Alija e o seu cão
Na ex-Jugoslávia, Alija, um menino vítima de limpeza étnica, adotou um cãozinho.
Este cão viria a ser a sua única família.
Já não vou à escola. Ninguém vai. A escola foi encerrada quando o senhor Gladovic se alistou no exército. A minha avó Mirsa e a minha irmãzinha Tima também se foram embora.
Agora, ajudo o meu pai no trabalho. Ele é o melhor padeiro na aldeia. Aliás, é o único.
Liztar fica na estrada que segue a costa.
E já foi uma aldeia tranquila.
Poucos se atreviam a percorrer as estradas estreitas de terra batida e com tantos ziguezagues através das nossas montanhas. “Há muitos buracos”, dizia o meu pai, “buracos tão grandes que qualquer carro pode ser engolido.”
Mas, de há um tempo para cá, não faltam camiões, carros e carroças a atravessar a nossa aldeia. Também passam pessoas a pé, carregadas de malas, de sacos e de embrulhos. E crianças a chorar, completamente sozinhas atrás de toda essa gente, como coisas sem valor deixadas à mercê do vento.
As mulheres estão magras e desfiguradas. Os homens têm ar de animais acossados. Há ainda os órfãos e os velhos cujo coração e pernas parecem carregar toda a fadiga. Sente-se neles o medo, está-lhes colado à pele como a lama depois da neve derretida.
Por vezes, essas pessoas param para descansar um pouco por detrás da igreja. É lá que eu levo o pão. “É preciso ajudar aqueles que não têm força para continuar”, dizia o meu pai.
Naquele dia, o lugar estava quase deserto. Havia apenas o barulho surdo da carripana do pão na calçada e de um velho que arrastava os pés. Nos intervalos da sua respiração ofegante, eu conseguia ouvi-lo:
“ Hadje! Hadje! – Depressa! Depressa!
Um cãozinho malhado seguia-lhe os passos e olhava-me com os seus óculos escuros. Eu queria dar-lhe pão. O velho levantou a cabeça: sem cor alguma nas faces, os lábios roxos tremiam e os olhos estavam sem brilho. Ofereci-lhe um pedaço de pão, mas ele parecia não reparar. Baixou a cabeça e continuou a arrastar os pés, deixando atrás de si um cheiro a velhice. Quando voltei, vi-o sentado num banco. Olhava fixamente para mim.
— Quer um bocado de pão, senhor? Venha comigo!
Mas ele não tinha fome e não era para mim que estava a olhar. Estava morto.
Na despedida, havia apenas os coveiros, o pequeno cão malhado e eu.
Levei-lhe flores.
Toda a gente merece umas flores.
Pelo menos, era o que dizia a minha avó Mirsa.
O cão viu-me pousar o ramo. Seguiu-me até à saída do cemitério e, sempre que eu me virava para trás, lá estava ele…. Quando cheguei a casa, ele ainda estava atrás de mim, de orelha arrebitada, e observando- me com os seus óculos escuros.
— Alija, parece-me que tens aqui um pequeno refugiado — disse o meu pai. — Deixa-o entrar e dá-lhe um pouco de leite. Estamos a precisar de um cão de guarda.
E assim o cãozinho passava a ser, a partir desse momento, o meu protegido.
O meu cão.
Todas as noites, os bombardeamentos iluminavam o céu do lado oriente, como fogo de artifício. Mais tarde, a claridade e o barulho aproximaram-se e conseguíamos sentir os abanões nas nossas camas, durante toda a noite. O meu pai dizia que a guerra ia parar um dia, como acontece com o vento do inverno que deixa de soprar. Também dizia que a guerra não chegaria a Liztar. “Aqui, os bósnios, os sérvios, os croatas, os muçulmanos e os cristãos vivem em harmonia. Somos um povo unido.”
Mas, quanto mais as bombas se aproximavam, menos as gentes de Liztar se entendiam. O meu pai quase deixou de falar e as suas feições mudaram.
Um dia, zangou-se como nunca. Dirigiu-se com um passo decidido para casa do senhor Stanno e bateu à porta. Por cima da porta agitava-se uma bandeira que eu nunca tinha visto.
— Para que estás a exibir essa bandeira, Milo? — gritou o meu pai.
O senhor Stanno respondeu:
— Na minha aldeia faço o que quero.
E disse-o como se detestasse o meu pai. Mas como era isso possível? O senhor Stanno e o meu pai sempre tinham sido bons amigos!
— A aldeia também é minha e eu não te obrigo a olhar para a minha bandeira — disse o
meu pai.
— Cada qual faz como entende.
E o senhor Stanno fechou-lhe a porta na cara.
O meu pai ficou ali parado. Depois, encaminhou-se lentamente para casa, apertando-me a mão com tanta força que até magoava. E uma noite decidiu que estava na hora de a minha mãe e eu sairmos da aldeia.
— Eu não quero ir embora — disse a minha mãe. — O meu lugar é aqui, ao teu lado, Nurija. Sabes bem que a mulher representa os três pilares da casa e o homem representa um só. Envia Alija para casa da tia Magda. Lá estará em segurança.
O meu pai sentou-me nos seus joelhos e acariciou-me o cabelo.
— Vais cuidar da tua mãe, meu rapaz. Amanhã, vocês dois vão para casa da tia Magda.
Não partimos no dia seguinte porque havia soldados por todo o lado.
Pareciam homens vulgares, mas tinham armas e olhares enraivecidos. O meu pai foi obrigado a dar-lhes quase todo o pão que tinha. Arrastavam as pessoas pelas ruas. Durante alguns dias não pudemos sair de casa. O senhor Stanno falava com os soldados. Acho que era amigo deles.
