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ESTATUTOS DA POSSE: CONTRIBUIÇÕES PARA O DEBATE DA FUNÇÃO SOCIAL E DA EFICIÊNCIA ECONÔMICA À LUZ DO CÓDIGO CIVIL BRASILEIRO MESTRADO EM DIREITO

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Academic year: 2019

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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO – PUC-SP

MARCOS ALBERTO ROCHA GONÇALVES

ESTATUTOS DA POSSE: CONTRIBUIÇÕES PARA O DEBATE DA FUNÇÃO SOCIAL E DA EFICIÊNCIA ECONÔMICA À LUZ DO CÓDIGO CIVIL

BRASILEIRO

MESTRADO EM DIREITO

(2)

PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC-SP

MARCOS ALBERTO ROCHA GONÇALVES

ESTATUTOS DA POSSE: CONTRIBUIÇÕES PARA O DEBATE DA FUNÇÃO SOCIAL E DA EFICIÊNCIA ECONÔMICA À LUZ DO CÓDIGO CIVIL

BRASILEIRO

Dissertação apresentada à Banca Examinadora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo como exigência parcial para obtenção do título de Mestre em Direito no Programa de Pós-graduação em Direito sob a orientação do Professor Doutor José Manoel de Arruda Alvim Netto.

(3)

i

TERMO DE APROVAÇÃO

BANCA EXAMINADORA

(4)

ii

(5)

iii AGRADECIMENTO

Ao Professor Doutor José Manoel de Arruda Alvim Netto, pelos ensinamentos compartilhados e pela afável acolhida no percurso desta dissertação, meu mais sincero agradecimento.

Agradeço ainda ao Professor Doutor Luiz Edson Fachin, mestre de todas as horas, cujo magistério nos faz entender porque os lírios não nascem

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iv RESUMO

O processo de apropriação e circulação de bens representa elemento central do ordenamento jurídico e do sistema econômico, especialmente nas sociedades capitalistas. Seu desenvolvimento histórico, sobretudo na transição entre o individualismo liberal próprio da modernidade para a contemporaneidade do Estado Social revela interessante objeto de estudo acerca da função social e econômica do direito de propriedade e da posse, representantes jurídicos deste processo. Partindo-se desta premissa, o objetivo do presente trabalho é analisar a formatação do direito de propriedade e da posse no ordenamento jurídico brasileiro, desde o Código Civil de 1916 até o presente, buscando investigar especialmente o papel da funcionalização da posse na ordem constitucional de 1988. A pesquisa se justifica frente à constatação da manutenção de elementos próprios do individualismo proprietário moderno no direito de propriedade funcionalizado da contemporaneidade, fato que indica certa evolução adaptativa dos conceitos jurídicos em sua relação com a ordem econômica. Buscou-se, assim, a delimitação teórica da propriedade e da posse juridicamente considerados, agregando a tais conceitos as possíveis interpretações colhidas da doutrina quanto ao desenvolvimento da sua funcionalização. Por fim, a pretensão última do estudo foi demonstrar as possibilidades de construção hermenêutica emancipatória da proteção possessória, cuja funcionalização representa maior aderência à perspectiva protetora e concretizadora da dignidade da pessoa humana, no sentido do axioma central e máximo instaurado pela Constituição da República de 1988.

PALAVRAS-CHAVE: PROPRIEDADE PRIVADA – POSSE – FUNÇÃO

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v ABSTRACT

The process of ownership and exchange of goods is a central element of the legal and economic system, especially in capitalist societies. Its historical development, above all in the transition between the liberal individualism distinctive of modern age to the contemporary Welfare State reveals an interesting study subject about the social and economic function of property rights and ownership, representatives of this process. Based on this premise, the goal of this study is to analyze the arrangement of property rights and ownership in the Brazilian legal system, from the 1916th Civil Code to the present, seeking to investigate the role of the ownership functionalization in the Constitutional Order of 1988. The research is justified by the maintenance of typical elements from the individualistic modern property scheme in the contemporary functionalized structure of property right, which indicates the adaptive evolution of certain legal concepts towards the relationship with the economic order. This research sought a theoretical description of property rights and ownership adding to it the possible interpretations and development of the functionalization of such rights. Finally, the last aim of this study was to demonstrate the possibilities of an emancipative hermeneutical construction of ownership protection, whose functionalization represents greater grasp to the concrete protective perspective of human dignity, in the sense of the maximum and central axiom established by the Constitution of 1988.

KEY WORDS: PRIVATE PROPERTY – OWNERSHIP – ECONOMIC

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vi SUMÁRIO

RESUMO... iv ABSTRACT ... v INTRODUÇÃO ... 1 TÍTULO I ELEMENTOS PARA UMA DOGMÁTICA CRÍTICA DO REGIME JURÍDICO DA POSSE E DA PROPRIEDADE ... 7 CAPÍTULO 1 A CODIFICAÇÃO DE 1916 E O CONTEXTO DA PROPRIEDADE E DA POSSE ... 9 SEÇÃO 1.1. O DISCURSO PATRIMONIALISTA LIBERAL E A FORMAÇÃO DO CÓDIGO CIVIL BRASILEIRO DE 1916 ... 9 SEÇÃO 1.2. POSSE E SUA INTERDEPENDÊNCIA COM A DISCIPLINA DA PROPRIEDADE NO CÓDIGO CIVIL BRASILEIRO DE 1916 ... 21 SEÇÃO 1.3. TRANSFORMAÇÕES NO REGIME JURÍDICO DA APROPRIAÇÃO DE BENS: DE 1916 A 1988 ... 34

CAPÍTULO 2 A PERSPECTIVA DA CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA DE

1988 E DO CÓDIGO CIVIL BRASILEIRO DE 2002 ... 46 SEÇÃO 2.1. PROPRIEDADE E POSSE NO SISTEMA CONSTITUCIONAL: DIREITOS INDIVIDUAIS E ORDEM ECONÔMICA ... 47 SEÇÃO 2.2. ASPECTOS DA ESTRUTURA PROPRIETÁRIA NO CÓDIGO CIVIL BRASILEIRO DE 2002 ... 56 SEÇÃO 2.3. ASPECTOS DA ESTRUTURA POSSESSÓRIA NO CÓDIGO CIVIL BRASILEIRO DE 2002 ... 61

CAPÍTULO 3 – ESTUDO DA HIPÓTESE DOS PARÁGRAFOS 4º E 5º DO

(9)

vii

CAPÍTULO 2 – EFICIÊNCIA FORMAL DA PROPRIEDADE ... 114

SEÇÃO 2.1. O DIREITO PRIVADO INSERIDO NAS RELAÇÕES ENTRE DIREITO E ECONOMIA ... 114

SEÇÃO 2.2. PROPRIEDADE E MATRIZ ECONÔMICA CONTEMPORÂNEA ... 124

SEÇÃO 2.3. FUNÇÃO ECONÔMICA DA PROPRIEDADE ... 130

CAPÍTULO 3 – POSSE, ESTADO SOCIAL E DIREITOS FUNDAMENTAIS ... 135

SEÇÃO 3.1. A POSSE COMO DIREITO AUTÔNOMO ... 136

SEÇÃO 3.2. A EFICIÊNCIA SUBSTANCIAL DA POSSE ... 146

SEÇÃO 3.3. ANÁLISE DE JURISPRUDÊNCIA ... 154

CONCLUSÃO ... 166

(10)

1 INTRODUÇÃO

A temática do direito de propriedade se alça no centro dos pressupostos que estimulam o exame que aqui se apresenta. Elemento integrante da base histórico-social da formação do direito clássico, ainda se projeta, com intensidade, no direito contemporâneo, oscilando entre concepções mais ou menos rígidas ou abstratas.

Arrosta-se aqui o desafio de apreender suas razões modernas e suas luzes matizadas pelo sistema que se projetou nas respectivas codificações.

