecer, vai até ao amanhecer...‖13, isso desde muito tempo, seja ao redor da fogueira, quando o Xamã, nos primórdios das civilizações humanas, transmitia o conhecimento às tribos pela arte de narrar, seja na lúdica narrativa das narrativas: O livro das mil e uma noites14, no qual Šahrāzād tece, literalmente, infinitos novelos de histórias a fim de se manter a salvo da vingança do rei Šāhriyār contra a traição da primeira esposa.

O poder das narrativas e da oratória perpassa os séculos, mantendo-se como opção para os atos mais primitivos de apreensão do conhecimento: ver, ouvir, enfim, perceber. Tal aspecto cultural da novela rosiana é ressaltado por Doralice Alcoforado, que contrapõe os textos popular e erudito:

Embora não explicitado esse posicionamento, [a novela ―Uma estória de amor‖] ao enfatizar o sistema significante, favorece a produção de novos sentidos que orientam o leitor, possibilitando-lhe avaliar o texto primeiro, o popular, através do texto erudito, devolvendo à circulação um texto mais ―oxigenado‖ (BERND, 1995).15

Uma das questões que mais causou inquietação à realização deste subcapítulo e que permeia o valor das narrativas orais trazidas à baila por Doralice Alcoforado na citação anterior, reside justamente na discussão inicial contida no parágrafo anterior acerca das

12 ROSA, João Guimarães. ―Uma estória de amor‖. In: Corpo de baile: sete novelas. Rio de Janeiro: J. Olympio,

1956. v. 1, p. 137. Aspas do original.

13 Idem, ibdem, p. 137. Aspas do original.

14 Vide edição de 2005, traduzida por Mamede Mustafa Jarouche, pela Editora Globo.

15 ALCOFORADO, Doralice Fernandes Xavier.―‗Uma estória de amor‘: um diálogo intercultural. In: Boitatá

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perguntas em torno do papel da obra de arte, pois, como uma novela escrita por Guimarães Rosa, que traz entre seus principais sustentáculos, cantigas e estórias oriundas de um acervo desvinculado dos meios acadêmicos, pode causar algum efeito ao leitor, provocando-lhe a reflexão acerca de vários pontos de vista (o ato de narrar e o poder da oratória, por exemplo)?

A historicidade da literatura não repousa numa conexão de ‗fatos literários‘ estabelecida post festum [depois do dia de festa], mas no experienciar dinâmico da obra literária por parte de seus leitores.16

A Estética da Recepção objetiva, dentre outras linhas, o estudo da maneira como determinado texto é recebido em seu momento de publicação, pelo leitor que o recebe no post festum, de que nos fala Jauss. Na realidade, mesmo as críticas negativas à obra de Guimarães Rosa, de certa forma, contribuíram para a constituição do horizonte de expectativas sobre ―Uma estória de amor‖, ainda que desse horizonte não haja uma definição sobre a longevidade do trabalho de Guimarães Rosa. O que pode ser ressaltado, de fato, atualmente, acerca da obra do autor mineiro é que, seja a escolha tão vasta de lexemas sertanejos, em consonância até mesmo com termos em latim, seja a inovadora escolha da pessoa a ser utilizada a narrativa (algo bastante arriscado do ponto de vista da compreensão do leitor para os dias de hoje e demasiado novo para 1956), ou mesmo a construção de parágrafos que chegam a exigir páginas inteiras, como ocorre, por exemplo, em Grande sertão: veredas

(1956), todos esses podem ser vistos como pontos que bastariam para concluirmos que o acervo literário composto pelo autor de Cordisburgo jamais será esquecido e ainda renderá muitos estudos sobre os seus tantos significados.

Guimarães Rosa, quando de sua estreia no conturbado cenário literário modernista, lançou sua obra-prima Grande sertão: veredas e foi classificado por Wilson Martins (1921-2010) como portador de um ―estilo retórico‖17 pouco inovador; seu livro, para o crítico, não fazia jus a tantos julgamentos positivos. Pouco mais de cinquenta anos depois, com um público leitor ainda em formação, Grande sertão: veredas continua rendendo muitas questões e renovando-se enquanto obra de arte. Hoje é possível dizer que a história de Riobaldo registra um dos maiores feitos de todos os tempos da Literatura de Língua Portuguesa: é objeto de estudos filosóficos, psicológicos, linguísticos, históricos, dentre tantos outros, que a realizam continuamente, pois está inserida num ―esquema platônico‖ que perpassa um conhecimento repleto de ―modelos de pensamento e comportamento‖ ainda não

16 JAUSS, Hans Robert. A História da Literatura como provocação à teoria literária. Trad. Sérgio Tellaroli. São

Paulo: Ática, 1994, p. 24.

