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Axós e Ilequês

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Academic year: 2021

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UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO

FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS DEPARTAMENTO DE SOCIOLOGIA

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO SOCIOLOGIA

AXÓS E ILEQUÊS

RITO, MITO E A ESTÉTICA DO CANDOMBLÉ

Patrícia Ricardo de Souza

Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Sociologia, do Departamento de Sociologia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, para obtenção do título de Doutor em Sociologia. Orientador: Prof. Dr. J. Reginaldo Prandi.

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Resumo

O candomblé é uma religião em que a experiência visual é muito valorizada. Essa experiência ganha mais amplitude e força durante as festas públicas, ocasiões em que a religião é celebrada. Nesses momentos, de maneira muito especial, e também no dia-a-dia, a dimensão estética é um aspecto central. A beleza nessa religião é uma intenção e uma busca permanente. É com beleza que se agradam os orixás, e agradá-los é dever religioso. A beleza, no entanto, não é um fim em si: ela está sempre ligada ao sentido. Este trabalho trata da dimensão estética do candomblé em seu aspecto mais visível e plástico, e dos sentidos que essa dimensão revela.

Palavras-chave: candomblé, religiões afro-brasileiras, estética, mito, rito.

Abstract

Candomblé is a religion in which the visual experience is very intense. This experience is much deeper and stronger during the public festivals when the religion is celebrated. In these moments, in a very special way, and also daily, the esthetic dimension is a central aspect. The beauty in this religion is a purpose and an permanent search. By means of beauty people please the orishas and to do that is a religious obligation. The beauty, meanwhile, is not an itself intention it's always attended with the signification. This work is about the candomblé's esthetic dimension in it's much manifested and plastic face and about the significations that this dimension brings out.

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Axó, do iorubá aso: roupa, vestuário, paramento.

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Sumário

Agradecimentos... 6

Introdução... 8

1. Ilequês: os colares rituais ... 12

1.1. Os colares fora do contexto ritual ...13

1.2. Os colares na religião ...14

1.2.1. Os colares na umbanda ...14

1.1.2. Os colares no candomblé ...16

1.1.3. Os colares no tambor-de-mina ...40

2. Axós: trajes dos adeptos... 47

2.1. O traje do dia-a-dia...50

2.2. O traje de festa...62

2.2.1. O traje de baiana ...71

2.2.2. A baiana do candomblé...76

3. Axó-orixá: roupas e adereços dos deuses... 89

3.1. Orixá odara ...89

3.2. Trajes e ferramentas dos orixás...95

4. Fazendo axós: costura e nós ... 127

4.1. Os criadores dos trajes...127

4.2. As zeladoras dos axós...132

5. Enfeitando os espaços: o barracão e os laços... 136

5.1. O templo e as marcas da autoridade...136

5.2. Reafirmando as origens...142

Conclusão ... 145

Caderno de imagens ... 151

Índice e créditos das fotos ... 168

Glossário... 173

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AGRADECIMENTOS

Agradeço ao CNPq pela bolsa que financiou parte dessa pesquisa.

A Reginaldo Prandi, meu orientador, por todos esses anos de trabalho, pela generosidade intelectual, pela confiança depositada, pela amizade e alegria, pela minha descoberta do mundo acadêmico.

Aos professores e amigos Teresinha Bernardo e Armando Vallado pelas observações e sugestões importantes em meu exame de qualificação.

À minha família, em especial a meus pais Julia e Aníbal, sem quem absolutamente nada teria sido possível. A meu irmão André, interlocutor de todas as horas, parceiro na jornada acadêmica, pelo incentivo e rigor intelectual de sempre.

A todo o povo-de-santo de diversos lugares, aos veneráveis pais e mães-de-santo do candomblé de São Paulo, que sempre me receberam tão bem em suas casas. Em especial a Pai Carlito de Oxumarê, Pai Carlinhos de Oxum e Mãe Carmem de Oxum. A Pai Pércio de Xangô, Pai Francelino de Xapanã e Mãe Neide de Obaluaê, cujos terreiros aparecem nas imagens que acompanham este trabalho.

Agradeço de modo especial ao Pai Armando Akintundê de Ogum, babalorixá da Casa das Águas, e aos seus filhos-de-santo pela paciência com minhas infindáveis questões, fotos e observações, mas sobretudo pela convivência e oportunidade de aprender com eles. Dívidas que nunca poderei pagar.

Ao Ebômi Jurandir Cseny pelo incentivo e por ceder imagens. A Carlos Globo, com quem aprendi a fazer fotos digitais, e que esteve comigo em inúmeras festas, incentivando meu trabalho e produzindo algumas das imagens aqui presentes.

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Aos meus amigos queridos que colaboraram, das mais diversas maneiras, para que este trabalho chegasse a termo: Alessandra, Rosangela, Cristina, Nia, Júnior, Denise, Rubens e tantos outros. Grata pelo carinho e apoio.

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Introdução

O candomblé é uma religião em que se celebra por meio da festa dançante (Amaral, 1992; 2002). É na festa com música, dança e comida que os orixás vêm à Terra conviver com seus filhos humanos, reabrindo as portas de comunicação entre o mundo sagrado em que vivem os deuses e espíritos e o mundo dos homens. Diz o mito que um dia a fronteira entre esses mundos foi fechada e só é reaberta por curtos períodos, exatamente durante as celebrações religiosas. E isso porque os deuses gostam de conviver com os humanos e participar de sua festa. Manifestados no corpo dos sacerdotes em transe, eles se confraternizam com os mortais, vestem suas roupas especiais e dançam coreografias que relembram aventuras narradas por seus mitos.

A festa é o momento em que a experiência visual do candomblé é mais intensa, em que sua dimensão estética se revela com mais força e maior amplitude. Beleza para ser vista e gozada, tanto pelos que são da religião como pelos demais, pelos olhares de fora, olhares dos que não são adeptos mas comparecem aos terreiros para fruir de sua beleza, para apreciar o que também pode ser tido como um espetáculo (cf. Santos: 2005). Beleza é fundamental na religião dos orixás. É uma busca incessante, uma intenção que está marcada no mito e que perpassa e estrutura o ritos.

"A arte não é apenas ornamento exterior com que o culto se revestiria para dissimular o que pode ter de muito austero e de muito rude; mas, por si mesmo, o culto tem algo de estético" (Durkheim, 1989: 455).

O culto, o rito do candomblé, é carregado de uma beleza proposital e necessária. Os deuses se agradam do que é bonito, e agradar os orixás é dever religioso. Mas, aqui a beleza não é um fim em si mesmo. Ela tem necessariamente uma finalidade e um sentido que se relaciona seja aos orixás e seus mitos, seja à identidade, à hierarquia ou à organização interna

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É do aspecto estético, em sua manifestação mais aparente, e de seus sentidos, que o presente trabalho trata. Optei por fazer um recorte e me ater à manifestação estética em sua dimensão plástica, material, visível, e ao alcance de todos os olhares. Isso exclui dimensões estéticas importantes como a dança, que foi estudada por Rosamaria Susanna Barbàra (2001), e a música, um tema que vem sendo trabalhado por Angela Lühning (1990). Também não estão aqui tratados os objetos mais estreitamente ligados ao cerimonial mantido em espaços secretos do terreiro, aos quais somente iniciados têm acesso, ou seja, os altares e assentamentos das divindades.

No primeiro capítulo trato do elemento estético mais visível, o mais portátil deles, que são os colares de contas, os ilequês. Abordo os colares fora e dentro do contexto ritual, procurando os sentidos que eles revelam em termos de identidade e hierarquia no grupo religioso, além do aspecto propriamente mágico.

No segundo capítulo abordo os trajes dos adeptos tanto no cotidiano da religião quanto na festa, inclusive jóias e outros elementos que compõem esses trajes. Analiso seus sentidos, plurais, também no caso do traje de baiana e seus múltiplos usos, religiosos ou profanos.

No terceiro capítulo trato dos protagonistas desse espetáculo, os orixás. Abordo as relações e o diálogo entre a estética do candomblé e o carnaval. Relaciono um traje de cada orixá especificamente e valho-me de um mito de cada um a fim de mostrar a relação entre a estética e a mitologia.

No quarto capítulo cuido da confecção e preparo das roupas e de seus executores. No quinto, e último capítulo, detenho-me em outros elementos, como o espaço físico do terreiro e sua decoração onde a religião acontece como expressão estética, o que inclui até mesmo as comidas sagradas. O objetivo principal é entender o sentido do uso da beleza e sua manifestação como expressão de religiosidade.

A pesquisa foi realizada de modo mais sistemático entre 2001 e 2006, mas desde 1996 mantive contato com terreiros de candomblé na condição de bolsista de iniciação científica orientada pelo Prof. Reginaldo Prandi, trabalhando no projeto "Os afro-brasileiros", financiado pelo CNPq.

