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Ética e religião em Gilles Lipovetsky: uma análise da obra “A sociedade pós-moralista” MESTRADO EM CIÊNCIAS DA RELIGIÃO

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Renato de Lima da Costa

Ética e religião em Gilles Lipovetsky:

uma análise da obra

“A sociedade pós-moralista”

MESTRADO EM CIÊNCIAS DA RELIGIÃO

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Renato de Lima da Costa

Ética e religião em Gilles Lipovetsky:

uma análise da obra

“A sociedade pós-moralista”

MESTRADO EM CIÊNCIAS DA RELIGIÃO

Dissertação apresentada à Banca Examinadora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, como exigência parcial para obtenção do título de MESTRE em Ciências da Religião, sob a orientação do Prof. Dr. João Décio Passos.

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Banca Examinadora:

______________________________

______________________________

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Dedico este trabalho ao meu Senhor e Salvador Jesus Cristo, cujo sublime amor para comigo foi demonstrado em sofrimento voluntário numa cruz.

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Agradeço primeiramente a Deus reconhecendo a sua bondade para comigo me ajudando no desenvolvimento de cada etapa desta pesquisa.

Agradeço à minha querida esposa Silvia pelo amor, companheirismo e pelas palavras de encorajamento durante todo o curso.

Agradeço aos meus pais por tudo o que me ensinaram e pelo que representam para mim.

Agradeço ao meu orientador Prof. Dr. João Décio Passos pela excelente orientação cujo fruto se vê na finalização deste trabalho.

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A presente dissertação expõe o pensamento de Gilles Lipovetsky, analisando de forma específica a obra A sociedade pós-moralista, na qual o autor trata detalhadamente da questão ética na contemporaneidade. No âmbito da tradição filosófica francesa, Lipovetsky propõe um estudo de fenômenos sociais mais específicos, tendo como objeto central a sociedade hipermoderna. Nesta sociedade determinada pelo consumo, a ética coloca-se sob novos parâmetros. Na obra supracitada, o autor dedica-se a compreender os paradoxos que circulam as discussões em torno da questão ética, constatando que uma ética do pós-dever, cujo propósito se volta para a satisfação plena dos desejos subjetivos dos indivíduos nas mais variadas ações, determina hoje as relações sociais dos indivíduos nas esferas sociais. A teoria do autor a respeito da ética do pós-dever traz elementos significativos para uma melhor compreensão da questão religiosa, sobretudo em sua dimensão ética. As contribuições do autor apontam para a emergência de uma religião secularizada a gravitar no cenário social dado, cujas características são expostas nesta dissertação. Ao contrapor as considerações de Lipovetsky com as teorias de outros autores, é possível perceber a existência de pontos convergentes e divergentes nas propostas éticas que eles apresentam. A análise de Lipovetsky se mostra pertinente para a discussão de uma possível ética global, comum a todos os povos.

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The present dissertation exposes the thought of Gilles Lipovetsky by examining specifically his book The post-moralistic society, in which the author treats in detail the ethical issue in contemporaneity. Under the French philosophical tradition scope, Lipovetsky proposes a study of more specific social phenomenons, by having as central object the hypermodern society. In this society determined by consumption, the ethics puts itself under new parameters. In the book mentioned above, the author is dedicated to understanding the paradoxes that circulate the discussions around the ethical issue, he notes that an ethics of post-obligation, whose purposes is the full satisfaction of the subjective desires of individuals in the most variety of actions, today determines the social relations of individuals in the social spheres. The author's theory concerning to the ethics of post-obligation brings significant elements for a better understanding of the religious issue, especially in its ethical dimension. The contributions of the author pointed to the emergence of a secularized religion to gravitate in the given social setting, whose characteristics are exposed in this dissertation. By opposing the considerations of Lipovetsky with the theories of other authors, it is possible to realize the existence of convergent and divergent points in the ethical proposals that they present. Lipovetsky's analysis shows itself pertinent to the discussion concerning to the possibility of a global ethics, common to all peoples.

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Introdução

...11

Capítulo I: Lipovetsky: um olhar sobre a sociedade atual

...15

1. A França e a Filosofia do Iluminismo...16

2. A filosofia francesa e a crítica da sociedade contemporânea...19

3. O debate em torno das categorias propostas como definição da contemporaneidade...24

4. Situando o pensamento de Gilles Lipovetsky...32

5. Categorias principais da filosofia de Gilles Lipovetsky...39

5.1. A emergência dos tempos do hiper: a hipermodernidade...40

5.2. O individualismo consumado: o hiperindividualismo... ...44

5.3. Para além da exibição social: o hiperconsumo...50

Capítulo II: A ética na sociedade pós-moralista

...56

1. A constatação do movimento ético na sociedade atual...57

2. As matrizes clássicas da ética...61

2.1. Primeira matriz: a ética subordinada à religião...62

2.2. Segunda matriz: a ética civil...65

2.2.1. O surgimento da modernidade...65

2.2.2. A sacralização do dever...68

2.2.2.1. Os reflexos da ética do dever na esfera sexual...70

2.2.2.2. Os reflexos da ética do dever na esfera familiar...71

2.2.2.3. Os reflexos da ética do dever na esfera do trabalho social...72

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3.3. Os reflexos da ética do pós-dever na esfera da saúde...84

3.4. Os reflexos da ética do pós-dever na relação entre o indivíduo e seus deveres para consigo mesmo...86

4. Proposições éticas para os tempos do hiper...89

4.1. Rumo a uma nova moral?...90

4.2. Rumo a um mundo sem valores?...95

4.3. Rumo a uma ética de responsabilidade?...99

Capítulo III: Elementos sobre religião no pensamento de Lipovetsky

...103

1. A religião na contemporaneidade...105

2. Uma religião secularizada...110

2.1. A espiritualidade do consumo...112

2.2. O fim de um altruísmo de sacrifício e a emergência de um altruísmo indolor de massa...116

2.3. O trabalho voluntário cujo fim é o indivíduo que o realiza...122

2.4. A tolerância indiferente...125

2.5. Um pluralismo religioso ou uma busca plural do indivíduo religioso?...128

2.6. A manifestação de um neofundamentalismo?...131

2.7. O culto ao ego...133

2.8. O retorno da moral sexual de tradição ou sexo comedido?...136

3. Questões a se considerar...140

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2.1. A proposta de um conjunto de valores globais estruturado sobre um referencial

ambiental...156

2.2. Uma ética global a partir de um diálogo entre as religiões...162

2.3. Para além do individualismo: uma ética global a partir do sujeito...172

3. A sociedade pós-moralista e seu futuro...177

Considerações finais

...181

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- Introdução -

A obra de Lipovetsky se mostra relevante para o estudo de questões relacionadas ao campo da ética. Em A sociedade pós-moralista, o autor rompe com um paradigma já estabelecido que relacionava a ética às prerrogativas do dever, da obrigatoriedade, do comprometimento e engajamento de causas com fins comuns, enfim, à necessidade de considerar o modo como o semelhante será afetado a partir de ações e práticas individuais e posturas assumidas pelos indivíduos em seus mais variados campos de atuação. Na perspectiva do autor, este paradigma marcado por uma lógica do dever está consumado, prevalecendo agora, em tempos hipermodernos, come ele prefere denominar a configuração social e cultural presente, uma lógica do pós-dever, refletindo a emergência de um hiperindividualismo social desconhecido em épocas anteriores.

As correntes campanhas sociais e publicitárias cujo foco de atuação se volta para a conscientização das massas quanto à necessidade de responsabilidade ambiental e social, bem como de respeito ao próximo em sua liberdade de expressão, pensamento e escolha, para o autor, apenas atestam para o imperativo da lógica do pós-dever se impondo em todas as esferas sociais nas quais os indivíduos constroem suas relações, uma vez em que apesar da intensificação de campanhas que promovem mensagens desta natureza, ainda assim o hiperindivíduo não se vê obrigado a se comprometer com o bem estar alheio, a se engajar em favor de causas comuns. À época moralista, dos bons costumes e dos valores partilhados, sobrepõe-se a época pós-moralista, onde indivíduos se engajam sem o estabelecimento de vínculos permanentes, contribuem sem que se sintam obrigados a isso.