17 MARTINS, Wilson. Guimarães Rosa na sala de aula. In: DANIEL, Mary Lou. João Guimarães Rosa:

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experienciados, os quais, certamente, responderão questões que residem no eco do futuro. Assim também o são as narrativas do originalmente intitulado Corpo de baile, que se espraia em sete novelas independentes à percepção do público leitor, mas também dependentes, ao se complementarem como pares de vários elementos do sertão. Em ―Uma estória de amor‖, especificamente, os pares ao ―baile‖ são escolhidos como em uma grande festa, uma celebração à narrativa: Joana Xaviel está para Camilo, como Adelço está para Leonísia e Manuelzão para a solidão. Mas a ―contação‖ das histórias embaralha tudo: Joana Xaviel e Camilo passam a estar para os ouvintes, assim como as cantigas dos vaqueiros andantes; Leonísia é vida, Adelço é ―[...] criatura de guardadas palavras e olhares baixos. Mas não enganava a Manuelzão: era mesquinho e fornecido maldoso, um homem esperando para ser ruim.‖18, logo, desde o início, já não são como pares um do outro, porém, ainda que assim não se realizem, Leonísia jamais estará para o sogro. Convenções, pudores e recatos talvez sejam motivos que não permitam a Leonísia sequer pensar no sogro de outra forma que não como o pai de seu marido, homem idoso e ao qual deve respeito.

Manuelzão, dessa maneira, ―dança‖ sozinho, e é em companhia da solidão, que ele ouve as histórias, as cantigas e os seus pensamentos; sua disposição se assemelha ao ouvinte de uma música; o apreciador de um quadro, de uma peça teatral ou um filme; e também o leitor de um livro.

Na ideia da festa êle não estava navegado, a tudo? Quieto, devia de aproveitar para repensar mais os arranjos, excogitando meios. Verdade, que bem não carecia [...] o vago de palavras, o sabido de não existido, invenções. Tomar a ocasião para presumir os benefícios do serviço do campo, o negócio de sempre. A boiada que ia sair. À Santa-Lua. Não, não carecia. A gente não estava em folga de festa? [...] Desmerecia, até estragava o avejo da festança, se êle pegasse a refletir na viagem da boiada [...] Aborrecia. Deixava para depois, quando a festa estiasse. Aí, resolvia [...] Agora mesmo, não era por querido querer que estava ali escutando as estórias. Mais essas vinham, por si, feito no avanço do chapadão o menor vento briseia.19

As histórias tocam Manuelzão como uma brisa, envolvendo-o, cercando-o, atribuindo-lhe percepções até então confinadas, quietas em si. A história contada ou a que se conta se torna real no momento em que entra em contato com o ouvinte, com o espectador ou com o leitor, que nada mais é do que o mesmo sujeito, por ser atribuído do mesmo papel: percepção. Pode-se dizer que o mesmo ocorre, ficcionalmente, em ―Uma estória de amor‖, pois as histórias de Joana Xaviel, do velho Camilo, as cantigas entoadas pelos vaqueiros que chegam

18ROSA, João Guimarães. ―Uma estória de amor‖. In: Corpo de Baile: sete novelas. Rio de Janeiro: J. Olympio,

1956. v. 1, p. 147.

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à festa de Manuelzão, estariam fadadas à mesma incompletude existencial da obra literária enquanto mero artefato; a obra não lida; o livro em si como apenas um suporte: carente de quem o realize como obra de arte; a compreensão dos ouvintes pelo narrador, assim como a percepção do texto pelo leitor, de acordo com Wolfgang Iser em O ato da leitura (1996-1999), realizar-se-á no contato direto desse leitor (ou do ouvinte, no caso de ―Uma estória de amor‖) com a obra de arte:

A relação entre o texto e o leitor se caracteriza pelo fato de estarmos diretamente envolvidos e, ao mesmo tempo, de sermos transcendidos por aquilo em que nos envolvemos. O leitor se move constantemente no texto, presenciando-o somente em fases [...]20

Para o texto: o leitor; para a narrativa: o ouvinte. Em O ato da leitura, Wolfgang Iser fala sobre a importância primordial do leitor para a realização da obra literária. A percepção do texto e, por que não dizer, da narrativa, ocorre em fases, que acontecem como a ―brisa no chapadão‖, da citação de Guimarães Rosa: envolvendo; tomando conta, aos poucos, dos espaços vazios — a compreensão do leitor sobre determinado evento descrito na obra, até que tal compreensão se realize de fato, é apenas um desses espaços vazios, além das conclusões de Manuelzão sobre as histórias auditas ao longo da festa —. Histórias que atribuem à obra o contínuo movimento, apenas cessando com o estanque da leitura ou da audição. O livro se torna obra de arte a partir do primeiro momento em que é, literalmente, recebido pelo leitor.