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Ao longo de todo esse tempo participei de inúmeras festas e rituais, fazendo observação sistemática, entrevistas e registro fotográfico. A observação sistemática realizada em municípios da Grande São Paulo foi complementada com visitas a outros estados.

No Rio de Janeiro visitei uma exposição de colares de candomblé realizada na galeria Mestre Vitalino e entrevistei o curador da exposição Prof. Roberto Conduru. Na mesma ocasião estive no Mercado de Madureira, um local de grande concentração de lojas de artigos para o candomblé.

Em Salvador visitei os terreiros mais antigos, que são em grande medida a origem do candomblé de São Paulo. Também fui a museus, feiras e lojas de artigos religiosos, e realizei entrevistas com adeptos, não adeptos e turistas que vão a Salvador também com o objetivo de conhecer o candomblé.

Empreendi também visitas a diversas lojas de artigos religiosos em São Paulo e Grande São Paulo, por vezes acompanhando as filhas-de-santo em suas intermináveis buscas por belos tecidos, rendas, fitas, bordados, contas, canutilhos, pedrarias, firmas e tudo o mais que a criatividade e a imaginação permitem usar para a confecção de trajes dos filhos-de-santo e dos deuses.

Realizei nesses lugares entrevistas abertas com pais e mães-de-santo, adeptos de todas as categorias, pessoas que simplesmente simpatizam com a religião e a conhecem muito ou quase nada. Entrevistei também pessoas, religiosas e não religiosas, envolvidas na criação e confecção e venda dos trajes e adereços dos adeptos e dos orixás.

Durante a pesquisa de campo, fui a exposições, espetáculos de dança, performances, festas em escolas de samba, congressos religiosos, cerimônias ecumênicas e eventos relacionados ao universo do candomblé e seus orixás. Tudo isso me permitiu conviver com diversos olhares e me ajudou na percepção dos sentidos da dimensão estética do candomblé e no amadurecimento de muitas das idéias que apresento a seguir.

As religiões afro-brasileiras apresentam-se em variadas denominações, incluindo o candomblé, o tambor-de-mina, o batuque, a umbanda e outras menos conhecidas. Cada modalidade se apresenta estruturada em diferentes ritos ou nações, dependendo da origem étnica predominante em sua formação. O centro da presente pesquisa é o candomblé de nação queto, uma das variantes originárias das tradições predominantemente iorubás. Essa

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apresentado como fonte de influência para as demais. Além disso, está muito presente no processo de expansão do candomblé nordestino em direção ao Sudeste, e conta com uma produção etnográfica ampla, permitindo referências cruzadas com temas que lançam luz sobre a questão da estética. É o caso por exemplo, da mitologia dos orixás.

O estudo é sobre o candomblé queto, mas lancei mão de informações sobre outras religiões afro-brasileiras com o propósito de buscar generalizações e apontar para especificidades que reforçam a idéia básica desse trabalho, a de que, beleza e ostentação estão no cerne do culto aos deuses africanos. Odara, palavra de origem iorubá, que significa ao mesmo tempo bonito e bom, é um emblema.

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1.

ILEQUÊS: OS COLARES RITUAIS

Os colares rituais usados pelos adeptos das religiões afro-brasileiras são, sem dúvida, um sinal diacrítico importante da pertença a essas religiões. Trata-se mesmo de um elemento decisivo e constantemente presente e isso se relaciona igualmente ao fato de que na cultura brasileira os colares de contas estão definitivamente associados a essas religiões.

A associação dos colares rituais às religiões afro-brasileiras também se deve ao fato de que os colares integravam, e ainda integram, as diversas culturas africanas que foram trazidas ao novo continente, na África, entretanto, eles eram importantes na distinção não de grupos religiosos, mas das diversas etnias.

No segmento religioso afro-brasileiro, é especificamente o candomblé o grande responsável pela associação entre essas religiões e os colares de contas tendo em vista a visibilidade que essa religião alcançou. Os colares fazem parte, inclusive, dos estereótipos que a televisão e outros meios de comunicação incansavelmente divulgam.

Para além do âmbito do candomblé e das demais religiões afro-brasileiras os colares

de contas são presença marcante no cotidiano brasileiro de um modo geral, não ficando

restritos ao âmbito religioso.

No candomblé, o colar é chamados genericamente de fio de contas ou de ilequê, termo de origem iorubá. Alguns tipos, com forma, material usado e destinação ritual próprios, recebem nomes específicos como brajá, quelê e laguidibá. Na umbanda os colares são chamados de guias, e no tambor-de-mina, de rosários.

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1.1. Os colares fora do contexto ritual

Conforme diz Solange Godoy (2006: 83):

"Feito dos mais variados materiais como sementes, conchas, coral, pedras (preciosas ou não), vidro, pérolas ou metais, o colar de contas existiu desde sempre".

Nas religiões afro-brasileiras, os colares de contas foram observados desde os primeiros tempos da religião no país. Usados inicialmente nas comunidades de culto, acabaram por extravasar os muros dos templos, de tal forma que os colares usados nos ritos, no cotidiano dos terreiros e em cerimônias religiosas em lugares públicos, são também freqüentemente vistos fora do contexto ritual.

Por exemplo, eles podem ser observados adornando o pescoço das típicas baianas de acarajé, que vendem seus bolinhos de feijão fradinho fritos em azeite de dendê por toda parte: nas ruas das capitais do Nordeste, como também de grandes cidades do Sul e do Sudeste. Onde quer que estejam, as baianas de acarajé são vistas sempre portando seus muitos colares multicoloridos. Parece ser essa marca que lhes dá legitimidade.

Trata-se de algo muito interessante porque, obviamente, nem todas as baianas de acarajé espalhadas pelo Brasil são baianas da Bahia, nem tampouco são todas elas adeptas do candomblé. Mas é de fato o traje que necessariamente inclui os colares que compõe esse personagem amplamente conhecido, de presença obrigatória até mesmo nos desfiles de escolas de samba, em que a ala das baianas é um quesito obrigatório embora não conte pontos no campeonato dos desfiles. Carmem Miranda levou a baiana e seus colares para as telas de Hollywood e "tornou a baiana internacional" como dizia o samba-enredo da escola carioca Império Serrano em 1972.

O traje da baiana, que vemos hoje é, no que diz respeito à forma, praticamente igual ao que as escravas vestiam em meados do século XIX, especialmente as escravas de ganho que iam para as ruas vender quitutes em seus tabuleiros. Os tempos são outros mas o traje permaneceu, inclusive no candomblé.

Um momento importante em que os colares aparecem com força na vida fora dos muros do terreiro é no carnaval, e para ficar num pequeno exemplo basta citar o famoso bloco afro Ilê Aiyê e o afoxé Filhos de Gandhy, ambos soteropolitanos. No Ilê, os colares não são

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bloco (verde, vermelho, amarelo e preto). Já no Filhos de Gandhy, os colares de contas branco e azul intercaladas são parte constituinte da indumentária do afoxé.

Carnaval e venda de acarajé são contextos profanos e o uso dos colares rituais não tem aí necessariamente conotação religiosa ou mágica, o que é diferente do uso nos contextos litúrgicos. Fora do contexto ritual, os colares em geral embora não tenham nenhuma dimensão religiosa ou mágica, podem ser usados como elementos mágicos, como ocorre no uso nos espelhos retrovisores de automóveis. Das mais diversas cores, arranjos, tamanhos e procedências, sua presença é bastante difundida e não se restringe aos veículos cujos proprietários são adeptos das religiões afro-brasileiras. Aqui o uso do colar tem a propriedade de conceder proteção, e não é por outro motivo, aliás, que católicos muitas vezes também penduram terços nos espelhos de seus automóveis.

Em que pese o fato de que essa é uma prática corrente entre os fiéis das religiões afro-brasileiras, é possível afirmar que esse uso do colar é uma prática mais umbandista.

1.2. Os colares na religião

Qualquer que seja a religião afro-brasileira, o uso de colares rituais — os fios de contas ou guias — é emblemático. Mudam as formas, as cores e mesmo os significados, mas o fio sempre pode ser visto no pescoço dos devotos. Embora o presente trabalho trate especificamente do candomblé de nação queto, é interessante uma apresentação do fio de contas também em outras modalidades religiosas afro-brasileiras.

1.2.1. Os colares na umbanda

A umbanda é a religião afro-brasileira mais difundida, ainda que esteja perdendo espaço (Prandi, 2003). Seus adeptos declarados representam 0,26% da população, enquanto os do candomblé somam 0,08% (IBGE 2000). Esse é, por si, um motivo para explicar o fato de que a maioria dos colares que encontramos em automóveis seja de adeptos dessa religião, mas

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há ao lado disso uma razão que diz respeito à própria constituição da umbanda e do candomblé.