Tais codificações integram a fundação discursiva da modernidade, que se apresentou como o triunfo de uma dada racionalidade individualista, fundada nas relações sociais e econômicas, independentes dos vínculos intersubjetivos.

O patrimônio (e sua segura circulação), representados juridicamente pela tutela aos direitos de propriedade, foi elevado ao status de elemento fundante da

sociedade, nucleando principalmente o ordenamento jurídico privado europeu ocidental construído ao longo do século XVIII.

Inserem-se ainda, nesse tratamento dogmático, a liberdade e a igualdade formais, completam a tríade fornecida pelo direito moderno para o desenvolvimento das relações de troca e exercício do domínio sobre as coisas.

Com a crise do liberalismo e o advento do Estado Social, porém, a atuação dos mecanismos jurídicos reverte-se, especialmente no que toca à propriedade privada e à posse dos bens, na imposição de deveres sociais coligados ao domínio proprietário, estatuídos, em regra, como deveres.

O representante normativo de tais obrigações traduz, na concepção jurídica contemporânea (ao menos naqueles países que se alinham com a tradição romano-germânica), o princípio da função social.1

Partindo-se dessas premissas, o presente estudo buscará analisar o papel da propriedade privada e, especialmente, da posse no transcurso histórico da modernidade à contemporaneidade, com particular atenção às suas concepções da função social e da função econômica inseridas neste contexto.

Como é cediço, a posse e a propriedade são elementos que historicamente habitam os textos jurídicos, em especial as famílias romano-germânicas. Ao menos

1 O direito pátrio não foge a este modelo histórico. Eis a enunciação da Constituição da

(11)

2 desde as origens do direito romano, nomeadamente o da compilação justinianéia, até a mais contemporânea legislação, a relação de poder dos sujeitos que compõe a sociedade em relação aos bens é objeto de atenção e tentativa de regulação ordenada.

Por opção metodológica, haja vista os limites e possibilidades da presente análise, somado ao recorte teórico eleito, deixar-se-á de aprofundar o resgate histórico dessa relação entre sociedade e apropriação de bens, tomando-se como recorte temporal e ponto de partida o Código Civil de 1916, sem deixar de resgatar aqueles traços que emergem necessários à compreensão do tema.

Não se autoriza confundir, com tal opção, que o elemento histórico e cultural será deixado de lado nesta tentativa de enfrentamento do problema, mesmo porque a adequada apreensão do presente se dá na medida em que se compreende o passado. As possíveis respostas para o estado atual da matéria (onde estamos?)

certamente se busca no lugar “de onde viemos” e se projeta no cais que se intenta

aportar.

O estabelecimento do ponto de partida no Código de 1916 encontra explicação nas características do modelo político e econômico que influenciou a construção do citado diploma, relevantes para a percepção da realidade hodierna sobre o tema.

Por outro lado, a presente pesquisa dedica especial atenção ao conteúdo constitucional relacionado à posse e à propriedade, especialmente na construção do sistema encartado na Constituição de 1988. Marcada por uma formatação principiológica, a Constituição da República ora em vigência fixa os pilares sobre os quais se sustenta o ordenamento jurídico. A Constituição surge com o desígnio de ser não apenas instituidora das linhas mestras da organização estatal, mas sim de toda a sociedade.2

No caso do tripé formador das relações privadas (relações familiares, titularidades e contratualidade), o guia constitucional aponta para a permanente preocupação de concretização da dignidade da pessoa como fim último das relações jurídicas.

2 Conforme ensina Konrad Hesse, ao estudar a Constituição alemã. Ver: HESSE, Konrad.

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3 Sobre tal temática leciona Bilbao Ubillos a propósito da discussão do princípio da dignidade humana que

tiende a superar el tradicional aislamiento de la Constitución del resto del ordenamiento, tiene una gran transcendencia en la medida en que impide que el Derecho Constitucional y el Derecho privado puedan concebirse como compartimientos estancos, como mundos separados, que discurren en paralelo y están gobernados por lógicas radicalmente diferentes.3

Neste cenário, abrem-se aos conceitos de posse e propriedade novas (e necessárias) possibilidades hermenêuticas, com importantes consequências práticas, rompendo com a concepção moderna fundada no ficcionismo da igualdade formal do primado da segurança jurídica.

Posse não mais tão somente é, como se tentará demonstrar, “a defesa avançada da propriedade”, como preceituava a teoria oitocentista,4 passando a ocupar um locus de especial interesse para a concretização da função social que se

impõe aos bens.

A ascensão do “ser” em relação ao “ter” flui para a construção teórica do

direito civil contemporâneo, atingindo certamente a tutela jurídica da propriedade e da posse.

O que se está a tratar, ou ao menos o que se intenta problematizar, diz respeito a eventual contribuição que pode o direito oferecer ao enfrentamento de questões como a concentração fundiária e a especulação imobiliária, vivenciadas em uma República que se pretende um Estado Democrático de Direito.

Evidentemente tais problemas extrapolam a esfera jurídica e compõe-se, primordialmente, de questões de política de Estado. De toda sorte, não pode o instrumental jurídico ser enclausurado em sua formalidade estéril, postando-se de costas a situações que afrontam a dignidade humana.5

3 BILBAO UBILLOS, Juan. Maria. ¿En qué medida vinculan a los particulares los derechos

fundamentales? In: SARLET, Ingo Wolfgang. (Org.). Constituição, Direitos Fundamentais e Direito

Privado. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2003. p. 304.

4 Importantíssima não apenas em seu tempo e espaço, mas também na construção da

racionalidade crítica contemporânea. Sobre o tema, ver: IHERING, Rudolf Von. A Teoria

Simplificada da Posse. Trad.: Vicente Sabino Junior. São Paulo: Bushatsky, 1974. Passim.

5 De acordo com o último censo do IBGE a pobreza extrema abrange cerca de dez por

cento da população brasileira, abarcando 20 milhões de pessoas. Impende esclarecer que “A linha de

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4 Não se propõe, assim, a utilização do direito para tutelar o desrespeito à legalidade e o atentado a direitos constitucionalmente reconhecidos como fundamentais. O que se está a tratar é a utilização do instrumental jurídico para o abrandamento de uma realidade injustamente excludente.

Por outro lado, é preciso que se admita que a evolução social não espelha, no processo histórico ora posto à análise, ruptura estrutural com o modelo moderno de apropriação. O advento do Estado Social não parece ter decomposto o legado da modernidade, principalmente quanto à propriedade privada e à posse dos bens.

Levanta-se a questão, portanto, acerca do alcance da propriedade ressignificada, quiçá definindo-a como a reprodução da hegemonia da racionalidade moderna, fechada no positivismo estrito que atende apenas a racionalidade do mercado.

Em tal perspectiva, o interesse disposto no presente estudo é o de analisar em que medida a função da propriedade e, especialmente, a função da posse, se apresentam como elementos de conexão entre as relações econômicas e a regulação prestada pelo direito.

Destarte, optou-se metodologicamente pelo estudo da conexão entre conceitos teóricos e dogmatismo positivado, tomando-se como objeto exemplificativo de estudo a disposição trazida nos §§4º e 5º do art. 1.228 do Código Civil de 2002 (antes ausente do ordenamento civilista brasileiro).

Com o enfrentamento da árida matéria estampada pelo dispositivo legal, pretende-se compreender a complexa relação entre posse, propriedade, princípios sociais constitucionalmente considerados e a relação econômica advinda da apropriação dos bens.

O estudo que se apresenta sobre a temática, longe de pretender esgotá-la, tem como fito contribuir na construção global da pesquisa, sugerindo um dentre tantos outros possíveis ângulos de se mirar a complexidade que envolve a questão.