De acordo com Iser, essa realização se encadeia em fases, que, aos poucos, revelarão para o leitor a obra, a qual está incompleta até a leitura, a percepção, a audição daquele que lhe atribuirá o verdadeiro significado, tornando-a mais do que um mero artefato. Em ―Uma estória de amor‖, ao escolher por condicionar a ―estória‖, dentro da história — espécie de intratextualidade — para falar sobre as narrativas, Guimarães Rosa brinca com o leitor de todas as suas obras; pois Manuelzão, Leonísia, dona Quilina e tantas outras personagens, que ouviram e ouvirão os contadores em ―Uma estória de amor‖, personificam os leitores em seu momento mais sublime no contato com a arte: torná-la arte.

Segundo Jean-Paul Sartre ―[...] o objeto literário é um estranho pião, que só existe em movimento. Para fazê-lo surgir é necessário um ato concreto que se chama leitura [...]‖21 Isso certamente ocorre com as narrativas orais, e no caso de ―Uma estória de amor‖, temos a ocorrência de múltiplas percepções, pois, ao tornar real o entendimento de Manuelzão acerca das histórias, durante a ―descoberta‖, signo a signo, da novela, o leitor é aquele que

20 ISER, Wolfgang. O ato da leitura: uma teoria do efeito estético. Trad. Johannes Kretschmer. São Paulo: Ed.

34, 1996-1999, p.12-13.

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compreende e que torna possível a realização do objeto artístico também de modo ficcional, para a personagem título de ―Uma estória de amor‖. O desvelar desse ―mundo interior‖ da personagem Manuelzão é, tal qual explica Ubirajara Carvalho em O amor e a nossa condição, desencadeado pelo contato entre o vaqueiro e todos os elementos que compõem a festa, onde:

Fundem-se, por assim dizer, dois fios na composição dessa narrativa: de um lado, temos a festa propriamente dita, com as músicas, a dança, as narrativas dos contadores e seu movimento; de outro, vemos deslindar-se o mundo interior de Manuelzão que, na festa que antecede a retomada de sua vida de vaqueiro, isto é, a saída com a boiada, passará em revista sua vida, trazendo à tona suas questões vitais.22

Manuelzão, ao fruir as estórias narradas por Joana Xaviel, pelo velho Camilo e pelos tantos cantadores de passagem pela Samarra, torna-se uma espécie de representação ficcional do leitor, que movimenta o ―estranho pião‖, de que nos fala Jean-Paul Sartre em Que é a Literatura? Mas aqui cabe o retorno a uma questão inicial desse trabalho: as narrativas populares podem ser consideradas obras? Se não podem, por que uma novela, que trata sobre as narrativas populares, sobre o poder de reinvenção e renovação dos contos e cantigas populares é considerada obra?

Na realidade, o que é possível ser dito sobre essas questões é que o acervo popular a que nos referimos como contos, cantigas e narrativas, estes são ―arte pura‖, que, quando não estão no suporte da obra, como lá estão em ―Uma estória de amor‖, residem no imaginário popular, na sabedoria de homens e mulheres que resistem a todo tipo de tecnologia, renovando-se e ganhando nuances que apenas a capacidade criativa do ser humano permite realizar, ―Um dos principais motivos da criação artística é certamente a necessidade de nos sentirmos essenciais em relação ao mundo.‖23

Esse sentimento de que nos fala Sartre, é perceptível na ―Festa de Manuelzão‖; o post festum do solitário vaqueiro da Samarra seria igual ao dia após dia de sempre, não fosse o despertar do velho capataz à narrativa de sua própria vida. Manuelzão ―revive‖, com os relatos e cantigas dos forasteiros, o instante após toda a comemoração, muito bem acentuado na conclusão de ―Uma estória de amor‖, o que serve para confirmar que a ―festa da existência‖ não perde seu canto tampouco seu conto, muito pelo contrário, a reinvenção da história por via das estórias permite às várias camadas de leitores, ouvintes e espectadores a percepção de uma continuidade que jamais será interrompida, mas rearranjada pelos

22 CARVALHO, Ubirajara Santiago de. O amor e a nossa condição: itinerários da festa em Uma estória de

amor‖ de Guimarães Rosa. Belo Horizonte, 2006. Dissertação de Mestrado (Literatura Brasileira), Universidade Federal de Minas Gerais, p. 9.

