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1. ANÁLISE TEÓRICA E EXPERIÊNCIA ESTÉTICA DE “UMA ESTÓRIA DE

2.1. Arte e inspiração: fontes mitológicas em um legado moderno

1956 marca uma data singular no legado de Guimarães Rosa (1908-1967): a editora José Olympio lança as obras Grande sertão: veredas e Corpo de baile: esquadrinhamentos do sertão nordestino e da existência humana em sua realidade mais intrinseca. A proposta editoral do primeiro volume da obra Corpo de baile consistiu na divisão do ―corpo‖ em sete novelas (―Campo geral‖, ―Uma estória de amor‖, ―A estória de Lélio e Lina‖, ―O recado do morro‖, ―Dão-Lalalão‖, ―Cara-de-bronze‖ e ―Buriti‖), que, redefinidas em três volumes no ano de 1964 (Manuelzão e Miguilim, No Urubuquaquá, no Pinhém e Noites do sertão), dialogaram e dialogam sobre os sentimentos e os desejos de homens, mulheres e crianças: transeuntes de um ―mundo vasto‖, paráfrase do celebre ―Poema de sete faces‖ (Alguma poesia, 1930), de Carlos Drummond de Andrade, amigo e admirador de Guimarães Rosa.

O ―sertão‖ de Rosa é redesenhado pela crítica sobre diversos prismas (correntes filosóficas, erotização, desigualdades sociais, etc.), porém, um merece especial atenção, ―O tema do amor, ocupa na obra essencialmente poética de Guimarães Rosa, uma posição privilegiada.‖64 É com base na citação do recém-falecido estudioso Benedito Nunes (1929-

2011), um dos mais perspicazes pesquisadores da obra de Guimarães Rosa, que trilhamos a análise do segundo momento desta Dissertação.

Tenteando de vereda em vereda, de serra em serra, eros, em sua perene atividade, impulsiva e sôfrega, mal se detém numa forma, logo abre as asas e prepara-se para voar na direção de outra. Não elimina porém os objetos em que pousa, não suprime as escalas de sua trajetória.65

O amor, esse sentimento que toma de assalto algumas das personagens rosianas vem por vezes acompanhado de pares inseparáveis (ódio; frustração, inveja, cobiça, etc.), isso é o que torna o ser fictício produzido por Guimarães Rosa tão complexo. Nas narrativas ―Uma estória de amor‖ e em ―A estória de Lélio e Lina‖, além da ―estória‖ dos títulos de ambas — algo que permeia a tessitura desse trabalho do início ao fim — há uma coincidência, que permite a

64 NUNES, Benedito. ―O amor na obra de Guimarães Rosa‖. In: O dorso do tigre. 2. ed. São Paulo: Perspectiva,

1976, p. 143.

65 NUNES, Benedito. ―O amor na obra de Guimarães Rosa‖. In: O dorso do tigre. 2. ed. São Paulo: Perspectiva,

abordagem do tema debatido por nosso já tão saudoso crítico Benedito Nunes em seu livro O dorso do tigre (1976): a busca do amor na configuração de uma outra ―metade‖ perfeita, que não se desiste de continuar procurando enquanto está ausente.

Em ―Uma estória de amor‖ não há a evidência explícita de algum desejo ou paixão entre Manuelzão e sua nora Leonísia, o que ocorre são conjecturas de Manuelzão a respeito do que poderia ter sido melhor para Leonísia, que em sua concepção ―[...] era bôa, uma sinhá de exata, só senhora.‖66 Presume-se, pelo zelo do vaqueiro pela nora, que possa residir na figura

de Leonísia a imagem perfeita de uma esposa, ―[E]la ficara sendo a dona-da-casa‖67

Manuelzão, evidentemente, como o dono instituído da Samarra (a fazenda pela qual zela) era o senhor da casa. Porém, a cobrança pela realização ordenada de todos os acontecimentos na fazenda, desde a conduta de um agregado até a sua própria conduta, o impede de perder o controle sobre suas ações, de se descomprometer com o trabalho.

Hans Georg Gadamer (1900-2002), em A atitude do belo (1985), diz que: ―Trabalhar é se juntar com as coisas, se separar das pessoas.‖68 Assim, a possibilidade de um envolvimento

com Leonísia, ou mesmo o mero desfrute de um momento marcado pela falta de controle, não se configura como artifício suficiente para convencê-lo a abrir mão do trabalho por nenhum instante, tal qual no excerto de Gadamer, Manuelzão opta por se ―separar‖ das relações humanas para se dedicar quase que exclusivamente ao trabalho.

