GT I: Direitos Humanos e Criminalização da questão social na América Latina
Título de Trabalho: Terrorismo de Estado e juventude: abordagem policial como técnica do terror
Nome: Jeferson André de Almeida
Titulação: Graduado em Direito pela Universidade Cândido Mendes, pós-graduando em Criminologia, Direito e Processo Penal
Instituição: Centro de Pós-Graduação em Direito da Universidade Cândido Mendes (CPGD-UCAM)
Resumo
O presente trabalho se propõe a uma análise da abordagem policial a jovens e adolescentes a partir de uma leitura do terrorismo de Estado – o uso abusivo da violência estatal, com o fim de gerir territórios e populações – como a abordagem policial pode servir, e serve, para causar terror e, a partir disso, inibir comportamentos espontâneos dos grupos sociais.
Palavras Chave: terrorismo, Estado, abordagem, jovens.
Abstract
The purpose of this paper is an analysis of the police approach to youth and adolescents from a reading of State terrorism - the abuse of State violence in order to administer territories and populations - as the police approach can serve and has been used to cause terror and, and from this,inhibit spontaneous behavior of social groups.
Keywords: terrorism, State , approach, young people.
Terrorismo de Estado e juventude: abordagem policial como técnica do terror
Introdução
O trânsito em diferentes espaços da cidade é uma característica da juventude. E em uma sociedade cada vez mais conectada por redes sociais, esse trânsito pela cidade não diminuiu, ao contrário, essas ferramentas possibilitaram que jovens explorassem cada vem mais outros espaços, criando “nomadismos metropolitanos”, o deslocamento frenético de jovens na noite carioca, nos parques, shoppings, praias; a circulação incansável entre diferentes espaços de encontro e lazer. No entanto, em uma ordem urbana marcada pela segregação e pelo controle esse nomadismo da juventude não é recebido com naturalidade pelo poder estatal. Agências de controle social, sobretudo a polícia, atuam continuamente com o fim de reprimir o trânsito pela cidade, segregando os jovens em guetos já constituídos socialmente.
A abordagem e o “elemento suspeito”
Uma das técnicas mais utilizadas pela polícia é a blitz, abordagens a pessoas em carros, a pé ou em ônibus. Em Elemento suspeito – abordagem policial e discriminação na cidade do Rio de Janeiro, Silvia Ramos e Leonarda Musumeci (2005) abordam vários aspectos desta técnica utilizada pela polícia. Um desses aspectos é o trânsito pela cidade e a preferência pelo perfil do jovem como suspeito. Nessa pesquisa, que busca informações em outras pesquisas relacionadas, as autoras identificam que o perfil do suspeito atende a características de gênero, idade e etnia. Embora os homens, que representam 46,8% da população carioca, são 73,8% dos abordados pela polícia; quanto à idade, os jovens entre 15 e 24 anos representam 25,7% da população e são 49,1% dos abordados; quanto à etnia, os autodeclarados pretos, que representam 11% da população carioca, são 21% dos abordados, quase o dobro, proporcionalmente.
A percepção dos jovens, em relação às abordagens, é um dado de grande relevância para o tem. O Centro de Estudos de Segurança e Cidadania (CESeC),
em pesquisa realizada no ano de 2003, reuniu quatro grupos de jovens (chamados de Grupos Focais, na pesquisa) das Zonas Sul e Oeste do Rio de Janeiro, com o fim de captar a impressão que esses jovens tem da polícia e da abordagem policial. A impressão que os jovens têm é de que o “suspeito” eleito pela PM do Rio de Janeiro é o jovem; ser jovem é fator-chave na experiência de ser considerado suspeito pela polícia – apesar da filtragem racial, apontada por outros aspectos da pesquisa.
Acho que tem dois perfis que chamam mais a atenção da polícia: o perfil do jovem pobre, que é associado ao pivete, ao que vai roubar, associado ao traficante. E tem o perfil associado ao usuário de droga, que é o maconheiro, o doidão, o hippie, o punk, o clubber, com vários piercings. E tem o playboy também. Hoje em dia não tem mais determinado tipo, porque a juventude toda tá misturada nisso. (Adolescente de um grupo focal da Pesquisa).
Os jovens entrevistados declaram que há duas principais preocupações por parte dos policiais no momento da abordagem: a idade do “suspeito”, e o local onde mora. A suspeição não ocorre apenas quando um jovem negro e pobre anda por bairros nobres, mas também quando jovens brancos e com aparência de classe média circulam, em seus carros, por bairros periféricos e favelas. O primeiro grupo é abordado por ser, na concepção policial, um provável assaltante; e o segundo grupo, por ser um provável usuário de drogas.
