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A quase ausência de mulheres negras na magistratura: uma análise através da teoria do reconhecimento

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Academic year: 2021

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A quase ausência de mulheres negras na magistratura: uma

análise através da teoria do reconhecimento

Ana Carolina da Silva de Souza Martins (UENF)

Kamila Carino Machado (UENF)

RESUMO: O artigo discute e analisa a pouca presença de mulheres negras na magistratura através de uma revisão bibliográfica sobre a condição do negro no Brasil, tema intimamente ligado ao capitalismo e a produção de desigualdades por esse sistema. Além disso, a teoria do reconhecimento é uma das principais abordagens utilizada neste artigo para se pensar o assunto. Problematiza-se a exclusão da variável raça ao traçar perfil dos magistrados e o simbolismo que este fato carrega para a manutenção da estrutura jurídica brasileira. Os resultados submetidos à análise demonstram a quase ausência de mulheres negras na magistratura como um fenômeno ligado as estruturas da sociedade brasileira, marcada por anos de exploração de mão de obra escrava e exclusão da população negra. Além disso, o artigo demonstra como políticas de redistribuição e reconhecimento de caráter transformativo, operariam a longo prazo, abolindo as estruturas socioeconômicas, políticas e culturais que possibilitam a manutenção da opressão vivida pelas mulheres negras

Palavras-chave: Gênero. Raça. Judiciário

ABSTRACT: The article discusses and analyzes the low presence of black women in the

judiciary through a bibliographic review on the condition of black people in Brazil, a theme closely linked to capitalism and the production of inequalities by this system. In addition, recognition theory is one of the main approaches used in this article to think about the subject. The exclusion of the race variable is problematized when profiling the magistrates and the symbolism that this fact carries for the maintenance brazilian‟s legal structure. The results submitted to the analysis demonstrate the almost absence of black women in the judiciary as a phenomenon linked to the structures of Brazilian society, marked by years of exploitation of slave labor and exclusion of the black population. In addition, the article demonstrates how policies of redistribution and recognition of a transformative character would operate in the long term, abolishing the socioeconomic, political and cultural structures that make it possible to maintain the oppression experienced by black women.

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2 Keywords: Genre. Race. Judiciary

1. INTRODUÇÃO

Em uma contribuição histórica a respeito do trabalho da mulher, Michelle Perrot afirma que: “As mulheres sempre trabalharam. Elas nem sempre exerceram „profissões‟.” Segundo a autora, existem profissões que se inscrevem no cenário social como “adequadas” para mulheres. Essas profissões obedecem a certos critérios e limites e devem permitir que a mulher continue a realizar a sua função “primordial” de esposa e mãe, garantindo que ela tenha tempo para se dedicar a criação dos filhos e ao cuidado com a casa. (PERROT, 2005, p. 251)

O termo divisão sexual do trabalho, surgido na França no início dos anos 70, aplica-se, segundo Hirata e Keorgoat, a duas concepções distintas. Primeiro, estuda o modelo de distribuição diferencial de homens e mulheres no mercado de trabalho. Segundo, analisa a associação à divisão desigual do trabalho doméstico entre os sexos. Assim, o termo está intimamente ligado, a como, a sociedade hierarquiza as diferenças a partir do gênero. Por isso, o gênero serve como uma das categorias de análise deste artigo. (HIRATA; KERGOAT, 2007, p.596)

Entretanto, o presente artigo busca, tão somente, compreender as experiências da mulher negra na sociedade brasileira e, a partir disso, a análise interseccional permite enxergar de que modo a colisão das estruturas gênero e raça impactam na vida dessas mulheres. A utilização da categoria de gênero como única base para esta análise não daria conta de explicar as vivências das mulheres negras no Brasil, uma vez que o critério racial questiona a posição de trabalho assumida pelas mulheres negras ao longo da história. Escravizadas e desumanizadas, elas foram forçadas a jornadas exaustivas de trabalho nas lavouras; nas casas dos senhores de escravos; nas ruas como prostitutas e como objeto sexual de satisfação aos seus senhores.

Segundo Akotirene:

A interseccionalidade nos permite partir da avenida estruturada pelo racismo, capitalismo e cisheteropatriarcado, em seus múltiplos trânsitos, para revelar quais são as pessoas realmente acidentadas pela matriz de opressões. A interseccionalidade dispensa individualmente quaisquer reivindicações identitárias ausentes da coletivamente construída, por melhores que sejam as intenções de quem

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3 deseja se filiar à marca fenotípica da negritude, neste caso, as estruturas não atravessam tais identidades fora da categoria de Outros. (AKOTIRENE, 2019, p. 47)

De acordo com Pinho, a negação total ou parcial da liberdade concedida à mulher tem as suas raízes na distribuição desigual de poder entre os sexos. Isto condiciona a mulher a um sistema duplamente excludente: não consegue participar do mercado de trabalho em igualdade com os homens e também não consegue ser tratada pelo sistema com igualdade. (PINHO, 2018, p, 152). Nessa situação, as mulheres negras sofrem de uma dupla opressão. Por serem mulheres e por serem negras.

