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Literatura. ou Morte. Companhia Das Letras

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Literatura ou Morte

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INTERNATIONAL CENTER

SAN FRANCISCO PUBLIC LIBRARY

3 1223 05829 321

ÜCT i 2 2001

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3 1223 05829 3219

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Copyright © 2000 by Rubem Fonseca

Capa

Marcelo Serpa

Retrato de Molière (na orelha) Pintura de Pierre Mignard, 1671 Projeto gráfico

Raul Loureiro Preparação Denise Pegorim Revisão

Ana Maria Barbosa Beatriz de Freitas Moreira

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (cip) (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

Fonseca, Rubem, 1925-

0 doente Molière / Rubem Fonseca. — São Paulo: Companhia das Letras, 2000

ISBN 85-7164 999 5

1. Ficção policial e de mistério (Literatura brasileira) 2. Romance brasileiro 1. Título.

oo-i38o CDD-869.935

índices para catálogo sistemático:

1. Romances : Século 20 : Literatura brasileira 869.935 2. Século 20 : Romances : Literatura brasileira 869.935

[íooo]

Todos os direitos desta edição reservados à

EDITORA SCHWARCZ LTDA.

Rua Bandeira Paulista 70? cj. 3? 04533-002 — São Paulo — sp Telefone (11) 3846-0801 Fax (11) 3846-0814

e-mail: editora@companhiadasletras.com.br

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Sumário

REGISTROS 13

1

Uma profissão infame 17

2

Segredo, segredos 29

3

Um assunto do qual

eu ainda não queria falar 37 4

Minha outra amante, misteriosa 41 5

Os salões das preciosas ridículas —

e das não ridículas 53

6

A encarnação do demônio 67

7

Dom Juan, o pecador irresistível 79 8

Sangria, clister e vomitório 85 9

0 labirinto 93

(12)

10

Algumas palavras sobre

um amor desvairado 103

11

La Reynie 107

12

Breve nota sobre a execução

de Marie-Madeleine 117

13

Anos de melancolia 121

14

Quem matou Molière 127

15

Os verdadeiros culpados 135

(13)

PRINCIPAIS PERSONAGENS DESTA NOVELA (por Srdem de aparição)

Marquês Anônimo. Amigo e colega de colégio de Molière. (Único perso¬

nagem fictício.)

Molière (Jean-Baptiste Poquelin, ou Pocquelin, conforme a grafia da época). Um dos maiores autores teatrais da história da literatura universal.

Racine (Jean). Grande dramaturgo e poeta, autor de tragédias baseadas nos clássicos da Antiguidade.

Lulli (Florentino, mais conhecido pelo seu nome afrancesado, Lully).

Famoso compositor, colaborou na parte de música e balé de várias peças de Molière. É considerado o fundador da ópera francesa.

La Grange, ou Lagrange (Charles Varlet). Ator datrupe de Molière.

Baron (Michel). Ator datrupe de Molière.

Armande. Atriz e esposa de Molière.

La Forest, ou La Forêt (Renée Vannier). Cozinheira de Molière.

Sr. Couthon. Vizinho de Molière, que assistiu aos seus últimos momentos.

LuísXLV. Rei da França. Patrocinou a companhia de Molière, que pas¬

sou a ser conhecida como La Troupe du Roi.

Mademoiselle de La Vallière. Favorita do rei.

Marquesa de Montespan (ou Madame de Montespan). Ocupou o lugar de Mlle. de La Vallière como favorita do rei. Teve com ele vários filhos, dos quais seis sobreviveram, todos reconhecidos e agraciados com altos títulos de nobreza.

La Fontaine (Jean de). Escritor francês, famoso por suas Fábulas.

Mignard (Pierre). Autor do retrato que o Marquês Anônimo diz ter em sua casa.

Boileau (Nicolas Boileau-Despréaux). Importante autor, de grande influência na literatura francesa da época.

Chapelle (Claude-Emmanuel Luillier). Poeta, colega de colégio e ami¬

go de Molière.

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Madeleine Béjart. Irmã mais velha de Armande Molière.

Dr. Mauvillan. Médico de Molière.

Comeille (Pierre). Célebre autor francês de dramas e tragédias. Contri¬

buiu com versos para a tragédia-balé de Molière, Psiquê.

Príncipe Gaston d'Orléans (tio de Luís xiv). Patrocinou por algum tempo a trupe de Molière.

Príncipe de Conti (Armand de Bourbon, irmão do Grande Condé). Patro¬

cinou, antes de converter-se ao catolicismo, a trupe de Molière.

La Chaussée (Jean Hamelin). Cúmplice da marquesa de Brinvilliers em vários crimes de morte.

Marquesa de Brinvilliers (Marie-Madeleine d’Aubray). Sentenciada pelo assassinato do pai e dos dois irmãos.

Marquise-Thérèse (Mlle. du Pare). Atriz da trupe de Molière.

Mlle. deBrie (Catherine Le Clerc du Rozay). Atriz da trupe de Molière.

Madame de Rambouillet. Célebre pelas reuniões que promovia em sua casa.

Madame de Scudéry (Madeleine). Escritora e promotora de reuniões lí - tero-sociais.

Madame deSévigné (Marie de Rabutin-Chantal). Famosa epistológrafa.

Suas cartas, reunidas em livro, constituem um clássico no gênero.

Madame de La Fayette. (Marie-Madeleine Pioche de la Vergne). Ro¬

mancista, autora do livro Princesa de Clèves.

La Rochefoucauld (François, duque de). Autor de reflexões e pensa¬

mentos, na forma de epigramas, máximas e aforismos, admira¬

dos por sua elegância, ironia e perspicácia.

Marquesa de Maintenon (ou Madame de Maintenon). Substituiu a mar¬

quesa de Montespan como favorita de Luís xrv. Não teve filhos com o rei, com quem realizou um casamentos morganático secreto, pro¬

vavelmente em i683.

Tiberio Fiorilli (conhecido como Scaramouche, ou Scaramuccia). Ator da trupe italiana que repartia com a companhia de Molière a ocu¬

pação da sala do Palais-Royal.

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Esprit-Madeleine. Filha de Molière e Armande.

r-

Henriette-Anne d’Angleterre (Madame). Irmã do rei Charles n da Ingla¬

terra e esposa de Monsieur, com quem teve três filhos.

Monsieur (Philippe, duque d’Orléans). Único irmão do rei. Patrocinou durante algum tempo a trupe de Molière.

Charlotte-Elisabeth da Baviera (Madame). Princesa Palatina, segunda esposa de Monsieur, com quem também teve três filhos.

Padre Roullé (Pierre). Autor de libelo pedindo a condenação de Molière à morte na fogueira.

Dr. Des Eougerais. O médico mais célebre de Paris.

Dr. dAquin. Médico do rei.

Dr. Esprit. Médico de Monsieur.

Dr. Yvelin. Médico de Madame.

Antoine Dreux d Aubray. Assassinado pela filha, marquesa de Brinvilliers.

Madame Voisin. Feiticeira e envenenadora.

La Reynie (Nicolas-Gabriel de). Chefe de policia de Paris.

Capitão Sainte-Croix. Cúmplice da marquesa de Brinvilliers.

Eggidi. Especialista em venenos.

Dr. Vallot. Médico célebre de Paris.

Dr. Guénaut. Idem.

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Registros

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Sou um marquês de ilustre estirpe, da melhor no- breza, mas não sou escritor, apenas um leitor constante dos bons autores. Gostaria de escrever para teatro, de ser como o meu amigo Molière ou como Racine. Um dia escrevi uma tragédia e levei-a para Racine ler, pois esta¬

va inseguro, como todo autor iniciante. Esperava, é cla¬

ro, que Racine gostasse da minha peça, evidentemente inspirada nos modelos gregos, como as que ele compu¬

nha. Racine, que ainda não era, nessa ocasião, o autor consagrado que viria a ser, perguntou se eu queria que me falasse com franqueza. Respondi que sim — que ou¬

tra resposta poderia lhe dar? Então Racine me disse, sem rodeios, que eu desistisse de teatro. Se você tem von¬

tade de escrever, acrescentou, escreva cartas, ou diários, não existem regras e nem é preciso talento para isso.

Mas escrever para teatro, além de um dom especial, que você não tem, exige o conhecimento de inúmeros pre¬

ceitos, que você ignora.