Eis o problema que propulsiona o exame aqui proposto: indagar os limites impostos pela função social da propriedade e da posse, distinguindo os determinantes próprios do modo de produção capitalista e as possibilidades hermenêuticas de concretização dos princípios constitucionais centrados na dignidade da pessoa humana.

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5 papel da funcionalização no transcurso da propriedade e da posse tal como inscritas no Código Civil brasileiro de 1916 aos conceitos ressignificados pela matriz constitucional de 1988 e no Código Civil de 2002.

Para cumprir com tal desiderato o trabalho se apoia em um plano bipartido: de um lado, o estudo da dogmática crítica do regime jurídico da posse e da propriedade e, de outro, aspectos da funcionalização desse discurso e de sua adaptabilidade à ordem econômica. Cada um desses pilares se desdobra em elementos de reflexão próprios, a saber:

No primeiro plano mencionado, em um primeiro momento analisar-se-ão os elementos conformadores da dogmática crítica do regime jurídico da posse e da propriedade, tendo como ponto de partida a codificação de 1916, representante normativo do discurso jurídico liberal da modernidade, que beneplacita o fenômeno possessório como dependente da disciplina jurídica da propriedade.

Avançando nessa perspectiva conformativa, observar-se-á, em uma segunda etapa, a formação do discurso constitucional da apropriação de bens, à luz dos direitos fundamentais e da ordem econômica constitucionalmente introjetada.

Avulta, como elemento final desse primeiro pilar do trabalho, a análise do Código Civil de 2002 e a conformação do regime jurídico proprietário e possessório. Sublinha-se, nesta seara, sobretudo, o estudo exemplificativo dos parágrafos 4º e 5º do artigo 1.228 do Codex como hipótese normativa do que ilustra as ideias da

presente reflexão.

Já no segundo pilar referido, tendo como pressuposto o arcabouço normativo exposto, o objeto de estudo tem seu foco na apreciação crítica do discurso jurídico da funcionalização da propriedade e da posse.

Nessa etapa, primeiramente, objetiva-se estudar a conformação da funcionalização para demonstrar a evolução adaptativa do discurso jurídico à ordem econômica.

Isso feito, o enfoque do exame à eficiência da propriedade como fundamento da matriz econômica contemporânea.

Por fim, no último ponto de análise da presente reflexão, sublinhar-se-á, inclusive por meio de jurisprudência crítica e construtiva, o estudo da posse como um direito fundamental autônomo, com maior aderência ao projeto constitucional.

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6 O direito não é imune aos fatos e nem se basta em si mesmo. Sem perder a condição de

locus privilegiado para a proteção jurídica das relações sociais, abre-se para o tempo, o espaço e as circunstâncias. É científico sem deixar de ser essencialmente ideológico e é

revelador de premissas políticas mesmo quando proclama suposta imparcialidade.6

Firmado em tais premissas e pautado no objetivo ora enunciado é que se edifica o desafio presente neste trabalho.

6 FACHIN, Luiz Edson. Estatuto jurídico do patrimônio mínimo. 2. ed. Rio de Janeiro:

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7 TÍTULO I ELEMENTOS PARA UMA DOGMÁTICA CRÍTICA DO REGIME JURÍDICO DA POSSE E DA PROPRIEDADE

A fim de percorrer o caminho proposto, o marco histórico inicial adotado para a análise que se propõe fixa-se na codificação civil brasileira de 1916, especialmente no tratamento que aquele conjunto de normas conferiu à propriedade e à posse.

Interessa observar quantum satis em tal perspectiva os elementos

históricos, sociais e econômicos que influíram na formatação daquele diploma legal, bem assim aprofundar a investigação acerca da influência e reflexo de tais elementos na compreensão contemporânea do tema.

Trata-se, assim, da investigação acerca da localização da propriedade e da posse, como categorias jurídicas, no discurso liberal próprio das codificações surgidas sob a influência do movimento codificador, particularmente do Código Civil francês de 1804.

Sob tal enfoque, a apreciação exposta adiante pretende fundamentalmente apreender a relação de dependência havida entre posse e propriedade no regime jurídico implantado pelo Código de 1916, com fito a demonstrar o papel predominante da titularidade. Referido intento toma como premissa a construção doutrinária eleita como guia para o tratamento jurídico da posse, indicada, naquele momento histórico, como tutela avançada da propriedade.7

Tal ordem de ideias recebe novos e oxigenados contornos com as transformações que se projetaram na Constituição da República de 1988, marco (quando menos simbólico) da inserção dos valores próprios do Estado Social no Brasil.

A abertura axiológica propiciada pela Constituição indicou, ainda que a seu modo, a inserção na legislação civil de perspectivas redivivas quanto à localização do sujeito e sua relação com os bens.

Nesse contexto, as mudanças presentes no Código Civil de 2002, atreladas à necessária hermenêutica constitucional aplicada às relações

7 Mister desde já ressalvar, como se fará mais detalhadamente adiante, que a

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8 privadas, forjam o arcabouço do qual parte o enfrentamento do problema ora proposto.

Outrossim, destina-se também o presente trabalho à investigação do transcurso histórico antes anunciado em relação à posse e a propriedade, lançando ao final breve análise dos parágrafos 4º e 5º do artigo 1.228 do Código Civil brasileiro, com intuito exemplificativo dos argumentos lançados.

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9

CAPÍTULO 1 A CODIFICAÇÃO DE 1916 E O CONTEXTO DA

PROPRIEDADE E DA POSSE

No presente capítulo expõe-se, por intermédio de uma das possíveis formas de se compreender o modelo jurídico proprietário, a regulação contida no Código Civil de 1916, suas origens e seu desenvolvimento até o advento da Constituição de 1988, formulando-se com isso o substrato do qual serão extraídas as raízes para o estudo da posse e da propriedade contemporâneas.

Por opção metodológica, dadas as características e necessidades do estudo em curso, toma-se como ponto de partida desta análise o contexto da codificação civil de 1916, apresentando-se, nas seções que seguem, o desenvolvimento da propriedade e da posse, desde a edição de tal diploma até a codificação vigente.

Não há dúvida que se impõe a análise da construção do pensamento jurídico que informou o diploma de 1916, bem assim o seu desenvolvimento, especialmente quanto às múltiplas possibilidades interpretativas da norma, vivenciadas até a promulgação da Constituição da República de 1988.

Isso feito, a fixação do termo final deste segmento da temática explicita-se também sob caráter didático. É que a alteração no ordenamento jurídico inaugurado com a Constituição de 1988, por sua importância paradigmática, receberá, neste estudo, espaço próprio.8

SEÇÃO 1.1. O DISCURSO PATRIMONIALISTA LIBERAL E A FORMAÇÃO DO CÓDIGO CIVIL BRASILEIRO DE 1916

Embora temporalmente distante dos movimentos culminantes da inicial formatação codificadora do direito europeu moderno, o Código Civil brasileiro de 1916 é fruto deste modelo de regulação da sociedade projetada com a ascensão da burguesia, especialmente advinda das revoluções vivenciadas na Europa nos séculos XVII e XVIII.

8 Afirmar-se nessa análise a importância dos fundamentos históricos do tema, e

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10 Trata-se de um arquétipo marcadamente ocidental e eurocêntrico, fundado nas necessidades e reclames daquele continente, que buscava alternativas para a sociedade feudal que não mais respondia aos interesses sociais em evolução.

A promoção da burguesia está diretamente ligada à ascensão de uma forma diferenciada de organização econômica, o capitalismo. Eroulths Cortiano Jr., ao estudar o tema na perspectiva do direito civil moderno, aponta:

Dois grandes movimentos o Renascimento e a Ilustração iniciam a formatação do

direito moderno. No plano político do primeiro constituíram-se os Estados, primeiramente absolutistas e depois liberais; no plano cultural do segundo firmou-se a hegemonia ideológica da burguesia, o que iria impulsionar a mentalidade individualista da modernidade. Partindo daí, podem-se enxergar as origens e os fundamentos do discurso proprietário da modernidade, para o qual colaboraram o surgimento dos Estados modernos, a supremacia da lei, um sistema econômico

baseado na circulação de riquezas e uma visão individualista da sociedade.9

Há, pois, neste momento histórico, a estruturação da intricada relação social, jurídica e econômica que marca a arquitetura do capitalismo, que desde então se torna hegemônico nas sociedades ocidentais, com a fixação evidente dos seus elementos estruturantes: a propriedade, a liberdade e o primado da segurança jurídica necessária para a circulação de riquezas.