Na umbanda os ritos são muito importantes, mas menos complexos do que no candomblé, como também seus repertórios simbólico e mítico são menos elaborados, a despeito da enorme versatilidade e, portanto, capacidade de transformação, adaptação e inclusão que essa religião tem. Disso decorre que a umbanda é, em comparação ao candomblé, visivelmente mais simples com relação aos elementos utilizados em seus ritos, altares, templos e, igualmente, na indumentária das divindades e adeptos. O que não quer dizer que aí não se vá encontrar rituais e templos grandiosos, altares muito elaborados e belas roupas.

Nesse sentido, exatamente porque não há uma diversidade tão grande de elementos sagrados a serem manipulados quanto no candomblé é que os colares, ou as guias como são chamados nessa religião, ocupam uma posição de evidência como elemento portador de poder mágico, do qual são revestidos pelo rito. Vejamos o que diz uma sacerdotisa de umbanda:

"A gente acredita que a guia funciona como um escudo de proteção para o corpo do médium. Então se vai cair alguma carga, alguma demanda, alguma energia negativa, as guias estão ali para... como um espelho: para segurar a carga. Às vezes estoura o fio no meio do trabalho, alguma coisa, como pra refletir de volta também. Então elas funcionam assim" (Mãe Márcia de Iemanjá).

Esse forte caráter mágico dos colares na umbanda se evidencia também pelo fato de que eles não podem ser sequer tocados por outras pessoas, estranhas ou não à religião. Algo que, em geral, não ocorre no candomblé.

É, ao meu ver, dessa concepção do colar como um elemento mágico, um amuleto mesmo, que advém seu uso tão recorrente nos retrovisores dos automóveis. A fala de uma mãe-de-santo ilustra essa noção entre os umbandistas:

"Eu acho que quase todo mundo que tem carro e é umbandista tem uma guia pendurada no pára-brisa. É proteção pro carro, pra evitar que quebre o carro, que tenha batida, que seja alvo de olho-gordo, de inveja... pra proteção mesmo" (Mãe Márcia de Iemanjá).

Aqui a precisa definição de Pierucci esclarece os termos:

"Chama-se talismã o objeto que serve para atrair a boa sorte. (...) Chama-se amuleto aquele objeto cuja finalidade é proteger, afastar a infelicidade, repelir a urucubaca, o pé-frio, a inveja o mau-olhado. Confeccionado ou preparado magicamente com o fim

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de proteger seu portador das influências malignas, um amuleto funciona como uma espécie de escudo, um 'preservativo mágico'" (2001: 19, 20. Grifos do autor).

É certo que o colar ritual umbandista não é confeccionado e nem concebido especificamente como um amuleto, mas essa definição se dá através da percepção dos fiéis e também pelo uso que fazem do objeto. Um uso bastante difundido, inclusive, porque não é necessário que a pessoa seja adepta da religião para ganhar uma guia, ela pode ser simplesmente alguém que, mesmo tendo outra religião, busca na umbanda e seus guias alívio para suas aflições.

Tudo isso reitera o primeiríssimo sentido dos colares nas religiões afro-brasileiras que é o de dar proteção mágica. E esse sentido não se restringe à umbanda, pois igualmente os adeptos do candomblé usam os colares em seus automóveis pela mesma razão, mas aí ele carrega também, para além do caráter de proteção, toda uma ampla gama de significados.

1.1.2. Os colares no candomblé

Não se pode perder de vista que os colares, ou os ilequês como são chamados no candomblé, cumprem também o papel fundamental de enfeitar, o que certamente não é algo secundário porque adornar, tornar (mais) bonito é por sinal uma busca constante no candomblé. De todo modo, a principal finalidade do ilequê é dizer qual é o orixá da pessoa, é dar identidade. Além do mais eles se destinam também a proteger quem os carrega. Magia e estética andam de mãos dadas nessa religião.

Há no candomblé uma infinidade de tipos de colares. Esses são em geral compridos, até a cintura aproximadamente, e são sempre arrematados por um tipo de conta maior, arredondada ou cilíndrica que recebe o nome de firma. Nas palavras de Raul Lody, "a firma tem função de firmar o fio de contas – arremate de uso mágico religioso. É uma espécie de conclusão do discurso simbólico do próprio fio de contas" (Lody, 2003: 242).

O acabamento do ilequê é uma tarefa delicada porque requer conhecimento religioso para se saber qual firma usar, e para tanto se leva em conta não somente a que orixá pertence aquele colar específico, bem como a posição sacerdotal que aquele que usará o colar ocupa no grupo. Exige também certa técnica para que os fios não arrebentem, para que todo o trabalho

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perfeito. O povo-de-santo costuma reparar muito nos detalhes dos ilequês e em seu acabamento. Ouvi mais de uma vez adeptos do candomblé dizendo que se deveria ter paciência para fazer um bom acabamento nos colares para que não ficassem "cheios de pontas

soltas aparecendo, como na casa de fulano".

Os materiais empregados na confecção dos ilequês são muitos e variam de acordo com o orixá, a categoria sacerdotal a que pertence o adepto e seu poder aquisitivo, o gosto de quem elabora o colar, e também, em grande medida, das preferências do pai ou mãe-de-santo.

É preciso sempre ter em mente que os pais e mães, babalorixás e ialorixás, são as autoridades máximas dentro do terreiro a qual todos devem obediência e por mais que se conquiste, com o passar do tempo, uma certa liberdade de criação tudo passa necessariamente pelo crivo deles. Em função disso pode-se dizer que há um certo estilo em cada terreiro, que é determinado pelo sumo sacerdote, e seguido pela comunidade, que na prática marca diferenças estéticas entre as casas, que são na verdade diferenças superficiais, uma vez que estruturalmente não se pode inovar tanto.

Mas é igualmente importante notar que, se perguntados acerca da razão de ser desse ou daquele jeito, em geral os sacerdotes recorrem às suas raízes, às suas casas mãe, como um modo de legitimar suas opções estéticas, e nunca dizem simplesmente que é assim porque assim eles o preferem. Como sempre se dá nessa religião, a legitimidade remonta aos mais velhos e à vontade dos orixás.

Há, entretanto, algumas noções e parâmetros que formam e informam, inspiram e delimitam toda a criação estética do candomblé e que aos poucos se pode perceber e pontuar. Dentre essas está a de que forma e significado caminham estritamente ligados.

No candomblé quase toda forma está, necessariamente remetida a um significado. Quase tudo que se vê, e que aos olhos menos atentos pode aparentar ser tão somente um enfeite — que como já foi dito também é muito importante — tem um significado, ainda que não possa ser imediatamente apreendido. Nada é por acaso ou por gosto. Em geral o que parece ter exclusivamente a função de enfeitar é portador de algum significado. No candomblé como nas culturas africanas, "a experiência estética não se esgota em si mesma, pois participa de um sistema em que cada objeto tem função e finalidade, com relação ao sagrado" (Montes, 1999).

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Identidade

Quando um potencial adepto se aproxima do candomblé, o primeiro passo é a consulta ao oráculo para se saber a qual orixá aquele indivíduo pertence, qual é sua origem mítica. Uma vez que se sabe qual é o deus particular daquela pessoa, ela receberá um colar que a identificará como filha do orixá, havendo inclusive uma cerimônia para sacralizar o ilequê, chamada lavagem de contas.

Isso reforça a idéia de que o colar pode ser tomado como o sinal diacrítico da pertença às religiões afro-brasileiras e ao candomblé especificamente. Nas trajetórias de inserção dos adeptos ele aparece como o primeiro elemento material sagrado com o qual se tem contato.

Há na bibliografia muitos registros da lavagem de contas, o que dá testemunho da importância desse adereço (Querino, 1938; Bastide, 1973; Lima, 1977; Verger, 1999). Trata-se esTrata-sencialmente de um rito relativamente simples, em que o colar é sacralizado por meio da lavagem em uma água em que diversas ervas pertencentes ao orixá do fiel, ao seu pai-de-santo e ao orixá patrono do terreiro, dentre outras, foram maceradas. A partir desse momento o colar não será mais um colar qualquer, mas um ilequê sagrado que de alguma forma, e ainda que tênue, liga esse indivíduo a seu deus pessoal e à comunidade do terreiro.

Nesse sentido, o ritual de lavagem das contas pode ser visto, como aponta Vivaldo da Costa Lima (1977), como um "rito integratório", uma vez que ele marca a inserção daquele aspirante, o abiã – que aliás quer dizer literalmente "aquele que vai nascer" — na comunidade, algo muito importante, pois como uma vez ouvi de um sacerdote, "quando um

abiã chega, enquanto ele não tem um fio de contas ele não se sente parte". É certo, no

entanto, que essa inserção somente se realizará plenamente em termos rituais quando esse indivíduo passar pelos ritos de iniciação, denominados "feitura-de-santo", o que pode ocorrer em pouco tempo, levar anos, ou até mesmo nunca chegar a acontecer.