Depois, pedi a Molière para ler o meu manuscrito, sem comentar a opinião de Racine. 0 meu amigo demo¬

rou alguns dias para me dizer que fizera a leitura, e quan¬

do o fez foi de maneira evasiva, selecionando as palavras com cuidado. Primeiro perguntou por que eu havia es¬

colhido uma tragédia e não uma comédia, as chamadas peças sérias eram mais difíceis de agradar, mais traba¬

lhosas de escrever e mais custosas de representar. Re¬

cordou comigo a leitura em primeira mão, que fizera em minha casa, da comédia trágica Dom Garcia de Navarra, ou o príncipe ciumento, que criara tantas expectativas oti¬

mistas e acabara fracassando. Finalmente, Molière ex-

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plicou que minha peça tinha algumas qualidades, mas ainda não estava pronta para ser encenada. Foi a manei¬

ra que encontrou para dizer que eu escrevera uma peça medíocre. Não me aborreci com Molière. Eu o amava.

Mas desisti de escrever para o teatro, desisti de ser um artista. Passei a usar, como consolo, uma frase de Michel de Montaigne: Minha arte e minha profissão é viver.

Mesmo não sendo escritor sempre registrei em ca¬

dernos acontecimentos dramáticos ou pitorescos, da mi¬

nha vida e das dos outros. 0 que faço não é um diário, pois não escrevo todos os dias, somente quando algum assunto me comove de alguma forma, ou me assombra, ou por algum motivo desperta a minha curiosidade. E também não consigno, na abertura dos meus registros, as datas em que foram feitos, apenas os títulos que dou aos temas anotados. Posso ser às vezes um pouco prolixo, im¬

preciso, e talvez fale excessivamente da minha vida, mas isso me parece normal, em escritos dessa natureza.

Selecionei alguns trechos das minhas anotações, para serem publicados anonimamente, como parte das minhas memórias. As descrições que faço das intrigas e escândalos da corte, da efervescência dos salões, da in¬

fluência perniciosa do clero e de outras corporações, da rivalidade entre artistas, nobres e áulicos, podem não parecer, mas estão ligadas ao tema principal desta sele¬

ção: o mistério da morte de Molière, vítima de tantas aleivosias, incompreensões, injustiças e violências em razão das peças que escreveu.

16

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UMA^ROFISSÃO INFAME

Argan está prostrado numa cadeira, tendo à sua frente a serva Toinette, quando Angélique entra.

Oh! Céus!, diz Toinette, que coisa horrível aconteceu.

Ah! que dia infeliz!

0 que foi, Toinette? Porque você está chorando?

Ai de mim. Tenho más notícias para lhe dar.

Mas o que foi?, insiste Angélique.

Seu pai... morreu.

Toinette afasta-se, deixando Angélique ver o corpo de Argan derrubado na cadeira.

AU está ele. Teve um desmaio e morreu.

Meu Deus, que desgraça cruel, perder o meu pai querido, que era tudo no mundo para mim.

Em meio às lamentações de Angélique, entra Cléanthe, a quem Angélique demonstra seu sofrimento pela morte dopai.

Subitamente Argan se levanta da cadeira, dizendo co¬

movido:

Ah! minha filha...

Oh!, exclama Angélique, com grande surpresa.

Mas nós, os espectadores, não nos surpreendemos, sabíamos que Argan se fingia de morto para colocar à prova o amor da filha, pois momentos antes fizera o mesmo com sua segunda esposa, a infiel Béline, cuja rea¬

ção, ao ouvir de Toinette que o marido morrera, fora de contentamento: Vamos levá-lo para a cama e manter si¬

lêncio sobre sua morte até que eu faça o que for necessá¬

rio, há papéis e dinheiro que preciso pegar.

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Eu estava na platéia da sala do Palais-Royal assistin¬

do à quarta representação do Doente imaginário. Nas ocasiões anteriores, Argan, ou melhor, Molière, que de¬

sempenhava esse papel, levantava-se energicamente da cadeira, cheio de indignação com a mulher e de alegria com a filha, mas naquele dia ergueu-se com dificuldade, parecia que realmente voltava a si de um desmaio pro¬

fundo. E quando Gléanthe, logo em seguida, pediu An - gélique em casamento, Molière, depois de responder com voz fraca: Sim, torne-se um médico que lhe dou mi¬

nha filha, passou a mão na cabeça e saiu trôpego de cena.

Creio que fui o único dos espectadores que perce¬

beu que alguma coisa acontecera com Molière, pois quan¬

do se retirou eu sabia que tinha ainda algumas falas para proferir. A cena burlesca, que era imediata, começou com algum atraso. Entraram no palco homens com se¬

ringas, farmacêuticos, médicos, oito cirurgiões dançan¬

tes e dois cantantes e puseram-se a bailar e a recitar num latinório engraçado, ridicularizando a medicina, entre eles Molière, que claramente tinha dificuldade em pro¬

nunciar as suas falas; mal o entendi dizer clysterium do- nare, postea seignare, ensuitta purgare — essas ativida¬

des que os médicos, como o dr. Purgon da peça, sabiam fazer tão bem, aplicar clisteres, executar sangrias e mi¬

nistrar vomitórios. Quando o coro cantou no fimvivat, novus doctor, qui tam bene parlat, uma saudação jocosa ao personagem vivido por Molière, ele teve uma espécie de convulsão que fez o público gargalhar. Antes, quando devia dizer algo em pé, sentara-se em uma cadeira, co¬

mo se fingisse cansaço.

20

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Ao final da peça os assistentes aplaudiram entusias¬

mados. Fui aos bastidores falar com os artistas. Era ami¬

go de Jean-Baptiste Pocquelin* desde o tempo em que havíamos estudado juntos no Collège de Clermont, dos jesuítas, quando ele ainda não era conhecido como Mo- lière —pseudônimo que adotou e cuja origem jamais es¬

clareceu — e estava destinado a ser não um autor e ator de peças teatrais, mas Valet- de -Chambre du Roi e a tra¬

balhar como tapeceiro, com o pai, na loja dos Pocquelin, sob os pilares de Les Halles.

Nas ocasiões anteriores em que assisti a represen¬

tações do Doente, fui sempre cumprimentar o meu ami¬

go. Sabia que ele passava por uma das suas crises de me¬

lancolia, agravada pelo fato de que, devido a manobras astuciosas, Lulli conseguira do rei, contra a vontade de Molière, o privilégio das peças que musicara para o co¬

mediante. Por esse motivo a música do Doente fora com¬

posta por Marc-Antoine Charpentier. Ainda devido às intrigas de Lulli, apremière não se realizara em Versailles.

Molière, supondo que a estréia seria feita para o rei, che¬

gara a escrever um prólogo que ele mesmo leria, dizen¬

do que depois das gloriosas vitórias militares e políticas do nosso Augusto Monarca, todos aqueles cuja atividade era escrever deviam dedicar-se a celebrar-lhe a fama ou a diverti-lo.

Encontrei Molière estirado numa cadeira, muito pálido. Parecia que continuava se fingindo de morto.

* Na época o nome se escrevia Pocquelin, como faz o Marquês Anônimo, autor deste livro, e também J.-L. Grimarest, no clássico La vie de M. de Molière, publicado em 1705. (R. F.)

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Veio à minha lembrança a pergunta que Argan fazia a Toinette, na peça: Não é perigoso se fingir de morto?

Quando o cumprimentei, percebi que suas mãos esta¬

vam geladas, apesar de ainda ter, sob o robe que vestira para a última cena, a culotte, as meias grossas e a jaqueta vermelha que usara no terceiro ato.

Acho melhor levá-lo para casa, disse o ator La Gran- ge, que contava o dinheiro arrecadado na bilheteria, ao seu colega Baron. Armande, a mulher de Molière, que fazia o papel de Angélique, já fora embora.

Baron e eu pusemos Molière numa carruagem e o levamos para casa, na rua Richelieu. Assim que chega¬

mos, Baron lhe trouxe um caldo quente.

Ele afastou a tigela que Baron tinha nas mãos, dizen¬

do que não gostava do sabor dos caldos da sua mulher.

Você sabe quais os ingredientes que ela bota neles; antes me dê um pequeno pedaço de queijo parmesão. No palco a sua voz costumava ter uma contratura que dava às suas falas uma característica especial, mas naquele dia estava apenas rouca e funda. Comeu um pouco de queijo com pão, que lhe foi trazido pela cozinheira, La Forest, e foi se deitar. Mandou que pedissem à sua mulher um travessei¬

ro cheio de uma droga que ela lhe havia prometido para dormir, pois não queria mais ouvir falar de remédios.