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A proposta é a de uma análise do pensamento do autor a respeito do modo como ele trata a questão ética atual e, a partir disto, verificar se as suas constatações fornecem elementos para uma melhor compreensão também da questão religiosa, sendo este o objeto formal da pesquisa. Esta análise será feita a partir de um estudo de seu pensamento, sobretudo na obra A sociedade pós-moralista, obra esta que se constitui como sendo o objeto material. O que o objeto apresenta a respeito de ética e religião no pensamento de Lipovetsky, os pontos em comum e os pontos conflitantes entre as duas realidades na perspectiva do autor, as possíveis relações de influência que uma esfera exerce sobre a outra, as suas considerações a respeito disto e as suas proposições serão aqui colocadas.

Este projeto de pesquisa pretende contribuir para uma compreensão mais precisa quanto ao modo como as mudanças sociais relacionadas ao campo da ética têm se refletido também no universo das religiões. Ainda que Lipovetsky não tenha uma teoria de religião, pretende-se mostrar como as suas constatações relacionadas ao estudo da ética contribuem para uma análise eficiente da natureza das mudanças inferidas também no campo religioso, quando em sua dimensão ética, moral e comportamental, em virtude deste campo, de natureza plural, se encontrar também localizado dentro de contextos sociais específicos, portanto, não podendo escapar das transformações que a eles incorrem. A fim de se ter uma melhor compreensão a respeito do objeto proposto, outras obras do autor também serão estudadas.

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grandes movimentos sociais em prol de causas solidárias com a hipótese que de que se presencie hoje um individualismo mais hiperindividualista do que em tempos passados.

Há ainda alguns problemas acerca de qual seria o reflexo das mudanças correntes no campo da ética no universo das religiões. Em que a lógica do pós-dever, com os seus imperativos e prerrogativas singulares, e sobre a qual Lipovetsky fundamenta a razão das mudanças no campo ético da contemporaneidade, implica também no campo religioso? Lipovetsky considera ser possível encontrar no universo destas mudanças sociais elementos que permitam identificar na sociedade um retorno do sentimento de responsabilidade para uma prática solidária mais consistente, cujos reflexos também possam ser encontrados na religião? É possível, a partir desta suposta constatação, dizer da manifestação de um sentimento religioso voltado para uma dimensão prática solidária mais que dogmática na contemporaneidade? Ou pelo contrário, presencia-se exatamente o seu oposto, ou seja, uma intensificação do sentimento de aversão à prática religiosa?

Essas e outras questões são levantadas pelo próprio objeto desta pesquisa quando colocado em questão, e pretende-se ponderar a respeito delas de forma coerente a fim de se ter considerações que possam apontar para descobertas relevantes.

Como hipótese, essa pesquisa pretende constatar se o pensamento de Lipovetsky, sobretudo em sua análise precisa da questão ética atual, pode fornecer elementos para uma melhor compreensão também das mudanças inferidas no campo religioso contemporâneo. Como sub-hipótese, pretende-se constatar se as mudanças, deslocamentos e rupturas com paradigmas passados para a emergência de novos paradigmas no campo ético atestam para a manifestação de uma religião secularizada permeando o cenário social contemporâneo.

A pesquisa bibliográfica está disposta no seguinte percurso metodológico. Num primeiro momento, tornou-se imprescindível uma leitura mais precisa do conjunto de obras de Lipovetsky a fim de que um melhor entendimento do todo do seu pensamento fosse possível. A partir disto, foi feito também um levantamento de outros autores que trabalham com conceitos e teorias que contribuem para uma melhor compreensão acerca da questão ética. A partir disto, optou-se pelos títulos que mais se aproximam dos objetivos a que este estudo se propõe. Por fim, os textos levantados foram lidos e avaliados em vista de uma melhor compreensão das principais considerações dos autores.

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por estes autores, destacam-se as suas colaborações no intuito de despertar as consciências para a necessidade de elaboração de um projeto de ética global, a saber, um conjunto de valores mínimos que possam ser compartilhados por indivíduos de contextos sociais, culturais e de crenças distintos, em virtude de grandes problemáticas, como a questão ambiental e os conflitos armados, que colocam em dúvida a possibilidade de sobrevivência da humanidade nos tempos futuros. Tais propostas, seguramente relevantes, são confrontadas com as constatações de Lipovetsky a respeito da sociedade contemporânea.

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- Capítulo I -

Lipovetsky: um olhar sobre a sociedade atual

O primeiro capítulo dessa dissertação apresenta primeiramente um panorama histórico da tradição filosófica francesa, pontuando suas principais contribuições para o desenvolvimento da disciplina, bem como para promover mudanças e rupturas no cenário social, cultural e político não somente no seu universo de atuação particular, ou seja, a própria França, mas também em todo o Ocidente, e também apresenta de forma breve quais foram os seus principais representantes, bem como as teorias que propuseram.

Após um breve olhar acerca da filosofia do iluminismo, cujo centro e auge ocorreram na França, e cuja prática de elaboração e aplicação dos conceitos a apresentava como uma disciplina filosófica mais voltada para uma análise e crítica do contexto histórico-social do que para a elaboração de grandes teorias, há também um tópico dedicado a uma análise do modo como se constituiu a crítica à modernidade que a filosofia francesa produziu durante todo o século XX, com pensadores como Foucault, Sartre, Lyotard e Baudrillard, entre outros.

Esse panorama mostrará que a filosofia de Lipovetsky se enquadra dentro de uma tradição filosófica marcada pela crítica ao contexto histórico social de seu tempo. Lipovetsky é influenciado por pensadores que o precederam, como Lyotard e Baudrillard, mas também os ultrapassa quando propõe como objeto de estudo acadêmico fenômenos sociais até então renegados pela filosofia, pelo menos quanto à necessidade de uma abordagem filosófica mais rigorosa que ofereceria as condições básicas para uma compreensão séria da complexidade desses fenômenos.

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que o influenciaram e, por fim, uma síntese das principais categorias de análise de sua filosofia, como a hipermodernidade, o hiperindividualismo e o hiperconsumo.

1. A França e a filosofia do iluminismo

A França possui uma tradição filosófica relevante tendo sido o país que serviu como o centro da filosofia do iluminismo. Alguns nomes, em especial, tiveram uma participação direta no estabelecimento deste movimento cultural e intelectual iniciado no final do século XVII, e que tinha como objetivo principal enaltecer a razão e suas potencialidades à categoria de entidade humana provedora de liberdade de reflexão e pensamento, a despeito dos pressupostos determinantes da religião. Foi a filosofia do iluminismo a corrente filosófica responsável pela exaltação de novas possibilidades de concepção e interpretação do mundo daquela época.

Para que se compreenda em que consistiu a filosofia do iluminismo, bem como sua origem e propósito, faz-se necessário atestar para o fato de que ainda que o seu início seja localizado historicamente a partir das últimas décadas do século XVII ou início do século XVIII, muitas de suas concepções foram, de fato, pensadas e questionadas previamente ao seu estabelecimento, já no emergir da idade moderna. O iluminismo, portanto, representou uma fase histórica em que essas concepções foram desenvolvidas em construções teóricas mais bem elaboradas. Comentando acerca da Filosofia do Iluminismo, Cassirer considera

Os resultados decisivos, verdadeiramente duradouros, que ela produziu não consistem num conteúdo doutrinal que ela teria tentado elaborar e fixar dogmaticamente. E mais do que isso: ainda que não tenha tomado plena consciência desse fato, a Época das Luzes permaneceu, no tocante ao conteúdo de seu pensamento, muito dependente dos séculos precedentes. Apropriou-se da herança desses séculos e ordenou, examinou, sistematizou, desenvolveu e esclareceu muito mais do que, na verdade, contribuiu com idéias originais e sua demonstração.1

À luz das considerações de Cassirer, a filosofia de Descartes (1596-1650), nesse sentido, representa um tipo de pensamento que, embora tendo influenciado diretamente a corrente filosófica do iluminismo, o precedeu historicamente. Na perspectiva de Descartes, todo indivíduo detinha a capacidade de duvidar e refletir acerca de qualquer objeto,

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capacidade esta que lhe fora atribuída inerentemente, virtudes que lhe conferiam a possibilidade de alcance da verdade e do sentido presente nas coisas e nos fatos que delas decorriam. Descartes, com a instituição do método cartesiano e a elaboração de outras teorias, é reconhecido como um dos pensadores responsáveis pela revolução científica, cujo ápice culminaria num rompimento, nominal e formal, com as prerrogativas impostas pela igreja, instituição dominante na regulação das relações sociais, da moral e do pensamento daquela época.