Com essa configuração, o modelo de sociedade, inclusive, em boa medida, aquela forjada pela Revolução Francesa, dá origem ao Código Civil dos franceses (Code Civil), promulgado, em 1804, pelo Imperador Napoleão I

(o que atribui a este diploma a denominação usual de Código Napoleônico). O paradigmático Código tem como modelo inspirador as disposições presentes naquele contexto, incluindo a documentação inglesa do Bill of Rights,

de 1689, e a Declaração do Homem e do Cidadão, de 1789 – ambos os programas normativos que fixavam na propriedade privada o ponto de irradiação da tutela jurídica, conforme verifica Luiz Edson Fachin:

A propriedade, para a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, consistiu em direito inviolável e sagrado. Tanto o Código francês quando o Código italiano de 1865, estatuíram que a propriedade é o direito de gozar e dispor do bem de modo absoluto. A partir da constituição Weimar, há progressivo reconhecimento de uma ordem econômica e social com implicações para a questão da propriedade, de forma

9 CORTIANO JÚNIOR, Eroulths. O discurso jurídico da propriedade e suas

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11

a construir uma nova etapa frente ao já superado laissez faire, laissez passer. A

Revolução Francesa procurou dar um caráter democrático à propriedade, abolindo privilégios, cancelando direitos perpétuos, porém, este fito da burguesia ficou diretamente condicionado aos seus interesses econômicos e políticos, de forma que a propriedade alterava suas concepções tradicionais para servir a uma nova classe

social em busca de poder: a burguesia.10

No mesmo sentido, Fabrício Pasquot Polido:

O liberalismo clássico trilhou o percurso rumo à positivação do direito de propriedade como direito individual e constitucionalmente assegurado (e aqui bastaria a recordação aos chamados “direitos de primeira geração”), desde o surgimento da

concepção moderna do direito de propriedade no Bill of Rights, de 1689, até atingir

seu ápice com a ampla regra do Artigo 17 da Declaração de Direitos do Homem e do Cidadão de 1789, em que a propriedade é considerada bem “sagrado e inviolável” (sacrée et inviolable). Mesmo na tradição alemã, antes da promulgação da

Constituição de Weimar, o §164 da Constituição do Reich de 1849 também buscava

justificar aquela concepção clássica do iluminismo, estabelecendo ser inviolável a

propriedade.11

Não obstante, representou o Código Civil francês a primeira conformação do direito privado submissa à afirmação do individualismo moderno, informada pelas premissas formais fundamentais da sociedade europeia do início do século XIX: liberté, egalité et fraternité.

Foi o individuo livre e apto a contratar e tornar-se proprietário que o

Code reconheceu e buscou tutelar, mesmo sendo este sujeito uma abstração

formal, como reconhece Carlos Eduardo Pianovski Ruzyk:

O indivíduo livre e proprietário (e que é livre por ser proprietário) será o elemento

central na estruturação do Código Civil francês – e na definição da função dos

institutos jurídicos ali disciplinados.

O indivíduo é, com efeito, umas das formas de compreensão da sociedade que,

pautando-se em abstrações conceituais – no caso, a abstração do indivíduo

atomizado – sustenta a dicotomia entre indivíduo e sociedade.12

É, sem dúvida, a propriedade privada o elemento central do Código Napoleônico, reverberando a sua proteção e tutela em todos os elementos conformadores positivados. Trata-se do núcleo de interesses da legislação

10 FACHIN, Luiz Edson. A função social da posse e a propriedade

contemporânea: uma perspectiva da usucapião imobiliária rural. Porto Alegre: Sérgio Antonio Fabris, 1988. p. 16.

11 POLIDO, Fabrício Pasquot. A Constituição de Weimar de 1919 e o conteúdo

normativo da “Função Social” dos direitos proprietários. Revista Trimestral de Direito Civil, Rio de Janeiro, v. 27, p. 3-47, jul./set. 2006. p. 41.

12 RUZYK, Carlos Eduardo Pianovski. Institutos fundamentais do direito civil e

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12 privada codificada, exprimindo, neste aspecto, os anseios que a sociedade burguesa buscava ver atendidos (ou respeitados) pelo Estado.

Ao que se depreende, trata-se da garantia formal do Estado às relações privadas, fazendo dos sujeitos de direito senhores de suas vontades individuais. Neste sentido, reside na propriedade privada e em seu livre trânsito o espaço jurídico da liberdade.

O caráter da propriedade é definido, na lição de Carlos Eduardo

Pianovski Ruzyk, “como o „mais absoluto‟ com base em uma concepção teórica que vincula propriedade e liberdade, mas com os olhos voltados a uma

finalidade clara: sepultar o sistema de domínio feudal”.13 Nesta vereda, prossegue o autor:

É conhecida a repercussão que a propriedade individual (e nessa medida, antifeudal)

exerce sobre o Code. Sendo a propriedade a “alma universal da legislação”, seria de

se esperar que ela fosse também o fio-condutor da estrutura da codificação.

Nada obstante o primeiro livro do Código Civil de 1804 seja intitulado “Das Pessoas”,

a pessoa a que ele se refere é qualificada pelos dois livros seguintes: “Dos bens e

das diferentes modificações da propriedade” e “Dos diversos modos pelos quais se adquire a propriedade”. (...)

A qualificação do Code por Halpérlin como “breviário dos proprietários” parece,

portanto, bastante adequada. Seria possível dizer, em complemento: um breviário dos proprietários “livres”, e que são livres porque são proprietários.14

É de se observar que o conceito de propriedade privada constituído pelo Código Civil francês, ainda que hegemônico, não representa a forma pronta e acabada de apropriação dos bens pelos homens.

Trata-se de modelo adequado às necessidades daquela sociedade que, em maior ou menor grau, evoluiu sem perder sua essência, nos mesmos moldes de desenvolvimento do modo de produção que lhe suporta e que aponta ressignificado na contemporaneidade. É que aduz Laura Beck Varela:

A propriedade, “modelo antropológico napoleônico-pandectista”, consagração de uma

visão individualista e potestativa, é apenas uma dentre múltiplas respostas encontradas, nas múltiplas experiências jurídicas do passado e do presente, à eterna questão dos vínculos jurídicos entre homem e coisas. O termo singular, abstrato, formal é inadequado para descrever a complexidade das múltiplas formas de

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13 apropriação da terra, que antecedem a formulação unitária, correspondente ao

período das codificações.15

Esta forma de propriedade constitutiva do sistema de base do Código Napoleônico, eleita, como se viu, dentre as diversas experiências históricas e culturais da relação dos sujeitos com as coisas apropriáveis, tem como pano de fundo a concepção política e econômica do individualismo segundo a doutrina de John Locke.