A suspeição é geral – em relação aos jovens –, mas o tipo de abordagem é seletivo. A abordagem a um jovem de classe média tem por objetivo a busca por drogas, a fim de usar a “situação” do provável usuário para extorqui-lo; já o jovem pobre, quando é abordado, é por suspeita de “traficante”, quando está em um bairro periférico ou favela, ou assaltante, quando está em um bairro nobre. E o tratamento mudará, conforme a condição do “suspeito”. Pois enquanto o jovem de classe média é extorquido, o jovem pobre – quase sempre negro – é esculachado, ou seja, violência física e humilhação.
Do que que o policial vai atrás? É de alguém que tenha droga e tenha dinheiro. Pivete eles param pra enfiar porrada. (Adolescente da Zona Sul do Rio de Janeiro)
Com o menino da classe média eles não podem fazer nada. Aí vão pedir “uma ideia”, como eles falar. É a propina. (Adolescente da Zona Oeste do Rio de Janeiro)
Embora a abordagem se dê de forma distinta, tem o mesmo objetivo, controlar o trânsito dos jovens pela cidade, através do terror e do medo, pois as relações de poder não geram apenas opressão, elas também produzem resistências (FOUCAULT, 2015); e o Estado que evitar essas resistências.
O terrorismo de Estado
O terrorismo de Estado se compreende como a forma do poder soberano estatal caracterizada por um conjunto práticas e discursos políticos extremamente violentos, de caráter legal ou extralegal, com o fim de administrar a população por meio do medo e terror. A noção de violência estatal aqui não pode ser confundida com o conceito weberiano, de “monopólio do uso legítimo da violência”, mas sim seu emprego abusivo por parte do Estado como forma de governar e amedrontar a população. E essa violência “requer procedimentos e justificativas biopolíticos de aniquilação dos opositores, entendidos como inimigos perigosos à boa harmonia do corpo político instituído” (DUARTE, 2013, p. 13). É evidente que os jovens das classes média e rica não serão aniquilados, mas não escaparão do terror, pois de alguma forma são ameaçados a respeitar os limites dos territórios da cidade. Já os jovens pobres e favelados conhecem o dessabor da mão mais violenta do Estado, a polícia que prende, a polícia que mata. Não é por engano ou coincidência que o perfil da população carcerária é o mesmo perfil das vítimas de homicídio no Brasil: homem, jovem, negro e pobre.
Como se vê, a justificativa do uso do terror na administração do território é a “guerra” contra o inimigo. Inimigo esse que já foi “identificado” (fabricado). Esse inimigo interno é matavel; morre sem que se cometa crime. A estes corpos, que conhecem a face da morte do Estado, Giorgio Agamben chama de vida nua, aquela que pode, e deve, ser eliminada para que se gere a vida saudável, a vida economicamente sadia ao corpo político; e somente desta forma é que estes corpos caem na vida política, através da morte “justificada” (AGAMBEN, 2002).
O terrorismo de Estado não faz uso apenas da violência e da seleção entre aqueles que receberão a vida e aqueles que receberão a morte, mas também de uma teatralidade necessária. Assim, os aparelhos políticos – também os que dizem
respeito à segurança pública – fazem uso dos principais meios de comunicação em massa para realizar a mediação dos seus discursos com a população – tanto aos privilegiados, quanto aos excluídos, àqueles que são alvo dessa mão violenta do Estado, os que dele recebem a morte. É comum ver nos principais meios de comunicação (impressos e televisivos) um grande número de notícias envolvendo jovens em episódios violentos. Essa estratégia fabrica um senso comum de que o jovem é um indivíduo potencialmente perigoso, o que “justifica” o alto número de abordagens intimidatórias. Ao terrorismo de Estado é necessário que toda a população “tome conhecimento” de que o Estado age com extrema violência para se combater um inimigo necessário.
Abordagem policial como técnica do terror: o caso Rio
Em agosto de 2015 a Polícia Militar do Estado do Rio de Janeiro (PMERJ), em uma operação, “recolheu” adolescentes a caminho da praia. As praias? Da orla da Zona Sul. Os adolescentes? Da periferia carioca. Em apenas um final de semana 160 adolescentes foram “recolhidos” de ônibus que vinham da Zona Norte em direção às praias da Zona Sul. O objetivo da operação, segundo a PMERJ, era evitar os “arrastões”, ação de multidões com o intuito de causar tumulto e pequenos furtos.