Assim como a filosofia de Descartes, os experimentos de Newton (1643-1727) também contribuíram diretamente para a formação do pensamento iluminista. Suas descobertas acerca de fenômenos naturais desacreditavam o discurso religioso que, por sua vez, atestava para uma regulação e ação divina presente em cada fenômeno manifesto pela natureza. Newton demonstrou empiricamente que cada fenômeno seguia um curso natural, lógico e, portanto, desprovido de manipulação de divindades. Os absolutos impostos pela igreja, bem como o seu reconhecimento social como instituição provedora de sentido para a vida começavam a ser questionados.

Mediante o benefício da dúvida, da observação, do experimento e da reflexão, além de outras virtudes outorgadas pela razão, muitos pensadores foram influenciados a crer na suficiência da razão para a regulação e manutenção da vida em todas as suas esferas, como nas relações sociais, na esfera política, da economia e das relações de classes, enfim, a razão desmistificou as respostas limitadas que a religião oferecia e, em fazendo isso, lhe expropriou o potencial de instituição orientadora das massas. Neste sentido, a filosofia de Locke (1632-1704) também foi precursora do Iluminismo. Em sua obra Primeiro tratado sobre o governo civil (1689), Locke critica diretamente a concepção corrente de que os reis detinham direitos, autoridade e benefícios que lhes foram outorgados mediante o querer divino manifestado pelo reconhecimento da igreja. Na segunda parte deste texto, Segundo tratado sobre o governo civil (1689), Locke expõe a sua teoria sobre a criação de um Estado liberal. Foi a criação do Estado o fator determinante para a desvalorização do papel do monarca como representante divino na sociedade e para a conseqüente desestruturação do absolutismo na Inglaterra. Para Locke, todo indivíduo detinha o direito à vida e à liberdade, direitos esses conferidos desde o nascimento.

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governo cujos poderes não fossem concentrados em um representante único, mas sim que fossem divididos, compartilhados, sendo o Executivo, o Legislativo e o Judiciário. Além de Locke e Montesquieu, Voltaire (1694-1778) também argumentou de forma contrária ao regime monárquico, sustentando seus argumentos a partir da contestação de uma lógica de interesses particulares presente em toda ação e dominação monárquica. Era o escopo de interesses privados presente na política realizada pelos monarcas que comprometia o desenvolvimento social em seu todo.

Estabelecendo também uma crítica à sociedade de seu tempo, outro nome relevante na filosofia do Iluminismo foi o de Rousseau (1712-1778). Seu pensamento alcançou relevância ao afirmar que a sociedade era a responsável por extrair a bondade inerente de cada homem, por corrompê-lo em sua natureza e essência.

Descartes, Locke, Voltaire, Montesquieu e Rousseau contribuíram diretamente na concretização dessa corrente filosófica que dominou a França a partir dos fins do século XVII e início do século XVIII. No entanto, foi com a obra Enciclopédia (1751-1772), editada por Diderot (1713-1784) e com a contribuição de muitos outros pensadores, que as suas prerrogativas principais foram difundidas alcançando popularidade em todo o ocidente.

Foram as idéias iluministas que atuaram como fatores determinantes para que novas concepções acerca do governo e da economia, bem como de suas atribuições, fossem levantadas, fazendo da filosofia francesa um instrumento prático de contestação do universo social dado, desde o seu nascimento, auge e também no decorrer de todo o século XIX, quando novas correntes filosóficas surgiram, como o utilitarismo, o marxismo, o positivismo e também o pragmatismo. No entanto, foi principalmente nas últimas décadas do século XIX e durante todo o século XX, que a filosofia francesa produziu uma crítica bastante contundente à modernidade, quando seus principais teóricos apresentaram contestações bem localizadas que apontavam para uma tentativa de abrangência do fenômeno moderno em seu todo, considerando benefícios e malefícios, causas e conseqüências. Evidentemente, dar conta de um fenômeno de tão grande amplitude e de complexidade singular como a modernidade constituiu-se tarefa sobremodo pesarosa e, de fato, sobraram ainda lacunas carentes de observação e análise críticas.

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2. A filosofia francesa e a crítica da sociedade contemporânea

Um dos pensadores que se destacou no cenário filosófico francês em virtude do estabelecimento de uma crítica consistente à modernidade foi Michel Foucault (1926-1984), nascido em Paris, França. A obra foucaultiana é bastante complexa e difícil de ser compreendida sem que se leve em conta o panorama histórico social no qual o filósofo se encontrava inserido. De forma sucinta, pode-se afirmar que os seus escritos se concentram em maior parte numa análise crítica das práticas e das relações de poder oriundas e necessárias com o advento da modernidade. No entanto, Foucault não dirige o seu foco de pesquisa para categorias mais teóricas de análise do poder, ou seja, não faz parte de sua preocupação os temas que dizem respeito à origem do poder, ao seu surgimento e outras questões localizadas apenas no universo teórico da pesquisa, pelo contrário, o filósofo volta o seu olhar para os locais onde as ações práticas do poder são aplicadas de forma mais direta e efetiva, enfim, onde o poder exerce dominação de forma incontestável. É nesta perspectiva que se compreende o desenvolvimento de uma crítica constante em relação às práticas de algumas instituições sociais modernas, como os hospitais psiquiátricos e os presídios, na relação com indivíduos marginalizados pela dinâmica social moderna, doentes mentais, prisioneiros e estrangeiros, entre outros. Para Foucault, que estabelece uma análise em um contexto histórico social bem localizado, a saber, o Ocidente, este grupo de pessoas representa uma ameaça em graus diversos para o padrão social pretendido pela modernidade, sendo necessária a sua exclusão e confinamento em locais que ele denomina de “instituições disciplinares”, como citado anteriormente, os presídios, manicômios, asilos etc.

É em virtude deste foco específico de pesquisa que Foucault cria conceitos como o de “biopoder” ou “biopolítica”, que para ele diz respeito ao controle exercido pelo poder soberano, ou seja, de quem o detêm socialmente, sobre o âmbito dos processos relacionados à natalidade social. Na perspectiva de Foucault, esse controle é exercido a partir de critérios não apenas sociais, mas também relacionados a questões políticas e econômicas, definindo-se, portanto, como mais uma forma de controle e domínio social.

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O rompimento com o modo como as noções de poder, saber e sujeito social eram concebidos pela modernidade, fez com que alguns teóricos considerassem Foucault como um pensador pós-moderno, ainda que o próprio Foucault guardasse ressalvas quanto à aplicabilidade do termo, preferindo antes se dispor a uma discussão mais precisa a respeito de seus significados, questionando também se era plausível uma possibilidade de rompimento com um momento histórico social definido como a modernidade, cujas prerrogativas ainda se faziam ver e ainda influenciavam as relações sociais em seu todo. De fato, a obra foucaultiana é muitas vezes descrita como pós-moderna ou pós-estruturalista, sobretudo em virtude da publicação de trabalhos como História da loucura na idade clássica (1961), O nascimento da clínica (1963), As palavras e as coisas (1966) e A arqueologia do saber (1969),e ainda que Foucault tivesse se filiado ao termo pós-estruturalista, posteriormente ele o renegou afirmando não estar adaptado a uma abordagem formalista.