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diferentes motivos que se apresentam.

A festa, ato coletivo por excelência, é não só o elemento que enfeixa e organiza todos os acontecimentos do conto, mas também o espaço privilegiado que arranca da destruição e da morte o tempo da experiência. Longe de comemorar uma memória imediata, a festa assinala um momento acima do tempo e da crise, possibilitando o resgate do irredimido e irrealizado.24

A festa de Manuelzão, além de estanque à rotina da fazenda, serve também para oxigenar as lembranças de Manuelzão; a solidão, a insegurança financeira e a saúde, mesmo que permaneçam latejando, como o ferimento no pé, são por vezes suplantadas em benefício da convivência. Desse modo, a festa acaba por se realizar como esse momento de euforia e melancolia, por permitir deixar de pensar, mas não esquecer a vida diária na fazenda. O leitor vive um pouco disso ao lidar com a leitura de um livro, pois a obra exigirá de seu apreciador um momento de parada às reminiscências de sua vida, onde, mesmo durante a leitura, como ocorre com Manuelzão durante a festa, serão inevitáveis as ligações que este leitor fará com sua própria vida. Melancolia e euforia oscilarão nas lembranças do leitor como parte indissociável da percepção da obra que se frui.

Desse modo, quando cessa o ato da leitura, seja pelo ponto final que se coloque em ―Uma estória de amor‖, seja por um eventual motivo, que separe, momentaneamente, o leitor da leitura, o ―experienciar dinâmico‖, de que nos fala Jauss, permanece nos pensamentos, nas lembranças, nas memórias do leitor, como o ferro que marca o gado na ficção de Guimarães Rosa: conferindo, impiedosamente, percepções alheias ao ―esquema platônico‖ do leitor; resgatando valores, atribuindo novos significados, possibilitando, enfim, a compreensão sobre a obra que se escolhera fruir.

A obra literária não é um objeto que exista por si só, oferecendo a cada observador em cada época um mesmo aspecto. Não se trata de um monumento a revelar monologicamente seu Ser atemporal. Ela é, antes, como uma partitura voltada para a ressonância sempre renovada da leitura, libertando o texto da matéria das palavras e conferindo-lhe existência atual: ‗parole qui doit, en même temps qu‘elle lui parle, créer un interlocuteur capable de l‘entendre‘ [palavra que deve, ao mesmo tempo que ela lhe fala, criar um interlocutor capaz de o escutar].25

Em ―Uma estória de amor‖, esse ―ressoar‖, de que nos fala Jauss possibilita nessa obra

24 CARVALHO, Ubirajara Santiago de. O amor e a nossa condição: itinerários da festa em Uma estória de

amor‖ de Guimarães Rosa. Belo Horizonte, 2006. Dissertação de Mestrado (Literatura Brasileira), Universidade Federal de Minas Gerais, p. 42-43.

25 JAUSS, Hans Robert. A História da Literatura como provocação à teoria literária. Trad. Sérgio Tellaroli. São

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de Guimarães Rosa mais do que a dualidade leitor/livro, mas, por via das histórias que edificam a ―estória‖, as ―partituras‖ que se compõem na ―Festa de Manuelzão‖ independem mesmo do crítico, pois o esquema da oralidade confere-lhes a ―existência atual‖; faz delas fonte de recorrência a interlocutores que manterão o ―pião girando‖ à revelia de qualquer metodologia que pretenda esquematizar a recepção do leitor. Desse modo, as histórias contadas em ―Uma estória de amor‖ funcionam como o motor, que mantém o giro do pião do ―interlocutor capaz de o escutar‖, realizado, ficcionalmente, em Manuelzão:

Pois, minhamente: o mundo era grande. Mas tudo ainda era muito maior quando a gente ouvia contada, a narração dos outros, de volta de viagens. Muito maior do que quando a gente mesmo viajava, serra-abaixo-serra-acima, quando a maior parte do que acontecia era cansativo e dos tristonhos, tudo trabalho empatoso, a gente era sofrendo e tendo de aturar, que nem um boi, daqueles tangidos no acerto escravo de todos, sem soberania de sossêgo. A vida não larga, mas a vida não farta.26

As histórias de ―Uma estória de amor‖ reafirmam, mesmo em se tratando de ficção, o poder da oratória. Especialmente nessa novela, Guimarães Rosa parece haver conseguido atribuir às narrativas populares a importância merecida, haja visto que a inserção de cantigas, ―causos‖ e histórias não ocorre aleatoriamente, como partes estanques do texto literário, mas compõe o ponto culminante dessa novela e atribuem à história de Manuelzão os elementos capazes de cativar o leitor.

