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Cativeiro e propriedade em Desterro na segunda metade do século XIX. Daniela Sbravati / Mestranda em História UFSC

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Cativeiro e propriedade em Desterro na segunda metade do século XIX

Daniela Sbravati / Mestranda em História – UFSC (dani_sbravati@hotmail.com)

O texto seguinte faz parte do projeto de mestrado em andamento, sobre mulheres proprietárias de escravos na Ilha de Santa Catarina na segunda metade do século XIX, 1865 a 1885. Neste período que há um crescimento urbano em Desterro em função da atividade portuária e do tráfico interno de escravos. Não pretendemos aqui privilegiar a história somente a partir das proprietárias ou dos cativos, mas sim buscar a relação destes dois grupos, seus pontos em comum e de conflito, dando ênfase em trajetórias específicas.

Os resultados apresentados são parciais e referem-se principalmente à análise de processos de inventário post mortem e fontes cartoriais das freguesias da Ilha de Santa Catarina. A construção deste texto estará centrada na freguesia de Desterro no período já citado, entretanto é levada em consideração uma história local relacionada a um contexto mais amplo.

O Brasil da segunda metade do século XIX constituía um império cuja economia estava baseada na exploração da mão-de-obra escrava. Diverso e socialmente desigual já nesta época coexistiam na cidade do Rio de Janeiro, por exemplo, palacetes e moradias precárias e miseráveis. O regime escravocrata perdurou mais de trezentos anos no Brasil. No ano de 1872, habitavam nas três maiores províncias do Império, 819.798 escravos e 2.890.154 homens e mulheres livres. Destes, 41 % eram descendentes de africanos (MATTOS, 1998:13).

Fortemente influenciada por Gilberto Freyre, a historiografia brasileira representou, e por vezes ainda representa, um país essencialmente patriarcal, onde o senhor era o “dono” da terra, dos escravos e das mulheres. Entretanto, pesquisas mais recentes demonstram que

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principalmente entre os grupos mais empobrecidos mulheres presidiam unidades domésticas e transitavam por lugares teoricamente reservado aos homens. O ideal da mulher enclausurada, dedicada a família e submissa ao marido era o idealizado por uma sociedade, em princípio, constituída pelo poder masculino. As regras existiam, mas não se pode dizer necessariamente que eram cumpridas, pois mecanismos de rebeldia e tensão marcaram o cotidiano do Brasil, desde o seu povoamento. Os termos paternalismo, costume e hegemonia nos fazem perceber as leis como expressão de um mundo desejado, ordenado segundo a vontade senhorial, o costume, ao contrário, abre espaço para um grande campo de disputas, onde os diferentes sujeitos se confrontam (CARDOSO, 2004:13).

A família representava a base do sistema econômico e dizia respeito não somente aos laços de consangüinidade, mas sim a uma rede de relações que se constituía a partir de uma hierarquia social. O termo família aparece ligado a elementos que extrapolam os limites da consangüinidade – entremeia-se à parentela e coabitação, incluindo relações rituais (FARIA, 1998:21). O ideal de família supunha um lar patriarcal, fundado no casamento. Assim, família e casamento eram as bases da sociedade. Graças ao casamento, a posição social e a propriedade se mantinham entrelaçadas com segurança (GRAHAM, 1996: 86). Isso não quer dizer que não existiam outras formas de organizações familiar que não a nuclear.

Um importante acontecimento ocorre no ano de 1864, transformando o cotidiano da população brasileira no período Imperial. Muitas famílias se vêem separadas, muitas mulheres tornam-se chefes da casa e muitos escravos caminham em direção a morte em troca da esperança de “liberdade”. Iniciava-se a guerra do Paraguai, tendo como um dos motivos a intervenção político-militar do Brasil no Uruguai. O presidente Francisco Solano López protestou contra a intervenção brasileira, procurando barrar suas pretensões expansionistas. O Paraguai mantinha-se isolado, enquanto a Argentina e o Brasil vinculavam-se diretamente a Inglaterra, que tinha interesse em obter abertura de seu comércio ao Paraguai. A população brasileira em 1850, 14 anos antes da guerra, era de aproximadamente dez milhões de pessoas, das quais uma quarta parte era constituída de escravos (GORENDER, 1978:319). O exército brasileiro foi composto pelos contingentes da polícia e da Guarda Nacional das províncias do Império. Criou-se em janeiro de 1865 os Corpos de Voluntários da Pátria, porém muitos eram os artifícios utilizados para se desviar do serviço militar. A compra de escravos para lutarem em nome dos proprietários foi uma das alternativas encontradas, o Império prometia alforria aos que lutassem na guerra.