[...] o trabalho separa-nos e divide-nos. Orientados por e para nossas atividades, isolamo-nos, apesar de toda a reunião que a caçada em grupo ou a produção por divisão de trabalho sempre fizeram necessária.69

Em A atitude do belo, Gadamer nos fala, dentre outras questões, sobre a relação entre a festa e o trabalho, considerando a importância simbológica entre esses dois momentos na vida de qualquer ser humano, bem como as circunstâncias que levam a atribuir maior valor a um ou a outro.

A passagem, que narra o ferimento no pé de Manuelzão, parece colocar em maior evidência esse privilégio para o trabalho em detrimento até mesmo de sua própria saúde: ―Por tudo, mesmo sem precisão, êle não saía de cima do cavalo — estava com um machucão num pé — indo e vindo da capela, sol a sol vinte vêzes, dez vêzes [...] Não esbarrava. Não sabia de

66ROSA, João Guimarães. ―Uma estória de amor‖. In: Corpo de baile: sete novelas. Rio de Janeiro: J. Olympio,

1956, v. 1, p. 148.

67 Idem, ibidem, v. 1, p. 148.

68 ROSA, João Guimarães. ―Uma estória de amor‖. In: Corpo de baile: sete novelas. Rio de Janeiro: J. Olympio,

1956, v. 1, p. 178.

69 GADAMER, Hans Georg. A atitude do belo: a arte como jogo, símbolo e festa. Rio de Janeiro: Tempo

esforço por metade.‖70 Pode-se dizer que reside no trabalho de Manuelzão uma das maiores

histórias de amor da obra.

Já em ―A estória de Lélio e Lina‖, ao contrário, o que se observa é a euforia de um amor que não vê obstáculo a sua realização, em que nem se quer a diferença de idade parece ser considerada um entrave ao cumprimento da história entre Lélio e Lina, pois a admiração entre o jovem vaqueiro e a idosa se realiza desde o primeiro momento como a avassaladora ação da descoberta.

E, vai, a sôlto, sem espera, seu coração se resumiu: vestida de claro, ali perto, de costas para êle, uma môça se curvava, por pegar alguma coisa no chão. Uma mocinha. E ela também escutara seus passos, porque se reaprumou, a meio voltando a cara, com a mão concertava o pano verde na cabeça.71

Como uma Vênus de Milo: fonte de acordado interesse por ser vista; imagem capaz de deslocar para si os olhares mais fugidios, Lina desperta Lélio para notá-la; ela o seduz, sem fazer uso de qualquer artifício, — talvez, sem se quer desejar isso — a ―moça‖ o faz por um encantamento natural, algo que se pode atribuir aos detalhes ressaltados na descrição de sua figura feminina, ou mesmo na descrição dos adereços adicionados ao seu vestuário — o lenço verde sobre a cabeça, o vestido claro, o seu curvar-se para apanhar algo no chão, etc. — Lélio vê na velhinha o que não não vira em nenhuma outra moça com a qual tivesse tido alguma relação, Lina transfigura-se quase à imagem de uma deusa da mitologia grega. É tal qual a descoberta de um amor adolescente, que o narrador opta descrever o primeiro momento entre Lélio e Lina, isso também está presente na mítica descrição do andrógino, no célebre diálogo O Banquete, de Platão (427-347 a.C.):

Antigamente, nossa natureza não era como a de agora, mas muito diferente. Para começar, havia três sexos, e não dois apenas, como hoje: masculino e feminino. Além desses, havia um terceiro, formado dos outros dois; o nome ainda subsiste, porém o sexo desapareceu. Em verdade, era o sexo andrógino, com a forma e o nome dos outros dois sexos, masculino e feminino.72

Nosso foco não se atém à androginia em seu sentido místico, mas à própria ideia da busca de uma concepção repleta de signos familiares ou agradáveis, onde se encontra a outra pretensa parte perfeita, isso está descrito na concepção mitológica do andrógino. O mito do

70 ROSA, João Guimarães. ―Uma estória de amor‖. In: Corpo de baile: sete novelas. Rio de Janeiro: J. Olympio,

1956. v. 1, p. 142.