Além de Foucault, Jean Paul Charles Aymard Sartre (1905-1980), nascido também Paris, França, se destacou no cenário filosófico francês como um dos críticos da modernidade. Em sua perspectiva, os teóricos precisavam atuar de forma mais ativa na sociedade, pensamento este que levou Sartre a se colocar como um filósofo e escritor militante apoiando, sobretudo, causas de esquerda. Nascido em 1905, Sartre se tornou um dos representantes principais do existencialismo ateu. Dentre seus conceitos principais, destaca-se a questão da existência, que de seu ponto de vista, precede a essência quando o ser em questão é o ser humano, e também a questão da liberdade vista como algo para o qual todo homem está condenado.

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mundo que não possuem a mesma capacidade de conhecimento acerca de si próprios e que, portanto, possuem essência definida, como uma caneta ou qualquer outro objeto.

As teorias de Sartre trazem implicações diretas no campo das ações humanas. Sendo o homem o único ser detentor de uma consciência capaz de refletir e pensar a respeito de si mesma e do mundo à sua volta, cabe a si mesmo a responsabilidade única por suas ações, por suas escolhas, opções e por escrever um futuro pretendido. O homem traz consigo a responsabilidade por suas próprias ações e decisões, bem como pelas conseqüências que delas resultam para si mesmo e para o contexto social no qual ele se encontra inserido. Em certo sentido, cada indivíduo torna-se também, então, responsável pela construção do mundo no qual manifesta a sua existência. São estes pressupostos que estarão a definir o conceito de liberdade em Sartre, para quem o homem é responsável pelo seu passado, presente e futuro. Para Sartre, o “homem está condenado a ser livre”.

É este também o fundamento de toda angústia atribuída aos existencialistas, ou seja, um sentimento oriundo da consciência de liberdade de ação, de escolhas, de posturas, portanto, de existência, que cada indivíduo carrega consigo, bem como a consciência de que o exercício desta liberdade afetará diretamente o mundo no qual se vive e os outros também inseridos neste mesmo universo. Segundo Sartre, os conflitos existentes entre os seres humanos são oriundos das escolhas, portanto, das existências individuais manifestas socialmente. Cada indivíduo manifesta a sua existência em virtude de projetos singulares, privados e nos quais se encontra engajado. No entanto, tendo em vista a singularidade dos interesses de cada indivíduo e a liberdade de escolher livremente, interesses privados esbarram no escopo de interesses privados alheios, surgindo daí o conflito. No entanto, o filósofo considera necessário o conflito, portanto, a convivência com o semelhante, afirmando que somente pela convivência mútua um indivíduo pode enxergar-se por inteiro.

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Jean François Lyotard (1924-1998), nascido na cidade de Versalhes, França, é um dos nomes exemplares da filosofia francesa no estabelecimento de uma análise crítica à modernidade no século XX. Sua principal publicação, A condição pós-moderna, de 1979, expressa uma condição de vivência a que se encontram sujeitos os indivíduos no final do século XX. A primeira tradução para o português propunha como título desta obra a expressão

O pós-moderno, no entanto, esta se mostrava ineficaz e limitada no intuito de transmitir com clareza a proposta central do livro, ou seja, de que a pós-modernidade é uma condição e não um estado dado. A falta de correspondência com o título original da primeira tradução para o português poderia sugerir que seu autor se identificava com o suposto fenômeno pós-moderno, assumindo consigo uma postura apologética de suas prerrogativas. No entanto, tal sugestão nunca faria justiça às propostas de Lyotard, pelo contrário, no todo de sua crítica e análise do fenômeno social produzida posteriormente ao lançamento do texto em questão, percebe-se a postura de um filósofo cuja crítica à sugestão pós-moderna se apresenta de forma bastante consistente.

Fazendo uso de um método proposto por Ludwig Wittgenstein, “os jogos de linguagem”, Lyotard considera que o “vínculo social observável é feito de ‘lances’ de linguagem”.2 A partir desta e de outras premissas, Lyotard constrói a sua teoria e a aplica no universo social posto da segunda metade do século XX, mostrando, entre outros levantamentos, as mudanças que estavam em curso na modernidade de seu tempo. Lyotard considera este tempo como aquele que estava a testemunhar do fim da credibilidade antes atribuída aos grandes discursos científicos e políticos, o fim das paixões nacionalistas, dos engajamentos de massa, enfim, é o tempo da desconfiança para com os grandes discursos e promessas antes tão comumente proferidos como ferramentas de engajamento social e unificação das massas. Como resultado deste desencantamento social para com as promessas proferidas, bem como em relação aos grandes ideais proferidos pela modernidade em sua época clássica, Lyotard vê emergir a pluralidade de centros provedores de significação social e a relativização dos absolutos. A sociedade moderna, em sua condição pós-moderna, é aquela cujos atores interpretam vidas isoladas dentro de um contexto social comum. A condição pós-moderna confere aos seus indivíduos essa possibilidade singular e inédita de exibição de narrativas de vida distintas e fragmentadas em um ambiente social único. Mais do que a expressão de uma identidade singular de um grupo, com hábitos, crenças e valores em comum, a sociedade moderna, em sua condição pós-moderna, apresenta um grupo de

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indivíduos que assimilam e interpretam de forma divergente hábitos, crenças e valores comuns, criando possibilidades para a exposição de identidades correspondentes mais a aspirações de foro íntimo do que coletivo.

Além de Foucault, Sartre e Lyotard, muitos outros nomes importantes compuseram a escola filosófica francesa em seu espectro de análise e crítica histórico social durante o século XX, como Morin, Castoriádis, Lefort, Camus, Ricoeur e, entre eles também o do filósofo e sociólogo Jean Baudrillard (1929-2007). Baudrillard desenvolve o conceito de “hiper-realidade”, ou seja, de uma realidade construída socialmente a partir do impacto constante dos veículos midiáticos e de comunicação na sociedade e cultura contemporâneas, conceito este diretamente inferido em outro tema abordado pelo autor, o do simulacro, cuja explanação precisa se encontra em sua obra Simulacros e simulação, de 1981. O conceito de simulacro serviu aos propósitos dos irmãos Wachowski na criação da trilogia Matrix, embora o próprio Baudrillard tenha afirmado posteriormente que o filme não reflete em si a sua teoria por apresentar duas realidades distintas em seu enredo, a realidade propriamente dita e a realidade virtual. Na perspectiva de Baudrillard, ambas as realidades se misturam no universo das relações sociais em que os indivíduos convivem.

Em sua obra, O sistema dos objetos, publicada em 1968, Baudrillard coloca como objeto de sua análise, entre outros elementos, o poder da mídia, da comunicação e da publicidade em sua ação coercitiva sobre os indivíduos levando-os à aquisição de objetos de consumo. Ele pretende mostrar a complexidade de um sistema simbólico existente e determinante nas relações dos indivíduos com os objetos, e entre os conceitos expostos em seu texto, desenvolve o da “lógica do Papai Noel”, afirmando

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miraculosa, completada pelos fatos, interioriza-se em uma crença que é o seu prolongamento ideal.3

Nem o caráter normativo da publicidade que, de fato, se faz de modo muito precário, tampouco as potencialidades do produto em si, são os responsáveis pela decisão de compra do indivíduo, mas sim os benefícios simbólicos agregados à mercadoria e veiculados nas mensagens publicitárias. Para Baudrillard, o indivíduo “não ‘acredita’ na publicidade mais do que a criança no Papai Noel. O que não o impede de aderir da mesma forma a uma situação infantil interiorizada e de se comportar de acordo com ela”.4 Essa temática compreende todo o enredo de O sistema dos objetos, no qual Baudrillard explora as suas infinitas possibilidades abordando ainda questões relacionadas ao que ele denomina de “milagre da compra”, “o objeto abstraído de sua função”, “o objeto-paixão”, “o objeto personalizado”, “o festival do poder da compra”, e outras abordagens.