O exemplo da citação anterior pode dar uma ideia desse fascínio com que Manuelzão descreve a percepção dos contos, e como esses contos são cruzados com todos os acontecimentos da festa — mesmo antes de se pensar em qualquer comemoração para inaugurar a fazenda — a narração dos contos e as histórias ―musicadas‖ são constituídos com tamanha riqueza de detalhes, ao ponto de se tornar coerente a entrega de Manuelzão a esse raro momento de ócio. Como bem explicita Ubirajara Carvalho em sua Dissertação de Mestrado, esse mundo de histórias, criado não só para entreter, mas também para apresentar ao vaqueiro uma perspectiva impar do conhecimento de tudo ao seu redor (trabalho, ócio, amor, ódio, vida, morte, etc.), reordena a concepção sobre a própria existência que Manuelzão tinha antes dos relatos de Joana Xaviel e do velho Camilo,

Originada da mesma tradição de narrativas cuja figura central é o boi, a Décima do Boi e do Cavalo, contada pelo poeta velho Camilo desempenha, entretanto, um papel diverso na narrativa. À diferença da narrativa de Joana Xaviel que, por assim dizer, conduz o vaqueiro Manuelzão a rever seu

26ROSA, João Guimarães. ―Uma estória de amor‖. In: Corpo de Baile: sete novelas. Rio de Janeiro: J. Olympio,

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passado e a perceber as contradições da ordem a que está submetido, a narrativa do velho Camilo fecha o conto ―Uma estória de amor‖, possibilitando, de certo modo, a reordenação do universo e a reconciliação do personagem com o fluxo da vida.27

A recepção do público leitor à história de Manuelzão talvez ainda não possa ser completamente elaborada, por se tratar de uma obra muito recente, com poucos trabalhos críticos organizados a seu respeito e com um público leitor em formação, por descobri-la; mas o fato de a ―Festa de Manuelzão‖ suscitar tantas questões permite dizer que esse não é apenas um livro que se deva classificar ingenuamente como a história de algum amor, drama ou mesmo uma comédia, o qual nos apresentará o combalido esquema ―início, meio e fim‖. Muito pelo contrário, o que fica evidente é o fato de que nessa novela não há um fim; não o fim típico, de uma leitura fácil, que pouco ou nada acrescente à Literatura.

Em A História da Literatura como provocação à teoria literária, Hans Robert Jauss diz que o estudo crítico sobre a longevidade de uma obra, seja esta de natureza literária, contemplativa, etc., somente será válido, anos após o lançamento dessa obra. Assim, há de se considerar pelo menos um tempo o suficiente para que se forme um público leitor isento de paixões criadas pelo ―calor‖ do instante em que determinada obra é apresentada; mas a possibilidade de ser lido em diferentes momentos históricos, permite dizer que um livro também pode contribuir para o seu reconhecimento como objeto imbuído de valor estético o suficiente para que o consideremos especial em relação a obras classificadas ―menores‖. Para Regina Zilberman, tal qual ocorrera num passado remoto com a obra-prima de Guimarães Rosa, Grande sertão: veredas, as teses formuladas por Jauss sobre a Estética da recepção não foram compreendidas por seus críticos.

Ao procurar reabilitar a importância e validade da experiência estética, Jauss não se preocupa em criar novas acepções para os conceitos, nem quer contrariar as conclusões da teoria da literatura relativamente ao experimentalismo da vanguarda. Com efeito, seu intento é antes usar os mesmos argumentos dos adversários do prazer estético para provar a força e significação desse.28

É desse modo, que o post festum, de que nos fala Jauss em História da Literatura como provocação à teoria literária, é o que há de mais revelador e instigante em ―Uma estória de amor‖, é dele que poderá se vislumbrar a percepção do público leitor, esse post festum

27 CARVALHO, Ubirajara Santiago de. O amor e a nossa condição: itinerários da festa em ―Uma estória de amor‖ de Guimarães Rosa. Belo Horizonte, 2006. Dissertação de Mestrado (Literatura Brasileira), Universidade Federal de Minas Gerais, p. 127.

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dependerá do ocorrido durante a festa; as experiências, os contados estabelecidos durante a leitura, a audição ou o vislumbre de uma obra de arte serão determinantes para a ―festa‖ que se inicia com o fim, por exemplo, da leitura.