O conflito terminou em 1870, com a derrota do Paraguai. Entretanto, o Brasil também sofreu efeitos negativos, como a inflação, por exemplo. Empréstimos da Inglaterra e a

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emissão de papel moeda elevaram o custo de vida, evidenciando um grande descontentamento popular, já existente no período da guerra. Após essa data, no Brasil, o republicanismo ganhou grande impulso, ao passo que a monarquia se debilitava (MOTA, 1994:252). A escravidão passa a ser ainda mais questionada, pois os escravos que lutaram pelo Brasil continuaram escravos.

Muitos dos homens que lutaram na guerra do Paraguai possivelmente nunca retornaram para casa, para suas famílias. Desde os que faziam parte da elite até as camadas mais pobres da população. Nesta situação, como agiam as mulheres, representadas com o estereótipo de frágeis e muitas vezes incapazes? Ainda que a maioria das mulheres não estivesse no campo de batalha empunhando armas, tratavam de uma outra batalha, a da sobrevivência. Muitas perderam marido, filhos e a proteção do chefe de família, tendo elas mesmas que desempenhar essa função. A guerra enfrentada nos campos do Paraguai não era muito diferente da situação das mulheres que ficavam no Brasil. “Maria de Jesus teve um filho recrutado e depois de implorar ao presidente da província a sua soltura por ser ele responsável pelo sustento da família, apresentou-lhe também três outros filhos menores. Esse era o único recurso para matar a fome que, antes mesmo do embarque do dito marido, batia-lhe à porta” (RODRIGUES, 2004:6).

A reconstrução dos papéis sociais femininos, mediando sua integração na globalidade do processo histórico de seu tempo, parece um modo de lutar contra os mitos e estereótipos. Novas abordagens e métodos adequados libertam aos poucos os historiadores de preconceitos atávicos e abrem espaço para uma história microssocial do quotidiano (DIAS, 1995:13). História esta que não envolve somente mulheres casadas ou viúvas, mas também mulheres solteiras, escravas ou não, que não correspondiam ao modelo idealizado para a mulher no século XIX. A mãe, a esposa e a dona de casa faziam parte da elite, era o que distinguia uma classe urbana abastada. Mulher amante, filha, irmã, mãe, avó. Nessa seis palavras existe o que o coração humano encerra de mais doce, de mais puro, de mais estático, de mais sagrado, de mais inefável. Nesta publicação do Jornal do Comércio de 1891, não se destacava a proprietária, a lavadeira, a quitandeira, enfim, não eram levadas em consideração as inúmeras atividades que eram exercidas pelas mulheres (PEDRO, 1994:17).

O que senhoras ricas ou pobres, casadas, viúvas ou solteiras tinham em comum com os escravos? Um dos objetivos deste texto é buscar a partir da forma como agiam mulheres e cativos, seus pontos de solidariedade e conflito, já que viviam nas fímbrias de um sistema que os subjugava. Contrapondo a idéia de passividade e conformismo, tanto as mulheres livres, quanto às cativas e cativos agiam e reagiam contra todo um sistema que insistia em os

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silenciar. Silêncio consentido por uma história que negou por algum tempo trajetórias de pessoas, indivíduos, que tinham consciência de sua condição e de seu poder de barganha.

Embora muitas vezes os estudos historiográficos tratem de um mesmo tema, é fundamental perceber diferenças regionais, pois as especificidades de cada localidade demandam diferentes tipos de organização.

Tendo o país o papel de fornecer produtos agrícolas gerados por latifúndios escravistas, o espaço catarinense é imaginado como negação da experiência geral, pois se constituiu numa colônia de povoamento, dedicada a uma economia de subsistência, destinada a consolidar a presença portuguesa no extremo sul do Brasil (CARDOSO, P., 2004:80). Entretanto estudos realizados nos anos 80 nos permitem perceber a economia da Ilha de Santa Catarina integrada desde o final do século XVIII, ao mercado de abastecimento interno via cabotagem e a uma política de abastecimento da corte do Rio de Janeiro (CARDOSO, P., 2004:93). A exportação dos produtos catarinenses para os portos do Império fazia com que houvesse também movimento marítimo entre Desterro e os portos de São Paulo, Santos, Rio, Bahia e Pernambuco.