Essa rápida passagem pela tradição crítica do pensamento francês expõe a preocupação comum dos pensadores: construir uma crítica de sua época em nome da liberdade e do compromisso social. Rompendo com a tradição clássica, o pensamento francês contribuiu na teoria e na prática com a construção da modernidade, bem como com a crítica da mesma em tempos mais recentes.

Lipovetsky é um autor que se localiza na mesma linha dessa tradição filosófica francesa que, como já apontado anteriormente, se caracteriza por uma prática filosófica voltada para uma análise crítica da contemporaneidade. O que o torna singular são as suas abordagens de fenômenos até então considerados marginais pela filosofia, o luxo, a moda, a feminidade, e também uma abordagem mais precisa do fenômeno do consumo e da sua capacidade de inferência e de determinação das relações sociais como se dão.

Após localizar Lipovetsky na tradição filosófica francesa, será considerado a seguir a pessoa do filósofo, sua formação, suas influências e suas principais categorias de pensamento.

3. O debate em torno das categorias propostas como definição da contemporaneidade

Muitos autores têm proposto termos e elaborado categorias que possam definir com maior precisão aquilo que a contemporaneidade tem manifestado e se permitido revelar como

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ordem social atual. Em virtude das correntes mudanças no cenário social, nas relações entre os indivíduos em razão das mudanças e inovações tecnológicas, bem como das ferramentas de comunicação, grande parte dos sociólogos e filósofos consideram que a modernidade atual é diferente daquela conhecida em seu nascimento. Desta forma, este tópico pretende apresentar quais são as principais categorias propostas como definição da contemporaneidade ao longo dos séculos XX e XXI, termos que pretendem encerrar em seus significados a complexidade do fenômeno moderno, ou pelo menos captá-lo com maior sensibilidade.

Modernidade é o termo empregado para classificar a contemporaneidade e cujos representantes resistem à proposição de que haja elementos suficientes para afirmar a emergência de um momento histórico social divergente daquele que nasceu em oposição à era pré-moderna. Anthony Giddens é um dos que compartilham desta afirmação. Para este sociólogo inglês, ainda que as correntes inovações tecnológicas, sobretudo a partir da segunda metade do século XX, e o alargamento das capacidades de comunicação imponham uma dinâmica social que possibilita um modo de organização de vida distinto daquele conhecido em décadas e até mesmo em séculos passados, tais movimentos apenas fazem jus àquilo que a modernidade vem representando desde o seu início, ou seja, uma fase histórica em que a razão vem sendo empurrada para os limites de sua atuação, provendo aos indivíduos modernos todas as condições necessárias para a construção e manutenção de um viver promissor, auto-suficiente e, portanto, alheio às demandas imperativas da religião.

No entanto, ainda que Giddens não se familiarize com outras definições que sugerem uma fase histórica pós-moderna como característica da contemporaneidade, ele reconhece o tempo atual como singular e inovador e adota a expressão Modernidade tardia, ou Alta modernidade para descrever com maior presteza os desencaixes sociais vistos e reconhecidos nas últimas décadas. Como “desencaixes” compreendem-se as complexas mudanças percebidas no cenário social, compreendendo desde as relações sociais entre os indivíduos, incluindo a legitimação de comportamentos antes reprimidos e as novas formas de organização da vida, as inferências da lógica de variação, inovação e exibição pertinentes à lógica da moda nas relações dos indivíduos com os objetos, e as possibilidades de realização social e significação existencial a partir dos engajamentos privados nos empreendimentos de consumo massivos.

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Nas situações a que chamo de modernidade “alta” ou “tardia” – nosso mundo de hoje -, o eu, como os contextos institucionais mais amplos em que existe, tem que ser construído reflexivamente. Mas essa tarefa deve ser realizada em meio a uma enigmática diversidade de opções e possibilidades.5

A tarefa reflexiva proposta por Giddens faz-se relevante também em virtude dos riscos inéditos que incorrem aos indivíduos e que foram introduzidos pela alta modernidade. “O mundo moderno tardio [...] é apocalíptico não porque se dirija inevitavelmente a calamidade, mas porque introduz riscos que gerações anteriores não tiveram que enfrentar”.6 Há o risco da não possibilidade de manutenção do eco sistema, apontando para o fim eminente dos fornecimentos de vida abundante, há o risco de um colapso da economia mundial, do aumento no número dos desfavorecidos e marginalizados pelo sistema moderno, de pequenas novas guerras e maiores e conhecidos grupos de indivíduos dizimados, enfim, riscos que fazem da modernidade tardia um fenômeno paradoxal, pois na tentativa de criar condições para o seu prolongamento pretendido, a modernidade fornece também elementos para que o risco de um fim eminente seja plenamente possível. Giddens coloca que “na alta modernidade, a influência de acontecimentos distantes sobre eventos próximos, e sobre as intimidades do eu, se torna cada vez mais comum”.7

Em face dos riscos iminentes postos acima, Giddens afirma ser a modernidade “uma ordem pós-tradicional, mas não uma ordem em que as certezas da tradição e do hábito tenham sido substituídas pela certeza do conhecimento racional”.8 Tendo relativizado os absolutos, a modernidade radicalizou o princípio da dúvida, do questionamento, das inseguranças, das ansiedades e necessidades de se colocar em verificação toda e qualquer afirmação que se pretenda ser categórica. Nas palavras de Giddens, “a modernidade institucionaliza o princípio da dúvida radical e insiste em que todo conhecimento tome a forma de hipótese [...]”.9

Modernidade líquida é outra tentativa de dar um nome mais preciso e coerente àquilo que os tempos contemporâneos têm revelado. Quem deste termo faz uso é o sociólogo polonês Zygmunt Bauman. Fazendo uma analogia com a idéia de fluidez ou liquidez, ou seja, se referindo a não consistência dos objetos desta natureza, de sua incapacidade de solidificação, de resistência a intervenções externas, a pressões vindas de seu exterior, enfim, de sua limitação e incapacidade de resistência temporal, Bauman busca compreender com

5 Anthony GIDDENS, Modernidade e Identidade, p. 10-11. 6Ibid, p. 12.

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maior clareza a natureza dos movimentos que a história moderna tem presenciado. Em suas palavras

Concordo prontamente que tal proposição deve fazer vacilar quem transita à vontade no “discurso da modernidade” e está familiarizado com o vocabulário usado normalmente para narrar a história moderna. Mas a modernidade não foi um processo de “liquefação” desde o começo? Não foi o “derretimento dos sólidos” seu maior passatempo e principal realização? Em outras palavras, a modernidade não foi “fluída” desde sua concepção?10

Bauman desenvolve o seu argumento afirmando que a modernidade tratou de provocar em seus próprios eixos de sustentação, a saber, suas instituições modernas caracterizadas como centros plurais provedores de significação social e de normatização da vida, e também o seu sistema de produção de mercado regido pelo modo econômico capitalista, o derretimento dos sólidos. Como sólido, Bauman compreende todo e qualquer elemento que resista aos chamamentos de mudança em virtude das transformações e inovações no cenário moderno social. O “derretimento dos sólidos” significa a compreensão de que o espírito era moderno “na medida em que estava determinado que a realidade deveria ser emancipada da ‘mão morta’ de sua própria história”.11 Bauman ressalta ainda de forma contundente que “os primeiros sólidos a derreter e os primeiros sagrados a profanar eram as lealdades tradicionais, os direitos costumeiros e as obrigações que atavam pés e mãos, impediam os movimentos e restringiam as iniciativas”.12

A modernidade em sua fase líquida, portanto, caracteriza-se como sendo o tempo dos desprendimentos às noções de obrigações e determinações éticas nas relações sociais em todas as suas esferas, sem, no entanto, estar alheio aos seus apelos. Em virtude da ausência de absolutos, pluralizam-se as propostas de instituições que reivindicam para si a competência de atuação como estruturas sociais provedoras de regulação e significação existencial. A modernidade, seguindo seu curso natural, continua a provocar rupturas, inovações e novas possibilidades, no entanto, se depara em sua fase líquida com o exílio de elementos que proporcionem bases sólidas para a sua manutenção e para o estabelecimento de valores e normas comuns. A ética em sua faceta ambiental, o respeito aos direitos e escolhas dos indivíduos com os quais o espaço social é dividido, o apego a alteridade, a aceitação de modos de vida divergentes dos modelos tradicionais, entre outros elementos, são estruturas

10 Zigmunt BAUMAN, Modernidade líquida, p. 9. 11Ibid, p. 9.

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muito rasas, sem sustentação e em constantes deslocamentos, pois são regidos pela lógica da moda e do consumo.