Diante disto, a quase ausência de mulheres negras na magistratura no Brasil se revela uma atualização das condições históricas do povo preto neste país e, a fim de compreendê-la, necessita-se remontar o sec. XIX. Nesse artigo, faremos um breve histórico da chegada dos negros em terras brasileiras, trazidos para este país na condição de pessoas sequestradas e escravizadas, estes que trabalharam forçadamente por quase 400 anos na construção do Brasil até a abolição da escravatura em 1888; sobre a condição da mulher negra na sociedade contemporânea, com um recorte no mercado de trabalho e sobre como as bases que estruturaram as relações sociais brasileiras, limitam a participação das mulheres negras na magistratura. Assim, este trabalho se propõe a responder a seguinte pergunta: O que a pouca representação de mulheres negras na magistratura revela sobre a formação da sociedade de classes brasileira?

A técnica utilizada para dar conta dessa problemática é a documentação indireta, por meio de uma pesquisa bibliográfica e documental (MARCONI; LAKATOS. 2009. p. 176). De acordo com Medeiros e Tomasi (2008) “a revisão bibliográfica também contribui nas construções teóricas, nas comparações e na validação de resultados de trabalhos de conclusão de curso e de artigos científicos”. (p. 46) Utiliza-se como método de abordagem o dedutivo, uma vez que parte-se de teorias e leis para explicar o fenômeno estudado. Além disso, aplica-se como método de procedimento, o histórico, levando em conta que parte-aplica-se do princípio que as atuais formas de vida social e os costumes têm origem no passado, assim pesquisa-se as suas raízes para entender as suas ações na atualidade. (MARCONI; LAKATOS. 2009. p. 106).

As principais obras norteadoras deste estudo e os seguintes autores são: Florestan Fernandes e Octávio Ianni, nos estudos sobre o negro no pós-abolição no séc. XIX; Nancy Fraser, nos escritos a respeito da teoria do reconhecimento; Sueli Carneiro, Angela Davis,

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4 Lélia Gonzalez e Heleieth Saffioti ao falar das condições particulares da mulher negra na sociedade. Também há análise das pesquisas recentes sobre a participação feminina na magistratura, veiculadas pelo Conselho Nacional de Justiça – CNJ e pela Associação dos Magistrados Brasileiros – AMB.

2. UM PANORAMA HISTÓRICO SOBRE A SITUAÇÃO DO NEGRO NO BRASIL

Dedica-se, especificamente, nesta seção, a tratar das questões relacionadas ao pós-abolição no Brasil. É de suma importância o destaque para a forma como o Estado brasileiro, um ano após a abolição, já uma República (1889), abandonou as pessoas recém-libertas, de um período de mais trezentos de escravidão, à sua própria sorte, como destaca Florestam Fernandes (2009):

Os senhores foram eximidos da responsabilidade pela manutenção e segurança dos libertos, sem que o Estado, a Igreja ou outra instituição assumisse encargos especiais que tivessem por objetivo prepará-los para o novo regime de organização da vida e do trabalho. (p.29)

Note-se que após a assinatura da Lei Áurea, não houve por parte do Estado, a preocupação de integração dessas mulheres e homens à sociedade de classes que nascia com o fim do antigo regime. Recuperar este passado, entender as bases para a desigualdade de raça e classe no país é essencial para a compreensão das razões pelas quais ainda hoje, tenhamos poucas pessoas negras em cargos de destaque, e dentro deste reduto, o número de mulheres negras ser ainda mais escasso.

Ao serem „libertos‟ legalmente e inseridos numa sociedade de classes que nascia junto com a República, estes homens e mulheres se encontravam numa competição por postos de trabalho com os brasileiros, portugueses, e, mais tarde, com os imigrantes, que chegavam de várias partes do mundo com o aval e incentivo do governo brasileiro. Era uma disputa condenada ao fracasso. FERNANDES (2009) assinala quais eram usualmente as opções que as pessoas que foram escravizadas possuíam

[...] Onde a produção atingia níveis altos, refletindo-se no padrão de crescimento econômico e de organização do trabalho, existiam reais possibilidades de um autêntico mercado de trabalho: aí os ex escravos tinham de concorrer com os chamados “trabalhadores nacionais”[...]e, principalmente com trabalhadores importados da Europa[...]constituída por trabalhadores mais afeitos ao novo regime de trabalho e às suas implicações econômicas ou sociais. (p.31)

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5 Segundo IANNI (1966), uma vez que a reincorporação do negro se dá no seio de uma sociedade que separa as pessoas através da hierarquia nas esferas social e econômica, e considerando que, ao lado dos indivíduos recém-libertos, havia também os trabalhadores brancos de diversas origens, competindo por postos de trabalho, destacando-se a cor, o que limita os indivíduos negros e mulatos.1(IANNI, 1966 p. 50)

O autor enfatiza ainda os motivos para o movimento da abolição da escravatura por parte do Estado, e como este foi pautado numa questão socioeconômica e não humanista. Com o fim da sociedade de castas, devido ao esgotamento de suas possibilidades em função das mudanças na organização social e econômicas ocorridas em todo o mundo, inicia-se o processo de constituição dos pré-requisitos de uma nova forma de organização social, econômica, com grande foco no trabalho. Na incipiente sociedade de classes capitalista, o trabalhador livre era essencial, uma vez que a primordialidade do mercado consumidor é inerente ao sustento e manutenção deste modo de produção. (IANNI, 1966 p.49).

É notável como o fator classe atravessa a questão racial desde os primórdios do estabelecimento do capitalismo no Brasil. O binômio raça e classe se institui como uma categoria de análise imprescindível quando se pretende estudar a desigualdade no país. Retomando o que foi dito anteriormente, revela-se, assim, como a atual situação de pessoas pretas no Brasil é fruto de uma sociedade capitalista, racista e com fortes valores patriarcais, no caso das mulheres, centro de análise desta pesquisa.