A Ilha mantivera-se praticamente isolada até os anos 1850, quando foi inserida subsidiariamente no mercado de abastecimento interno (CARDOSO, P., 2004:79). Desde fins do século XIX, o comércio de abastecimento urbano desenvolvera-se em Desterro, tornando-se fonte de enriquecimento para os que a ele tornando-se dedicaram. O comércio detornando-senvolveu-tornando-se continuamente, acompanhando o crescimento da população. A ele na segunda metade do século XIX acrescentou-se o comércio de mercadorias e de exportação. A essa função urbana, sem dúvida a principal de Desterro, correspondia nas décadas de 70 e 80 uma área determinada da geografia da cidade. A rua Augusta era a rua dos armadores, das casas dedicadas ao comércio de ferragens, de artigos marítimos, dos representantes de gêneros de importação. A do Príncipe era a do comércio varejista – situação que perdura ainda em nossos dias (CABRAL, 1979:100). Desterro adquire então o status de vila-cidade, onde as funções militares deixam de desempenhar o papel fundamental que desempenhavam há um século ou menos atrás. (CARDOSO, F. 2000:100).

No mundo rural da Ilha não emergiu nenhuma fonte regular de riqueza capaz de elevar os colonos à condição de senhores, na ordem estamental do Império. O mundo rural da Ilha continuou no geral sendo pobre e plebeu (CARDOSO, F.2000:108).

Langsdorff considerou Desterro “o principal povoado desta Ilha”, dizendo que contava entre 400 e 500 casas, as ruas eram “na maioria regulares” e “nas numerosas lojas se encontrava quase toda a sorte de mercadorias européias que contribuem para o sustento e a

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decência da vida”, se bem que caras. (CARDOSO, F.,2000:97). É necessário tomar cuidado com as proposições otimistas dos viajantes em relação a Desterro, pois seu desenvolvimento foi lento e seu crescimento confirma essa constatação. Cabral, ao falar de alguns dados sobre o crescimento urbano de Desterro, diz: “Apesar de tudo, a julgar-se pelo número de construções, o desenvolvimento da cidade foi extraordinariamente lento, pois contando em 1832 com oitocentos e cincoenta e dois fogos, três décadas mais tarde não conseguira dobrar o número. Em 1866, isto é, trinta e poucos anos depois, as edificações existentes em igual perímetro não excediam a 1350”. (CARDOSO, F.,2000:98).

A Ilha de Santa Catarina possuía, segundo censo de 1872, 26.311 habitantes, dos quais 3.431 eram cativos (CARDOSO E IANNI, 1960). Seu centro urbano era a Freguesia Nossa Senhora do Desterro, como já foi dito anteriormente, e contava com 9.108 habitantes, sendo 1.622 cativos. Segundo a análise de Fernando Henrique Cardoso, Desterro era uma comunidade rural-urbana que gravitava em torno das atividades político-administrativas e militares (CARDOSO, P., 2002:9). O palácio do governo, a casa da Câmara, a cadeia e as residências mais imponentes se localizavam em volta da praça central, nas ruas do Ouvidor, Príncipe e Augusta, atualmente chamadas, respectivamente, Praça XV de Novembro, Rua Deodoro, Rua Conselheiro Mafra e Rua João Pinto, onde se localizava a elite da cidade. (CABRAL, 1979:113-161).

Na região periférica estavam os bairros mais pobres: Figueira, Tronqueira, Beco dos Sujos, Toca, Rita Maria e Cidade Nova. Era nessas localidades que moravam a maioria dos africanos e afrodescendentes, escravos e libertos, que somavam 16% da população total da cidade (MORTARI, 2000:7). Neste cenário, transitavam crioulos, pardos e africanos, cativos, livres e libertos exercendo o conjunto de funções que hoje constituem a infra-estrutura urbana da cidade. Havia as quitandeiras, as cozinheiras, as amas de leite. Alguns escravos trabalhavam na iluminação pública ou no transporte marítimo. A quem pertenciam estes escravos? Para quem trabalhavam? Estamos habituados a ouvir a palavra senhor. O senhor de escravos, o senhor de engenhos. No entanto, pesquisas demonstram que muitos proprietários de escravos eram mulheres.