Além do caráter integratório, a lavagem das contas constitui o que se pode chamar de o primeiro rito de marcação da identidade do abiã. É comum na sociabilidade do terreiro tentar adivinhar qual é o orixá da pessoa: os mais velhos são consultados, a pessoa é submetida a uma série de perguntas, seus modos são observados, mas a última palavra é dada através da consulta que o pai ou mãe-de-santo faz ao jogo de búzios.

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categorias pré-estabelecidas (Augras, 1983; Prandi, 1991; Birman, 1995; Segato, 1995; Amaral, 2002; Vallado, 2002).

Isso não significa de forma alguma, no entanto, que todos os que pertencem a uma mesma divindade serão iguais, muito pelo contrário, cada um é uma configuração particular em que outros elementos tomam parte, mas haverá sempre e indiscutivelmente elementos muito característicos referidos a cada orixá. Assim é muito comum ouvir num terreiro coisas do tipo "Ah, aquele é assim mesmo daqui posso ouvir seus passos, também, é de Ogum né?" ou ainda se alguém derruba panelas e faz um grande barulho: "Eh, lá vem Oiá derrubando

tudo!".

É através do ritual de lavagem das contas que o abiã travará uma primeira aproximação com a divindade de que sua essência se constitui. Por isso podemos entender a lavagem de contas como um ritual de marcação da identidade. Todo o longo processo iniciático levará a uma identificação cada vez mais forte e profunda do fiel com seu deus, com seu eu profundo, da qual a lavagem das contas constitui o primeiro passo, nas palavras de Armando Vallado:

"A iniciação ao orixá pode, com certeza, ser entendida como um processo social, controlado pelo grupo do terreiro, de enfatização e internalização de determinados padrões de comportamento, de modo a tornar a identidade do filho-de-santo com o orixá que é considerado seu pai ou sua mãe como uma ligação íntima e pessoal" (Vallado, 2002: 153).

Num mito sobre a invenção do candomblé, os colares aparecem como elemento importante da identificação dos fiéis com seus deuses, e o momento em que os recebem são marcos dessa ligação. Diz esse mito que, após a separação entre o Aiê, a Terra dos humanos, e o Orum o Céu dos orixás, Olorum, o Senhor do Céu, encarregou Oxum que gostava muito de vir à Terra brincar com as mulheres, de preparar os mortais para que recebessem em seus corpos os orixás, quando esses quiserem vir conviver novamente com os humanos.

"Oxum fez oferenda a Exu para propiciar sua delicada missão/ ... Veio ao Aiê juntou as mulheres à sua volta,/ banhou seus corpos com ervas preciosas,/ cortou seus cabelos, raspou suas cabeças/ pintou seus corpos./ ... Vestiu-as com belíssimos panos e fartos laços/ enfeitou-as com jóias e coroas./ ... O colo cobriu com voltas e voltas de coloridas contas/ e múltiplas fieiras de búzios, cerâmicas e corais" (Prandi, 2001: 527). Para que a ligação com o orixá se faça é preciso, nas palavras de Roger Bastide,

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"que exista no colar um certo poder de atração da força divina, uma simpatia preestabelecida; é preciso que as contas sejam um chamado, uma vontade de atração, sem o que a participação não poderá se estabelecer" (Bastide, 1973: 367).

Essa força de atração se concretiza por meio da manipulação mágica, a sacralização do colar, e igualmente pelo uso do material correto para cada deus em sua especificidade, uma vez que a cada orixá corresponde um tipo e cor de conta e, dependendo do orixá, da criatividade daquele que elabora o fio e do poder aquisitivo do filho-de-santo, ele poderá conter ainda outros materiais.

Tudo isso aponta para uma "propriedade", por assim dizer, do ilequê, que é a de constituir, e, ao mesmo tempo expressar, a identidade do adepto. Um filho de Ogum na nação queto, por exemplo, vai usar colares de contas na cor azul-escuro. Pelo colar será reconhecido como filho de Ogum, deus do ferro fundido, azul-escuro é a cor do minério de ferro, elemento do orixá. Sabe-se, aliás, que a malaquita tem de fato essa cor.

Uma passagem de Pierre Verger em um texto que trata da viagem que ele e Roger Bastide fizeram a África em 1958 traz o seguinte relato, que mostra com beleza e precisão o caráter de identidade e integração de que estão impregnados os colares de contas no candomblé:

"Pelo fato de sua consagração ao culto de Xangô, Bastide tinha recebido na Bahia um colar de pérolas de vidro vermelhas e brancas alternadas, cores simbólicas de seu deus. Esse colar era considerado por Bastide um 'passaporte' que o creditava a identificava como 'filho de Xangô' junto aos seus correligionários africanos. "Isso, mais do que sábios discursos, serviu efetivamente de laço entre ele e diversas sociedades (egbe) formadas pelas pessoas dedicadas a Xangô em diversas aldeias da África" (Verger, 2003:47).

Usar ilequês significa, de algum modo, por mais tênue que seja, fazer parte do grupo religioso e ter uma identidade mítica própria.

Certa vez, assisti a uma festa em que um pai-de-santo de outra casa estava sendo confirmado em um cargo importante que havia recebido naquele templo. Tratava-se de uma festa esplêndida como a ocasião demandava, e a certa altura Ogum o orixá dono da cabeça do babalorixá e patrono daquela casa, incorporado no sumo sacerdote, dançava em homenagem ao pai-de-santo que ora se confirmava como um importante oloiê (alguém que tem um título) quando tirou um dos colares que carregava e o deu de presente ao sacerdote. Ele agora entrara para aquela família.

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Receber um ilequê de presente é sinal de estima e reverência; é comum quando há uma iniciação, que aqueles que estão passando pelo rito confeccionem fios de seu orixá pessoal para presentear as pessoas que ajudaram em sua obrigação. Os colares de orixás menos comuns são os mais desejados e quem ganha um colar daquele que está sendo iniciado faz questão de mostrá-lo a todo o grupo. Trata-se de um gesto muito significativo, uma forma de agradecer, fazendo com que os presenteados participem do axé de seu próprio deus. Igualmente através do reconhecimento público, motiva toda a comunidade a perceber e valorizar o gesto daqueles que se colocaram a serviço.

Os colares que protegem, identificam e integram também indicam a que categoria sacerdotal cada um pertence. São emblemas de identidade e hierarquia.

Hierarquia

A hierarquia do candomblé, a divisão sacerdotal do trabalho, sua organização em cargos atribuídos individualmente para o exercício de funções rituais é bastante complexa (Lima, 1977, Dantas, 1988, Prandi, 1991). Convém retomar sucintamente esse assunto a fim de expor a relação entre a hierarquia religiosa e os colares rituais.

O candomblé se constitui em comunidades denominadas terreiros. Essas casas, por sua vez, se organizam de acordo com uma rígida hierarquia estruturada pelo tempo de iniciação e a categoria sacerdotal a que cada um pertence e a qual não se pode escolher nem tampouco mudar (Lima, 1977).

São duas as grandes categorias sacerdotais: a daqueles que manifestam os orixás em transe, os chamados rodantes, e aqueles que não entram em transe, os não-rodantes. Os rodantes se dividem em iaôs (filhos-de-santo) e ebômis (irmãos mais velhos). Os não-rodantes em ogãs e equedes. Os diversos oloiês, literalmente os "donos dos cargos", são homens e mulheres que ocupam uma vasta gama de cargos rituais ou honoríficos. A cada categoria, no entanto, corresponderá um tipo de inserção na hierarquia da comunidade.

A hierarquia baseada na idade de iniciação é um princípio das sociedades africanas em que os mais velhos são profundamente respeitados por sua sabedoria. Nessas sociedades ágrafas são eles os depositários do conhecimento e a eles se deve reverência (Prandi, 2001b).

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Na religião dos orixás os "mais velhos no santo", chamados ebômis, são igualmente reverenciados. O que conta, para tanto, é o tempo de iniciação e o devido cumprimento das obrigações rituais. Assim, aquele que se aproxima da religião e ainda não é iniciado pertence à categoria dos abiãs. Esse nome traz à tona a percepção de que a iniciação representa um novo nascimento, o nascimento para uma nova vida (Bastide, 1961, Prandi, 1991, Eliade, 1999, Vallado, 2002).

Aqueles que já foram inciados são chamados iaôs e ocupam uma posição intermediária, se, por um lado, não são mais abiãs, por outro, ainda não cumpriram todas as suas obrigações rituais, e devem reverência a seus mais velhos.