Tudo o que não entra no corpo eu experimento de boa vontade, mas os remédios que tenho de tomar me fa¬

zem medo; pouco falta para perder o que me resta de vida. Depois de dizer isso, Molière olhou em torno, como se verificasse quem mais estava no quarto. Não havia mais ninguém, além de nós. Fez um gesto, pedindo que

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eu me aproximasse, como se quisesse me contar um se¬

gredo. Baixei a cabeça e aproximei o ouvido da sua boca.

Fui mortalmente envenenado, ele sussurrou.

Foi interrompido por um forte acesso de tosse, que agitou o seu corpo e fê-lo cuspir uma gosma sangrenta.

Baron voltou ao quarto nesse momento. 0 aspecto de Molière era muito ruim. Percebendo a nossa preocupa¬

ção, disse: Não se assustem. Peçam à minha mulher que venha aqui.

Armande não estava, ela havia chegado e ficara pou¬

co tempo em casa, pois saira à procura de um padre. Ele está morrendo, disse Baron. Eu e o ator decidimos tam¬

bém sair em busca de algum padre para ministrar os sa¬

cramentos a Molière. Nas escadas, encontramos um vi¬

zinho de Molière, o sr. Couthon, a quem contamos o que estava acontecendo.

Ele começou a morrer em cena, lamentou-se Baron na minha carruagem, em que seguimos juntos pela rua Saint Honoré até a altura do beco de FOpéra, quando nos separamos. Baron, a pé, seguiu em frente até a igreja, que ficava logo após a rua des Bons Enfants. Eu, na carrua¬

gem, entrei na rua Fromanteau e fui até a igreja St. Ni- cholas du Louvre, mas o padre se recusou a acompanhar- me quando lhe disse do que se tratava. A essa decepção acrescentei o dissabor de ter minha carruagem atolada na Fromanteau, e como não havia ninguém perto para nos socorrer, tive de saltar e sujar meus sapatos, minhas meias, até mesmo a minha culotte, para ajudar a livrar as rodas da lama e do lixo que as prendiam. Depois fui à igreja que ficava na rua St. Thomas du Louvre, recebendo

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a mesma negativa. Eu havia escpiecido da igreja que fica¬

va na rua Ste. Nicaisse, próxima da rua Richelieu, e nova¬

mente obtive apenas uma polida recusa. Meu título de marquês e meu nome ilustre de nada serviram. Creio que o meu aspecto imundo, ainda que eu o tivesse esclareci¬

do, deu força ao padre para desenvolver suas objeções.

Quando voltei, depois de Baron e de Armande, que também havia fracassado em sua missão, Molière já ha¬

via morrido. Nenhum amigo ou parente estava presente na ocasião da sua morte.

0

sr. Couthon conseguira trazer duas freiras, que assistiram os últimos momentos do co - mediante. Molière morreu às dez horas da noite do dia 17 de fevereiro de 1673, uma sexta-feira, um mês antes de completar cinqüenta e dois anos.

Os comediantes, por exercerem uma profissão con¬

siderada infame, são excomungados. Conforme as deci¬

sões da Prelazia de Paris, não se pode dar comunhão a pessoas publicamente indignas e manifestamente ignó¬

beis como as prostitutas, os usurários, os feiticeiros e os comediantes. (Por algum motivo misterioso, os cantores de ópera não sofrem essas restrições.) A todos esses ré¬

probos são negados a extrema-unção e o sepultamento eclesiástico, mas os comediantes podem obtê-los caso se retratem dos seus erros e prometam, de maneira so¬

lene e veraz, renegar sua abjeta profissão.

Molière não havia feito essa renúncia e não podia ser sepultado em cerimônia cristã. Os adversários do tea¬

tro, notadamente todos aqueles que execravam o autor de Tartufo e D. Juan e haviam conseguido a interdição das

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duas peças, exigiam que se impedisse a realização da ce¬

rimônia. Armande, em uma das suas petições ao arce¬

bispo de Paris, declarou que o marido recebera no ano anterior a comunhão prescrita para os fiéis, das mãos do abade Bernard, da paróquia de St. Eustache. Mas não conseguiu provar que Molière renunciara formalmente à sua condição de comediante. Ele havia morrido sem confissão e sem retratação. Armande obteve uma audiên¬

cia com o rei, a quem teria dito que se o marido dela fos¬

se um criminoso, os seus crimes teriam sido autorizados por Sua Majestade. Mas não creio que tenha tido a audá¬

cia de falar com o rei nesses termos.

Eu também tentei falar com o rei, sabia que gostava de teatro, já assisti a inúmeras peças na companhia dele, nas representações especiais que as trupes fazem na corte, e já o vi dançar em cena, com a sua favorita de en¬

tão, mademoiselle de La Vallière, durante a representa¬

ção, no castelo de Saint-Germain, da pastoral de Moliè¬

re, Mélicerte. E note-se, isso ocorrera anos depois que Tartufo e D. Juan haviam criado aquela enorme celeuma.

Mas Luís xiv não me recebeu. Apesar da minha li¬

nhagem ilustre, e de possuir graça e inteligência, as qua¬

lidades que o rei mais apreciava, Sua Majestade ocasio¬

nalmente revelava algumas manifestações de desagrado em relação a mim, talvez porque eu não demonstrasse muito entusiasmo ao ser convidado para caçar com ele.

O rei não entendia que alguém como eu, que possuía destreza no manejo das armas de fogo, pudesse não gos¬

tar de caçadas — mas eu entendia o prazer que o rei sen¬

tia em matar trinta faisões com trinta tiros. Ou mais

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provavelmente a causa do nosso desentendimento fosse termos repartido, durante algum tempo, os favores de uma jovem e bela condessa. Não havia outra razão possí¬

vel. Eu cumprira com os deveres de minha linhagem du¬

rante as guerras. Lutara pelo rei na minha juventude, nas batalhas de Rocroi, de Nordlingen, de Zurmarshau- sen, em que fui ferido.

Eu e Luís xiv tínhamos muita coisa em comum: o amor pelas mulheres, pelo teatro, pela música, pela dan¬

ça e pelos cavalos, ambos montávamos muito bem e nos exercitávamos constantemente a fim de preparar o cor¬

po para estar em perfeitas condições de satisfazer os ar¬

dentes desejos que dominavam nossos espíritos.

0

rei era um homem elegante, mas creio que gosta¬

ria de ser da minha altura, o que não conseguia nem mesmo usando seus sapatos de salto muito alto; diziam que tínhamos o nariz parecido, mas em sendo verdade, isso não me deixava feliz, pois o nariz do rei era o único traço feio em seu rosto. Eu era dezesseis anos m^is velho do que ele, mas parecíamos ter a mesma idade. Aos cin- qüenta anos, idade em que os homens já estão caquéti- cos, eu parecia ter trinta.

Mas consegui interferir, à minha maneira. Falei com madame de Montespan, que ocupara, como favorita do rei, o lugar da La Vallière. Não sei se isso adiantou alguma coisa.

0

certo é que o rei gostava de Molière, tanto que aceitara ser padrinho do seu filho Louis, que morreu com poucos meses de idade. Certamente foi para agradar ao rei que o arcebispo de Paris, mesmo tendo revogado a co¬

munhão realizada pelo abade Bernard, permitiu, afinal.

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que o comediante fosse enterrado no cemitério de St.

Joseph, na parte reservada aos suicidas e crianças pagãs, sob a condição de que isso fosse à noite, sem nenhuma pompa, com a presença de apenas dois padres.

Às nove horas da noite, Molière foi enterrado. Ficara insepulto três dias. La Fontaine, Mignard e Boileau, entre outros amigos dele, estavam presentes; e também Chapei - le, nosso colega no Collège de Glermont, que parecia em¬

briagado e com quem troquei um abraço compungido.

Portávamos tochas que iluminavam em torno e re¬

velavam, na cara de alguns inimigos que compareceram ao sepultamento, a satisfação que não conseguiam es¬

conder. Evitei-os, enojado. Racine não compareceu.

0

ingrato havia esquecido que fora Molière que abrira ca¬

minho para o seu sucesso ao encenar sua primeira tragé- dia, A tebaida, quando Racine era totalmente desconhe¬

cido. Também não estava presente o inescrupuloso Lulli.

Molière havia brigado também com o italiano. Apesar da hora, umas duas centenas de pessoas assistiram ao fune¬

ral, além de um número idêntico de pobres, a quem se deu uma quantia de dinheiro, conforme a praxe.