Fazendo uso desta metáfora, Bauman constrói sua teoria aplicando-a a outros elementos que também são afetados pelas novas imposições da modernidade em sua fase atual. Obras como “Amor líquido”, “Vida líquida”, “Medo líquido” e “Tempos líquidos”, além de outros títulos, expressam bem esse emprego.

Pós-modernidade é o termo empregado por Jean François Lyotard em seu livro A condição pós-moderna para tentar encerrar num conceito único as mudanças presenciadas no cenário cultural moderno. Na perspectiva de Lyotard, o termo pós-modernidade “designa o estado da cultura após as transformações que afetaram as regras dos jogos da ciência, da literatura e das artes a partir do final do século XIX”.13

Lyotard é ainda mais perspicaz ao considerar que a idéia de pós-modernidade reflete uma época em que as grandes narrativas perdem a credibilidade e a admiração dos indivíduos, e com isso, a capacidade de domínio das consciências. As promessas enunciadas pela ciência em razão de sua ilimitada capacidade de inovação, a incapacidade do Estado de provocar o engajamento das massas a partir de um sentimento de paixão nacionalista, a incapacidade da religião de promover ajuntamentos dentro de seus ambientes de atuação, as incertezas presente nas consciências em relação à capacidade da razão de organizar cenários culturais e sociais ideais, em virtude da contemplação do cenário catastrófico do mundo pós-guerra, enfim, a crise na crença aos grandes discursos de pretensão a uma aplicabilidade universal de suas propostas, enunciados e articulados pelas grandes instituições modernas marca, na perspectiva de Lyotard, o emergir do momento pós-moderno.

David Harvey faz uso do mesmo termo e justifica sua aplicabilidade à luz da mesma hipótese de Lyotard. Segundo Harvey, “a fragmentação, a indeterminação e a intensa desconfiança de todos os discursos universais ou (para usar um termo favorito) ‘totalizantes’ são o marco do pensamento pós-moderno”.14

À luz das considerações de ambos os autores, compreende-se que a fase histórica que o pós-guerra compreendeu desqualificou a credibilidade de que os metarrelatos desfrutavam, bem como as instituições que os promulgavam. Dá-se início a uma fase de incertezas, de desconfianças, de questionamentos da realidade dada. A partir desta crise, intensificou-se o

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individualismo exacerbado, a crise dos absolutos, a relativização do agir e do pensamento éticos, a intensificação do viver o tempo presente com intensidade máxima em virtude das incertezas que um futuro reservava, a escassez de engajamentos de massa, os interesses pessoais suplantaram o escopo de interesses coletivos, a religião viu-se desmanchando em espiritualidades plurais, enfim, o mundo moderno do pós-guerra difere consideravelmente daquele que estava posto em épocas passadas sendo, portanto, pós-moderno. Harvey coloca que “o pós-moderno [...] privilegia ‘a heterogeneidade e a diferença como forças libertadoras na redefinição do discurso cultural’”.15

Sendo o termo contestável, Harvey levanta questionamentos quanto à legitimidade de seu emprego

O pós-modernismo, por exemplo, representa uma ruptura radical com o modernismo ou é apenas uma revolta no interior deste último contra certa forma de ‘alto modernismo’ [...]? Terá ele um potencial revolucionário em virtude de sua oposição a todas as formas de metanarrativa (incluindo o marxismo, o freudismo e todas as modalidades de razão iluminista) e da sua estreita atenção a ‘outros mundos’ e ‘outras vozes’ que há muito estavam silenciados (mulheres, gays, negros, povos colonizados com sua história própria)? Ou não passa de comercialização e domesticação do modernismo e de uma redução das aspirações já prejudicadas deste a um ecletismo de mercado ‘vale tudo’, marcado pelo laissez-faire?16

Ainda que não haja um consenso quanto à aceitação do termo pós-moderno, mediante os argumentos apresentados pelos expoentes acima, verifica-se evidentemente a existência de uma ruptura significativa nos modos de vida e de organização da sociedade na segunda metade do século XX em relação aos modos de vida em sociedade de épocas anteriores a este momento. Como colocado anteriormente, ainda que a modernidade continuasse a seguir o seu curso natural de inovação e de otimização das potencialidades da razão e da ciência, mudanças ocorridas no pensar e na postura dos indivíduos, ou seja, em seu foro íntimo mais que coletivo, por razões diversas e complexas, são irrefutáveis. Mudanças estas que, de tão relevantes, comprometeram todo o curso da história social, provocando novas rupturas e novas diretrizes na continuidade da história moderna.

O antropólogo e etnólogo francês Marc Augé propõe o termo Supermodernidade

como designação ideal da contemporaneidade. Augé observa os constantes deslocamentos e

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movimentos promovidos pelos indivíduos na sociedade atual para construir o conceito de “não-lugares”, que são os espaços povoados por multidões de passagem, em constantes deslocamentos, permitindo um fluxo contínuo de indivíduos em seus ambientes, porém, sem permanência certa ou possibilidade de promoção de relacionamentos. Aeroportos com seus restaurantes e lojas de conveniência, estações de trem, salas de espera e outros são exemplos de espaços “não-lugares”.

São estes espaços bastante complexos, intensificam o individualismo, pois quaisquer relações que ali se iniciem tendem a não se prolongar, refletem uma absorção do mundo e de seus espaços pela inovação e desenvolvimento tecnológicos, diminuindo a quantidade de espaços vagos para ocupação ao mesmo tempo em que estabelecem novos espaços povoados de indivíduos vazios, são espaços que preenchem necessidades e elevam a efemeridade, enfim, espaços em que o consumo de um tipo não fixado se manifesta. Antes encerrados em lojas e locais específicos de compra, como os grandes centros comerciais, hoje, o consumo se desprende desta estrutura sólida e se transporta a si mesmo para espaços tidos como “não-lugares”, a fim de acompanhar os deslocamentos dos potenciais consumidores. Este tipo de consumo inédito acompanha o indivíduo em aeroportos, no próprio tempo de viagem com as possibilidades de compra oferecidas pelas companhias aéreas durante os trajetos dos vôos, em sua descida ao local pretendido e também em sua própria residência, quando possibilidades de consumo estão disponíveis através da internet.

São nos espaços “não-lugares” que o indivíduo moderno despende a maior parte de seu tempo, podendo-se afirmar, portanto, que a sociedade com sua cultura Supermoderna

como Augé designa, vem sendo preenchida ou transformada em pequenos espaços “não-lugares” fragmentados e desconectados entre si.

Na perspectiva de Augé, o termo Supermodernidade reflete a idéia de continuidade e não de uma nova fase histórica se manifestando como implicada na idéia do “pós-moderno”. Trata-se de um tempo em que os excessos têm se multiplicado e com os excessos a perda de referenciais norteadores e de sentido para a vida. Novos espaços de circulação são criados, no entanto, intensifica-se o individualismo, a efemeridade, o vazio e o imediatismo nas mais variadas relações.