O longo ciclo iniciático se completa após sete anos e o cumprimento das obrigações de um, três e por último a de sete anos, em que o iaô finalmente se torna um ebômi e atinge a senioridade sacerdotal na hierarquia do terreiro. Essa passagem garante-lhe uma série de prerrogativas, e é expressa simbólica e esteticamente de muitas maneiras.

A categoria sacerdotal dos não-rodantes tem um modo diverso de inserção. Os ogãs e

equedes são escolhidos, o termo usado no candomblé é suspensos, pelos orixás em transe e

enquanto não se iniciam são igualmente abiãs, a despeito de estarem aprendendo com aqueles que exercem as mesmas funções o seu futuro papel no rito. Quando se iniciam são incluídos imediatamente na categoria de ebômis, mas, diferente dos ebômis rodantes, esses, com algumas famosas exceções, nunca poderão abrir seus próprios terreiros e, embora gozem de muito prestígio na comunidade, assumindo inclusive por vezes uma postura arrogante, estarão sempre submissos ao pai ou mãe-de-santo.

Essa hierarquia complexa e rígida está em constante movimento em função das diversas obrigações que sempre ocorrem e que acarretam mudanças na distribuição do poder. A possibilidade de ascensão no interior do grupo religioso é algo significativo nessa que é, como já foi dito, uma "religião rica de adeptos pobres" que em sua maioria encontram nela um espaço de realização conquistado a duras penas, tendo em vista que as obrigações são sempre caras e, para sua realização, impõem sacrifícios e privações ao fiel que não mede esforços para agradar aos deuses.

A hierarquia é o tempo todo permeada por tensões. Há no seu interior uma disputa de poder entre os filhos e nessa disputa cada detalhe pode ser motivo para que rivalidades e

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alianças sejam feitas e desfeitas. Nessa intricada rede, as expressões estéticas do poder sacerdotal ganham uma dimensão que não se pode supor num primeiro momento.

Uma vez vi um filho-de-santo, com aproximadamente dois anos de iniciado, todo enciumado de uma abiã da casa. Ela fora suspensa equede do orixá do pai-de-santo. Ao perceber que o colar da outra tinha como firma um pequeno coral, que é considerado um material nobre, ele disse em tom irônico: "Poderosa, hein, iaiá!"

A cada momento da trajetória religiosa corresponde um tipo de colar. Observando os adeptos em uma festa pode-se perceber claramente através dos tipos de ilequês que usam em que ponto da hierarquia estão situados; nesse contexto privilegiado "a soma das escolhas de cada membro da comunidade, segundo os limites do culto, resulta em uma curadoria coletiva da coleção de colares do terreiro" (Conduru, 2002).

Os abiãs são identificados por usarem poucos fios de uma única volta e sem nenhum enfeite. Comumente esses têm apenas o colar de contas de seu orixá principal, o branco de Oxalá, orixá da criação, às vezes também de seu orixá secundário, chamado adjuntó, o do orixá patrono daquela casa e mais algum que eventualmente lhe seja permitido.

Muito diferente são os iaôs, que carregam fios de várias voltas; em geral usam ilequês de muitas voltas de seu orixá principal, do secundário, adjuntó, de Oxalá, dos orixás de seu pai ou mãe de santo, e também ainda que apenas um fio simples, dos orixás de seus "irmãos de barco", aqueles com quem foi iniciado junto. Todos esses também sem nenhum enfeite. O número de "pernas", que é como se chama cada uma das voltas de um colar, vai depender do orixá em questão e quem determina isso é o pai ou mãe-de-santo, para tal decisão leva-se em conta o número do orixá no jogo de búzios.

Independentemente do número de pernas dos colares o iaô invariavelmente usa muitos fios o que provoca incômodo porque tantos colares juntos somam peso considerável e atrapalham durante a dança. Em algumas casas os iaôs costumam polvilhar talco nas firmas dos colares, a parte que fica em contato direto com a nuca, para tentar amenizar o desconforto causado pelo calor e o atrito dos ilequês com a pele. Obviamente ninguém gosta desse desconforto, mas os adeptos agem como se esse incômodo, esse sofrimento, fizessem parte da condição de iaô. Subjaz aqui a noção recorrente no candomblé de que "iaô tem que sofrer".

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com a mão, tem seu cabelo raspado e sua pele perfurada em diversos pontos. Além disso o iaô tem que andar de cabeça baixa, deitar-se no chão para saudar o pai ou a mãe-de-santo, e seguir uma etiqueta bastante rígida no que diz respeito ao trato como os iniciados a mais tempo.

Os adeptos costumam zelar bastante para que as regras que dizem respeito à hierarquia sacerdotal sejam estritamente cumpridas e estão sempre preocupados com isso. Conversas sobre o tema "quem toma benção de quem", para ficar em um pequeno exemplo, são constantes, além, é claro, das reprimendas àqueles que por alguma razão cometem qualquer deslize.

A importância de se viver cada fase da experiência iniciática é muito enfatizada pelo povo-de-santo, uma vez que aqui o aprendizado se dá por meio da observação e repetição. Nessa religião de tradição oral e segredo, a curiosidade não é bem vista e até mesmo uma pergunta simples pode causar problemas. Afirma-se o tempo todo que não há outro meio de se aprender e ser um bom filho-de-santo, "verdadeiro conhecedor das coisas do orixá" sem passar inclusive pelo relativo sofrimento que esse longo processo iniciático implica.

A valorização positiva do sofrimento, no entanto, é pontual, diz sempre respeito ao rito e não faz parte da visão de mundo do povo-de-santo. Para os adeptos do candomblé o sofrimento não é um valor, a idéia de ascese puritana é inconcebível assim como a negação do mundo como o lugar do pecado. Muito pelo contrário, o candomblé valoriza o mundo como espaço de realização e, como bem mostrou Rita Amaral, diferente das religiões cristãs, nega o pecado e vive o que ela chamou de "ética da felicidade urgente" (Amaral, 1992, 2002: 75).

As contas e outros materiais de que são feitos os colares não são baratos, ainda mais porque são grandes as quantidades usadas. Então muitas vezes o número de voltas dos ilequês também é determinado pelo poder aquisitivo do fiel, que nunca deixará de fazer enorme esforço para ter tudo que sua iniciação requerer ainda que para isso sejam necessários anos de economia e a ajuda de irmãos-de-santo e outros amigos e familiares. Quando ainda for necessário fazer um colar com menos voltas do que seria a princípio determinado, a decisão não é aleatória, procura-se sempre um submúltiplo do número do orixá. Por exemplo, se o número do orixá for doze, como é o caso de Xangô, na impossibilidade de se fazer um fio com doze voltas se fará um de seis, ou mesmo quatro.

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O Quadro 1 indica o número de voltas que um colar dever ter na nação queto de acordo com o orixá, e com a sua posição na constelação pessoal do indivíduo, ou seja, a de orixá principal ou adjuntó.

Quadro 1 – A quantidade de voltas dos colares

Orixá Número de voltas se é orixá principal

Número de voltas se é orixá secundário (juntó) Exu 14 7 Ogum 14 7 Oxóssi 9 6 Ossaim 9 7 Logum Edé 16 8 Omulu 11 7 Nana 9 6 Oxumarê 11 6 Eua 9 6 Xangô 12 6 Oiá 9 7 Oxum 8 5 Obá 9 6 Iemanjá 9 8 Oxaguiã 8 6 Oxalá 10 8 Segundo etnografia na Casa das Águas

Outras adaptações são feitas pelo mesmo motivo, para tanto se lança mão de muita criatividade e capricho, tomando o cuidado de nunca mudar o que é essencial na composição dos colares. Um exemplo desse tipo de adaptação que ocorre com freqüência é no caso de orixás que usam contas de mais de uma cor; as contas rajadas e bicolores são ainda mais caras do que as simples e nesse caso podem ser substituídas por contas simples, nas cores dos orixás, dispostas alternadamente. Assim se pode ver um fio do orixá Omulu cujas cores são

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pretas e brancas alternadas, sem que isso cause qualquer problema para o adepto, ou desperte a ira do deus.

Os iaôs também usam no pescoço um outro adereço, que não é exatamente um colar. Feito de palha-da-costa trançada e bordada com contas da cor de seu orixá principal, termina em uma espécie de vassoura chamado mocã (do iorubá, minha corda). O mocã é usado para puxar o iaô em transe e conduzi-lo. É uma peça de uso exclusivo do iaô. Ele a recebe em sua iniciação e a deixará de usar quando completar seu ciclo iniciático na obrigação de sete anos, simbolizando a liberdade de movimento do seu orixá. Segundo os sacerdotes entrevistados, o

mocã simboliza esse período de maior submissão do iaô tanto ao orixá, o iaô entra mais em

transe do que o ebômi, quanto aos mais velhos e, igualmente, ao pai ou mãe-de-santo.