AGazette,o jornal oficial, nem sequer noticiou o fa¬

lecimento de Molière. Apenas o Mercure Galant publicou um elogio fúnebre.

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SEGREDO, SEGREDOS

Por que guardei em segredo a revelação que Moliè- re me fizera? Por que, em vez de procurar um padre, não fui em busca do dr. Mauvillan, médico do comediante, ou outro qualquer, para tentar salvá-lo?

A resposta é uma só: para me proteger. Eu era aman¬

te de Armande. Se descobrissem que Molière fora enve¬

nenado eu acabaria sendo considerado o principal, senão 0 único suspeito da morte dele: todos sabem que os amantes matam discretamente os maridos a quem enganam, com veneno, ao contrário dos maridos, que, quando se contrariam ao serem enganados, o que é raro, matam com estardalhaço, pois a honra, para esses fan¬

farrões, tem que ser lavada com sangue diante dos olhos do público, como a expiação do criminoso na praça. 0 veneno poderia apontar para mim. Por isso, calei-me.

Não ter sido feita a autópsia deixava-me numa situa¬

ção confortável, como também ao verdadeiro assassino — pois, em princípio, não houvera assassinato. A morte de Molière foi atribuída ao rompimento de uma veia, causa¬

do, segundo os médicos, por violentos ataques de tosse.

(Conversei com o dr. Mauvillan, o médico do come¬

diante. 0 sangue deve ser derramado para fora do corpo, nunca para dentro, como aconteceu, disse o dr. Mauvil¬

lan. Durante anos ele tratou o que chamava "estado de ansiedade” de Molière, ou "estado de melancolia”, cau¬

sado pela bile negra, um dos quatro humores do orga¬

nismo, cujo excesso conduz à tristeza.)

Voltando a Armande. Ela era irmã de Madeleine Bé-

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jart, a principal atriz da trape. Eu a conheci logo que chegou a Paris, ainda adolescente, vindo de uma aldeia perto de Nimes, onde fora criada por uma amiga de Ma- deleine. A caravana da companhia de Molière passou pela cidade e Armande incorporou-se à trupe. Molière ensinou-lhe a arte de representar (Madeleine diz que foi ela) e Armande adotou o pseudônimo de Menou. Era uma adolescente, mas aos poucos foi se transformando em uma mulher muito bonita, e por uma dessas armadi¬

lhas do destino a minha atração por Armande tornou-se irresistivel tão logo ela se casou com Molière, com cerca de vinte anos de idade, em agosto de 1662;, na igreja de St. Germain EAuxerrois.

Os desafetos de Molière diziam que Armande era uma mulher promiscua, chamavam-no de corno e asse¬

guravam que ela era sua filha. Havia uma diferença de vinte e dois anos entre as duas irmãs; Molière de fato fora amante de Madeleine Béjart desde o tempo em que os dois eram muito jovens; e os maledicentes compara¬

vam a data em que essa ligação se iniciara e a data do nascimento de Armande para provar sua teoria repug¬

nante. Não havia limites para esses invejosos.

Sempre apoiei Molière, desde que ele, ainda muito jovem, contra a vontade do pai, começou a freqüentar o ambiente teatral e fez amizade com a Béjart e com Tibe- rio Fiorilli, célebre como Scaramouche (os italianos di¬

ziam Scaramuccia). Molière e a Béjart fundaram Llllus- tre Théâtre. Ajudei-os a debutar em Paris com a proteção do tio de Luís xiv, o príncipe Gaston d’Orléans. Mas LT

1

- lustre Théâtre não fez sucesso, não pagava seus fornece-

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dores, e um comerciante de velas conseguiu que Moliè- re, por ser o diretor da trupe, fosse preso por dívidas. Só não fui tirá-lo da prisão do Châtelet porque em 1645 eu estava na Alemanha, na guerra. Ajudei-o a voltar da sua peregrinação pela província para Paris, em 1658, conse¬

guindo que fizesse um espetáculo para 0 rei, na sala do Vieux Louvre, que consistia numa tragédia de Corneille, Nicomède, e uma farsa dele mesmo,

0

médico apaixonado.

A tragédia foi um fracasso; na trupe de Molière, a Béjart era a única que sabia representar tragédias. Molière era eficiente nas comédias, mas Chapelle costumava dizer que se ele não fosse diretor da companhia e autor das peças não conseguiria os primeiros papéis, como acon¬

tecia. Porém

0

médico apaixonado foi um grande suces¬

so, agradando muito ao rei. Depois de ópera, o que o rei mais gostava de assistir era teatro, no teatro preferia as comédias e entre as comédias sua predileção era pelas farsas. Não foi difícil conseguir, naquele ano mesmo, que Molière se instalasse na sala do Petit-Bourbon, re¬

partindo o espaço com a companhia italiana de Tiberio Fiorilli. E também que Monsieur viesse a patrocinar fi¬

nanceiramente a trupe. O patrocínio do irmão do rei ajudou muito a companhia.

Quando uma atriz da trupe, a bela Marquise-Thérè- se, de quem Molière era amante, deixou a companhia e juntou-se ao grupo do teatro de Bourgogne (dizem que teria se casado secretamente com Racine), foi junto a mim que Molière veio se lamentar. Na mesma ocasião, ele e a de Brie, a nova estrela da companhia, casada com um dos atores, tornaram-se amantes. A de Brie e a Ma-

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deleine Béjart disputavam os melhores papéis e por isso, e talvez porque soubesse do que estava acontecendo, Madeleine brigou com Molière e fui eu quem ouviu com paciência as lamentações dele; ajudei-o, depois, a sair da melancolia em que mergulhou quando Madeleine o deixou definitivamente. Quando ela morreu, fui um dos amigos que lhe prestaram solidariedade em sua dor. Fui o primeiro leitor das petições que fez ao rei solicitando proteção, depois da proibição do Tartufo. Sempre o de¬

fendi dos ataques que sofreu, e intercedi para liberar as suas peças. Obtive-lhe a proteção do príncipe de Conti, trabalhei para que depois conseguisse o amparo de Mon- sieur e finalmente o de Sua Majestade. Minha vida esta¬

va ligada à de Molière. Eu era seu amigo.

Ele era um mímico extraordinário, e gostava, quan¬

do bem-humorado, de exibir para os intimos seus dotes de pantomimeiro, sugerindo, apenas com um gesto do corpo ou uma expressão do semblante, sentimentos de alegria, dor física, desejo, entusiasmo, medo. Mas para representar a tristeza ele não precisava de tempo algum para se preparar, como se a tivesse firmemente alojada na alma. Nem usava os recursos esfuziantes que tanto brilho davam às suas outras mímicas. Seu rosto ficava imóvel, eram apenas os seus olhos que diziam tudo, e o mais afastado dos circunstantes perceberia a grande amargura do seu olhar e da sua face. Porque ele não es¬

tava representando. Aquela tristeza, aquela melancolia, que o tornavam ansioso e insone, eram verdadeiras. Sa¬

bendo disso, eu não me surpreendia quando, reunidos em volta de uma mesa para jantar, ele, que estava alegre.

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subitamente tornava-se taciturno. Ou então, agressivo;

ou querendo ficar só. A virtude maior de um ser huma¬

no é a bondade, e Molière era um bom homem. A outra grande virtude é a capacidade de criar obras de arte. Mo¬

lière tinha esses dons e merecia toda a nossa paciência, indulgência e compreensão.

Mas sentia-me culpado da sua morte. Afinal, eu o deixara morrer envenenado, ao procurar covardemente, enquanto ele agonizava, um padre, e não um médico. É bem verdade que o médico provavelmente não o salva¬

ria, o veneno já começara a produzir o seu efeito letal;

mas quem sabe se os vomitórios, que os médicos sempre aplicam nos doentes, junto com os clisteres e as sangrias, não o teriam salvado?

Mas não sentia culpa por tê-lo traído comArmande, nem arrependimento. 0 arrependimento, como nos en¬

sina Michel de Montaigne, é uma negação do nosso de¬

sejo e uma oposição às nossas fantasias. Além do mais, todo mundo cometia adultério, começando pelo nosso próprio bem-amado rei, que levava as amantes para re¬

sidir no palácio e não podia ver mulher bonita sem cor¬

tejá-la. Mas o certo é que, talvez por não poder fazer mais nada por ele, eu me sentia em débito com o meu amigo. E só havia uma maneira de aplacar os meus tor¬

mentos: descobrir o assassino de Molière. Não sabia o que iria fazer quando o descobrisse. Não poderia provar nada, a menos que a pessoa confessasse, mas quem faria uma coisa dessas, se incriminaria com essa gravidade sem ser supliciado numa câmara de torturas? E princi¬

palmente eu não poderia me envolver diretamente na

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denúncia do criminoso, teria de fazê-lo por interpostas pessoas. Havia outros motivos para me esconder, muito fortes, mas não quero ainda falar nisso. A vida de todo homem é cheia de segredos. 0 segredo que eu ocultava era atormentador, a sua revelação podia custar-me a vida.