A partir da elucidativa doutrina civilística pertinente, vê-se que Locke localiza no trabalho individual a justificativa para a propriedade privada, legitimando, a um só tempo, o individualismo característico da modernidade e a busca pela acumulação dos bens, especialmente aqueles passíveis de serem convertidos em dinheiro.16

É justamente este modelo de propriedade que se verifica presente no Código Civil dos franceses, conforme bem aponta Francisco Cardozo Oliveira:

O modelo de propriedade acolhido pelo Código Napoleônico é tributário do pensamento político de John Locke, para quem o fundamento da propriedade repousa no trabalho individual. No “Segundo Tratado sobre o Governo”, ao fazer a defesa da propriedade privada da terra, Locke afirma que a medida da propriedade é dada pela quantidade de trabalho do homem e pelas necessidades de sua vida. Conforme assinala José Maria Lasalle Ruiz, o pensamento político de Locke legitima conceitualmente o individualismo proprietário, na proporção em que o entendimento humano aparece atrelado à atividade de acumulação, decorrente da apropriação

racional e individual de coisas no mundo.17

Destarte, a propriedade moderna, elemento chave da racionalidade presente nas codificações oitocentistas próprias do modelo liberal, é mensurada por sua representatividade econômica, refletindo relações sociais

15 VARELA, Laura Beck. Das propriedades à propriedade: construção de um direito.

In: MARTINS-COSTA, Judith. (Org.). A reconstrução do Direito Privado. São Paulo: RT,

2002. p. 732-733. Neste sentido, interessante mencionar que se verifica da posição da

propriedade privada no Code uma busca pelas raízes romanas, como forma de afastamento da

(des)construção vivenciada pelo Antigo Regime, bem como pelo interesse na elaboração de

conceito que focasse suas luzes nos bens imobiliários. Assim, conforme aponta Orlando de Carvalho, “esse retorno à propriedade romana marcou o ruralismo do Code Napoléon, que,

pela concepção de jus civile, molda o seu droit des biens sobre o arquétipo da coisa corpórea

e, dentro desta, dos bens imobiliários, com manifesta primazia da propriedade rústica”. Cf.:

CARVALHO, Orlando de. Direito das coisas. Coimbra: [s.n.], 1977. p. 38.

16 OLIVEIRA, Francisco Cardozo. Hermenêutica e Tutela da Posse e da

Propriedade. Rio de Janeiro: Forense, 2006. p. 107-108.

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14 nas quais a concepção do pertencimento se dá pela atuação no trânsito das titularidades.18

O centro dos interesses sociais, para o qual convergem os instrumentos de poder, é ocupado, na modernidade, pela hegemonia da propriedade, como leciona Pietro Barcellona:

El proprium es reificado mediante la mercantilización y se constituye en una objetividad separada del individuo, una potencia objetivada que parece tener vida propia e incluso goberna las relaciones entre los hombres, que se transforman precisamente, sujetos abstractos de derecho. El individuo que se libera, libera pues la propiedad de los vínculos personales, políticos y sociales. Pero la propiedad liberad se constituye en una objetividad separada del individuo e incluso gobierna su conducta según las leyes del cálculo económico.19

A esta ordem de ideias está intrínseca o direito de propriedade. Homens iguais e livres necessitam de segurança e previsibilidade para participarem das relações de troca e exercício do domínio sobre as cosias, e é ao direito que cumpre garantir tais condições.

Para o atendimento desta função, coube ao direito privado (especialmente por meio da positivação), afirmar o discurso da absolutização da propriedade espraiando à proteção possessória.

Isto porque, como bem expõe Paolo Grossi, o sujeito eleito a ser tutelado pelo ordenamento jurídico moderno é o sujeito de direito, abstrato, que

se compreende por meio daquilo que possui. Referenda, ainda, o autor italiano:

Desde LOCKE en adelante ha fundado todo dominium rerum sobre el dominium sui y ha visto la propiedad de las cosas como manifestación interna – cualitativamente idéntica – de aquella propiedad intrasubjetiva que cada yo tiene de sí mismo y de sus talentos, propiedad ésta absoluta porque corresponde a la natural vocación del yo de conservar y robustecer lo suyo. En otras palabras, un ‗mío‘ que, como veremos después, se convierte en inseparable del ‗yo‘ y que inevitablemente se absolutiza. Es el éxito de una visión no armónica del mundo, pero exquisitamente antropocéntrica según una bien individualizada tradición cultural que, exasperando la invitación consignada en los textos sacratísimos de las antigás tablas religiosas a dominar la

18

Veja-se, neste aspecto, a lição de Laura Beck Varela: “O âmbito do mercado será o espaço privado dessa libertação do homem em relação aos poderes verticais da sociedade anterior, a medida em que se tecia uma complexa rede de relações horizontais, baseada no modelo das trocas, supostamente livre de poder e de dominação. O direito de propriedade, neste contexto, surge como o „código de liberdade das pessoas‟, baluarte das liberdades individuais contra a ingerência do Estado. A construção deste direito-símbolo da ideologia liberal é resultado de um longo processo, cujas raízes filosóficas remontam à teologia voluntarista do medievo, passando pelas contribuições da Escola do Direito Natural e do individualismo possessivo de matriz empirista”. Cf.: VARELA, Laura Beck. Op. cit., p. 201-202.

19 BARCELLONA, Pietro. El individualismo propietario. Trad.: Jesús Ernesto García

(24)

15

tierra y a ejercitar el dominio sobre las cosas y sobre las criaturas inferiores, legitimaba y sacralizaba la insensibilidad y el desprecio por la realidad no humana. De estos cimientos especulativos nace aquella visión individualista y potestativa de propiedad que hemos acostumbrados llamar la ‗propiedad moderna‘.20

Inseridos neste contexto, os mecanismos jurídicos prestam-se ao enquadramento regulador do individuo, atuando na preservação do equilíbrio da tensão constante entre detentores e não-detentores dos meios de produção.21

Esse cenário político, econômico e social vivenciado na Europa do início do século XIX influencia diretamente a formatação das normas de direito privado no Brasil, ainda que com certo atraso.

Quando da entrada em vigor do Código Civil de 1916, vigia no Brasil a ordem constitucional estabelecida com a promulgação da República, em 1889. Para a compreensão tanto do texto constitucional quanto do conteúdo do Código Civil, é imperioso recordar que a colonização brasileira efetivamente iniciou-se pela apropriação do território segundo os interesses econômicos extrativistas da coroa portuguesa, constituindo-se a ocupação com a instauração das capitanias hereditárias. Das doze capitanias instituídas, poucas prosperaram, mas sua criação foi válida para a formação de núcleos de povoamento.

20 GROSSI, Paolo. La propiedad y las propiedades. Un análisis histórico. Trad.:

Angel M. López y López. Madrid: Civitas, 1992. p. 32-33.

21 Sobre o tema, colha-se de Henrique da Silva Seixas Meireles o seguinte

: “A crítica do Direito do presente burguês procura revelar a função do Direito na reprodução das relações capitalistas de produção, a partir (da determinação) do significado histórico-presente das

categorias que constituem a matriz (T. Kuhn) do sistema jurídico burguês-capitalista. E a

investigação histórica demonstra, por comparação, que o pressuposto do funcionamento ideológico-epistemológico das categorias jurídicas constitutivas da razão jurídica, típicas de

outro modo de produção, equivale no modo de produção capitalista à „ideologia do sujeito‟ (J.

Lacan), quer dizer, à transformação do homem real na „Pessoa‟ – definida desde a Idade Média

pela Teologia (F. Engels) – e na correlativa transformação do homem-produtor no sujeito, no

sujeito de direito, agente das trocas”. Em trecho diverso, prossegue o autor: “O direito romano

torna-se a „ratio scripta‟ da sociedade capitalista. E tal como Marx frisa na Miséria da Filosofia,

contra a „metafísica‟ da economia política, agora –rectius desde a Pandectística –, é o direito a

essência da sociedade civil e não a sociedade civil a essência do direito, tal como é o „século que pertence ao princípio e não o princípio ao século‟. A historia do direito moderno (Cerroni) é

de facto a história da inversão, e a história da „ciência jurídica‟ acaba por ser in nuce a história

da adaptação do direito romano e das suas categorias ao modo de produção capitalista. Neste

sentido, a historia do direito moderno é, fundamentalmente, a história da generalização

progressiva das categorias derivadas da esfera da circulação de bens, „marcada‟ sobretudo

pelo par persona e res – à totalidade do processo de produção capitalista”. MEIRELES,

(25)

16 As capitanias eram arranjos quase que independentes entre si, o que, de um lado, aprofundava a dispersão de um poder central e, de outro, dava aos donatários poder, a rigor, absoluto.