O racismo é intrínseco ao regime escravagista, e ao ideal de branqueamento da população brasileira e após o fim do mesmo, fica fácil entender os motivos pelos quais os negros e negras não eram considerados elegíveis para o trabalho livre e assalariado. Explico: devido à grande quantidade de pessoas traficadas para América portuguesa, a população desta tornou-se majoritariamente preta, com a abolição, e o projeto de tonar este um País reconhecido, sobretudo, pelos europeus, fez surgir a ideia de branquear a população brasileira através da mestiçagem.

ORTIZ (2006) aponta – uma vez que o povo europeu e sua civilização não poderia ser transferida plenamente para o Brasil, e como no país existiam duas outras raças apontadas como inferiores que colaboraram para a evolução da história brasileira, torna-se necessário encontrar um ponto de equilíbrio. (ORTIZ, 2006 p.20) O ponto de equilíbrio ao qual o

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6 autor se refere, é a figura do mestiço, segundo os estudos ditos científicos do século XIX, na mistura das duas raças, a raça branca, obviamente, “acabaria por encerrar os defeitos e taras transmitidos

pela herança biológica” (ORTIZ, 2006,p.21).

Após a intensa migração de pessoas brancas europeias, principalmente, mas não somente, compreende-se melhor os motivos pelos quais os negros e negras se encontravam numa posição desigual, pois ainda que inseridos numa sociedade de classes formalmente aberta e com a possibilidade de mobilidade social, estes tinham que lidar com a competição com imigrantes que já chegavam ao país numa posição socialmente superior. Engendra-se neste seio, uma relação de raça e classe que se atualiza até os dias de hoje.

Nos dias de hoje, ainda que legalmente livres, as pessoas pretas brasileiras carregam em suas histórias as marcas brutais de um sistema escravista que, ainda que abolido, continua extremamente presente no racismo estrutural, condicionador as pessoas negras às piores posições sociais. Segundo MUNANGA, a abolição da escravatura não representou uma ruptura, e pela sua grande inabilidade em atenuar as grandes desigualdades econômicas e sociais, uma vez que não houve nenhuma organização em resposta ao racismo, funcionou como um mecanismo de manutenção do status quo. Desta forma, a relação mestre/escravo, se transformou na relação branco/negro ambas hierarquizadas. (MUNANGA, 2015 p. 28)

Uma forma de constatação do que foi dito anteriormente é o fato de serem as pessoas negras e pardas as que possuem maior índice de analfabetismo – 9,9%. É mais que o dobro do que entre pessoas brancas – 4,2%. (IBGE 2017). Não obstante, na questão da ocupação profissional, estudos revelam que mulheres e homens negros têm maior dificuldade em conseguir e se manter em um emprego formal. Em 2010, o índice de desemprego dos trabalhadores negros (13,8%) era superior ao de pessoas não-negras (10,2%). Dentro dos números que se referem à população negra, os dados relativos às mulheres negras (16, 8%) são ainda mais discrepantes em relação aos homens negros (8,1%). (DIEESE, 2012).

Outro fator que salta aos olhos quando se estuda a desigualdade racial no Brasil, diz respeito ao genocídio da população negra e parda no país. A cada 23 minutos um jovem negro é assassinado, e um número significativo dos assassinatos são cometidos por policiais militares, agentes da lei, sob o lema “Servir e Proteger”, no Rio de Janeiro. Dados da Rede de Observatórios da Segurança demonstram que, no Brasil, os negros são 75% dos mortos pela polícia no Brasil. Quando se trata do feminicídio, 61% das mulheres assassinadas nestas condições são negras. Segundo a mesma pesquisa, enquanto a taxa geral de homicídios no

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7 país é de 28 pessoas por 100 mil habitantes, quando se trata de homens negros, o percentual sobe para 200.

3. O MODELO DE EXCLUSÃO DA MULHER NEGRA NA SOCIEDADE BRASILEIRA

Segundo SAFFIOTI (1987) não é difícil observar que homens e mulheres ocupam posições sociais diferentes na sociedade. A identidade social feminina e masculina é inscrita por meio de muitos signos. Desde sua primeira infância e durante todo o processo de socialização vivenciado por homens e mulheres, os papéis de gênero são muito bem delimitados. A mulher é socialmente responsável pela manutenção da ordem no lar, pela criação e educação dos filhos e pelos trabalhos domésticos e mesmo quando exercem uma função remunerada fora de casa, ela continua responsável pelas tarefas domésticas, a não ser que possa terceirizar esse serviço à outra mulher. Já ao homem é dado o papel de provedor, responsável pela garantia da fonte de renda da unidade familiar. Ao homem é dada a possibilidade de atuação no público, ou seja, no espaço “fora do lar” com a garantia da remuneração. (SAFFIOTI, 1987, p. 8/9)

Apesar disso, a condição da mulher na sociedade brasileira está condicionada a um sistema de dominação mais amplo. Por se tratar durante muitos anos de uma sociedade escravocrata e senhorial, o Brasil traz complexos sociais que se justificam, segundo SAFFIOTI (1976), em nome de uma tradição. Essa tradição busca manter a exclusão das mulheres ao exercício das funções socialmente consideradas de destaque e prestígio social. (SAFFIOTI, 1976, p.38) E se estes complexos sociais buscam manter as mulheres brancas em uma condição de subserviência ao lar, ele também busca manter as mulheres negras em uma condição ainda mais penosa, garantindo a mulheres uma situação social de alta vulnerabilidade social, exclusão e pobreza.