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UM ASSUNTO DO QUAL EU AINDA NÃO QUERIA FALAR

No mês seguinte ao da morte de Molière foi execu¬

tada a sentença de morte de Jean Hamelin, conhecido como La Chaussée. A marquesa de Brinvilliers o intro¬

duzira como lacaio na casa dos irmãos dela a fim de que La Chaussée os envenenasse. O lacaio fora preso e con¬

denado por esses crimes, mas a marquesa escapara, fu¬

gindo para a Inglaterra.

La Chaussée foi executado em praça pública, na roda.

Eu não quis assistir ao sinistro espetáculo e nesse dia fui visitar o meu pai em seu castelo, distante de Paris. Porém soube por várias pessoas como se cumpriu a pena de morte, que seguiu os trâmites estabelecidos pela justiça.

Uma multidão cercava o patíbulo erigido na praça de Crève. Achegada de La Chaussée foi recebida com asso¬

bios, apupos e impropérios. Quando La Chaussée foi co¬

locado com as pernas abertas e os braços estendidos so¬

bre dois pedaços de madeira dispostos na forma da cruz de Santo André, a multidão aplaudiu calorosamente.

O carrasco então, com uma barra de ferro, quebrou- lhe os ossos dos braços, dos antebraços, das coxas, das pernas e do peito. A cada golpe a multidão gritava exul¬

tante.

Apesar de ter quase todos os ossos partidos, La Chaussée, antes da segunda parte do cumprimento da sentença, ainda estava vivo, respirando com dificuldade.

O carrasco era experiente, tinha ordem de fazer render o suplício, de retardar a morte.

Em seguida o algoz e o seu acólito deitaram o conde-

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nado de costas em uma pequena roda de carroça, sus¬

pensa horizontalmente no ar por um poste de ferro, seus braços e suas pernas quebrados amarrados atrás do corpo, a face virada para cima, para que, enquanto du¬

rasse, fizesse a sua penitência olhando para o céu, à mercê da misericórdia de Deus.

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MINHA OUTRA AMANTE, MISTERIOSA

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Armande e eu sempre fomos muito discretos, mas tenho a impressão de que La Forest desconfiava de nós.

Os fâmulos observam os patrões mais do que supomos.

Sempre que estava com Armande em sua casa, na ausên¬

cia do marido, tenho certeza de que La Forest nos vigiava.

La Forest parecia gostar muito do comediante, apesar de ele, devido à sua indole nervosa e às suas oscilações de humor, tratá-la às vezes com certa rudeza. Molière tinha com ela uma intimidade insólita. Para sentir-lhe a rea¬

ção, costumava ler para a cozinheira as suas comédias. Se La Forest as aprovasse era porque agradariam ao público.

Agora que Molière estava morto eu não ia mais à casa da rua Richelieu. Já havia algum tempo meus en¬

contros com Armande não eram mais prazerosos nem venturosos. Mas anteriormente eu sempre fora para a cama com Armande tendo a consciência tranqüila, e o mesmo sucedia com ela; o fato de sermos amantes em nada prejudicava o nosso amigo, a quem estimávamos e cujo temperamento instável e muitas vezes colérico per¬

doávamos. Morto, Molière conseguiu algo que não lhe fora possível em vida: se interpor entre mim e Armande.

Eu sentia uma certa intranqüilidade quando ficava sozi¬

nho com ela. Como disse La Bruyère, os amantes podem reconhecer o crepúsculo e o declínio do amor quando se sentem desassossegados ao estarem juntos, a sós.

Passei a evitar Armande, mas ela encontrava pretex¬

tos para me ver. Internara a filha deles, a pequena Es- prit-Madeleine, de dez anos, para ser educada num con-

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vento, e menos de quinze dias após a morte do marido voltara ao palco com uma encenação do Doente imaginá¬

rio. Mas Molière fazia muita falta. Além de ator e admi¬

rável diretor de cena, administrava a companhia, organi¬

zava os programas, supervisionava a execução de cenários e vestuários, fazia os contatos com o rei e os grandes se¬

nhores, relacionava-se com os compositores, os músi¬

cos e os dançarinos e suavizava as ciumeiras entre atores e atrizes, que lutavam com encarniçamento para conse¬

guir os melhores papéis. Armande não sabia fazer todo esse trabalho. Mas não era sobre isso que, naquele dia, ela queria falar comigo.

Você ainda me ama?, perguntou, abraçando-me ca¬

rinhosamente.

A atração por Armande não desaparecera de todo.

Mesmo alucinadamente apaixonado por outra mulher, a minha amante secreta — como diz Michel de Montaigne, citando Sêneca, os prazeres leves são loquazes e as gran¬

des paixões silenciosas —, e mesmo atorme,ntado pelo meu covarde comportamento com Molière, fui para a cama com ela e fizemos amor, com o mesmo requinte das vezes anteriores.

Antes de continuar quero dizer que à medida que envelhecia, eu me tornava mais libidinoso. Quando ia a um salão, ao contemplar um colo voluptuoso minha mente era invadida por pensamentos fesceninos; uma boca mais carnuda sugeria-me os mais refinados praze¬

res; o movimento langoroso de um corpo feminino me enlevava. Sentia desejo por quase todas as mulheres, muitas nem mesmo bonitas, mas que atraiam-me por

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alguma particularidade, a atitude, o olhar, o tom de voz, a perfeição do talhe que eu podia presumir sob o traje mais pudico. E nenhuma consideração de prudência ou bom senso impedia-me de tentar possuir a mulher que desejasse, fosse ela uma marquesa inexpressiva, uma grande duquesa, uma princesa de sangue real.

Naquele dia desfruí Armande da maneira de sem¬

pre, mesmo não estando mais apaixonado por ela, mes¬

mo tendo outra em meu coração. Não preciso dizer que antes de tudo fizemos nossas abluções, separadamente, num pequeno lavabo. Armande, para isso, nem precisou tirar o vestido e as várias saias que usava.

Comecei beijando as partes do corpo de Armande deixadas à mostra pelo vestido. Inicialmente um beijo delicado no rosto, depois na boca. Ela retirou a minha peruca e afagou-me a cabeça; senti a delicadeza dos seus dedos na minha pele; não era raro homens da minha categoria, obrigados a usar peruca constantemente, ras¬

parem a cabeça. Fiz com que ficasse em pé ao lado da cama e, lentamente, sem pressa, tirei peça por peça do seu vestido, e cada parte do corpo revelada era beijada de leve por mim. Eram três as saias internas que Armande usava, e sobre elas uma outra saia, com um enchimento que alteava-lhe os quadris e lhe dava mais amplitude atrás, o que na verdade nada acrescentava à sua beleza.

Armande sempre se excitava ao notar o forte desejo que o seu corpo perfeito me causava, saber-se bela e ser desejada lhe dava um grande prazer. Depois de des¬

nudá-la, deitei-a de bruços na cama e beijei suas costas começando na nuca, depois as omoplatas, e fui descen-

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do até encontrar as duas partes redondas e firmes das suas nádegas, que afastei, abrindo caminho para minha língua. Depois virei-a de frente e lambi-lhe o pescoço, as axilas, os seios, a barriga, e finalmente detive-me no delicado estojo cercado de pêlos escuros, que ressumava um deleitável néctar. Fizemos amor lentamente, nossos corpos em perfeita harmonia quando parados, quando em movimento, alternando força e suavidade, deixando que os prazeres mais inefáveis invadissem sutilmente nossos corpos, conscientes de que o gozo era apenas um aspecto da fruição física dos amantes, um paroxismo que podia, e às vezes devia, ser adiado ou mesmo evitado.

Depois, quando nos vestimos, senti-me inquieto, desejando que Armande fosse logo embora.

Você anda fugindo de mim, Armande disse.

Neguei, talvez com veemência excessiva. Sou uma alma delicada, e a mulher que se deita comigo merece todo o meu respeito, estima e até mesmo compaixão, se foro caso.