Na tentativa de conferir certa centralidade e garantir a hegemonia da Coroa, instituiu-se o sistema de governadores gerais, sem contudo obter êxito na pretensão de aglutinação política e administrativa.

O modo de divisão e administração do território já delineia as características do Estado brasileiro que surgiu posteriormente, bem assim o tratamento jurídico da ocupação e apropriação da terra.

A vinda da família real ao Brasil, em 1808, em decorrência da invasão napoleônica em Portugal, e a permanência de Dom Pedro de Alcântara no território brasileiro quando do retorno da realeza à metrópole diante da Revolução do Porto, contribuíram para o desenvolvimento de uma infraestrutura no território da então colônia.

Tal desenvolvimento, por sua vez, contribuiu para a intensificação dos movimentos emancipatórios e para a independência do Brasil, declarada em 07 de setembro de 1822.

É nesse cenário que surge a primeira Constituição Brasileira, outorgada pelo Imperador em 25 de março de 1824 e marcada pelo forte centralismo e absolutismo político.

Especificamente ao que toca ao direito de propriedade, a Constituição Imperial, mantendo a tradição burguesa sob influência da elite dominante portuguesa da qual o próprio Imperador era representante, consagrou a propriedade como direito absoluto.

Eis o articulado do documento constitucional que espelha tal ordem de ideias:

Art. 179. XXII. É garantido o Direito de Propriedade em toda a sua plenitude. Se o bem publico legalmente verificado exigir o uso, e emprego da Propriedade do Cidadão, será elle préviamente indemnisado do valor della. A Lei marcará os casos, em que terá logar esta unica excepção, e dará as regras para se determinar a

indemnisação.22

22 Texto disponível em: BRASIL. Portal do Planalto.

(26)

17 Esta estrutura imperial, todavia, começa a se alterar diante das diversas circunstâncias sociais que eclodiram, sobretudo, durante o segundo reinado. O enfraquecimento da Monarquia culminou, em 15 de novembro de 1889, com o afastamento do Imperador e a proclamação da República pelo Marechal Deodoro da Fonseca.

Surge, assim, a República dos Estados Unidos do Brasil, com a promulgação da primeira Constituição Republicana em 24 de fevereiro de 1891.

Ainda sob forte inspiração da ideologia liberal burguesa, o que se reflete no que Paulo Bonavides cunhou como “aperfeiçoamento liberal dos direitos da pessoa humana”,23este documento teve como relator o Senador Rui Barbosa e como paradigma o modelo de organização política, sobretudo, norte-americano.24

Nesse paradigma liberal, a proteção do direito de propriedade é praticamente absoluta e, como no texto anterior, contava com a limitação mínima do interesse público, in verbis: “O direito de propriedade mantém-se em

toda a sua plenitude, salvo a desapropriação por necessidade ou utilidade

pública, mediante indenização prévia”.25

Sobre a mantença do paradigma proprietário inaugurado no Império

atestam Bonavides e Paes de Andrade: “o direito de propriedade viu-se também com a ordem republicana erguido a sua plenitude máxima. Confirmava-se a tradição clássica do Estado Liberal a esse respeito. A única ressalva era a desapropriação por necessidade ou utilidade pública, mediante prévia indenização”.26

Por suas características coloniais, desde o início da ocupação europeia no território que viria a formar o Brasil, verificou-se o surgimento de uma classe

23 BONAVIDES, Paulo; ANDRADE, Paes de. História Constitucional do Brasil. Rio

de Janeiro: Paz e Terra, 1991.p. 251.

24 É justamente daí que provém uma das críticas desta Constituição que pouco

dialogava com a realidade pátria do momento. Na lição de Bonavides e Andrade: “... uma cousa (sic) foi a ordem constitucional formalmente estabelecida pela vontade da Assembléia

Constituinte, onde se patenteara o primado da ideologia de elite da classe burguesa – que já

recuara para posições comodamente conservadoras de sustentação de seus interesses – e

outra coisa muito diferente, a realidade e a organização social da nação republicana, proveniente da crise do cativeiro e da derrubada das instituições imperiais”. ( Ibid., p. 251).

25 Artigo 72, parágrafo 17 da Constituição Republicana. BRASIL. Portal do Planalto.

<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constitui%C3%A7ao91.htm>. Acesso em: 12 jul. 2011.

(27)

18 dominante eminentemente ligada à terra. Se na França revolucionária constatou-se a propulsão da burguesia urbana, a estrutura política do Brasil esteve, desde seu início colonial até meado do século XX, conectada ao ambiente rural.

Tal configuração apresenta-se como forte influência na criação das leis que regulavam as relações privadas e econômicas, e que deram origem ao Código Civil de 1916.

Esse domínio político e econômico oriundo da apropriação das terras é fundamental, segundo Luiz Edson Fachin, para a compreensão da lente pela qual os ideais presentes no Código Civil francês foram introduzidos em nosso ordenamento. Leciona o jurista:

O domínio dos senhores da terra que se arrastou da era colonial, passou incólume pelo primeiro e segundo império, atravessou o século XIX, e fincou raízes no quadro econômico que desenhava o novo século que principiava no Brasil.

Foram os mesmos que construíram o Império, forjaram a Independência e projetaram-se para o século XX. Com eles afeiçoada veio a disciplina jurídica do patrimônio e das coisas: campos e cidades nascem e se organizam sob sua dominação. Financistas, negociantes e latifundiários traduzem da economia para o Direito a herança do regime colonial. Sob as luzes do positivismo, edificam-se os

regimes jurídicos. Lapida-se aí o Código Civil brasileiro de 1916.27

Não é outra a conclusão apresentada por Orlando Gomes, que ao analisar o período de construção do primeiro Código Civil brasileiro, de 1899 a 1916, aponta:

O quadro econômico e social em que se processa a obra dos codificadores, de 1899 a 1916, deve ser traçado, em suas linhas gerais, para a melhor compreensão do sentido da codificação, melhor aferição de seu valor, e melhor fixação de suas coordenadas.

A esse tempo não se iniciara o processo de transformação da economia brasileira, que a guerra mundial de 14 viria a desencadear. A estrutura agrária mantinha no país o sistema colonial, que reduzia a sua vida econômica ao binômio da exportação de matérias-primas e gêneros alimentares e da importação de artigos fabricados. A

27 FACHIN, Luiz Edson. O Estatuto Constitucional da proteção possessória. In:

FARIAS, Cristiano Chaves de. (Org.). Leituras Complementares de Direito Civil: o Direito

(28)

19 indústria nacional não ensaiara os primeiros passos. Predominavam os interesses

dos fazendeiros e dos comerciantes.28

A leitura do Código Civil de 1916 sob este duplo prisma (a influência do positivismo individualista centrado pelo Código Napoleônico e as características agrárias e economicamente pouco desenvolvidas do Brasil) fornece uma perspectiva interessante acerca da propriedade e da posse tomadas como conteúdos jurídicos.