Além das mulheres das camadas populares que no último quartel do século XIX, improvisavam meios de sobrevivência, e as da classe média que procuravam complementar os rendimentos familiares com seu trabalho de costura, de modista e de professora, também muitas mulheres da elite de Desterro, naquela época, envolveram-se com a acumulação e a preservação de suas propriedades e rendas (PEDRO, 1994:150).

O que tinham senhoras e cativas em comum? Para as proprietárias qual o significado de possuir cativos? Para os cativos, qual o significado de ser propriedade de uma mulher? Da

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mesma forma, interessa-nos perceber suas relações de sociabilidade com seus escravos. Seriam elas mais sensíveis às crueldades do mundo escravista? As mulheres cativas eram duplamente desconsideradas, dentro de seu próprio grupo e pelos senhores. Traria esta situação uma solidariedade e compreensão diferente entre proprietárias e cativas?

Havia vínculos que também uniam senhoras e escravos de forma complexa. Laços que talvez fossem interpretados de maneiras distintas por ambos. Para alguns, tais práticas poderiam ser compreendidas como concessões, já para outros, eram consideradas como conquistas. Mulheres solteiras ou viúvas, muitas vezes, buscavam sua sobrevivência no trabalho de seus cativos, estabelecendo desta forma uma dependência entre ambos.

Acreditamos que estas questões podem ser respondidas, ao menos em certa medida, a partir da análise das fontes cartoriais e do judiciário. Contratos de locação de serviços, cartas de alforria, contratos de compra e venda envolvendo mulheres e cativos, bem como testamentos e inventários compõem o corpo documental desta pesquisa. Por estarmos ainda no processo inicial de análise das fontes, nos deteremos, neste texto, às cartas de alforria concedidas por mulheres e alguns inventários desta mesma freguesia.

Pensando na transmissão do patrimônio, os inventários são fundamentais, pois possibilitam saber o destino dos bens após a morte, apresentando os herdeiros, naturais ou forçados. Em relação à partilha, quando o falecido (a) era casado (a), descontava-se de seu monte mor as dívidas e os custos com inventário, e o restante era divido em seis partes, três delas eram destinadas ao cônjuge, 2/3 aos herdeiros e 1/3 denominada a terça era disposto pela livre vontade do falecido. Quando era solteiro (a), o monte mor era dividido em três, 2/3 aos herdeiros e 1/3 designados livremente. A herança deveria ser dividida igualmente, independente de idade e gênero. Entretanto, alguns poderiam ser os privilegiados com a terça, podendo, o legado, ultrapassar o núcleo familiar. Analisar os testamentos é também de grande importância, pois trazem informações sobre a vida do testador e suas relações. (SAMARA, 2006:7).

No documento de inventário1 de 1861 de Dona Maria Rita da Conceição consta as seguintes informações: solteira, natural de Desterro, pais falecidos, por não ter filhos não possuía descendentes, portanto poderia dispor de seus bens livremente. Não possuía riquezas, a não ser uma morada de casas, próxima a igreja matriz. Declara que institui por herdeiros as suas crias libertas Leocádia Maria da Conceição e suas duas filhas Francisca e Carlota, a Candida Maria do Sacramento, Jacintha Maria da Trindade e todos os seus filhos e igualmente

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Documento do Arquivo Central do Tribunal de Justiça de Santa Catarina. O acervo não está organizado, por este motivo não há identificação por caixas ou livros.

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suas crias Francisco de Paula Bertho e Guilhereme. Declara que seus herdeiros não podem vender em tempo alguns as ditas moradas de casas e devem viver sempre unidos. Deixa livre seu escavo Luis Africano e a sua ex-escrava Maria deixa as terras dos fundos da morada de casas. Seu monte mor somava 2:189$300 e o monte menor 1:768$658. É interessante notar que mulheres solteiras e que não tinham filhos costumavam beneficiar escravos ou libertos com herança, embora houvesse a imposição de algumas condições, como não poder vender propriedade e ficarem sempre unidos. As condições parecem demonstrar uma preocupação com o futuro dos beneficiados, evidenciando uma relação próxima das senhoras com os cativos ou ex-cativos, e uma tentativa de controlar certas situações mesmo após morte. A consideração pelos cativos significava que, coletivamente eles tinham alguma voz e que lhe podiam criar algum dilema (GRAHAM, 2005:180). Não era raro que os senhores, em seus testamentos, libertassem seus escravos e, ao mesmo tempo, lhes concedesse terras (...).E é evidente que tais medidas eram tomadas com maior probabilidade por senhores de escravos sem herdeiros – solteiros, viúvos ou padres sem herdeiros necessários. (GRAHAM, 2005: 193).