Outro colar muito importante que marca a submissão e a relação profunda do iniciado com seu orixá é o chamado quelê. Trata-se de um colar disposto em formato de gargantilha, de contas que são sempre exclusivamente do orixá principal da pessoa, de várias voltas, truncado com firmas. Podem ainda ser de búzios, no caso de Oxumarê e Omulu, ou ferro para um Ogum específico, mas invariavelmente a prerrogativa da confecção é do sumo sacerdote do terreiro, que pode eventualmente ser ajudado por pessoas da alta hierarquia. É, dentre todos os ilequês, talvez aquele cuja sacralidade seja mais densa posto que nem mesmo aquele que o carrega deve tocá-lo com freqüência.

O quelê era originalmente na África um colar específico do orixá Xangô. No Brasil ganhou outra atribuição, talvez uma conseqüência de ser Xangô o orixá cultuado na cidade de Oió, região de onde saíram as fundadoras do candomblé no Brasil (Verger, 1981). Tanto é que esse é o orixá patrono do terreiro tido como o mais antigo do País, a Casa Branca do Engenho Velho, em Salvador.

O quelê é usado obrigatoriamente na feitura e também por ocasião das diversas obrigações pelas quais o adepto passa ao longo de sua trajetória, sempre marcando esses momentos de passagem em que esse está ligado de modo muito próximo a seu orixá. Tão importante é o quelê que ele só é usado nas obrigações em que se faz sacrifício de animais de quatro patas, as chamadas obrigações grandes.

Nos períodos de uso do quelê o iaô fica impedido de fazer inúmeras atividades sob pena de desagradar sua divindade, que pode se ressentir de algum ato em falso; além do que a

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toda a comunidade adverte o fiel. Exemplos de prescrição são a abstinência sexual, regime alimentar apropriado, obrigatoriedade de dormir em esteira, de vestir-se de branco cobrindo a cabeça, impedimento de se sentar em cadeira, e mesmo no ônibus, metrô e até no escritório etc. Uma restrição importantíssima é que durante o uso do quelê o orixá é mudo. O tempo de uso do quelê após a iniciação e as obrigações varia de acordo com a casa, com o orixá e com a categoria sacerdotal, podendo ir de uma semana a até três meses. O quelê é em muitas casas chamado de "gravata do orixá".

Ainda durante o período de uso do quelê, logo após a saída da iniciação, ocorre o ritual do panã em que "os iaôs executam simbolicamente todas as atividades da vida corrente" (Verger, 1999: 110), como que se reeducando para a regressar à vida secular.

Ao término do tempo de uso do quelê a retirada do colar é a ocasião em que o orixá manifestado vai dar o seu ilá, vai emitir pela primeira vez a sua saudação, o som pelo qual será reconhecido quando vier em terra na cabeça daquele adepto. Esse momento marca, como me afirmou um sacerdote "o fim do silêncio da criação da nova vida que agora se manifesta

publicamente, tal como o bebê que chora ao vir ao mundo".

Os ebômis que constituem a mais alta categoria sacerdotal, são os que possuem os colares mais elaborados do candomblé. De acordo com o princípio da antiguidade, que associa tempo a sabedoria, quem é mais velho tem mais conhecimento e portanto maior liberdade, seja dentro do espaço do terreiro em que pode transitar livremente por todos os quartos sagrados, seja no acesso aos ritos, como também liberdade criativa.

"O saber é ao mesmo tempo o segredo, a necessidade e a capacidade de materializar o conhecimento, transmutando mitos em ritos, práticas e objetos. Quanto mais conhecimento, tanto mais ritos, práticas e objetos" (Lemos, 2002).

Embora tenham, ou devam ter, relativo domínio e conhecimento ritual os ebômis nunca estão livres de cometerem erros e serem censurados, freqüentemente em público. Uma vez ouvi um pai-de-santo conversando com seus filhos acerca das falhas que ele tinha notado na última festa dizer que havia ebômis que sofriam da "síndrome do fio truncado". "Vocês

sabem o que é isso? Funciona assim: um filho vira ebômi, ganha um fio truncado e sai por aí achando que pode fazer o que lhe dá na telha! Não é bem assim, não..." O fato desse

sacerdote se referir a essa relativa autonomia da categoria dos ebômis como a "síndrome do fio truncado" reitera o quão emblemáticos são esses colares.

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Os ilequês muito elaborados e enfeitados dos ebômis utilizam uma ampla gama de materiais, dentre esses o principal são as miçangas que podem ser de vidro translúcido ou leitoso. A diversidade de materiais, aliás, é algo que vem aumentando com a expansão da indústria produtora de peças para bijuteria, e o aumento das importações nesse segmento. Segundo me contou certa vez Reginaldo Prandi, na impossibilidade de adquirir miçangas, os adeptos da santería em Cuba, num período de importações muito restringidas pelo governo, chegaram a usar a cobertura de plástico colorido dos fios de telefone cortada em pedacinhos para confeccionar os fios de seus orixás.

Quanto mais peças importadas das diversas origens melhor. A criatividade sempre acrescenta novas possibilidades, e vem somar-se ao desejo de ser original e criativo de tal forma, que atualmente é comum ver fios de ebômis intercalados com corações, peixinhos, raios e muitos outros elementos que possam relacionar-se ao orixá a que o determinado colar pertence. Coisa que, como se pode observar nos registros mais antigos, não era comum.

Mais comum e recorrente é, e foi desde muito tempo, o uso de materiais importados da África, como os corais, o monjolô, o segui, que é um tipo de canutilho azul utilizado para o orixá Oxaguiã; o laguidibá, que são lâminas de chifre de búfalo, usado para Omulu; o chamado laguidibá branco, que são lâminas de osso também utilizadas para Oxalá e Oxaguiã; búzios, além de marfim, âmbar, ferro (para Ogum), e outros tantos tipos de pedras e materiais, como dente de animais encastoado, casca de coco, pequenas peças em madeira, conchas, pérolas etc. Ou seja, tantos quantos materiais a imaginação, a criatividade e o desejo de agradar aos deuses permitir.

Grande parte desses artefatos são importados da África e podem ser encontrados em casas que vendem artigos para umbanda e candomblé. Há muitas dezenas de locais de comércio de materiais para umbanda e candomblé em São Paulo e, embora o povo-de-santo tenha uma complexa rede de comunicação que faz com que sempre se saiba o que comprar e onde, por vezes quando podem as pessoas vão ao que talvez seja o maior mercado de artigos para as religiões afro-brasileiras que é o Mercado de Madureira no Rio de Janeiro.

As contas de vidro translúcido ou leitoso são compradas em São Paulo nas muitas lojas da rua Vinte e Cinco de Março ou da ladeira Porto Geral. Atualmente grande parte das contas provém de Taiwan ou da China, mas ainda uma parte expressiva delas, e costuma-se dizer que as de melhor qualidade, são importadas da República Tcheca.

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Já as outras peças de acrílico, vidro, madeira, louça, plástico etc. têm origens variadas e muitas, inclusive, são de fabricação nacional. É interessante notar que, como me afirmou um sacerdote, "é chique" entre o povo-de-santo dizer que as coisas são importadas, sinal de status que eles gostam de exibir, como pude observar, sempre dizendo que se trata de "material importado". De todo, o modo o que realmente preocupa os fiéis é que sejam a conta e o material certos, e para tanto se empreende muito esforço e dinheiro também, porque quanto mais raras e difíceis de encontrar, tanto mais caras serão as miçangas.

Dentre os adeptos do candomblé é sinal de muita distinção e prestígio ter colares de

ebômi. Se por alguma razão vão visitar uma outra casa, eles o fazem portando seus fios mais

importantes, elaborados e ricos. Esses também são os fios escolhidos para serem usados em eventos públicos em que comparecem com seus trajes rituais, como celebrações ecumênicas, homenagens diversas, congressos, feiras e até no afoxé que abre o desfile das escolas de samba de São Paulo. Tive oportunidade de ver uma rica exposição desses colares por ocasião do IV Congresso do Intecab – Instituto Nacional de Tradição e Cultura Afro-brasileira — realizado em seis de abril de 2002 em Diadema na grande São Paulo, que tinha como patrono o orixá Oxóssi. Havia lá muitos líderes religiosos e muitos ebômis ostentando fios do orixá homenageado, e além de seus colares de senioridade ricamente enfeitados, muitos, inclusive, com peças em ouro, especialmente quando se tratava de algum filho ou filha de Oxum.