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Ainda outros termos têm sido sugeridos como categorias que descrevam o que a contemporaneidade representa, como o emprego de Ultramodernidade, que Jean-Paul Willaime17 comenta da seguinte maneira

Passa-se das certezas modernas das sociedades nacionais às incertezas ultramodernas da sociedade-mundo. A ultramodernidade representa um processo de secularização da modernidade, de desmitologização dos ideais seculares, em nome dos quais, justamente, a modernidade contribuiu para a secularização do religioso. É o desencantamento dos desencantadores. O próprio movimento de modernização crítica que atingiu o religioso alcança agora todas as esferas de atividade e todas as instituições, inclusive a própria modernidade.18

Compreende-se, portanto, que para Willaime, o tempo atual denominado como a fase da Ultramodernidade tem como característica principal, diferentemente da proposta de Augé, que ressalta as discrepâncias produzidas pelo fenômeno, a secularização da própria modernidade, ou seja, desmanchar na e da própria modernidade os seus aspectos religiosos, ou desvestir da modernidade de sua roupagem religiosa.

Desmodernização ou Modernidade dividida é empregado por Alain Touraine para descrever a modernidade atual. Segundo o autor, a Modernidade dividida é a conseqüência dos embates e imposições entre razão e sujeito, cada qual brigando por seus espaços e liberdades de atuação, ambos interferindo nas estruturas sociais da modernidade conforme seus interesses e provocando, conseqüentemente, rupturas de modo a comprometer o bem estar e a vivência entre os indivíduos. A solução para a manutenção da modernidade dividida seria a busca pela unificação entre as duas esferas, a saber, da razão juntamente com a esfera do sujeito. Significaria unir ou diminuir as distâncias discrepantes entre a dimensão da técnica, da razão, da ciência e de suas potencialidades com a dimensão humana que abrange peculiaridades da cultura, da tradição, enfim, de tudo aquilo que expressa a riqueza presente no universo da criação humana.

Após esta breve contextualização daquilo que tem sido proposto a respeito de uma nomenclatura que melhor descreva e compreenda a contemporaneidade em toda a sua complexidade e inovação, há ainda a proposta trazida por Lipovetsky, a saber, de que a

17 Jean Paul Willaime é francês, sociólogo da religião, diretor da École Pratique des Hautes Études (Seção de

Estudos da Religião), diretor do Institut Européen em Sciences des Religions, presidente da International Society for the Sociology of Religion, membro da Société Groupe, Religions, Laicités. Embora o termo

Ultramodernidade tenha sido empregado principalmente por Pierre Legendre, a referência a Willaime é feita em virtude deste autor elucidar de forma mais prática o sentido do termo.

18 Jean Paul WILLAIME, A favor de uma sociologia transnacional da laicidade na ultramodernidade

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sociedade atual vê emergir uma fase inédita que ele denomina de hiper, cujos desdobramentos se fazem ver num consumo de prática hiperconsumista, bem como num individualismo de caráter hiper. São práticas que refletem a manifestação de uma sociedade hipermoderna.

Embora Lipovetsky já tenha sido adepto do termo pós-moderno, o autor agora o considera limitado como categoria científica que dê conta de fenômenos tão singulares do tempo presente. Em sua concepção, há novos paradigmas que estão a impor novas restrições e concepções aos indivíduos, impelindo-os a reorganizarem suas vidas a partir de outras lógicas de direção, como a lógica da moda e do consumo.

Os argumentos apresentados pelo autor como justificativas para o emprego do termo

hiper, bem como as características que, segundo ele, refletem um movimento social em direção ao hipermoderno, são apresentados no próximo tópico, quando o pensamento de Lipovetsky, bem como suas principais categorias de pensamento são situados.

4. Situando o pensamento de Gilles Lipovetsky

Nascido em 1944, na cidade de Millau, na França, Gilles Lipovetsky é atualmente um dos principais pensadores e críticos da presente sociedade. É filósofo, doutor Honoris Causa

pela Universidade de Sherbrooke, no Canadá, e pela Nouvelle Université Bulgare, em Sofia, na Bulgária. Lipovetsky é membro do Conselho Nacional dos Programas Educacionais e do Conselho de Análise Social da França, e já foi condecorado como Cavaleiro da Legião de Honra da França. Atualmente, Lipovetsky é pesquisador e professor da Universidade de Grenoble, também na França.

No início de seus estudos de Filosofia na Sorbonne, Lipovetsky já assumia um real desinteresse pelos textos clássicos e pelos filósofos fundadores da filosofia. Como ele mesmo afirmou posteriormente, “o que me animava era não as grandes questões da metafísica ou da moral, mas a interpretação do mundo moderno”.19 Como muitos estudantes de sua época, em torno dos anos 60, Lipovetsky também se encontrava possuído pelas convicções marxistas. Em 1965, as idéias do marxismo o levaram a participar de um grupo militante de esquerda, cujo nome era Poder Operário, fundado por Lefort e Castoriadis, do qual também fazia parte Lyotard, Veja e Souyri. O caráter do grupo era militante, marxista revolucionário, denunciava

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o capitalismo e a formação de uma sociedade de exploração de classes não apenas no ocidente, mas também na União Soviética. Sua participação no Poder Operário foi de apenas dois anos, vindo após este tempo o afastamento do grupo. A militância de Lipovetsky era inconstante, desinteressada e, portanto, limitada aos ideais antes propostos. Acerca deste afastamento e da frustração em relação ao currículo disciplinar oferecido pela Sorbonne, o autor comenta

Fiquei dois anos nesse grupo, mas, como eu freqüentemente saía de férias, questionaram minha militância um pouco hedonista e descontraída demais!... A nova era do lazer já exercia sua influência... O afastamento se deu sem crise pessoal, sem peso na consciência, sem nenhum sofrimento. Para mim, a “vida de verdade” já estava em outro lugar. A bem dizer, a questão da revolução não me preocupava quase nada, porque eu não acreditava realmente nela – procurava sobretudo ferramentas de análise para compreender o real. E os cursos propostos na Sorbonne não atendiam a essa expectativa.20

Nessa mesma época, os textos de Lyotard e Baudrillard influenciaram fortemente o pensamento de Lipovetsky, fornecendo uma base teórica consistente cujo reflexo crítico seria notado em seus textos futuros. As considerações de ambos os autores acerca do desejo, do gozo, da mídia e do consumo, entre outras, esferas estas que despertariam o interesse de Lipovetsky para uma análise mais minuciosa, foram por ele amplamente discutidas e exploradas em toda a sua complexidade, na medida em que esta se permitia compreender. Nas palavras do autor

Aquelas análises do desejo e do gozo, do consumo e da mídia, tinham o mérito de subverter os domínios teóricos separados, de revitalizar a crítica da economia política ou libidinosa, de abrir um além-do-político ao compor como que odes a uma revolução transpolítica. Desde essa época, julgo que o existencial, os modos de vida, o frívolo devem ser levados em conta, e não ser de imediato considerados a ‘falsa consciência’.21

É a partir deste tempo que Lipovetsky rompe com um paradigma já estabelecido em relação à influência da sociedade no comportamento dos indivíduos. Para ele, não é apenas a lógica da alienação a chave interpretativa para se compreender o porquê de uma assimilação passiva por parte dos indivíduos de conceitos e propostas de vida promulgadas pela sociedade, pelo mercado e pela publicidade. Lipovetsky conseguiu se distanciar desta premissa já inquestionável se mostrando incomodado com esta conclusão que, em sua análise, se mostrava simplista: “... logo me incomodei com a noção de alienação: ela veiculava em

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demasia a idéia de que as pessoas eram mistificadas, passivas, manipuladas, hipnotizadas – Debord –, incapazes de distanciamento crítico, de compreensão do que lhes acontecia”.22 Sua percepção rompia com a análise marxista, o que se deu de modo mais incisivo ainda, quando de suas leituras dos textos de Tocqueville, Marcel Gauchet, Louis Dumont e Daniel Bell. Como fruto destas leituras, Lipovetsky comenta:

Nelas encontrei esquemas analíticos e ferramentas insubstituíveis, que devolviam um papel de fato produtivo às ‘idéias’ na história: o indivíduo, a revolução democrática, o direitos humanos, tudo isso, já não eram mais a superestrutura, simples “reflexo” da economia. Essas problemáticas me deram maior liberdade para entender a sociedade nova, na qual se observava um impulso de autonomia individual, uma sujeição menor aos enquadramentos coletivos.23

Os autores que foram citados acima fazem parte de um grupo de teóricos que influenciaram diretamente o pensamento de Lipovetsky. Foram estes que deram à Lipovetsky, como ele mesmo atesta, as ferramentas essenciais para que os seus estudos pudessem ser produzidos. Além disso, o contexto social em que o autor se encontrava inserido, preenchido por uma revolução crescente nos modos de vida social, pela expansão das capacidades sociais de comunicação e também pela legitimação de práticas constantes de consumo, entre outros elementos, proporcionaram-lhe as condições necessárias para que as suas análises sobre o individualismo democrático fossem relevantes.