Você não sabe mentir, ela disse. Está me rejeitando depois de tudo o que fiz por você. Não entendo por que devemos continuar nos encontrando secretamente.

Tenho razões para ser prudente, respondi.

Que razões? Vergonha de que saibam que é meu amante? Arranjou outra?

Fiz juras de amor, de admiração e respeito. Mas ela não se convenceu. Afinal fui obrigado a dizer-lhe a ver¬

dade. Não toda a verdade, não lhe falei do meu novo amor desatinado.

Desconfio que Molière foi envenenado, eu disse.

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Ela ficou muito pálida e por momentos parecia não saber o que dizer.

Envenenado? Que absurdo. Ele estava muito doente.

Muito doente como o meu pai, que vive muito doen¬

te e não morre. Que doença Molière tinha? Uma melan¬

colia triste e caprichosa? Isso não mata ninguém. Ele era um falso doente, como eram falsos doentes todos os seus personagens doentes. Ele se queixava porque também era um hipocondríaco. Argan era ele.

Argan era ele, Alceste era ele, Arnolphe era ele, Harpagon, Tartufo, Ariste, Mascarille, Monsieur Jordan, George Dandin, todos os seus personagens, por mais paradoxal que possa parecer, de certa forma eram ele.

Fiquei aliviado quando Ar mande, depois de me cha¬

mar de louco e de me pedir que não comentasse com ninguém minhas suspeitas delirantes, retirou-se da mi¬

nha casa. Ir para a cama com ela, agora que Molière esta¬

va morto, passara a ser uma traição à honra e à memória do meu amigo.

Talvez este fosse um raciocínio elaborado sobre fal¬

sos pressupostos, talvez estivesse com medo de que Ar - mande quisesse estabelecer comigo laços mais fortes, pois uma coisa é ser amante de uma mulher casada, ou¬

tra é ser amante de uma viúva; esta quer uma ligação permanente, quer que o amante se torne marido. Aos cinqüenta anos de idade, após ter enviuvado muito cedo, eu não pretendia me casar novamente, apesar do des¬

gosto do meu pai, que queria um herdeiro do nome da família, já que sou o seu filho único. Mais do que de ir ao teatro, eu gostava de passar as noites nas alcovas e nos

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salões, indo de um local para o outro. Poucos conheciam como eu os salões de Paris, eram tão bem-vindos em qualquer um deles. Eu sabia onde encontrar as pessoas, quem freqüentava determinado salão, ou quem era assí¬

duo em todos, como o duque de La Rochefoucauld, por exemplo. Os salões, ultimamente, eram também uma maneira de fugir das minhas apreensões.

Mas não era apenas Armande que me preocupava. Já me referi a uma outra mulher, por quem me apaixonara alucinadamente, um amor secreto e perverso. No mes¬

mo ano da morte de Molière, essa mulher viajou para fora do país e eu vivia em pânico pensando no que pode - ria ocorrer se descobrissem minha ligação com ela. Os assuntos de envenenamento haviam começado a me assombrar mesmo antes da morte de Molière.

Na noite desse dia fui para casa e não consegui dormir. Temores antigos voltaram a me inquietar, pensei na morte de Henriette-Anne d’Angleterre, a esposa de Monsieur, nos rumores que ouvi durante a oração fúnebre proferida por Bossuet, de que ela havia sido envenenada.

Eu sabia que o médico que abrira o corpo de Henriette declarara ter encontrado um grande tumor em seu fígado, mas dizia-se que esse laudo não era confiável. Ela talvez estivesse de fato doente, nas últimas vezes em que a vira apresentava um aspecto mórbido. E quem teria a audácia de envenenar a mulher do irmão do rei? Para ter notícias, ou mais boatos, convidara para jantar em minha mansão o marquês d’Effiat, que fazia parte da camarilha de Mon¬

sieur e cujo nome fora mencionado nebulosamente nos rumores anônimos que correram na corte.

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Línguas ferinas, cTEffiat me disse então, divulgaram que foi Monsieur quem mandou envenenar Henriette, como se o duque tivesse razões para isso. Madame em nada o atrapalhava, continuou ele, e você sabe que a condição de casado lhe era confortável, pelos motivos que não preciso lhe expor. Razões poderiam ter o rei, que foi amante dela, e a deixou por causa da La Vallière, e até mesmo você, que freqüentou a cama da duquesa e sentiu-se traído quando foi substituído e perdeu as van¬

tagens que obtinha com a ligação.

Expulsei o sodomita da minha casa, mas antes pro¬

testei irritado. Se eu tivesse sido amante de Henriette não seria para obter vantagens materiais, pois eu não era um marquês sicofanta, arruinado e pervertido como ele, d’Effiat, que vivia dos favores torpes que prestava a Monsieur. Não creio que o meu caso com Madame tives¬

se chegado aos ouvidos de Monsieur, e se ele soube, não se incomodou. Quando estive com Monsieur, depois do episódio d’Effiat, o irmão do rei tratou-me com cor¬

dialidade. Já estava casado com a segunda mulher, Char- lotte-Elisabeth da Baviera, Princesa Palatina, uma loura alta, um pouco bruta, como são as alemãs em geral.

Liselotte, como os íntimos a chamavam, converteu-se ao catolicismo, perdeu os direitos ao trono da Inglaterra, tudo para ser cunhada de Luís xiv, com quem aliás ela faria um par mais adequado.

Naquela noite de insônia, minha mente vagava.

Pensei em Liselotte e pensei em Monsieur. Ele era bem mais baixo do que ela, e isso de certa maneira a incomo¬

dava, como a desgostava o fato de ele ser feio, ter nariz

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grande e dentes ruins. Mas dentes ruins, com raras ex¬

ceções, todos nós tínhamos. Ela não se importava de o marido viver cercado de rapazes, gostar de roupas e fes¬

tas. Mas os três filhos que Monsieur teve com Henriette e os três com Liselotte provavelmente eram dele.

Recordei as anedotas interessantes sobre Monsieur, uma delas contada pela própria Liselotte. Certo dia, nu¬

ma festa, a Princesa Palatina me disse, observando o marido dançar: Monsieur dança bem, mas parece uma mulher dançando. Depois Liselotte segredou-me ao ou¬

vido uma confidência: Monsieur é muito supersticioso, você sabe disso, mas descobri nele uma crendice singu¬

lar. Ele sempre carrega um rosário e outras relíquias, mesmo quando vai para a cama. Uma noite dessas, quan¬

do Monsieur dormia, eu, já tendo uma idéia do que ia descobrir, levantei as cobertas e verifiquei que aquela parte do corpo que só os homens possuem estava en¬

volvida por cordões com pequenas imagens religiosas da Virgem. Ele acordou no momento em que eu constatava essa estranha superstição e explicou-me que as imagens da Virgem protegiam, contra todo e qualquer malefício, as partes do corpo com as quais tinham contato. Segun¬

do ele, por ter sido protestante eu ainda não conheço a eficácia das imagens da Virgem. Eu ri e ele me acompa¬

nhou rindo e me disse, por favor, não fale a ninguém sobre isso. Liselotte, como todo mundo que revela uma confidência, sabia que não há ser humano capaz de guar¬

dar um segredo.

Nunca vi dois irmãos tão diferentes quanto Mon¬

sieur e Luís xiv. Mas ambos se assemelhavam na cora-

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gem e no arrojo demonstrados em combate, não obstan¬

te Monsieur lutasse na frente de batalha com o rosto empoado, os lábios pintados e todo enfeitado de jóias, como uma cortesã. Ele corria mais riscos do que qual¬

quer um, pois recusava-se a usar o capacete para não desmanchar a peruca.

Mas logo voltei, nessa noite de insônia, à minha ob¬

sessão: o envenenamento de Molière. Eu continuava com a idéia obstinada de saber quem havia matado o meu amigo. A falsa impressão de que ele estava muito doente adquiria aos poucos foros de verdade, e sua morte era erroneamente atribuída a causas naturais. Todos queriam que Molière saísse de cena sem espalhafato, confiando em que ele e suas peças logo seriam esquecidos.

Mas quem o teria envenenado? Pela minha cabeça passava a imagem sem rosto de uma preciosa ridícula, um burguês gentil-homem, um padre, um fanático reli¬

gioso, um nobre ofendido, um autor consumido pela inveja e mesmo um ator rancoroso, todos segurando na mão um frasco de veneno.