Quando cessa a leitura das páginas que compõem as fictícias percepções de Manuelzão, inicia-se a ―festa‖ particular do leitor, do crítico ou do leitor crítico, simplesmente; pois das compreensões tecidas é que poderá se formular alguma ideia a respeito de ―Uma estória de amor‖. Ao final, a festa de Manuelzão continua no ato perceptivo do leitor, ou, como nos expõe Doralice Alcoforado, na apreensão da história criada por Guimarães Rosa, onde se estabelecerá a articulação que posiciona criticamente o leitor de ―Uma estória de amor‖:

No processo de apropriação da matéria popular, a literatura erudita não apenas dinamiza o seu sistema, criando novas possibilidades de articulações do seu texto, que remetem a um sentido mais amplo, como também assume um posicionamento crítico.29

O leitor constrói suas percepções com base na apropriação do texto — enquanto este se realizar — tal qual ―matéria-prima‖ para o aprimoramento de seu senso crítico, ou seja, não há, da parte do perceptor, principalmente daqueles que não estejam imbuídos de motivações técnicas para a análise de determinado trabalho (o leitor comum não busca o conteúdo analítico, por exemplo, antes do prazer que a Literatura possa lhe proporcionar, ao contrário do crítico), e isso não quer dizer que, diferente do crítico, o leitor comum não saberá selecionar, de maneira categórica, o que será lido por ele, mas, antes disso, suas percepções críticas ocorrem de forma tão natural a ponto de detalhes só serem percebidos por uma crítica especializada, depois de muitos estudos.

Nesse diálogo intertextual e intercultural, a mistura de dois modos discursivos diferentes vai gerar mais fecundidade ao texto erudito e dinamizar o seu sistema significante, enquanto o popular afirma-se como uma forma de comunicação que não pode romper com a cultura tradicional.30

A referência à obra de Guimarães Rosa direciona o exame deste subcapítulo à Estética da Recepção, pois, em toda a saga literária do autor mineiro, é evidente o trabalho que ele desenvolveu em prol da busca de uma linguagem dialógica que marca as páginas de seus livros, dotando-o de um estilo pautado de maneira inconteste pela tríade hermenêutica proposta por Jauss (compreender, interpretar, aplicar), presente em A História da Literatura como provocação à teoria literária. A pequena quantidade de trabalhos críticos de que se tem

29 ALCOFORADO, Doralice Fernandes Xavier. ―‗Uma estória de amor‘: um diálogo intercultural. In: Boitatá Revista do GT de Literatura Oral e Popular da ANPOLL, número especial, 2008, p. 164.

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conhecimento sobre a novela ―Uma estória de amor‖ possibilita afirmar esta parte fundamental do acervo literário de Guimarães Rosa como uma obra de arte com todos os méritos de um trabalho completo, talvez com um público leitor ainda por se formar, mas com um estilo inconfundível, que coloca Guimarães Rosa à vanguarda de muitos autores.

O ―ponto final‖, que poderia marcar a conclusão da história de Manuelzão, realizar-se-á como o ―ponto em seguida‖ para o leitor. A partir das compreensões do enredo, das ―estórias‖, das cantigas e, enfim, das impressões de Manuelzão sobre os acontecimentos que ocorrem na Samarra durante a festa, o leitor comporá suas conclusões, e, destas, constituirá alguma ideia de caráter moral ou que meramente o satisfaça como ledor da novela.

Quanto mais o ouvinte se esquece de si mesmo, mais profundamente se grava nele o que é ouvido [...] ele escuta as histórias de tal maneira que adquire espontaneamente o dom de narrá-las.31

Em acordo com o que diz Walter Benjamin, pode-se dizer que da mesma maneira ocorrerá com o leitor; pois quanto mais ele se esquece de si mesmo e do mundo ao seu redor, mais consistente se torna sua leitura e de forma mais legítima se constituirá o efeito da obra nesse leitor. Assim, retornam-se às questões iniciais propostas nesta Dissertação, onde se constata que o ato de ler, como o de ouvir sofrerá mudanças como todos os segmentos do conhecimento humano sofrem, porém, o poder genuíno de despertar o leitor às questões ligadas aos campos mais antigos da história da humanidade (amor, solidão, sexualidade, etc.), ainda encontrarão, se não respostas completas, ecos de conclusões possíveis sobre todo e qualquer assunto.