71 Idem, ibidem, p. 305.

72 PLATÃO. O Banquete — Apologia de Sócrates. Trad. Carlos Alberto Nunes. Belém: EDUFPA, 2001, p. 45

andrógino faz pensar na condição a que o homem está submetido: ser incompleto, carente de uma ―metade‖ que o aperfeiçoe a metade que ele procurou a vida inteira (caso de Manuelzão) ou a metade que ele ainda procura (caso de Lélio). Assim, a busca por um amor, seja esse de natureza carnal, puramente fraternal ou que tome um objeto ou um objetivo como ideal de vida, se configurará como uma travessia73, aparentemente, infinita, tal qual ocorre, inicialmente, com Lélio,

Na menina pálida e distante do Paracatu com quem sonhava o vaqueiro Lélio [...] repete-se o mesmo símbolo do amor que, sem o saber, busca a sua forma completa, a sua realização integral, através de amores passageiros.74

De acordo com o excerto retirado de ―O amor na obra de Guimarães Rosa‖, de Benedito Nunes, Lélio prefere continuar buscando o que lhe complete, para isso, não se atém à amarra própria de um homem, ainda que (como em seu caso) um homem jovem: o trabalho. Manuelzão inverte a travessia escolhida por Lélio, fixa-se a um chão, a um emprego, e faz dessa lógica a sua maneira de se completar. As travessias empreendidas pelo jovem vaqueiro e pelo velho capataz aqui dizem respeito, especificamente a Eros, mas afinal não é esse sentimento avassalador que desencadeia, de certa forma, todos os outros sentimentos humanos, até mesmo o ódio?

A travessia muito bem ilustrada por Guimarães Rosa na personificação de Riobaldo em Grande sertão: veredas tem, afinal, uma origem, impossível de dissociar de toda a trajetória empreendida pela personagem título da obra-prima do autor mineiro: o amor. Esse sentimento, tema de inúmeras prosas e poesias, desencadeia no universo criado por Guimarães Rosa todos os sentimentos possíveis para um ser humano, a ponto de permitir-se dizer que as várias histórias escritas por ele têm início em um amor, desenvolve-se pelas mais variadas formas de amar e são levadas a fazer o leitor compreender um pouco sobre tal sentimento; o amor, esse modificador de travessias.

Ah, tem uma repetição, que sempre outras vêzes em minha vida acontece. Eu atravesso as coisas — e no meio da travessia não vejo! — só estava era entretido na ideia dos lugares de saída e de chegada. Assaz o senhor sabe: a gente quer passar um rio a nado, e passa; mas vai dar na outra banda é num ponto muito mais em baixo, bem diverso do em que primeiro se pensou. Viver nem não é muito perigoso?75

Amar é muito perigoso, mas maior perigo parece haver na solidão. Manuelzão e mesmo

73 ROSA, João Guimarães. Grande sertão: veredas. Rio de Janeiro: J. Olympio, 1956, p. 37.

74 NUNES, Benedito. ―O amor na obra de Guimarães Rosa‖. In: Revista do Livro. Rio de Janeiro, v. 7, n. 26,

1976, p. 147.

Lélio — se for para amar — desejam, para além de uma paixão passageira, uma mulher que lhes complete de fato; que empreenda em ambos a graça da vida cantada e contada nas tantas histórias, capaz de atender o homem plenamente. Como bem narra Riobaldo na citação anterior, não se pode prever o que se espera no outro lado do rio — e, afinal, não há ainda a possibilidade de se encontrar outro lugar, uma ―terceira margem‖ que sequer se cogitava no início? — e esse ―rio‖ terá o fundo fora do alcance dos pés ou será mais raso do que se imagina?

Trata-se da travessia, dessa (mesmo que se opte esperar) condição imprevisível a que se submete o homem. Prostrar-se em um emprego que o gratifique com o mínimo de segurança, não garantirá, no final, a satisfação das escolhas feitas no início de uma travessia. Lélio e Manuelzão são como o início e o fim possíveis; ensinamentos para um leitor atento sobre a própria existência, assim é que a ficção de Guimarães Rosa poderá funcionar para o leitor como um ―mapa‖ de como vencer a travessia — ou saber que nem sempre é possível vencer —, desviando-se o quanto possível for do muito de perigo que existe em simplesmente viver.