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OS SALÕES DAS PRECIOSAS RIDÍCULAS — E DAS NÃO RIDÍCULAS

Mascarille, o lacaio, que se finge de marquês, conversa com as duas senhoritas tolas, Cathos e Magdelon. A impos¬

tura foi tramada por dois pretendentes rejeitados pelas jovens por não serem suficientemente refinados. 0 falso marquês está lhes fazendo promessas de apresentá-las a fidalgos da alta sociedade.

Eu me encarregarei do assunto melhor do que qualquer um, diz Mascarille. Eles me visitam todos-, e posso dizer que não me levanto nunca sem uma meia dúzia de gente espiri¬

tuosa à minha volta.

Meu Deus!, exclama Magdelon, ficar-lhe-emos agra¬

decidas ao extremo se nos propiciar essas amizades, pois, afinal, é necessário conhecer todos esses senhores, se quiser¬

mos pertencer à alta-roda.

Enquanto Magdelon fala, Mascarille ajeita a sua imen¬

sa peruca efaz caretas por baixo da máscara que usa.

Mas para mim, continua Magdelon, o que eu considero principal é que, por meio dessas visitas intelectuais, somos instruídas em uma centena de coisas que são a essência de um belo espírito. Dessa forma aprendem-se as pequenas novidades galantes, o belo intercâmbio de prosa e de versos.

Sabe-se com exatidão: Fulano compôs a peça mais bela do mundo sobre tal assunto; Beltrana fez a letra de uma certa ária; aquele escreveu um madrigal sobre uma felicidade;

outro compôs elegias sobre uma infidelidade; um determi¬

nado Senhor escreveu ontem de tarde uma sextilha a deter¬

minada Mademoiselle, cuja resposta lhe foi enviada hoje de manhã pelas oito horas-, um certo autor fez determinado pro-

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jeto; outro se acha na terceira parte do seu romance; outro ainda entregou suas obras à impressão. Eis o que dá calor às convivências; e, se ignorarmos essas coisas, não valerá um alfinete todo o espírito que se possa ter.

Cathos acrescenta que acha ridículo uma pessoa se con¬

siderar espirituosa desconhecendo mesmo as simples trovas que se fazem todos os dias. Morreria de vergonha se lhe per¬

guntassem sobre uma novidade que não conhecesse.

Mascarille concorda com Cathos, mas elas que não se preocupem, ele vai estabelecer em suas casas um salão fre¬

quentado por gente famosa e ilustre. Eu vos prometo que não se fará um verso em Paris que não seja do vosso conhecimen¬

to antes de todo mundo. Vereis correr pelos belos salões de Paris duzentas canções, igual número de sonetos, quatrocen¬

tos epigramas e mais de mil madrigais, sem contar os enig¬

mas e os retratos de minha autoria.

Confesso, responde Magdelon, que soufuriosamente pelos retratos; não vejo nada mais galante do que eles.

Cathos diz que gosta terrivelmente de enigmas, de adi¬

vinhar coisas após uma descrição em termos obscuros e ambíguos. Mascarille responde que compôs quatro naquela manhã.

E a conversa continuou no palco, os espectadores sabendo quem eram os modelos daquelas duas tolas, a Rambouillet e a Scudéry, retratadas antes de iniciarem suas carreiras.

Eu estava na platéia do Petit-Bourbon, na noite da estréia da primeira peça de sucesso de Molière, As pre¬

ciosas ridículas. Rememoro, com certa nostalgia, aqueles

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tempos. Madeleine Béjart, que ainda fazia parte da com¬

panhia, então conhecida como a Trupe de Monsieur, fazia o papel de Magdelon. A de Brie desempenhava o papel de Cathos. Naquela noite também fora represen¬

tada a peça de Corneille, Cinna. Mas as inúmeras pes¬

soas que se reuniram depois em frente ao teatro, na rua des Poules, entre o Vieux-Louvre e a clausura de St. Ger- main 1’Auxerrois, não discutiam a tragédia de Corneille, e sim debatiam animadamente se as duas palermas des¬

lumbradas da comédia de Molière tinham mesmo como modelos as renomadas madames de Rambouillet e de Scudéry. O interesse pela segunda apresentação foi tão grande que La Grange, que cuidava das finanças da tru¬

pe, dobrou o preço dos ingressos, evidentemente com o consentimento de Molière.

Afirmavam os defensores das preciosas que elas realizavam um trabalho importante de estimulo às artes, que amavam as letras e o bom gosto, e censurar alguém por esse motivo, da maneira que Molière fizera, era uma vileza. O próprio Molière, prevendo a objeção que ocor¬

reria, advertiu, num artifício retórico, que as "ver¬

dadeiras preciosas” não deviam se ofender, ele retratava na peça as "ridículas” que as imitavam. 0 problema era que as duas idiotas da comédia se chamavam Cathos e Magdelon, e os primeiros nomes da Rambouillet e da Scudéiy eram respectivamente Catherine e Madeleine.

Era óbvio que Molière queria atingir as duas.

Para verificar a repercussão da comédia, fiz durante alguns dias uma peregrinação pelos salões. (Antes, eu e Molière visitamos Monsieur, que patrocinava a trupe

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com um estipêndio generoso, e ele nos disse que não dava a menor importância àquelas reações pundono- rosas contra a peça.)

Eu gostava de visitar os salões, o que para muita gente era mais divertido do que ir ao teatro de comédia ou à ópera. Posso afirmar, sem risco de ser incorreto, que poucos em Paris conheciam como eu a vida, a agi¬

tação, as intrigas amorosas, políticas e artísticas dos sa¬

lões, o comportamento de certa forma comovente de homens e mulheres sem estirpe dominados pelo sonho vaidoso de serem reconhecidos como aristocratas, as preciosas ridículas e os burgueses gentis-homens tão bem retratados pelo gênio de Molière.

No salão de madame de Rambouillet testemunhei a irritação que a peça causara. O mais aborrecido era um abade, de nome Cotin, que se tornaria um dos maiores inimigos de Molière, sendo que muitos anos depois o comediante o ridicularizaria especificamente nas Sabi- chonas. Tive uma discussão séria com aquele abade, que imbecilmente deu a entender que a crítica de Molière só podia ser dirigida à Rambouillet, enquanto os outros, que eram mais inteligentes, e para demonstrar que a alusão não poderia ser dirigida à sua anfitriã, apenas di¬

ziam que Molière ao escrever aquela peça vulgar plagia¬

ra mais uma vez os italianos que dividiam com ele a sala do Petit-Bourbon.

Eu conheço bem toda a obra de Molière e posso as¬

segurar que essa acusação de plágio, a rigor, só era ver¬

dadeira em relação a duas peças que Molière encenou, na província, como se fossem de sua autoria, 0 ciúme de

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Barbouillé e 0 médico voador, copiadas de antigas comé¬

dias italianas. O estouvado foi apenas inspirada em 0 des¬

cuidado, do italiano Beltrame. Também os cinco atos de Despeito amoroso não podem ser considerados um plágio, pois Molière apenas usou algumas situações de uma far¬

sa italiana. É comum, no teatro, o autor se inspirar em textos mais antigos, construindo, muitas vezes, uma obra nova, superior em todos os sentidos. Por acaso a Fe- dra de Racine é um plágio do Hipólito de Eurípedes? E as peças de Corneille, têm algum tema original? Mas ape¬

nas o meu amigo era chamado de plagiário. Os atores, autores e demais pessoas ligadas aos teatros rivais, o de Bourgogne e o do Marais, devido ao sucesso das Preciosas quando esperavam mais um fracasso de Molière, inicia¬

ram a difusão desses libelos e intrigas, anônimos ou não.

A guerra literária em Paris não tinha limites. Não men¬

cionarei o nome desses autores de panfletos, peças de teatro, libelos, porcarias literárias que só foram encena¬

das ou publicadas porque os literatos medíocres que as escreveram falavam mal de Molière. Artistas em geral e escritores em particular são as mais invejosas das cria¬

turas. Vingam-se, com ódio, daqueles que conseguiram o sucesso que eles próprios não alcançaram. Para conso¬

lar Molière eu costumava lhe dizer que a inveja era uma forma de elogio e que Montaigne dizia que era melhor ser invejado do que amado. Montaigne nunca disse isso, mas o meu amigo acreditou na mentira.

No salão da Rambouillet, era de se esperar uma cer¬

ta reação contra Molière. Quanto à marquesa, que na oca¬

sião tinha setenta e um anos, não me pareceu aborrecida,

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não obstante evitasse falar no assunto. Orgulhava-se do seu salão, que, segundo ela, exercia uma grande influên¬

cia sobre a literatura e a lingua francesa. Certa ocasião encontrei lá Corneille, lendo trechos de Polyeucte, mais uma daquelas suas tragédias passadas na antiga Roma.