Um primeiro passo a ser observado no Código de 1916, neste sentido, é a prevalência dos interesses individuais em todo o conteúdo da norma, focada na proteção e perpetuação do patrimônio. Assim, conforme define Francisco

Cardozo Oliveira, “a disciplina jurídica dos institutos jurídicos no Código,

notadamente no âmbito dos direito reais, coloca em primeiro plano a tutela dos interesses individuais, a natureza abstrata da concepção de sujeito titular de direitos e o aspecto patrimonial da relação jurídica”.29

Ainda sobre o Código Civil revogado, Lênio Luiz Streck assevera:

Concebido para uma sociedade (pré) liberal-burguesa, deu tratamento privilegiado às “coisas” (afinal, o Código estabelece com “muita propriedade” como se deve comprar coisas, vender coisas, emprestar coisas, doar coisas, trocar coisas, devolver coisas, registrar coisas, fazer testamentos sobre as coisas, como se defender quando alguém invade “suas coisas”, etc.), (...) em detrimento de pessoas e, fundamentalmente, da

coletividade.30

28 GOMES, Orlando. Raízes históricas e sociológicas do Código Civil brasileiro.

2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2006. p. 25. Neste mesmo sentido, prossegue o professor baiano: “Os grupos dominantes da classe dirigente – a burguesia agrária e a burguesia

mercantil – mantinham o país subdesenvolvido, porque essa era a condição de sobrevivência

dos seus privilégios econômicos e da sua ascendência social no meio em que viviam. Por esse interesse fundamental explicam-se suas inclinações ideológicas. Para defendê-lo encontram no liberalismo econômico suas mais adequada racionalização.”. Afirma, ainda: “O Código Civil é obra de homens da classe média, que o elaboram nesse estado de espírito, isto é, na preocupação de dar ao país um sistema de normas de Direito privado que corresponde às aspirações de uma sociedade interessada em afirmar a excelência do regime capitalista de produção. Mas esse propósito encontrava obstáculos na estrutura agrária do país e não recebia estímulos de uma organização industrial a que se somasse o ímpeto libertário da burguesia mercantil. A classe média, que o preparou por seus juristas, embora forcejasse por lhe imprimir um cunho liberal, e progressista, estava presa aos interesses dos fazendeiros, que, embora coincidentes imediatamente com os da burguesia, não toleravam certas ousadias. Numerosas e concludentes são as provas de que o pensamento dominante na elaboração do Código Civil sofreu a influência desse desajustamento interno entre os interesses da classe dominante”. Ibid., p. 26-27; 30-31.

29 OLIVEIRA, Francisco Cardozo. Op. cit., p. 144.

30 STRECK, Lênio Luiz. A Constituição e o constituir da sociedade: a função social da

propriedade (e do direito) – um acórdão garantista. In: STROZAKE, Juvelino José. (Org.).

(29)

20 E prossegue:

Toda essa concepção ideológica do sujeito-proprietário-de-mercadorias teve fértil terreno para se reproduzir no modo-de-fazer-e-interpretar o Direito no Brasil. Em nossos dias é possível dizer que predomina/prevalece (ainda) o modelo de Direito instituído/forjado para resolver/regular relações e conflitos de índole interindividual, como se a sociedade fosse a soma de pequenas mônadas... ou seja, no campo da dogmática jurídica de cunho tradicional (e dominante), o Direito é visto como

mecanismo para resolver disputas interindividuais.31

Seguindo de certa forma fiel às concepções teóricas do individualismo e do liberalismo que orientaram a construção das codificações inspiradas no

Code, verifica-se na construção legal brasileira o apego ao formalismo

conceitual e absolutista, distante, porém, das questões efetivas que demandavam atuação do Estado em uma sociedade repleta de contradições. Francisco Cardozo Oliveira bem aponta esta característica do Código de 1916 ao lecionar:

Os desajustes econômicos e sociais causados pelo exercício dos poderes proprietários não encontram tutela no arcabouço jurídico do Código Civil de 1916. Ao assimilar os paradigmas do conceitualismo e as premissas da filosofia liberal, o Código tratou apenas do aspecto formal do direito de propriedade e, convenientemente, negligenciou a necessidade de assegurar efetividade material ao

direito, à luz dos valores da realidade fática.32

No âmbito do formalismo legal acima referido, verifica-se do texto do art. 524 do diploma de então a clássica dicção tripartite que emana da propriedade, vale dizer, o direito de usar, gozar e dispor dos bens33 do qual o sujeito é titular, passando a tratar, na sequência, dos modos formais de aquisição e perda da propriedade.

A norma reflete preocupação evidente com a cartularidade e as garantias jurídicas de segurança formal no trânsito dos bens objeto de domínio, atribuindo-se ao Código (e a legislação do direito privado como um todo) a responsabilidade pela ordenação das trocas econômicas e acumulação de bens suscetíveis à transformação em pecúnia.

Nem se cogitou qualquer tratamento relativo à função social da propriedade, posto que tal tema era por completo divorciado da racionalidade

31 Ibid., p. 40.

32 OLIVEIRA, Francisco Cardozo. Op. cit., p. 149.

33

Art. 524. “A lei assegura ao proprietário o direito de usar, gozar e dispor de seus

(30)

21 que informava a concepção daquele Código, como observa José de Oliveira Ascensão:

O século XIX trouxe a vitória das concepções individualistas, nos Direitos Reais, como aliás em todo o Direito. Tomou-se como bom o postulado da necessária coincidência do interesse singular com o interesse coletivo. Por consequência, nem teria sentido invocar a função social da propriedade; ou então se quiséssemos, a propriedade atingiria tanto mais certeiramente a sua função social quanto menos

entraves se lhe opusessem. Assim se chega à propriedade absoluta.34

Eis o cenário jurídico no qual foi instituído pela norma civil de 1916, (o primeiro Código Civil brasileiro) marco fundante do tratamento dogmático da propriedade brasileira, cujas raízes se estendem, em maior ou menor medida, até a contemporaneidade.

Daquela construção emergia, ainda, o discurso jurídico atinente à posse, tema a que se dedica a seção seguinte.

SEÇÃO 1.2. POSSE E SUA INTERDEPENDÊNCIA COM A DISCIPLINA DA PROPRIEDADE NO CÓDIGO CIVIL BRASILEIRO DE 1916

Inicialmente, como uma das premissas que informa todo o conteúdo deste trabalho, cumpre afirmar que a abordagem feita doravante se restringe à matéria relativa à posse das coisas.

Não se olvide, porém, a relevância do aprofundado estudo que se encontra na doutrina nacional e estrangeira acerca dos limites e possibilidades da caracterização da posse que eventualmente recaia sobre outros direitos ou mesmo a posse de algum estado de pessoa. Não obstante serem tais temas relevantes e intrigantes, o corte metodológico definido e fixado nesse estudo é aquele relativo à posse sobre coisas.

Fixada tal premissa, afirma-se que o tratamento jurídico da posse é tema recorrente no estudo da história do direito, remontando às construções

34 ASCENSÃO, José de Oliveira. Direito Civil. Reais. 5. ed. Coimbra: Coimbra, 1993.

(31)

22 clássicas.35 Coerente com o método de análise do estudo atinente à propriedade, já apresentado, a abordagem agora parte do conceito de posse que informou a construção do Código Civil de 1916. É fundamental, para tanto, breve apresentação da construção do pensamento jurídico que levou a esta formação legislativa, em especial as teorias subjetiva e objetiva da posse, cuja relevância tal definição.

Nesta toada, a primeira construção teórica a ser versada ao analisar a

temática é aquela produzida por Friedrich Carl von Savigny, na obra “Tratado da Posse”, publicada em 1803. Na referida obra, Savigny desenvolve a denominada teoria subjetiva da posse, adiante explicitada à luz da doutrina civilística.