A posição de fragilidade feminina que, historicamente, justificou a opressão vivida pelas mulheres brancas, nunca foi conferida às mulheres negras. Estas sempre fizeram parte de um grupo nunca tratado como frágil. Pelo contrário, as mulheres negras escravas recebiam os mesmos castigos físicos que os homens, realizavam as mesmas tarefas e “trabalhavam” a mesma quantidade de horas, seja na lavoura ou nos serviços domésticos. (CARNEIRO, 2019, p. 314)

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8 Ao considerar a condição da mulher negra no Brasil contemporâneo, é necessário entender como se davam as relações de poder em uma sociedade escravocrata, época em que se formaram os fenômenos sociais que justificam a posição de inferioridade da mulher negra atualmente. Para tratar da questão mulher e trabalho, recorre-se, inicialmente, a obra de Angela Davis2 que entre outras riquíssimas discussões, aborda a relação da mulher e do trabalho na perspectiva de gênero e raça, demonstrando, entre outras conclusões, como mulheres brancas e negras partem de lugares contrários em relação ao trabalho: enquanto a primeira precisou lutar para ter direito ao trabalho remunerado, fora do lar, a segunda, viveu numa sociedade escravagista e depois, capitalista, sem a opção de não fazê-lo.

A mulher negra foi a primeira categoria de mulher a exercer o trabalho fora de casa. Segundo Davis, (2016) na condição de pessoa escravizada, ela sequer era considerada mulher. Ainda que sendo mães, qualidade que, numa sociedade patriarcal, expressa o valor máximo da mulher, estas mulheres especificamente, não gozavam do privilégio de ter a condição respeitada. A autora afirma, ainda que nos anos anteriores à Guerra Civil estadunidense, as mulheres negras tiveram seu valor ainda mais relacionado à sua capacidade fértil, sendo as que mais tivessem capacidade de gerar filhos, as mais valiosas. Porém, é feita uma ressalva importante de ser transcrita tal e qual a obra original:

[...] Mas isso não significa que, como mães, as mulheres negras gozassem de uma condição mais respeitável do que a que tinham como trabalhadoras. A exaltação ideológica da maternidade – tão popular no século XX – não se estendia às escravas. Na verdade, aos olhos de seus proprietários, elas não eram realmente mães; eram apenas instrumentos que garantiam a ampliação da força de trabalho escrava. (DAVIS 2016 p.19)

Esta e várias outras passagens da obra Davis demonstram como as pessoas escravizadas foram colocados na condição de sub-humano. Em diversas partes do livro, pode-se ler os inúmeros castigos físicos aos quais os negros eram submetidos no sistema escravagista estadunidense, não diferindo do que ocorreu no Brasil. Como indica Saffioti (1976) a mulher negra no país tinha além de sua função no sistema produtivo de bens e serviços, um papel sexual. Ou seja, além de um instrumento de trabalho utilizado para garantir lucro ao seu senhor, ela era objeto sexual. (SAFFIOTI, 1976, p. 87/88)

Um artigo escrito pela antropóloga brasileira, Lélia Gonzalez3, nos mostra como a figura da mulher negra é socialmente manipulada, de acordo com a situação social na qual

2Mulheres, Raça e Classe (2016) 3Racismo e sexismo na cultura brasileira

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9 esteja inserida. O paradoxo da empregada doméstica e da mulata são fundamentais no entendimento dos lugares nos quais a sociedade reserva às mulheres pretas. O carnaval usado como exemplo4, a autora demonstra de forma ímpar como, a depender da situação em que se encontra, a mulher negra pode ser alçada a posição de uma musa e em outras ela é rebaixada5à categoria de doméstica, sem que isso passe pela forma como a própria se vê. É um julgamento completamente externo, sem que a autopercepção influencie no processo.

[...] o outro lado do endeusamento carnavalesco ocorre no cotidiano dessa mulher, no momento em que ela se transfigura na empregada doméstica. É por aí que a culpabilidade engendrada pelo seu endeusamento se exerce com fortes cargas de agressividade. É por aí, também, que se constata que os termos mulata e doméstica são atribuições de um mesmo sujeito. A nomeação vai depender da situação em que somos vistas (GONZALEZ, 1984 p. 221)

Ainda segundo a autora, a confluência da mulata e da doméstica, se fez através da figura da mucama. Esta função exercida por mulheres negras e jovens, cujas atribuições variavam entre cuidar da casa, das crianças e servir sexualmente ao senhor de escravo. Fica claro assim, como desde o período a escravidão, a mulher negra ocupa essa posição dúbia: ora empregada doméstica, ora objeto sexual. Não como esposa, não como trabalhadora assalariada, não como mulher livre, mas sempre nessa dualidade. Quando apontamos no início do texto que a condição da mulher negra, social e economicamente falando, é uma atualização das condições históricas do povo preto no país, era exatamente a situações como esta a qual nos referíamos: ainda hoje a figura da mulher preta se encontra presa no duo mulata/ doméstica.

Esse paradoxo, com outros caminhos apontados por outros autores, nos mostra a rota para compreender as razões para o fato de serem as mulheres negras a menor porção em cargos de chefia, destaque e na magistratura brasileira. Alcançar essa posição, significa ir contra as expectativas, as estatísticas, e o destino reservado a essa parcela da sociedade. Significa ir contra um racismo e uma estrutura de classes que têm como função, colocar estas mulheres na base na pirâmide social.