0 grande encanto do salão era o grupo de numero¬

sas mulheres belas e jovens que o freqüentava, arregi¬

mentado pela marquesa. As roupas que elas usavam eram excessivamente ornamentadas, com rendas e fitas, de cores variadas, amarelas, azuis, rosa brilhante (que chamavam de "aurora”) e faixas bordadas de ouro, que guarneciam a frente do corpete e a ampla saia de cima, cujo comprimento de cauda variava segundo a posição social. Vestidas dessa maneira, escondiam o corpo, o que exigia muitas conjeturas da minha parte, pois eu ti¬

nha de deduzir, observando o decote que exibia apenas o colo e às vezes as espáduas da mulher, como seria o res¬

to do corpo. Os braços também eram ocultos; as mangas, mesmo quando curtas, cessando nos cotovelos, prolon¬

gavam-se por um folho de linho ou duas outras fileiras de renda longa. Confesso que uma ou duas vezes fui en¬

ganado por esse excesso de atavios — certa ocasião, por acreditar que a mulher seria uma Afrodite por ter um pescoço magro e longo e depois me decepcionar com a gordura de seus quadris; em outra oportunidade, ao des¬

prezar uma bela mulher por um erro de avaliação a que fui induzido pela espessura do tecido de sua roupa, en¬

gano que felizmente corrigi depois.

Já disse, e repito francamente: os salões das precio¬

sas só me interessavam devido às mulheres. Nisso eu era mesmo muito parecido com o rei.

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Em seguida visitei o salão da outra alegada vítima da zombaria do meu amigo, madame de Scudéiy. La Roche- foucauld, que parecia não fazer outra coisa na vida a não ser freqüentar os salões, entretinha, com seus epigra¬

mas, um grupo de admiradores. Ao comentar as precio¬

sas ridículas o duque produziu uma interessante máxi¬

ma, que depois incluiria num livro: nunca nos tornamos tão ridículos como quando pretendemos ser o que não somos.

A Scudéry tinha vinte anos menos do que a sua mentora. Escrevia uma poesia insípida, assinada com o pseudônimo Safo, a poeta grega da Antiguidade, mas era inteligente, algumas vezes me parecia brilhante, outras me parecia bonita. Seus salões, no Marais, eram bem fre- qüentados. Cheguei ao mesmo tempo que o memorialis- ta Chapelain, a quem detestava. Ouvi comentários de que a sátira de Molière fora descabida e preconceituosa. 0 que se pode esperar de um ímpio libertino?, perguntou- me o padre sermonista Jules Mascaron. Não respondi a Mascaron, sempre evito discutir com mulheres e padres.

O salão que visitei depois, para verificar reações das preciosas à peça de Molière, foi o da duquesa de Mont- pensier, La Grande Mademoiselle. Nos salões do belo e luxuoso palácio do Luxemhourg, os convidados eram sempre recebidos por uma orquestra, que podia estar sendo regida por um músico célebre, como Lulli. Na época perturbadora das insurreições da Fronda, a du¬

quesa tomou ativamente o partido dos revolucionários.

Mas Anne-Marie Louise d’Orléans, filha de Gaston d’Or- léans, tio do rei, tinha sangue real, era intocável.

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Eu estimava a Grande Mademoiselle e as pessoas que freqüentavam seu salão, e não vou portanto comen¬

tar suas estroinices. A duquesa, como todos os bem- nascidos, desprezava aqueles que procuravam adquirir de maneira rápida e artificial um lugar importante na sociedade. Achava graça no escândalo, as alusões e críti¬

cas satíricas de Molière não lhe diziam respeito. Como também pareciam não ter afetado a madame de Sévigné, que estava presente. Uma bela viúva, com pouco mais de trinta anos, muito cortejada, mas alheia às propostas ga¬

lantes que lhe faziam.

A Sévigné, como sempre, observava atenta o que acontecia à sua volta. Conversava com a jovem condessa de La Fayette (as madames se frequentavam mutuamen¬

te), que logo depois de se separar do marido viria a esta¬

belecer um dos salões mais bem-conceituados de Paris, na rua Férou, e cujo livro, A princesa de Clèves, obteve um grande sucesso ao ser publicado alguns anos depois da¬

quele nosso encontro. As más-línguas iriam dizer que quem escrevia os livros da La Fayette era Jean Renault de Segrais, um medíocre autor de éclogas e pastorais, mas o meu amigo Boileau, cujo julgamento eu respeitava, con¬

siderava-a a mulher mais inteligente da França e a que melhor escrevia.

A história da Princesa de Clèves, em resumo, é assim:

uma princesa casa-se com um príncipe mas não sente nenhum amor por ele ou qualquer outro homem. Mas um dia se enamora de um belo duque e confessa ao ma¬

rido a sua paixão. 0 marido, comovido com a candura da mulher, promete ajudá-la a superar a paixão. Mas, devo-

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rado por ciúmes, convencido de que a princesa ama o duque,"o marido é acometido de uma forte febre. Para não impedir que a esposa seja feliz com o duque, o prín¬

cipe definha e morre. E o que acontece depois? Aprince- sa, com o caminho livre, casa-se com o duque que tanto ama? Não, recolhe-se a um convento e em pouco tempo também morre. Creio que o sucesso da Princesa de Clèves resultou do contraste entre a pureza dessa princesa, que parece personagem de uma história contada por Charles Perrault,' e o cinismo e a impudência que prevalecem entre nós. É difícil encontrar uma mulher virtuosa em Paris; em nosso meio, honra sem dinheiro, como disse Racine, é apenas uma doença; acreditamos que os valo¬

res morais, como está na Ética de Aristóteles, são um mero produto do hábito, e cultivamos os piores possí¬

veis. (Quando, muitos anos depois, foi publicado o livro de Perrault, Contos de Mamãe Gansa, eu o coloquei na es¬

tante da minha biblioteca ao lado de Princesa de Clèves.) Comecei naquele dia uma doce amizade com a bela marquesa de Sévigné, seduzido não pelas suas belas pa¬

lavras, mas pelo largo decote que usava, deixando à mos¬

tra o seu colo, que talvez pudesse ser um pouco menos opulento, e larga parte das espáduas.

Visitei também o salão da madame de Combalet, a duquesa d Aiguillon, sobrinha de Richelieu. Agora que o todo-poderoso ministro de Luís xin estava morto, o sa¬

lão da duquesa, no Petit Luxembourg, na rua Vaugirard, não apresentava o aspecto concorrido de outrora, quan¬

do muitas pessoas iam lá na esperança de encontrar o cardeal. Porém a duquesa dAiguillon era uma mulher

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inteligente e simples, com quem dava prazer conversar.

Quando Corneille sofreu os ataques grotescos da Acade¬

mia devido à publicação do Cid, a Combalet foi a primei¬

ra a cerrar fileiras em torno do amigo. É bem verdade que o Cid fora dedicado a ela. Gostei de verificar, naque¬

la visita ao seu salão, que se havia entre os presentes al¬

guns ressentidos com Molière, era maior o número dos que não davam importância ao assunto.

Não podia deixar de ir ao salão de Ninon de Lenclos, a quem chamávamos de "a nossa Aspásia”, por possuir a sagacidade e a beleza atribuidas à cortesã grega amante de Péricles. Naquela época da estréia das Preciosas, Ni¬

non tinha trinta e nove anos de idade. Dizem que a vida libertina envelhece as pessoas, mas Ninon era a prova de que essa máxima tem alicerces fracos. O pecado é mais saudável e alegre do que a virtude. Aqueles que trocam o vício pela beatice tornam-se velhos feios e desagradá¬

veis. Era a vida licenciosa de Ninon que a tornava mais bela à medida que envelhecia. Eu encheria muitas pági¬

nas dos meus cadernos se fosse anotar o nome de todos os homens que haviam deitado com ela, uns sem a me¬

nor distinção, outros de nome ilustre, como eu, ou o cardeal Richelieu, que prestou homenagens a Ninon quando a cortesã tinha dezoito anos. Um dos encantos de Ninon é que ela exigia dos amantes que atendessem aos seus caprichos, mas também dava acolhida aos deles.

Eu gostava de ir ao seu salão (ela mudou várias vezes de endereço, o último ficava na rua des Tournelles) para encontrar suas amigas, em um ambiente menos formal do que o dos outros salões. Lá eu usava uma peruca dife -

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