O "torto encanto‖, gerado a partir da fruição da novela ―Uma estória de amor‖ pelo leitor comum ou o crítico, está presente exatamente na interpretação que se fará das fictícias histórias contadas no decorrer da festa. O mesmo encanto torto ocorrerá no post festum, na realização da obra, com a aparente conclusão, que não se concretiza com o fim, mas se desvincula disso para continuar sendo fruído no imaginário do público leitor. O horizonte de expectativas presente na história de Manuelzão espraia-se de tal forma, que o impossível, de fato, é não encontrar olhares alheios aquilo que a própria crítica literária, de alguma maneira, tenta nos apresentar como verdade absoluta e inconteste; acreditamos que este seja o momento em que a percepção se torna ato do leitor e não mais do autor ou mesmo de um estudioso de determinada obra,

31 BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e poética: ensaios sobre Literatura e História da Cultura. Trad.

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[A] obra que surge não se apresenta como novidade absoluta num espaço vazio, mas, por intermédio de avisos, sinais visíveis e invisíveis, traços familiares ou indicações implícitas, predispõe seu público para recebê-la de uma maneira bastante definida. Ela desperta a lembrança do já lido, enseja logo de início expectativas quanto a ‗meio e fim‘, conduz o leitor a determinada postura emocional e, com tudo isso, antecipa um horizonte geral da compreensão vinculado, ao qual se pode, então — e não antes disso —, colocar a questão acerca da subjetividade da interpretação e do gosto dos diversos leitores ou camadas de leitores.32

Deste ―horizonte geral da compreensão‖, do qual nos fala Jauss, dependerá inclusive a continuidade da obra como objeto de estudo (para a crítica especializada) e deleite (para o leitor de maneira geral), pois, a cada ―contato‖ com seu público, um novo olhar pode surgir como uma possível vertente interpretativa de um trabalho aparentemente esgotado de atributos significativos. ―A capacidade de tornar manifestas potencialidades ainda não realizadas; de agenciar novas redes de sentido; de conciliar experiência e discurso [...]‖33 garante a continuidade histórica da obra diante de seu público, seja este dotado de algum conhecimento crítico ou não.

A Recepção Crítica de ―Uma estória de amor‖ consta como podemos observar na citação anterior de Jauss, na lembrança do já lido que ensaiara no início de uma determinada obra, o meio e o fim, cabendo ao leitor [o descobridor genuíno destas lembranças] transpor a verdade da personagem, dando-lhe nivelamento para a sua própria verdade; reconhecendo-se, assim, o vinculo de que nos fala Jauss, que nada mais é do que o reconhecimento da solidão de Manuelzão na solidão do leitor em sua própria festa.

Ao final da narrativa o vaqueiro diz: ―A boiada vai sair. Somos que vamos.‖34; a vida continua, assim como deve continuar o trabalho; Manuelzão percebe, de maneira mais cuidadosa, suas escolhas, mas o curso normal da vida, como o crescimento e amadurecimento de Miguilim em ―Campo Geral‖, — novela que faz par com ―Uma estória de amor‖ em

Manuelzão e Miguilim — deve seguir, pois o tempo seguirá sua progressão normal, e se um dia tiver de se averiguar que o destino poderia ter sido mais do que foi, certamente, isto ocorrerá como a repentina seca do riozinho, que passava rente à casa na fazenda Samarra, e que a todos pegou de surpresa, ficando encravado nas lembranças de Manuelzão como algo

32 JAUSS, Hans Robert. A História da Literatura como provocação à teoria literária. São Paulo: Ática, 1994,

p. 28.

33 FANTINI, Marli.

―Rosa, rosae, rosarum‖. In: Guimarães Rosa: fronteiras, margens, passagens. São Paulo: SENAC; Cotia: Ateliê, 2003, p. 37.

34ROSA, João Guimarães. ―Uma estória de amor‖. In: Corpo de baile: sete novelas. Rio de Janeiro: J. Olympio,

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dentro da Samarra que lhe fugiu ao controle, ―‗Ele perdeu o chio...‘‖35, de maneira surpreendente. Mas a sua vida não poderia perder o ―chio‖, esta é a sua festa, este é o momento que ele deixa de ser o velho capataz da fazenda, para se tornar um trabalhador, entre tantos outros, ignorando a idade e a solidão.

1.2. O leitor e a personagem no “torto encanto” do conto

A forma escolhida por Guimarães Rosa para dispor as personagens, assim como a arrumação dessas personagens para o leitor, fazem de ―Uma estória de amor‖ uma obra na vanguarda do que só ganhou ―corpo‖ pelo menos vinte anos depois. Não é errado afirmar que Guimarães Rosa é um precursor de seu tempo, e quando isto é dito não se está fazendo referência apenas a sua obra-prima Grande sertão: veredas, mas a todo esse legado contido no originalmente intitulado Corpo de baile, com suas sete novelas, além dos inúmeros contos publicados pelo autor mineiro ao longo de sua carreira.