Os dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (Pnad Contínua) apontam que quase 92,6% da população brasileira feminina de 14 anos ou mais, exercem alguma função doméstica e cuidados com pessoas, em uma média de 21 h por semana.

4 Apesar de a autora fazer essa reflexão a partir do carnaval, no nosso entendimento, essa elevação e rebaixamento da mulher negra de musa, mulata à doméstica, é um processo violento, porém que ocorre cotidianamente

5A palavra utilizada não carrega, por parte das autoras, um juízo de valor. Optou-se por essa escolha de palavras a fim de destacar a forma dual como se apresenta essa mulher perante a visão da sociedade.

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10 Mesmo quando atuam fora de casa em funções remuneradas, as mulheres continuam acumulando a rotina de serviços domésticos ao trabalho fora do lar. É o que se conhece como o fenômeno da dupla jornada.

Quando se fala das tarefas exercidas fora do lar, as mulheres são maioria em funções ligadas a limpeza e ao cuidado com as pessoas. Tanto que o trabalho doméstico remunerado é uma das ocupações que possuem maior incidência de mulheres no Brasil. Em uma relação raça e gênero, do total de 92% (5,7 milhões) de mulheres que atuam no serviço doméstico, 3,9 milhões eram negras. (PERISSÉ; LOSCHI, 2019, p. 20/21) O capitalismo necessita de pessoas na base da pirâmide social para que outras estejam no topo da mesma. Para este modo de produção, é vital que haja um exército de mão de obra reserva para forçar os salários cada vez mais para baixo, aumentando assim os lucros dos grandes capitalistas.

Não é possível falar em uma sociedade com equidade social, política e econômica enquanto esta for capitalista. Além disso, os fatores raça, classe e gênero são mecanismos que garantem a manutenção do sistema. Segundo NASCIMENTO (2019): “Numa sociedade como a brasileira, em que a dinâmica do sistema econômico estabelece espaços na hierarquia de classes, existem alguns mecanismos para selecionar as pessoas que iram preenchê-los.” (NASCIMENTO, 2019, p. 261) Neste ínterim, mulheres e negros estão excluídos.

De acordo com SAFFIOTI (1987) a mulher negra é duplamente discriminada no Brasil: enquanto mulher e enquanto negra. Até os dias atuais a mulher negra ocupa, tanto no imaginário, quanto na realidade social, duas principais funções: o de empregada doméstica e o de objeto sexual. (SAFFIOTI, 1987, p. 52) Por isso, ela vem ocupando quase os mesmos papéis que lhe foram atribuídos desde a escravidão. A herança escravocrata trouxe a ela o seu papel de trabalhadora:

As sobrevivências patriarcais na sociedade brasileira fazem com que ela seja recrutada e assuma empregos domésticos nas áreas urbanas, em menor grau na indústria de transformação, e que permaneça como trabalhadora nos espaços rurais. Podemos acrescentar, no entanto, ao exposto anteriormente que a estas sobrevivências ou resíduos do escravagismo se superpõem os mecanismos atuais de manutenção de privilégios por parte do grupo dominante. Mecanismos que são essencialmente ideológicos e que, ao se debruçarem sobre as condições objetivas da sociedade, têm efeitos discriminatórios. Se a mulher negra hoje permanece ocupando empregos similares aos que ocupava na sociedade colonial, é tanto devido ao fato de ser mulher de raça negra como por seus antepassados terem sido escravos. (NASCIMENTO, 2019, p. 261)

Posto que toda a estrutura social brasileira impõe às mulheres e às pessoas negras um lugar de exclusão na hierarquia social, estes possuem menores condições de trabalho, de saúde e de educação. A educação, sendo, uma das formas de acesso a empregos e,

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11 consequentemente, a lugares sociais melhores, deduz-se que as mulheres e os negros encontram-se incapacitados de exercerem funções de prestígio e valor social como a magistratura, exigidora dos seus integrantes um alto grau de esforço e tempo na educação. Nesta dinâmica, mulheres negras têm ainda menores condições de sucesso que as mulheres brancas e que os homens na aprovação para a função.

As mulheres já se encontram em menor número na função, como demonstram os dados das últimas pesquisas. Somando o fator raça, mulheres negras se encontram ainda em menor número. Partindo deste ponto, se inicia a dinâmica de discussão do último tópico do presente artigo.

4. MAGISTRADAS NEGRAS NO JUDICIÁRIO BRASILEIRO: UMA ANÁLISE

ATRAVÉS DA TEORIA DO RECONHECIMENTO

A crise do Welfare state6 no Ocidente trouxe grandes representações para o judiciário, convertendo-o no último recurso para a defesa dos setores sociais atingidos pelas mudanças causadas pelo neoliberalismo. No Brasil, essa mudança atingiu diversos cenários. O processo de redemocratização do país culminou na promulgação da Constituição Federal de 1988 e na criação de institutos jurídicos capazes de enfrentar as questões sociais brasileiras. Desde então, o judiciário assume um papel fundamental na manutenção da democracia e das suas instituições. Para, além disso, o judiciário assume um forte papel na manutenção da ordem pública, na garantia de direitos entre os cidadãos brasileiros. (VIANNA; CARVALHO; BURGOS, 2018, p. 23)

O protagonismo do judiciário na vida política brasileira pode ser visto nos últimos anos através do papel assumido por juristas na condução de processos com notoriedade midiática. O ex-ministro da justiça, Sergio Moro, na época, juiz federal, conduziu um dos processos de maior notoriedade do país: a operação lava jato. A referida operação foi considerada uma ação de combate à corrupção e a lavagem de dinheiro, envolvendo vários políticos e empreiteiros de empresas ligadas a Petrobrás, culminou na prisão de uma série de pessoas, incluindo o ex-presidente Luís Inácio Lula da Silva. Em que pese os excessos e os atropelamentos jurídicos no processo e nas prisões, Sergio Moro passou, em virtude da

6 Foi uma expansão dos sistemas sociais pelos países capitalistas a fim de garantir o estado de bem-estar social dos cidadãos.