Isso nos remete a um outro valor estruturante da criação estética do candomblé, que é a ostentação. Professor titular do Departamento de Antropologia da Universidade de São Paulo, o africano Kabengele Munanga, em comunicação oral, me contou, certa vez, que para o africano a ostentação é um valor, ou seja, se mostrar, se exibir é nessas culturas algo muito importante, muito valorizado. Esse é um valor que foi sem dúvida preservado no candomblé e persiste até os dias de hoje com muito vigor.

Entre o povo-de-santo é muito importante ser visto, chamar a atenção para si, e isso independe da classe social da qual o fiel faz parte. O candomblé é uma religião em que os adeptos pobres são a maioria mas em que é possível encontrar pessoas de todos os estratos sociais, e todas dão importância ao modo como se apresentam, em especial nas festas públicas.

As festas são ocasiões em que se mostra "o que o grupo é e como pensa" (Amaral, 2002: 32), é "o momento em que os humanos recebem os deuses em sua casa, às vezes até

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mesmo em seu próprio corpo" (idem: 32). São também, como mostrou Rita Amaral, espaço de sociabilidade e lazer, momento para ver e ser visto, conhecer pessoas, trocar idéias, fazer fofoca, flertar.

A tudo isso se deve tanto esmero na confecção de tudo o que se vai usar. Desde a roupa mais simples do dia-a-dia, até o traje de gala, passando pelos colares, tudo tem que ser bonito e chamativo. Ainda que isso implique, para não falar dos altos custos financeiros, um grande esforço físico, pois em geral os ilequês são muito pesados, ainda mais quando se usam vários de uma vez.

Os colares mais pesados são os dos iaôs, que têm mais voltas, com peso que chega a somar três quilos e meio (para um iaô de Xangô com Oxum, por exemplo). Esse peso no pescoço forçaria o iaô a andar curvado, de cabeça baixa, em postura de submissão que é exigida para eles, sobretudo no primeiro período da iniciação. Se non è vero è bene trovato.

Em uma ocasião fui à famosa rua Vinte e Cinco de Março, acompanhando algumas filhas-de-santo que iam comprar tecidos para roupas de candomblé, e a cada tecido que eu apontava elas prontamente tinham um julgamento que não deixava dúvidas: "Ah, esse não,

essas flores são muito pequenininhas, nem vai aparecer!" ou então "Ah, essa cor é muito apagada, desse jeito ninguém vai me ver, menina!".

A combinação do gosto por ser visto e a conseqüente vontade de se exibir que se expressam nessa estética remetem a uma concepção profunda e vigorosa da religião dos orixás, pois nas palavras de Prandi:

"O candomblé afirma o mundo, valoriza-o: muito daquilo que é considerado ruim segundo outras religiões, como dinheiro, prazeres (inclusive os da carne), sucesso, dominação, poder para o candomblé é bom" (1991: 214).

A afirmação do mundo faz dessa combinação entre o prazer em ser admirado e o desejo de se mostrar, que é parte do estilo de vida, da sociabilidade do povo-de-santo, algo legítimo sobre o qual não há nenhum tipo de restrição, ser bonito é também muito valorizado (Amaral, 1992, 2002). O julgamento acerca do que é bom por vezes se confunde mesmo com o belo; por sinal, a palavra iorubá que designa belo é odara que também significa bom. De uma festa pública diz-se sempre e antes de tudo que "foi linda", que "os orixás estavam muito bonitos", "que dançavam muito bem", ou seja, o julgamento daquilo que é bom está inextricavelmente associado ao belo.

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A valorização da beleza é um dos fatores que contribui para a inserção e reprodução do candomblé na metrópole moderna. Igualmente, muito de sua visibilidade, de seu alcance simbólico, evidenciado especialmente pelas artes, advém de sua estética plástica exuberante, que se manifesta sobremaneira na festa pública.

Ser um ebômi é definitivamente ter atingido uma posição em que se pode e mesmo se deve ostentar. É claro que, mesmo essa ostentação é limitada pelo pai ou mãe-de-santo. Por mais liberdade criativa que se tenha, conhecimento adquirido, e até mesmo dinheiro, porque muitos materiais são bastante caros, ainda é o chefe do terreiro que vai efetivamente ditar os limites do que se pode ou não usar e não só porque é ele quem detém mais conhecimento ritual, é iniciado a mais tempo, mas igualmente porque os sacerdotes estão sempre preocupados com a imagem que seus terreiros passam às pessoas de fora, e também porque ninguém deve ser mais bonito, vestir-se melhor, ter ilequês mais belos do que o sumo sacerdote, afinal, beleza é poder.

São basicamente dois os colares de distinção do ebômi na nação queto: os brajás e o

hungebe. O brajá tem um formato específico: as muitas voltas de miçangas são unidas a

intervalos regulares por uma firma que pode ser de louça, resina, coral, pedra, búzio ou um outro material. O número de contas de cada segmento é dado por um múltiplo do número característico do orixá. A despeito de o ebômi poder ter tantos brajás quanto queira e possa ter, os mais importantes são do orixá principal e do segundo orixá que se costuma arranjar da seguinte maneira: o brajá do orixá principal com as contas nas cores do orixá principal da pessoa e com as firmas nas cores do segundo orixá e o brajá do segundo orixá de modo inverso. Mas há outras opções de combinação. Brajá, aliás, é um nome de uso hoje generalizado mas que originalmente designava tão somente os colares de búzios feitos para os orixás de origem jeje: Nanã, Omulu e Oxumarê.

Observando atentamente uma roda de filhos-de-santo, o xirê, poderá se saber com facilidade quais são os ebômis apenas verificando quem dentre eles usam brajás. Eles distinguem e localizam na hierarquia que se expressa publicamente no por ocasião das festas, qualquer alteração nessa ordem causa muito desconforto entre os fiéis. Uma vez um pai-de-santo me contou que na sua iniciação sua então mãe-de-pai-de-santo fez para ele um brajá de Ogum, seu orixá, e ele saiu na primeira festa depois de iniciado, como ele mesmo disse, "no fim da

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fonte de muito ciúmes, discussões e problemas para a mãe-de-santo posto que o uso de brajá por um iaô é uma incoerência por definição.

É preciso ressaltar, no entanto, que embora os brajás sejam um importante símbolo de distinção dos ebômis, com o passar do tempo eles acabam preferindo usar ilequês mais leves, com menos voltas, porém ainda mais elaborados, frutos de sua já comentada, liberdade de criação. É comum usarem nesses fios elementos mais nobres, freqüentemente mais caros e preciosos, e sempre relacionados aos orixás em questão.

O hungebe, por sua vez, é por excelência o colar do ebômi; trata-se de um fio de uma volta, de contas de louça marrom intercaladas com coral. Um colar até bastante simples comparado aos brajás, mas de suma importância. Vejamos o que nos diz a esse respeito, Leda de Ogum, 15 anos de santo:

"O hungebe tem uma importância suprema, e ele identifica não o orixá, ele identifica o ebômi. É um fio que a gente recebe no dia que recebe o oiê e ele te acompanha até depois da morte".

De acordo com os entrevistados o hungebe é o único colar que acompanha o morto em seu caixão, simboliza "a quebra do pacto da vida, da ligação com o mundo dos viventes".

No candomblé queto o hungebe tem uma ligação direta com o orixá Oiá, essa é a cor dos fios da deusa também, e é essa divindade, de acordo com a mitologia, a encarregada de levar os espíritos dos mortos, os eguns, para o Além. Daí, segundo alguns sacerdotes, sua ligação com a vida terrena. Além disso, ainda de acordo com esses, esse fio teria a propriedade de proteger seu portador da morte tendo em vista que o ebômi também lida com as intempéries e eventualmente os eguns que atrapalham os seres humanos e devem ser despachados através de ritos apropriados, além dos ritos fúnebres.

A importância desse colar como expressão estética da senioridade é algo que não se pode perder de vista e que é muito clara inclusive no cotidiano da comunidade; tanto é assim que muitas vezes os ebômis não usam qualquer outro fio que os identifiquem a seus orixás mas nunca deixam de usar o hungebe.

"Ele é a identificação de você ser um ebômi. Se de repente eu não tiver um outro fio de contas, eu tiver só o hungebe, ele é tudo, ele é o principal de tudo. Eu posso não ter um brajá, eu posso não ter um fio truncado, mas se eu tenho meu hungebe vão saber que eu sou do candomblé e que sou uma ebômi" (Leda de Ogum).

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Uma ocasião, em janeiro de 2003, assisti a uma saída de iaô em que havia também um rapaz dando obrigação de sete anos, e portanto tornando-se um ebômi. Ele foi trazido ao barracão e, sentado em sua cadeira, aguardava visivelmente emocionado o momento em que o sacerdote que o homenageava dançando em sua frente e ostentava o colar do ebômi nas mãos, lhe colocaria o hungebe no pescoço, sinal de sua maioridade sacerdotal, de sua grande intimidade com os deuses. Se o ilequê funciona como documento de identidade o hungebe é usado como prova de maioridade.