É possível perceber que não eram raros casos como o de dona Silvana Joaquina de Oliveira Mimoso, que deixa libertas as suas escravas Gertrudes e suas filhas Maria dos Anjos e Maria das Dores já liberta e Maria da Conceição, casada com Lucas Gervásio. O monte mor de dona Silvana é de um conto e quatrocentos e seis mil réis. Era viúva do Coronel Joaquim Felippe Lamprea Mimoso e não tinha filhos. Diz na carta de alforria2 que concedeu a Maria das Dores: “a qual em attenção a habilidade que tem para aprender à ler, a escrever, lhe dou plena liberdade como se de ventre livre nascera”. Mulheres que não tinham filhos costumavam alforriar com mais freqüência.

Dona Clara Rosa de Jesus, falecida, tem por inventariante seu irmão Joaquim Alexandre Dias e possui sete herdeiros filhos. Seus bens se dividem entre uma morada de casas, 1 terreno com 4 braças de terras e móveis de casa em mau estado. Uma escrava de nome Lucrecia, nação Mina, a qual institui que deve ficar cativa pelo espaço de 8 anos em companhia dos filhos herdeiros para ajudar a criá-los e alimenta-los. Deixa para a escrava algum dinheiro. Este documento de inventário3 é do ano 1863. Dona Clara Rosa de Jesus era viúva e confere a sua escrava a responsabilidade de cuidar de seus filhos, demonstrando uma relação de confiança. Poderia ter deixado os filhos aos cuidados do irmão somente e por que

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Cartório Kotzias, livro de notas número 33, fls 35 v. 1870.

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não o fez? Seus bens evidenciam não ser uma grande proprietária e possivelmente dependia do trabalho de sua única escrava.

Além do casamento, dote e a herança eram formas de acumular patrimônio. João da Luz é o testamenteiro de Dona Felisarda Amália da Costa Brocardo, sua sogra, que foi casada com o Major Estejão Brocardo. Tem uma única filha de nome Amália, casada com o Comendador João Pinto da Luz, a qual é sua única herdeira. A dita filha teve como dote de casamento os escravos de nome Manoel, Gervasia, Emilio e Bonifacia. Porém, recebeu esta última e libertou, dando em troca a escrava Francisca. Declara que no dia primeiro de agosto de 1857 libertou por escrituras particulares que estavam em seu poder, os escravos Samuel, oficial de carpinteiro, a crioula Rachel, a mulata Lionida, a crioula Henriqueta e o mulatinho Saturnino. Deixa esmola para a Santa Casa da Caridade (25$000), deixa a mesma quantia ao afilhado e jóias a neta. Á parda Emilia e à crioula liberta Leopoldina deixa um terreno. À 12 crianças pobres, deixa 2$000. Institui por herdeira a menina Maria Carolina, a quem tem criado, a quem doa um mulatinho de nome Daniel. Estas informações estão no documento de inventário4 do ano de 1863.

No ano de 1879 são arrolados os bens do falecido José Bernardo Ferreira Brandão, sendo Dona Caetana Haberbeck Brandão, sua mulher, a inventariante. Tinham cinco filhas ainda crianças. Possuíam bens móveis, casas e chácaras na rua Formosa, uma escrava de nome Sabrina, 600$000, uma escrava preta filha da dita Sabrina, 10 anos de nome Diolinda, 400$000. Seu monte mor era de 31:321$000 e o monte menor 27:646$3795. Ao considerar que os filhos eram ainda crianças, pressupõem-se que o casal era jovem. Dona Caetana ao que parece fazia parte de uma elite urbana bem abastada, tendo ficado com uma boa herança. Além de administrar seus bens, teria que cuidar da criação de suas cinco filhas. Na mesma situação ficava Dona Maria Joaquina da Silva, viúva de José da Silva Pereira. Entre os herdeiros estavam filhos e netos. O falecido deixa terça a sua mulher Maria. Possuía um sobrado na rua Trajano, uma chácara e casa com terrenos na rua do Príncipe, um escravo crioulo de nome Eduardo, sem ofício, 35 anos, solteiro, 600$000, Ignácio Africano, solteiro, 42 anos, preto, sem ofício, 300$000, Joanna africana, 67 anos, solteira, 50$000, Rosa africana, 57 anos. Seu monte mor é de 29:223$2006. Assim como Caetana, citada acima, Maria Joaquina também fazia parte da elite de Desterro, e é interessante pensar na forma como essas mulheres agiam, pois era justamente para elas que havia sido criado o modelo da