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12 grande notoriedade do processo, a ser considerado um dos dez homens mais influentes do mundo, vindo a ser convidado, em 2018, a ser Ministro da Justiça.

Segundo Santos:

O direito está inserido dentro do campo jurídico com toda a sua lógica interna, onde se busca de forma permanente o acúmulo da capital jurídico, o que, para Bourdieu, implica em legitimar os valores inerentes aos conflitos com regras fundadas no formalismo. Agentes e instituições criam códigos próprios, com toda a ritualização dos seus trâmites e ações, transitando entre as liturgias realizadas, por exemplo, do início do boletim de ocorrência até o julgamento e seus resultados. No entanto, só é possível o êxito do trabalho jurídico à medida que se tem a adesão do que o sociólogo francês chama dos profanos, reforçado pela autonomia do direito e da existência da neutralidade. (SANTOS, p. 96)

A pesquisa realizada pela Associação de Magistrados Brasileiros – AMB, que busca formalizar um diagnóstico da justiça brasileira para além do seu perfil socioeconômico, buscando conhecer quem são os magistrados brasileiros, suas opiniões, pensamentos e qual a identidade da magistratura brasileira, infere que o perfil do magistrado brasileiro se encontra mais positivista que os últimos anos, além de mais velha e masculina. Ela revelou uma há queda no processo de feminização e de juvenilização da magistratura. (VIANNA; CARVALHO; BURGOS, 2018, p. 25)

No que diz respeito a cor dos magistrados, 80,6% dos juízes de primeiro grau se declaram brancos e 18,4% pretos e pardos. No segundo grau, o número de pessoas pretas e pardas é ainda menor, 85% dos magistrados se declaram brancos e 11,9% pretos e pardos. Entre os participantes da pesquisa, 66,9% são do sexo masculino e 33,1% do feminino. Entretanto, a pesquisa não faz um recorte sobre sexo e raça, não havendo um diagnóstico de quantas magistradas mulheres são negras. (VIANNA; CARVALHO; BURGOS, 2018, p. 313).

A pesquisa do Conselho Nacional de Justiça – CNJ publicada em 2018, no tocante ao critério gênero, aponta o judiciário como, majoritariamente, masculino. A justiça estadual conta com um número de 36% de mulheres, a federal com 32% e a trabalhista com 47%. O número de mulheres é ainda maior a medida que avançam-se os níveis da carreira. Elas representam 44% dos juízes substitutos; 39% dos juízes titulares e 23% dos desembargadores.

A pesquisa também demonstra que a entrada de mulheres na profissão teve uma crescente até o ano de 2010 e passa por uma queda desde 2011. A pesquisa demonstra uma desigualdade ainda maior no critério racial. 80,3% dos magistrados se declaram brancos e 18,1%, negros (abrangendo 16,5% de pardos e 1,6% de pretos). Apenas 11 se declararam

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13 indígenas. A presença de mulheres negras é ainda menor do que a de homens negros. Entre as mulheres magistradas 81% se declaram brancas; 16% pardas e 1% pretas. (PEREIRA; OLIVEIRA, 2018, p. 214/215)

Vê-se que apesar do seu protagonismo e sua importância na solução de conflitos sociais, a magistratura não abrange uma diversidade de gênero e raça, e em consequência disto, ela não reflete, simbolicamente, o pluralismo social necessário na pacificação dos conflitos. A magistratura brasileira possuí um caráter branco, elitista e masculino. O que reflete na manutenção das estruturas sociais, de exclusão das mulheres e dos negros, delimitada pelo capitalismo.

Feita esta breve contextualização da formação da magistratura brasileira, necessária para a do lugar das mulheres negras na magistratura, partiremos agora, para a contribuição de Nancy Fraser7 na discussão sobre reconhecimento e redistribuição, colaborações muito caras para o tipo de debate que nos propomos a estabelecer neste tralho.

Fraser contextualiza de que forma a chamada “luta por reconhecimento” se torna um paradigma de conflito no fim do século XX. Nos chamados “pós-socialistas” a identidade de grupo suplanta o interesse de classe como o meio principal da mobilização política. A dominação cultural suplanta a exploração como a injustiça fundamental. (FRASER, 2001 p. 31). Para a autora, os anos finais do século XX, são marcados pelo protagonismo dos movimentos identitários, em detrimento dos movimentos ligados à exploração de classe. O que é defendido por Fraser é: existe indispensabilidade tanto de redistribuição quanto de reconhecimento, recomendando assim a análise da relação entre as duas categorias, portanto somente integrando reconhecimento e redistribuição que chegaremos a um quadro conceitual adequado às demandas de nossa era.(FRASER, 2001 p. 232).