Há obras que, no momento de sua publicação, não podem ser relacionadas a nenhum público específico, mas rompem tão completamente o horizonte conhecido de expectativas literárias que seu público somente começa a formar-se aos poucos.36

Essa assertiva proferida por Jauss durante a aula inaugural na Universidade de Constança, que originou um dos principais trabalhos sobre a Estética da Recepção, A História da Literatura como provocação à teoria literária, se aplica de maneira excelente à narrativa sobre a festa de Manuelzão. Na novela ―Uma estória de amor‖, antes de qualquer outra questão, vê-se descrita, primeiramente, a pretensa consagração de Manuelzão como capataz da Samarra. A fazenda é aberta à visitação de vizinhos, de forasteiros estranhos e até mesmo do dono, Federico Freire, — que não se faz presente fisicamente, mas, como uma espécie de analogia à realidade da distância entre o patrão e o empregado para a sociedade capitalista, Federico parece observar seu imediato em um plano superior —, para o povo que adentra aquele espaço tão sagrado para o velho vaqueiro, o que parece valer mesmo é realização da festa.

As histórias de Joana são o grande elemento de desmancho não só no nível do tempo e do espaço, na medida em que instauram o tempo e o espaço do imaginário, como no nível do personagem que, pelo caminho da fantasia, vai

35ROSA, João Guimarães. ―Uma estória de amor‖. In: Corpo de baile: sete novelas. Rio de Janeiro: J. Olympio,

1956. v. 1, p. 163.

36 JAUSS, Hans Robert. A História da Literatura como provocação à teoria literária. Trad. Sérgio Tellaroli. São

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abrir as comportas da sua subjetividade.37

O trabalho de Sandra Vasconcelos em Puras Misturas traz as histórias, as impressões de Manuelzão e os comportamentos das tantas personagens que desfilam pela Samarra, para apresentar as facetas evidentes e ocultas em ―Uma estória de amor‖. A ―capioa barranqueira‖38, como é chamada Joana pelo narrador da novela, em suas histórias parece desacelerar o tempo e ditar, com o seu domínio de fala, os humores do povo da Samarra, desde um simples agregado até o velho capataz, que é a representação de Federico Freire, o verdadeiro dono da fazenda e patrão de Manuelzão. É por concessão do velho vaqueiro, que Joana Xaviel permanece no arraial, suas histórias, na memória de Manuelzão, se confundem com a vida do vaqueiro, na medida em que Joana revela o desfile dos mais variados tipos, que ganham vida em suas narrativas fantásticas,

Nesse estado de vigília, embalado pela voz da barranqueira, que se transfigura e remoça no relato de suas histórias, o velho vaqueiro forja fantasias — cenas e episódios que conta a si mesmo num momento de ócio e relaxamento.39

Manuelzão dita o que se faz dentro da Samarra, mas durante o momento em que o povo senta para escutar Joana Xaviel, o vaqueiro é apenas mais um de seus ouvintes e, assim como estes, sua postura, diante da contadora, é de absoluta e surpreendente subserviência (se levarmos em consideração que é Joana quem conduz a história). Ele sequer a questiona, por discordar de um relato, para Manuelzão restava apenas discordar consigo sem jamais se intrometer ou mesmo opinar sobre o destino das personagens.

A história contada conflui o que na escrita parece ganhar ordem; apresenta desfechos singulares às histórias consagradas, desvela o recatado e lança véu sobre o explícito, enfim, se constitui ao gosto do contador. No rol dos tantos contadores da Literatura, uma, em especial, nos apresenta se não a mais completa, pelo menos a mais emocionante coletânea de histórias fantásticas, de amor e de ódio, de alegria e de tristeza, de fidelidade e de traição: O livro das mil e uma noites.

As sensações que as histórias de Joana Xaviel despertam em Manuelzão, encantam-no, como o faz Šahrāzād com o rei Šāhriyār em As Mil e Uma Noites, mas, diferente daquela, que é tida por Manuelzão como um elemento de desmantelo da ordem estabelecida por ele dentro da Samarra, Šahrāzād, no início, é vista pelo rei como mais uma peça em seu jogo de

37 VASCONCELOS, Sandra Guardini T.. Puras Misturas. São Paulo: HUCITEC, 1997, p. 33.

38ROSA, João Guimarães. ―Uma estória de amor‖. In: Corpo de baile: sete novelas. Rio de Janeiro: J. Olympio,

1956. v. 1, p. 183. Grafia do autor.

Referências

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