4 Idem. 5 Id. Ibidem. 6 Id. Ibidem.

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mulher ideal e dependente. Como se inseriam essas mulheres na nova ordem social que surgia em Desterro após 1850? Segundo Maria Odila Silva Dias, há a necessidade de integrar as mulheres das classes dominantes na História Social do Brasil. Não possuímos ainda uma precisão numérica dos documentos do Arquivo Central do Tribunal de Justiça de Santa Catarina, porém nos referindo às proprietárias de escravos analisadas neste texto, as viúvas têm aparecido em maior quantidade.

Ao ficarem viúvas, essas mulheres poderiam usar de muitas estratégias para manter suas propriedades e sustentar seus filhos, como, por exemplo, alugar seus cativos. Num processo de locação de serviços7, de 1880, Dona Florisbela Rosa recebe uma quantia de quinhentos e cinqüenta mil réis de João Pereira Malheiros, pelos serviços da crioula Joaquina, por um período de sete anos, a fim de se tornar livre. Ainda em 1880, a preta Graciana, por consentimento de sua senhora Maria Luiza de Jesus, tem seus serviços contratados por um período de seis anos, a fim de receber a quantia de trezentos e quarenta mil réis para comprar sua liberdade. Muitas vezes o trabalho escravo era o único meio de sobrevivência da senhora e sua dependência em relação ao cativo não era fato irrelevante. A esperança de liberdade renovava constantemente esses laços de dependência.

As cartas de alforria, já citadas, referem-se a Desterro no período de 1865 a 1882. São 68 alforrias8 concedidas por mulheres, o que evidencia a significativa presença das proprietárias. Dos alforriados, 25 eram homens e 43 eram mulheres. Geralmente acompanhava a carta de alforria alguma condição de prestação de serviços.

O fato de que a esmagadora maioria das alforrias concedidas na última década da escravidão no principal cartório do Desterro envolvia alguma cláusula de prestação de serviços – seja para o ex-senhor, seja para terceiros através de contratos de locação – parece ser um indicativo importante. Transformar a escravidão em um contrato para o pagamento de uma dívida poderia também significar a tentativa de garantir algum modo de continuidade de uma ocupação que garantisse a subsistência e uma menor incerteza frente ao futuro (LIMA, 2005:307).

No ano de 1884, Alvina Moellmann Branco alforria Roberto, 45 anos e Joanna, de 22 anos sob a condição de prestarem serviços pelo tempo de quatro anos9. Já Francisca Augusta da Silva Oliveira, ao alforriar Benedicta e Cacilda no ano de 1879, estabelece como condição acompanhá-la e prestar serviços até seu falecimento10.

N ano de 1868, Felis Lourenço de Siqueira, procurador com poderes especiais de Dona Francisca Carolina de Siqueira Luz, confere liberdade a Faustina, 34 anos: “lhe confiro

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Id. Ibidem.

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Cartas de alforria do cartório Kotzias.

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Cartório Kotzias, livro de notas número58, FLS 10 E 10V.1884.

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plena liberdade mediante a quantia de seis centos mil reis que recebi em moéda corrente da Senhora Anna Maria Albina, preta liberta, ficando a dita Faustina obrigada a pagar a referida quantia a mesma Anna Albina, em poder da qual ficára a prezente carta manumissão depois de registrada, até seu real embolço”11.

A maioria das justificativas utilizadas para a alforria era os bons serviços prestados pelo cativo, além do pecúlio obviamente. Em menor quantidade aparecem casos em que a explicação é alguma estima da senhora em relação ao cativo.

A leitura de uma bibliografia adequada sobre o tema nos auxiliará a construir questionamentos e chegar a algumas conclusões. Os documentos, não sendo homogêneos, nos trazem informações distintas, evidenciando muitas vezes situações singulares. Acreditamos ser necessário, para uma análise mais aprofundada, nos atermos em algumas trajetórias de vida, constituindo assim uma história microssocial do cotidiano de algumas proprietárias e de seus cativos.

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