Para tal, faz-se necessário entender a quais injustiças a autora se refere. A primeira injustiça, é a econômica, estrutural na base político-econômica da sociedade. Como exemplo podemos citar a exploração do trabalho, no caso, a expropriação do fruto do trabalho em função de outros, típico da exploração inerente ao modo de produção capitalista; a marginalização econômica – estar restrito a um tipo de trabalho indesejável e com má remuneração; e a privação, a não possibilidade de acessar um padrão de vida adequado em níveis materiais. (FRASER, 2001 p. 232)

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14 Ainda segundo Fraser, outra forma de injustiça é a cultural ou simbólica. Esta forma de injustiça se estabelece nos padrões sociais, tanto de representação quanto de comunicação e interpretação. Entre os exemplos pode-se citar a dominação cultural que inclui, entre outras características o desrespeito, a difamação ou desqualificação de forma sistemática nas representações culturais públicas estereotipadas e/ ou nas relações da vida cotidiana.

A partir das categorias de análise referidas anteriormente, pode-se inferir que as mulheres negras brasileiras, de uma forma geral, são atingidas simultaneamente pelas duas injustiças. A primeira, na esfera socioeconômica, pois estas estão na base na pirâmide social quando se trata renda, são também as que ocupam os cargos e postos de trabalhos mais indesejados. Em relação à injustiça simbólica, este grupo é, também, alvo de representações extremamente estereotipadas, vide o que Lélia Gonzalez tipificou como paradoxo da mulata X empregada doméstica.

A divisão racial contemporânea do trabalho remunerado faz parte do legado histórico do colonialismo e da escravidão, que elaborou categorizações raciais para justificar formas novas e brutais de apropriação e exploração, constituindo efetivamente os “negros” como uma casta econômico política. (FRASER, 2001 p. 235)

No reforço ao já dito previamente, a atual condição social e econômica das pessoas negras no Brasil, reflete um padrão que tem suas raízes na escravidão e no colonialismo, sendo assim, atualizados e aprofundados no modo de produção capitalista. Quando se trata das mulheres negras inseridas nessa categoria mais ampla, estas sofrem ainda, os efeitos do patriarcado e sexismo muito latentes na sociedade brasileira. Desta forma, como sofrem duas injustiças, este segmento da sociedade necessita de dois remédios diferentes: “Uma vez que as mulheres sofrem, no mínimo, de dois tipos de injustiça analiticamente distintos, elas necessariamente precisam, no mínimo, de dois tipos de remédio analiticamente distintos: redistribuição e reconhecimento” (FRASER, 2001, p.235).

A autora afirma que combinar redistribuição e reconhecimento para um mesmo grupo, pode, à primeira vista parecer contraditório, uma vez que os grupos que lutam por redistribuição, buscam com frequência abolir os arranjos econômicos que embasam as especificidades do grupo como, por exemplo, as reivindicações feministas que almejam abolir o gênero na divisão sexual do trabalho. Já os grupos que tem suas demandas pautadas no reconhecimento, com frequência buscam destacar a singularidade de algum grupo, para afirmar seu valor. Desta forma, tendem a estimular a diferenciação de grupo. (FRASER, 2001 p. 233).

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15 Como dito, por mais que um remédio esteja na contramão do outro, quando se trata de grupos dentro do que se considera o tipo ideal da classe trabalhadora explorada, necessita-se de remédios redistributivos, uma vez que encaram injustiças distributivas. Quando se trata de grupos que se aproximam do tipo ideal da sexualidade desprezada, depara-se com injustiças de discriminação negativa que necessitam de remédios reconhecitivos (FRASER, 2001 p. 233).

Coletividades bivalentes, sofrem ao mesmo tempo, de injustiças econômicas e simbólicas. Necessitam, assim, de forma simultânea, dos dois tipos de remédios, pois um ou outro aplicado de forma isolada não surtem o efeito necessário para uma mudança de paradigma. A autora ainda diz que:

Gênero e “raça” são paradigmas de coletividades bivalentes. Embora cada qual tenha peculiaridades não compartilhadas pela outra, ambas abarcam dimensões econômicas e dimensões culturais valorativas. Gênero e “raça”, portanto, implicam tanto redistribuição quanto reconhecimento. (FRASER, 2001 p. 233)

A raça também se aproxima da classe, pois é um princípio estruturante da economia política. Desta forma, a raça é um fator estrutural da divisão capitalista do trabalho. A raça é o fator determinante de quem exercerá as ocupações mais enfadonhas, menos desejáveis, sujas e domésticas8 e as ocupações dotadas de maior prestígio social, são ocupadas de forma desproporcional por indivíduos brancos.

Da mesma forma o gênero funciona como um fator estrutural em relação ao trabalho, uma vez que a divisão sexual do trabalho determina as tarefas a serem realizadas por homens e por mulheres dentro de uma sociedade patriarcal e capitalista. Além disso, determina quais serão ou não remuneradas e qual a diferença de remuneração entre elas. (FRASER, 2001)

Levando-se em consideração os aspectos mencionados, as mulheres negras, grupo que se constitui como cerne desse trabalho, necessita, de dois tipos de soluções diferentes. Os remédios transformativos, mais associados ao socialismo, teriam a finalidade de compensar a distribuição injusta, alterando a estrutura político-econômica. Reestruturando as relações de produção, esses remédios não somente alterariam a distribuição terminal das partes de consumo; mudariam também a divisão social do trabalho e, assim, as condições de existência de todos (FRASER, 2001 p. 238).

8 Optou-se por essa escolha de palavras por entendermos que em diferentes lugares do mundo, diferentes “raças” ocuparão esse papel.