Savigny dedicou grande parte de sua atividade acadêmica ao estudo da história do direito, especialmente às instituições do direito romano, fazendo com que a teoria da posse produzida pelo autor alemão possuísse como base e fundamento a construção romanista sobre o tema. O método de pesquisa adotado consistia justamente em uma compreensão aprofundada da matéria no âmbito do direito romano e a distinção entre os conceitos atemporais, cuja abstração indicava sua utilidade técnica, e aqueles cuja condução do direito clássico ao momento vivenciado pelo autor não se mostrava viável.36

Referida observação é relevante diante do período da publicação dos estudos de Savigny. Inserido na ascensão do racionalismo jusnaturalista, o autor optou por método diverso desse que ganhava força, vinculando-se à

35 Sobre o tema,

veja-se: “A grande contribuição romana em matéria possessória situa-se no âmbito da tutela do fato da posse. A proteção possessória surgiu como prática do

ius honorarium consolidado pelo trabalho do pretor de utilizar dos interditos para assegurar a

posse daquele que, não sendo proprietário, ocupava o ager publicus. A origem da proteção

possessória, portanto, está inserida na esfera do direito público romano. Os interdicta

retinendae possessionis causa e os interdicta reciperandae possessionis causa protegiam a

posse sem considerar qualquer relação com o direito de propriedade. (...) O tratamento da posse no direito romano, porém, teria se afastado da valoração material do fato da posse para conceber a posse como direito até fazê-la dependente da existência do direito de propriedade. A passagem das concepções de posse como fato para a do direito da posse. Expressa no

conceito de animus domini, tornou-se possível, segundo os estudiosos do direito romano, em

virtude da construção conceitual posterior aos textos romanos”. Cf.: OLIVEIRA, Francisco Cardozo. Op. cit., p. 82-83.

36 No que concerne ao método de pesquisa adotado por Savigny, aponta Renan

(32)

23 análise dogmática de construções pretéritas fundadas em formas muito diversas de construção do pensamento.

Justamente por tal distinção, concluiu Savigny ser a posse um fato que repercute no mundo jurídico. Referido fato manifesta-se, no plano material, pelo

corpus e pelo animus.

Segundo a expressão do criador da teoria subjetiva da posse, corpus é

o poder material e exterior exercido sobre a coisa, a conexão física do sujeito com o bem. Animus, de outra parte, é a vontade de possuir, o elemento

intelectual que expressa a intenção do possuidor em conectar-se à coisa como se pertencente a si.

Assim, para constituir-se a posse como valor juridicamente considerado deveriam estar presentes tanto um quanto outro elemento. Pontes de Miranda define assim a conjugação entre corpus e animus: “O corpus não é só a

aproximação espacial; pode essa existir sem êle. Corpus e animus são

inseparáveis, como a palavra e o pensamento. Desde o momento em que se dá o ato de apreensão, a proximidade transforma-se em relação possessória: nascem corpus e animus”.37

Por outro lado, a conexão com a coisa sem o caráter volitivo de tê-la como sua significa, segundo a teoria ora expressada, mera detenção.

É de se notar que a denominação de teoria subjetiva da posse deve-se

ao elemento qualificador da relação do sujeito com a coisa, vale dizer, a vontade do sujeito de tê-la como sua. A subjetividade presente em tal elemento caracteriza a posse, segundo a criação de Savigny, como relação jurídica dependente da investigação da intenção psíquica do sujeito, aspecto pelo qual foi criticada pela doutrina que se prestou ao seu estudo.38

37 MIRANDA, Pontes. Tratado de Direito Privado. Parte Especial. Direito das coisas:

posse. 3. ed. t. 10. Rio de Janeiro: Borsoi, 1971. p. 31.

38 Nos termos das críticas enfrentadas pela teoria subjetiva da posse, aponta Orlando

Gomes: “Ao exigir o animus domini como requisito indispensável à configuração da posse, a

(33)

24 A profundidade e completude da criação teórica de Savigny foram, por outro lado, reconhecidas até por aqueles que se opunham ao seu pensamento sobre a posse.

Rudolf Von Ihering, o principal oponente teórico de Savigny e criador da teoria objetiva da posse, não deixou de distinguir o brilhantismo de seu antecessor, sendo a teoria subjetiva da posse de extrema influência na criação e desenvolvimento das teorias que a seguiram.

A partir do estudo crítico da teoria subjetiva da posse, Ihering compilou sua própria doutrina sobre o tema na separata “Teoria Simplificada da Posse”, publicada junto com a obra “Estudos sobre a teoria da posse” em 1868.

Cumpre mencionar que as reflexões produzidas por Ihering estavam

inseridas em contexto histórico no qual “o mundo europeu vivia o triunfo do

liberalismo, do individualismo e também o início das codificações”,39 sendo apreensível a influência do pensamento liberal na construção doutrinária por ele produzida.

É neste contexto que o ponto de partida da obra de Ihering fixou-se na construção teórica da relação existente entre posse e propriedade, especialmente para compreensão das situações nas quais o proprietário não fosse o possuidor da coisa. Nestes termos, segundo a teoria de Ihering, a posse seria o exercício de um poder de fato sobre a coisa, representando a exteriorização da propriedade, caracterizada esta como o exercício do poder de direito sobre o bem.

Eis, sobre o tema, a expressão própria do autor:

O fato e o direito, tal é a antítese a que se reduz a distinção entre a posse e a

propriedade. A posse é o poder de fato, e a propriedade é o pode de direito sobre a

coisa. Uma e outra podem encontrar-se na pessoa do proprietário, e podem também se separar. (...)

A propriedade sem a posse seria o mesmo que um tesouro sem a chave que o abrisse, uma árvore frutífera sem a escada necessária à colheita de seus frutos. A utilização econômica consiste, de acordo com a diferente natureza das coisas, em “uti, fruti, consumere”.40

Possibilita a teoria objetiva da posse o reconhecimento do poder sobre a coisa exercido pelo não-proprietário, sem que isso faça surgir,

39 FACHIN, Luiz Edson. AFunção Social..., p. 26.

40 IHERING, Rudolf Von. A Teoria Simplificada da Posse. Trad.: Vicente Sabino

(34)

25 necessariamente, um risco ao direito de propriedade. Isto porque, nos termos desta teoria, tanto o poder de fato pode se distanciar do proprietário por subtração não concedida, o que geraria a posse injusta, como pode ser pelo proprietário livremente transferido a outrem, transmissão que embasa ao que se denomina de posse justa.

Insiste Ihering na afirmação de que a propriedade sem a posse perde seu conteúdo econômico, vez que somente por meio da posse o proprietário pode exercer os poderes atinentes ao título de domínio. A posse é, nesta toada, a relação jurídica a partir da qual se protege o direito de propriedade.

Leciona, ainda, o autor da teoria objetiva:

Dans la possession, le propriétaire se défend contre les premières attaques tentées contre son droit. Sur ce terrain ne se livre point une bataille décisive pour la propriété, mais une simple escarmouche, un combat d'avant-postes, dans lequel, pour continuer la comparaison, il ne faut pas de grosse artillerie, mais l'arme blanche seulement, — contre les voleurs et les brigands on n'use pas du canon!.41

Em complemento, eis o resumo proposto por Ihering acerca da conceituação jurídica da posse:

1. A posse é indispensável ao proprietário para a utilização econômica de sua propriedade.

2. Donde resulta que a noção de propriedade arrasta necessariamente o direito do proprietário à posse.

3. Não existiria esse direito se o proprietário não estivesse protegido contra o arrebatamento injusto da posse. A proteção jurídica contra todos os atentados injustos à posse do proprietário, consistente na sua retirada ou não sua turbação, forma um postulado absoluto da organização da propriedade.

4. A questão de saber, se a exemplo do direito romano, a proteção do direito de possuir do proprietário deve ser ampliada mesmo contra os terceiros possuidores, à para o legislador uma questão aberta que ele pode resolver e que resolveu num ou

noutro sentido.42

41IHERING, Rudolf von. Études Complémentaires de L'Esprit du Droit Romain II:

fondement des interdits possessoires. 2ª ed. Paris : Marescq, 1882. p. 50. Tradução livre: “Na posse o proprietário defende-se contra os primeiros ataques contra seu direito. Neste terreno, não se dá uma batalha decisiva para a propriedade – mas um simples confronto, um combate de postos avançadas – na qual, para continuar a comparação, não há artilharia, basta a arma branca – contra ladrões e assaltantes que não usam arma.

Referências

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