Algodão ou náilon?

Os colares rituais têm uma dinâmica de circulação, montagem, desmontagem, remontagem e uso dentro dos terreiros. Muitas vezes acontece, por exemplo, de alguém comprar um determinado tipo de conta que não é exatamente a cor de seu orixá. Essa conta fica guardada e um dia mais tarde vai servir a outro filho-de-santo. É muito comum também que por ocasião da obrigação de sete anos os ilequês de iaô sejam desmontados e remontados como brajás.

Outra situação bastante usual é daqueles que mudam de axé, que por alguma razão saem de uma casa e vão para outra em busca de algo que não encontraram anteriormente, e aí pode ocorrer de a cor de suas contas mudar. Nessas circunstâncias possivelmente as firmas poderão ser reaproveitadas.

Mais de uma vez pude acompanhar a montagem dos colares no terreiro. Enfiar contas é um trabalho que pode envolver toda a comunidade que se mobiliza para a iniciação ou em períodos de obrigação em que fiéis ficam recolhidos no templo. Esses são momentos privilegiados na sociabilidade do grupo, quando emergem, dentre outros, assuntos como de onde veio essa ou aquela firma, em que circunstâncias se ganhou esse ou aquele colar, a razão do uso de determinado material ou cor.

Em mais de uma dessas oportunidades ouvi comentários acerca do tipo de fio utilizado para se fazer o colar. Na grande maioria das casas pesquisadas de que tive notícia, usa-se fio de náilon para a confecção dos ilequês, por razões de ordem prática uma vez que esses fios são muito resistentes, fáceis de se passar nos buracos das miçangas e também não absorvem a água de folhas, nem o sangue por vezes vertido sobre os fios. Além disso secam rapidamente

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Existem, no entanto, algumas casas que usam o chamado cordonê, um fio de algodão levemente encerado, que não é tão resistente quanto o fio de náilon nem tampouco prático ou higiênico, uma vez que estraga com facilidade e é muito mais difícil de passar pelas contas. É no entanto, o fato de absorver a água, o amassi e o sangue sacrificial que segundo alguns sacerdotes o faz ritualmente mais apropriado que o fio de náilon, porque de acordo com esses, ao reter esses elementos o cordonê de algodão retém axé.

A discussão subjacente ao uso de um ou outro material é algo muito recorrente nessa religião de tradição oral, em que cada templo é autônomo, e em que cada pai ou mãe-de-santo é muito criativo.

O candomblé se formou no Brasil em meados do século XIX como uma organização original da diáspora de diversos povos africanos e, como religião de dominados, sofreu fortes pressões que poderiam ter levado à sua extinção. O que se verificou, no entanto, foi que a religião dos orixás não só sobreviveu como se expandiu e há muito tempo já não é mais uma religião de negros, mas universal, cujo alcance extrapola, inclusive, os limites das fronteiras nacionais.

Nesse longo processo de resistência e reprodução, o candomblé sempre se preocupou, e se preocupa ainda, em preservar-se, em guardar bem os seus segredos, seus ritos, mitos, enfim, sua tradição (Prandi, 2005).

Manter a tradição, no entanto, não significa ausência de mudanças, uma vez que mesmo "aquele traço aventado de querer-se permanente da tradição não exclui a sua própria evolução histórica – mesmo a permanência tem uma história" (Bornheim, 1987: 23). E no candomblé assim também se faz, a mudança, a ruptura, é necessária à sua conservação e manutenção. Como assinala Bornheim:

"A tradição só parece ser impertubavelmente ela mesmo na medida em que afasta qualquer possibilidade de ruptura, ela se quer perene e eterna, sem aperceber-se de que a ausência de movimento termina condenando-a à estagnação da morte. A necessidade

da ruptura se torna, em conseqüência, imperiosa, para restituir a dinamicidade ao que parecia 'sem vida'" (idem, : 15, grifo meu).

Tratam-se de mudanças, de rupturas, que visam a conservar, restituir a tradição, ou seja:

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por meio de abandonos, resgates, acréscimos, substituições, etc. é um mecanismo presente nas várias possibilidades de representação desta religião e que assegura, de resto, sua continuidade nos vários contextos em que se insere" (Silva, 1995: 291). As mudanças aqui são sempre feitas em nome da manutenção, ou mesmo recuperação da tradição, ainda que o resultado seja uma "tradição inventada".

"Tradições inventadas" são, de acordo com Eric Hobsbawm, altamente aplicáveis no caso da "nação", uma inovação histórica comparativamente recente, e seus fenômenos associados. Por tradição inventada entende-se:

"Um conjunto de práticas, normalmente reguladas por regras tácita ou abertamente aceitas; tais práticas de natureza ritual ou simbólica, visam inculcar certos valores e normas de comportamento através da repetição, o que implica, automaticamente, uma continuidade em relação ao passado" (Hobsbawn, 2002: 9).

Como no candomblé a legitimidade é garantida por meio dessa continuidade em relação ao passado, pela referência constante aos mais velhos, as novidades, as transformações, que são introduzidas no processo de reprodução da religião adquirem necessariamente o status, por assim dizer, de tradição e se configuram, por meio da repetição, em verdadeiras "tradições inventadas".

É desse modo que um novo modelo de roupa que nunca tenha sido usado em um determinado terreiro, por exemplo, pode ser introduzido pelo pai-de-santo que simplesmente tenha visto esse modelo em outra casa, achado bonito e copiado. Logo se ouvirá dizer da roupa nova que "é assim" porque no terreiro de origem, "é assim que se veste".

Há, no entanto, um espaço efetivamente aberto para as inovações, em que não há a possibilidade de se afirmar que "é assim porque sempre foi assim". Esse é o caso das inovações técnicas no âmbito da cozinha, que é central no candomblé porque é lá que as comidas que alimentam os deuses são preparadas. Há todo um debate dentro da religião se a adoção alimentos já processados, como o pó de feijão para o preparo do acarajé por exemplo, ou mesmo de eletrodomésticos modernos que facilitam a preparação das comidas, não seriam ruins para a religião por caracterizarem um afastamento do modo tradicional de se cozinhar a comida dos deuses.

Mas a despeito de toda a discussão não se vê, hoje em dia, alguém pilando feijão para obter a farinha para o acarajé e é possível até que de tão habituados aos pacotes de farinha

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pronta, facilmente encontrados no comércio, que filhos mais novos nem saibam qual era o processo para produzi-la no passado.

Perguntados acerca disso, a maioria dos sacerdotes afirma não ver nessas inovações um perigo, pois há a percepção de que elas contribuem para que a vida no santo seja menos penosa e o dispêndio de tempo com a religião, de um modo geral, seja menor. Algo sem dúvida muito importante para a manutenção do candomblé e mesmo para arregimentação de novos adeptos, especialmente em uma cidade tão grande como São Paulo em que talvez o bem maior de que as pessoas possam dispor seja exatamente tempo livre. Conforme ouvi de uma mãe-de-santo "O que importa é a fé minha filha! Se vai usar liquidificador ou pilão o

orixá não vai se importar, desde que a comida dele seja feita com os ingredientes certos e com devoção".

Esse debate, obviamente, não se restringe somente às "coisas da cozinha". O povo-de-santo está sempre discutindo se a adoção de técnicas e materiais industrializados não seria prejudicial à religião, não provocaria uma perda paulatina da tradição e conseqüentemente da força, do axé, a energia vital que move o mundo e sustenta a religião. O uso do náilon vesus cordonê é apenas uma pequena amostra desse debate, que é o mesmo que se trava em torno de outros pares de alternativas como usar o liquidificador ou triturar os alimentos no pilão, usar fogão a gás ou fogão a lenha, comprar farinha pronta para fazer acarajé ou produzi-la, comprar os ilequês prontos ou enfiá-los etc.

Os ilequês e as cores

Além dos tipos de colares já mencionados é preciso lembrar que eles também podem ter comprimentos diversos. Em geral eles vão até o umbigo, mas os colares dos orixás masculinos são usados pelos ebômis atravessados sobre o peito e são, portanto, um pouco mais compridos. Usar colares atravessados é, de acordo com Mãe Stella, a ialorixá do Axé Opô Afonjá, uma prerrogativa exclusiva dos filhos de orixás masculinos "independentemente de tempo de iniciação e condição hierárquica" (Santos, 1995).

Existem também colares de contas mais curtos que se fazem para uso cotidiano, fora do rito, e igualmente colares de pedras, corais ou outros materiais, usados somente por

Referências

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