Desse modo, tanto o encontro de Lélio e Lina quanto à opção de Manuelzão pelo trabalho esbarram em uma questão que os provoca a permanecerem ou se desviarem de seus respectivos lugares-comuns: a velhice. Em ―A estória de Lélio e Lina‖, Lina já não é mais uma ―mocinha‖, como as tantas com as quais Lélio tivera alguma relação (a Jiní, por exemplo), porém, a primeira impressão que Lélio tem ao vê-la é de que se trata de uma moça mais nova, ―[...] Mas: era uma velhinha! Uma velha... Uma senhora.‖76 A constatação traduz-

se quase em uma decepção; quase, pois a forma como ambos, Lélio e Lina, abordam um ao outro parece anular a diferença da idade que Lina aparenta, transpondo qualquer preconceito relativo à idade e igualando por um tênue instante, o momento em que ambos estão juntos, fazendo do jovem e da velhinha o uno, como o mito do andrógino.

Velhinha, os cabelos alvos. Mas, mesmo reparando, era uma velhice contravinda em gentil e singular — com um calor de dentro, a voz que pegava, o acêso rideiro dos olhos, o apanho do corpo, a vontade medida de movimentos — que a gente a queria imaginar quando môça, seu vivido. Velhinha como-uma-flôr. O rastro de alguma beleza que ainda se podia vislumbrar. Como de entre as fôlhas de um livro-de-reza um amor-perfeito cai, e precisa de se pôr outra vez no mesmo lugar, sim sem perfume, sem veludo, desbotado, uma passa de flôr.77

O ―acêso‖ a que faz renovar uma boa história contada; uma narrativa que ganha

76ROSA, João Guimarães. ―A estória de Lélio e Lina‖. In: Corpo de baile: sete novelas. Rio de Janeiro: J.

Olympio, 1956. v. 1, p. 306.

―fôlego‖ a cada novo contador. O riso descrito nos olhos de Lina, que faz pensar como ela era quando mais moça é como a capacidade própria de Joana Xaviel, enquanto contadora de histórias, ao tomar para si a vida daquelas tantas personagens narradas em seus contos. O leitor de ―Uma estória de amor‖ e de ―A estória de Lélio e Lina‖ é apresentado a essas histórias que imitam o real, como se de fato um ―amor-perfeito‖ caísse em suas mãos para fazer uso de acordo com sua sensibilidade.

A história de Lina, como a vida de Manuelzão, é contada da perspectiva da velhice; de uma visão repleta de experiências que na juventude de Lélio, por exemplo, estão apenas por se formar. A história de Manuelzão, como boa parte da vida de Lina, ganha outros ―perfumes‖, ―veludos‖, ―cores‖ e ―flores‖ — remetendo à citação retirada de ―A estória de Lélio e Lina‖ — a partir da audição das histórias e das cantigas; é como se o próprio Manuelzão se tornasse outro, tal qual o leitor após a experiência da leitura.

O clássico O banquete, mais especificamente o discurso de Aristóteles sobre o ―terceiro sexo‖, o andrógino, longe de apenas servir a qualquer análise banal sobre a capacidade criativa dos consagrados pensadores a respeito da natural paridade entre homens e mulheres, nos permite refletir sobre a incompletude humana; o homem, enquanto ser pensante, que não está para a natureza como um animal irracional, que apenas se guia por um instinto; o homem age, escolhe, toma decisões, na maioria das vezes, movido por sentimentos como o ódio, a inveja, a compaixão ou o amor.

Em ―A estória de Lélio e Lina‖, não fosse à evidência dos sinais impostos pelo avanço do tempo no corpo humano, Lélio veria em Lina apenas o que o falho sentido da visão, na pessoa de Lélio, gostaria de poder enxergar. A forma como o autor Guimarães Rosa opta desenvolver a história do ―vaqueirinho‖ e da ―velhinha‖ e delimitar um traço marcante na Literatura, e a ideia, que na recepção dos leitores, pode ser comparada ao discurso de Aristóteles, se renova em sua simples abordagem.