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16 Por outro lado, os remédios afirmativos, mais alinhados com a questão do reconhecimento, historicamente, são associadas Estado de Bem Estar liberal. Ela proporciona uma espécie de compensação a má distribuição terminal, enquanto deixa intacta a maior parte da estrutura econômica subjacente. Assim, eles aumentariam a parte de consumo dos grupos economicamente desprivilegiados, sem reestruturar o sistema de produção. (FRASER, 2001 p. 237 e 238)

A necessidade das duas formas de solução estaria no fato de que, as soluções de cunho afirmativos atuariam a curto prazo, compensando os indivíduos vítimas de injustiça simbólica ou cultural, enquanto as de caráter transformativo operariam a longo prazo, abolindo as estruturas socioeconômicas, políticas e culturais que viabilizam, atualmente, as injustiças socioeconômicas.

Um exemplo do primeiro caso seria, por exemplo, as ações afirmativas no âmbito de gênero ou raça na política ou nas universidades públicas que têm, a curto prazo a função de inserir mais pessoas destes grupos em determinados lugares. E um exemplo de ações, no âmbito da transformação, seria a completa mudança na estrutura econômica, político, social e cultural a ponto de as ações afirmativas de discriminação positiva serem completamente dispensáveis.

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

As categorias gênero e divisão sexual do trabalho, (SAFFIOTI, 1976; SAFFIOTI,

1987; HIRATA; KERGOAT, 2003; CARNEIRO 2019, DAVIS 2016 e GONZALES, 1984)

também os estudos sobre o negro no cenário pós abolição (IANNI, 1966; ORTIZ, 2006 e FERNANDES, 2009) revelam que as mulheres negras enfrentam inúmeros percalços para a formação e ingresso em uma carreira com alto status social e prestígio como a magistratura. Ademais, estudos sobre a teoria do reconhecimento (FRASER, 2001), permitem alinhar o reconhecimento da existência do problema; diagnosticar suas especificidades e elencar propostas consideradas eficientes na busca pela solução.

Os longos mais de trezentos anos de escravidão experienciados pelo Brasil antes deste se constituir enquanto República, deixaram profundas marcas na estrutura da nossa sociedade em diversos âmbitos: político, social, econômico e cultural. A abolição da escravatura não se traduziu numa emancipação efetiva dos negros, tampouco, suscitou por parte do Estado, Igreja ou outra instituição qualquer iniciativa a fim de proporcionar alguma

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17 espécie de indenização, reparação ou, ainda, condições igualitárias de competir por postos de trabalho numa sociedade de classes, no incipiente modo de produção capitalista brasileiro.

A questão a se considerar é do trabalho no tocante ao gênero e raça e a mulher negra é a primeira categoria de mulher a trabalhar fora do lar. Enquanto mulheres brancas lutavam para exercer a função extra lar, a mulher negra sempre o fez, em condições de igualdade em relação ao homem.

Após a exposição, depreende-se de que ausência de mulheres negras na magistratura brasileira é explicada através de uma série de fatores e acontecimentos históricos que acabaram por condicionar esse segmento da sociedade a uma marginalização socioeconômica atuante como fator preponderante na exclusão destas mulheres de cargo destaque e prestígio social. Marginalização, esta, presente em todos os âmbitos ao longo da vida de uma mulher negra de forma sistemática e contínua.

Outrossim, o capitalismo é responsável por aprofundar estas disparidades, sendo inerente a este modo de produção, uma parcela considerável dos indivíduos vulnerável social e economicamente, a fim de que funcionem como uma horda de reserva de mão de obra. Essas desigualdades intrínsecas ao capitalismo e só se enxerga possibilidade de um fim das mesmas, ao abolir de vez as estruturas que o sustentam. As soluções para as injustiças sofridas pelo grupo que se constitui como alvo desta pesquisa a longo prazo, indicam a necessidade do fim desse modo de produção e da organização social que ele engendra.

5. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS.

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CARNEIRO, Sueli. Enegrecer o feminismo: a situação da mulher negra na América Latina a partir de uma perspectiva de gênero. In: Pensamento Feminista: conceitos fundamentais. Rio de Janeiro: Bazar boi tempo. 2019.

DAVIS, Angela. Mulheres, raça e classe. São Paulo: Boitempo, 2016

DIEESE. A Situação do trabalho no Brasil na primeira década dos anos 2000./ Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos. -- São Paulo: DIEESE, 2012.

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FERNANDES, Florestan. A integração do negro na sociedade de classes. 3 Ed. São Paulo: Ática, 1978;

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GRELLET, Fábio. Negros são 75% dos mortos pela polícia no Brasil. São Paulo, 15 de jul. 2015. Disponível em <https://noticias.uol.com.br/ultimas-noticias/agencia-estado/2020/07/15/negros-sao-75-dos-mortos-pela-policia-no-brasil-aponta-relatorio.htm>

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NASCIMENTO, Beatriz (2019). A mulher negra e o mercado de trabalho. En: Pensamento Feminista Brasileiro: Formação e contexto, p. 259-265. Rio de Janeiro: Bazar boi tempo.

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19 PERROT, Michelle. O que é um trabalho de mulher?. In: As mulheres ou os silêncios da história. SP: Edusc, 2005. Petrópolis: Vozes.

PINHO, Leda de Oliveira. Igualdade de gênero e poder: uma análise sob a perspectiva da representatividade da mulher na magistratura. In: PIMENTA, Clara Mota et al (Orgs.). Magistratura e equidade: estudos sobre gênero e raça no poder judiciário. Belo Horizonte: D‟Plácido, 2018

Saffioti, Heleieth (1976): A Mulher na Sociedade de Classes: mito e realidade.

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