Assim que os soldados saíram da aldeia, o meu pai correu para a rua e pôs-se no meio da estrada, fazendo paragem a um camião. Deu dinheiro ao camionista para nos dar boleia, a mim e à minha mãe.
Eu só precisava de levar a minha mochila.
Era lá que escondia o meu cão.
— Isto não vai durar muito — disse o meu pai. — Em breve estaremos juntos.
A minha mãe e eu agarrámo-nos a ele com tanta força que foi preciso separarem-nos.
Eu queria ser corajoso, mas custava-me tanto deixá-lo!
— Vai lá, meu filho, disse-me ele. Levas aqui do melhor pão e um pouco de burek(tarte leve e muito saborosa, típica de certas regiões dos países de Leste, que pode ser recheada com queijo, carne picada ou legumes e coberta com sementes de sésamo.) para a viagem. Vocês vão precisar de tudo isso.
E ficou ali a ver-nos deixar Liztar.
A sua silhueta foi ficando cada vez mais pequena, até deixarmos de a ver.
E também deixei aos poucos de ver as casas, os telhados e o minarete que me fazia lembrar um grande lápis afiado.
Também me fazia pensar no meu pai, que ficou ali parado e em silêncio para olhar pela aldeia e esperar por melhores dias.
Aquela noite foi um verdadeiro e interminável pesadelo.
As pessoas acotovelavam-se e ouviam-se gemidos, choros e medo em cada suspiro.
Hrvatska Vojska ? Chetnik ? Straza.
O que é que se passa agora ? Vão deixar-nos seguir viagem? Será que vamos mesmo para casa da tia Magda? Hadge! Depressa!
E foi assim toda a noite, no camião que se engasgava e nos sacudia.
Enrolei-me encostado à minha mãe.
O meu cão só punha a cabecita de fora e tremia, emitindo pequenos ruídos.
Deixei que se encostasse a mim até ficar mais calmo e olhávamos para as árvores negras que voavam sobre nós durante a noite. O camião só parou pela manhã. Do vale podíamos observar o nascer do sol por detrás das montanhas e, mais longe, podíamos adivinhar o azul movente da costa.
— É ali que vive a tia Magda? Lá também há guerra?
A minha mãe sorriu ternamente.
— Come um bocado de pão, Alija.
De repente, da floresta surgiram homens de olhar tresloucado. Estavam armados.
— Todos para o chão. DEITADOS! — gritaram, enquanto disparavam para o ar.
Bateram numa idosa que não conseguiu cumprir as ordens com a rapidez exigida e, quando a minha mãe ripostou, bateram-lhe também e obrigaram-na a entrar com eles para o camião. Quando eu fui atrás deles dando-lhes murros, os soldados também me bateram. E riram.
O meu cão mordia-os, mas afastaram-no aos pontapés.
Quando levaram a minha mãe, corri atrás deles.
Depois, caí. Levantei-me e corri muito tempo na estrada por alcatroar, gritando: “ Parem!
Deixem a minha mãe!”
Mas eles andaram sempre. A minha mãe é tão bonita… O meu pai diz que ela é a mulher mais bonita do mundo. Como é que eles foram capazes de lhe bater? Por que razão a terão levado? Tenho de a encontrar! Tenho de encontrar a minha mãe, o meu pai, a minha irmãzinha Tima e a minha avó Mirsa.
Foram precisos três dias e três noites para chegar à costa a pé.
Na primeira noite, dormi debaixo de uma ponte. Tinha fome, tinha frio, estava aterrorizado. Um velho ofereceu-me um pedaço de carne seca crua e um pouco de pão.
O pão não era tão bom como o do meu pai, mas eu não disse nada.
Comi em silêncio enquanto as lágrimas me iam caindo pela face.
O senhor deixou-me partilhar o cobertor. Assim já não tinha frio e sentia-me mais seguro.
O meu cão dormia ao meu lado e lambia-me a cara quando eu o abraçava. O vento soprava forte, com uma voz cansada e queixosa, chorando e gritando. A voz só se calou quando o velho me abraçou, me acariciou o cabelo e chorou comigo.
No dia seguinte, andámos juntos. O homem levou-me aos ombros e contava-me histórias da sua aldeia, histórias que me fizeram rir e chorar ao mesmo tempo. O meu cão também começou a gostar muito dele. No final da tarde, apanhou uma lebre e trouxe-a até nós.
— Bom! — disse o velho, agarrando a lebre pelas patas. — Graças ao teu fiel companheiro, vamos regalar-nos! É um bom cão.
Agora já está mais calor, aqui no litoral. O velho levou-me para casa da filha. Ele tem andado à procura da tia Magda, mas a polícia diz que não será assim tão fácil... Não sou o único a tentar encontrar a família. E eles não conhecem a tia Magda. Disseram que estavam a tentar localizar o meu pai para me vir buscar.
É por isso que continuo aqui, à espera, no limite da aldeia, na estrada que vai para Liztar. E todos os dias aqui fico sentado, com o meu cão, para receber o meu pai, quando ele chegar, e nunca mais o vou deixar.
Depois, vamos à procura da minha mãe, da minha irmãzinha e da minha avó Mirsa. O meu cão ainda não tem nome. Mas continua a ser meu! E não se
preocupem, eu já lhe disse que íamos estar todos juntos novamente. Irá, também ele, fazer parte da família.
O meu cão. O cão deles. O cão de todos nós.
John Hefferman Alija et son chien Montréal, 400 Coups Eds, 2006 (Tradução e adaptação)