Se Lélio e Lina sabem o que seus olhares iniciais buscaram um no outro, o desenvolvimento da história não se torna a repetição clichê de mais uma história de amor, pelo contrário, há em ―A estória de Lélio e Lina‖ uma pausa nas expectativas, pausa que abre espaço para todo o tipo de reflexão, desde a condição ―errante‖ de Lélio, procurando paradeiro, de fazenda em fazenda, à solidão de Lina, que se comparada, por exemplo, à solidão de Manuelzão em ―Uma estória de amor‖ parece pesar com menor intensidade nos ombros da velha senhora do Pinhém. Essa discussão, lançada nos idos de 1956, mesmo não compreendida desta forma, nos faz pensar novamente nesse valor atemporal da obra criada por Guimarães Rosa e sobre o quanto o autor mineiro contribuiu para que a Literatura

Brasileira se sagrasse, finalmente, como uma literatura moderna, no sentido que Hans Robert Jauss afirma, em ―Tradição literária e consciência atual da modernidade‖:

O sentido de modernus não se reduz ao significado atemporal do topos literário, mas se desenvolve através das mudanças históricas da consciência da modernidade, e reconhecemos a sua potência histórica criativa, quando surge a oposição determinante — a ―despedida‖ de um passado pela autoconsciência histórica de um novo presente.

O uso comum da palavra bastaria para demonstrar que a melhor maneira de se captar o sentido de moderno é a partir de seus contrários.78

A obra de Guimarães Rosa se sagra à frente do seu próprio tempo por possuir o que Jauss chama na citação anterior de autoconsciência histórica de um novo presente, o que, aliás, se perpetuará no presente de qualquer tempo, por permitir, aos leitores de qualquer época, uma identificação com o que se lê em ―Uma estória de amor‖, por exemplo. O mais interessante, ao se antepor clássico e moderno (O Banquete com ―Uma estória de amor‖ e ―A estória de Lélio e Lina‖, respectivamente) é que, ao servir de fonte de estudos para a ação que se desenvolve no sertão criado por Rosa, Platão se reinsere com o destaque merecido, pois sua obra, para além de ser considerada simplesmente representante dos antiqui, reveste o modernus com os conceitos adequados ao seu estudo, os quais atribuirão ao contemporâneo o sentido clássico de obra de arte.

De fato, o que se opõe a um traje no auge da moda não é esse mesmo traje fora da moda, mas um traje apresentado pelo vendedor como ―atemporal‖ ou ―clássico‖. Do ponto de vista estético, ―moderno‖, para nós, já não se distancia do velho ou do passado, e sim do clássico, do belo eterno, de um valor que desafia o tempo.79

O ―moderno‖ em Guimarães Rosa não está distante do clássico de Platão por apresentar uma ―nova forma de fazer Literatura‖, muito pelo contrário, é esse ―traje atemporal‖, apresentado ao público leitor pelo escritor, dos mais variados momentos da Literatura, que, de fato, atribuirá a uma obra os méritos que a consagrarão em um horizonte de expectativas que supera qualquer tempo, desde o lançamento de determinada obra. Desse modo, pode-se dizer que o clássico é moderno, e o contrário também é válido, pois ambos redesenham, recriam momentos passados sobre o próprio cenário literário, mas também respondem, abrem possíveis leques interpretativos que, no caso do clássico, o recolocam no cenário da Literatura, e no caso do moderno, podem classificá-lo como vanguardista, seja qual tema

78

JAUSS, Hans Robert. Tradição literária e consciência atual da modernidade. In: OLINTO, Heidrun Krieger (org.). Histórias de literatura: as novas teorias alemãs. São Paulo: Ática, 1996, p. 50.

venha à tona pelas mãos do autor, mesmo o assunto mais recorrente desde os primórdios da Literatura mundial: o amor.

Esse amor, seja à época do discurso de Platão, seja nas veredas criadas por Guimarães Rosa, para falar sobre o sublime sentimento, ganha nuances tão variadas, que o mais difícil mesmo é imaginá-lo simples, de fácil resolução. Exatamente por isso, se nos voltarmos para o ―amor‖ de Manuelzão pelo trabalho, considerando a busca pela metade perfeita, empreendida por Lélio, nos veremos, novamente, diante de uma intersecção: a livre escolha e a ideia de um destino pré-concebido. Lélio, de fato, busca um amor? É tão pesada a solidão sobre os ombros de Manuelzão, que não poderia haver em sua longeva ―solteirice‖ o marcante traço de um homem que soube impor suas vontades, mesmo diante do embate certo com a sociedade por uma opção tão pouco comum ao seu ambiente?

Se o trabalho, de alguma forma, tirou de Manuelzão o tempo necessário para ir à busca

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