A operação, que foi “aplaudida”, por muitos moradores da Zona Sul, além de dividir opiniões, apresenta uma sucessão de ilegalidades. Como por exemplo, a detenção de indivíduos sem uma ordem judicial, ou a existência de um flagrante delito. Tratando-se de adolescentes, esse ato da polícia viola o Art. 230 do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), que garante a liberdade de trânsito de crianças e adolescentes.
O critério usado pela polícia era “estar sem documento ou sem dinheiro”. Mais uma ilegalidade, pois uma vez que a praia é local público, não há necessidade de dinheiro para que se frequente esse espaço. A polícia, em clara violação das liberdades desses jovens e adolescentes, “antecipou” sua ação com a justificativa de garantir a ordem nas praias das zonas nobres da cidade. A operação, como já esperado pela polícia, não resultou em nenhuma apreensão ou encaminhamento às instituições socioeducativas (ambientes de correição para menores cumprirem pena
privativa de liberdade), pois nenhum dos adolescentes “encaminhados” portava drogas ou armas. Contudo, sem dúvida a operação atingiu seus verdadeiros objetivos, reprimir jovens das zonas periféricas, a fim de desestimulá-los a um livre trânsito pela cidade. Pois a mensagem foi dada.
“Acham que “nós” é ladrão só porque “nós” é preto”. (Adolescente de 17 anos, morador do Jacaré, na Zona Norte).
“Nós “estava” dentro do ônibus, não estava com nada. Nós “é” humilhado na favela e na “pista””. (Adolescente de 14 anos, que havia saído do Morro São João, no Engenho Novo).
Através de ações como esta, o Estado terrorista, a partir da polícia, e de outras agências do sistema de justiça criminal (Ministério Público, juízes e tribunais, instituições socioeducativas, presídios), governa territórios e populações. Uma vez que esses jovens – através de uma opinião pública fabricada pelos veículos de comunicação – atendem ao estereótipo de um inimigo perigoso e que precisa ser combatido, pode-se aplicar-lhes “penas” não previstas nos códigos legais ou na Constituição; pois estes jovens já foram desumanizados, e a eles não resta direito a ser reclamado. Apenas a vida nua, que pode ser extirpada, sem que se cometa crime.
Conclusão
O presente trabalho não pretende esgotar o tema, mas, a partir de um caso, propor uma análise das técnicas de terror implementadas pela polícia – como agência de controle social –, para gerir o território da cidade (do Rio de Janeiro); pois uma vez que a juventude guarda em sua natureza uma inquietação que lhe é própria, este tipo de ação da polícia tem por objetivo desestimular práticas espontâneas e, possíveis, manifestações de resistência à ordem imposta.
O terrorismo de Estado como técnica de governamento, através do uso abusivo da violência, tem demonstrado resultados eficazes a um Estado que se declara Constitucional de Direitos; pois apesar das constantes violações legais e constitucionais, os responsáveis diretos por tais violações seguem sua gestão, sem qualquer responsabilização, mesmo quando estas violações resultam a morte de
algum cidadão – que, possivelmente, já foi afastado moralmente dessa condição, desmerecendo qualquer tratamento digno.
Não há contradição no Estado terrorista quando há a supressão da norma, pois a exceção é o estado de normalidade.
Bibliografia
AGAMBEN, G. Homo sacer: o poder soberano e a vida nua. Belo Horizonte: Editora da UFMG, 2002.
DUARTE, A. Vidas em risco: crítica do presente em Heidegger, Arendt e Foucault. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2010.
____. Poder soberano, terrorismo de Estado e biopolítica: fronteiras cinzentas. In: CASTELO BRANCO, G. (Org.). Terrorismo de Estado. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2013.
EXTRA. PM aborda ônibus e recolhe adolescentes a caminho das praias da Zona
Sul do Rio. Disponível em :
http://extra.globo.com/noticias/rio/pm-aborda-onibus-recolhe-adolescentes-caminho-das-praias-da-zona-sul-do-rio-17279753.html. Acesso em 27 de Maio de 2016.
FOUCAULT, M. Microfísica do poder. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2014.
____. História da sexualidade: a vontade de saber. São Paulo: Paz e Terra, 2015.
RAMOS, S.; e MUSUMECI, L. Elemento suspeito: abordagem policial na cidade do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005.