Com análises que refletem uma percepção extremamente aguçada da sociedade e de suas mudanças, Lipovetsky é singular por sustentar suas hipóteses a partir de uma análise mais empírica do que apenas baseada em teorias já existentes. Neste aspecto, o próprio autor estabelece uma crítica à tradição filosófica mais comumente conhecida, distanciando-se dela e afirmando que “a maior parte dos filósofos, mesmo que digam o contrário, é platônica e busca a Idéia atrás dos fatos”.24 Ele é ainda mais incisivo em sua crítica porque em sua perspectiva, aos filósofos, e não apenas aos atuais, faltou ou ainda falta um olhar mais cuidadoso para os detalhes impregnados em cada fenômeno, os quais são percebidos e compreendidos a partir de um estudo mais preciso de suas manifestações.

O apego ao empírico, a um olhar minucioso sobre os fatos como se dão, podendo-se a partir disto compreendê-lo em toda a sua complexidade, aspecto este característico da

22Ibid, p. 112. 23Ibid, p. 112.

24 Sébastien CHARLES, Comte Sponville, Conche Ferry, Lipovetsky, Onfray Rosset, é possível viver o que eles

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metodologia de Lipovetsky, é atestado abaixo quando sua obra é analisada por Sébastien Charles, que comenta

Um dos méritos das análises que Gilles Lipovetsky propõe há vinte anos é romper com tais juízos excessivos, sempre demasiado elementares porque olham apenas um aspecto das coisas, a fim de livrar-se de toda a complexidade do real e circunscrever as contradições de que este está urdindo. [...] as análises de Lipovetsky não se contentam com juízos apressados nem submetidos a ditames ideológicos; antes, seguindo um método empirista ou indutivo, procuram partir dos fatos, e do estudo destes no tempo longo, para propor um quadro de análise que possibilite fazê-los falar e dar-lhes sentido.25

Lipovetsky é também perspicaz por fazer de seu objeto de estudo fenômenos até então desconsiderados, pelo menos em termos de um estudo sistemático sério e progressivo, pela análise filosófica. Propondo uma análise histórico-social crítica, apresentando quais foram os elementos então responsáveis para a emergência da presente configuração atual dos fenômenos estudados, bem como as implicações destes na vida social dos indivíduos, Lipovetsky questiona e estuda a lógica da moda, as mudanças no pensar ético, o feminismo, o luxo, o consumo, enfim, fenômenos que circundam a vida social de todo e qualquer indivíduo, independentemente de sua faixa etária e condição sócio-econômica, mas que até então não haviam ainda sido submetidos a uma análise acadêmica rigorosa. Faz-se importante enfatizar mais uma vez que, neste sentido, Lipovetsky é bastante peculiar em relação à grande parte dos filósofos, distanciando-se da filosofia tradicional e rompendo com uma análise que, de seu ponto de vista, não considera os detalhes dos fenômenos, mas o concebe apenas em sua totalidade, em seu aspecto geral e universal, o que para ele, trata-se de uma análise bastante limitada e comprometedora.

Em se tratando de sua paixão por questões diferentes das mais comumente conhecidas e discutidas pela Filosofia, Lipovetsky, na perspectiva de Charles Sébastien, se assemelha ao pensamento de Foucault

O pensamento de Gilles Lipovetsky poderia ser facilmente aproximado ao de Michel Foucault. De fato, nossos dois filósofos – e mesmo que Lipovetsky não recorra exclusivamente ao pensar filosófico – empregam um método genealógico para circunscrever domínios de estudo freqüentemente negligenciados pela confraria filosófica. Assim, ambos evocam fenômenos muitas vezes qualificados de marginais (a loucura ou a

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prisão por Foucault, a moda ou a feminidade por Lipovetsky), aos quais é recusada uma análise conceitual rigorosa e histórica.26

Lipovetsky por si mesmo assume um pouco de afinidade com o pensamento de Foucault

Aí está um ator com o qual, em compensação, eu me sinto em profunda afinidade quanto ao método... mas não quanto ao fundo. O método é, de fato, similar. Quando Michael Foucault fala da loucura, ele constrói seu objeto e dele tira a seguir sua conclusão. É no trabalho de construção do objeto que a dimensão filosófica aparece e não a priori. É também o que procuro fazer.27

Nas análises de Lipovetsky acerca de fenômenos como o feminino, a moda, o luxo e, sobretudo, o consumo, percebe-se de forma mais clara esta construção de uma análise a partir de uma construção do objeto em questão, pretendendo o autor dar conta de toda a complexidade de seu objeto a partir da realidade social dada, para então, a partir disto, estabelecer as suas considerações e verificar a validade de suas hipóteses.

Em virtude das conclusões simplistas proposta por muitos filósofos acerca de fenômenos mais precisos da vida social, tais como a moda, o luxo, a feminidade e outros já anteriormente citados, realidades que merecem um estudo mais aprofundado quanto à sua concepção e expressão, o autor, como anteriormente apontado, critica diretamente a Filosofia atual por este suposto descaso, rompendo com teorias simplistas que não consideram o objeto em toda a sua complexidade e os detalhes a ele imbuídos, satisfazendo apenas em parte as problemáticas levantadas. Quando questionado a respeito deste rompimento, Lipovetsky, citando o exemplo da beleza feminina posta em análise e em foco de um estudo acadêmico sério e crítico, diz

Eis o tipo de pergunta que me veio ao espírito e que não interessa ao filósofo: o que é a beleza feminina? É um fenômeno universal ou trans-histórico? Todas as sociedades a valorizaram? E da mesma maneira? E se não, quando isso se estabeleceu? Por quê? O que esse fenômeno significa nas relações entre os homens e as mulheres? Que orientação ele toma em uma sociedade igualitária? Como é possível que em uma sociedade democrática com aspiração igualitária como a nossa se recomponha a dissimetria dos homens e das mulheres no que se refere à aparência física? São questões fundamentais, de cuja existência os filósofos nem sequer suspeitam. Para eles, isso não é

26 Sébastien CHARLES, Comte Sponville, Conche Ferry, Lipovetsky, Onfray Rosset, é possível viver o que eles

pensam?, p. 140.

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nem mesmo uma questão, ainda que ponha em causa um valor filosófico essencial, o da igualdade. Eles tendem antes a denegrir a questão, o que para mim é cegueira filosófica. Não querem ver as coisas e não procuram dar-lhes uma compreensão e uma inteligibilidade reais.28

O mesmo teor crítico é notado quando a questão da moda é posta em debate, a qual, segundo Lipovetsky, tem escapado a uma avaliação crítica da filosofia. “Quando os filósofos falam da moda, não conhecem nada sobre ela. Nem sequer vão ver os fatos, uma vez que sabem já interpretá-los. [...] Pois bem, eles não sabem o que é realmente”.29

Em A era do vazio, ensaios sobre o individualismo contemporâneo, este que foi o primeiro livro publicado por Lipovetsky em 1983, o autor ganha repercussão mundial ao apresentar as suas teorias acerca do modo de funcionamento da sociedade pós-moderna, de seus valores, das relações entre seus indivíduos, dos novos paradigmas que estavam a se instituir de modo a redefinir as relações sociais em suas mais variadas esferas de vivência, entre outros. O autor trata do individualismo social com uma percepção aguçada, afirmando que a sociedade se encontra mergulhada num imenso vazio a abranger várias dimensões da vida. Os valores de tradição mais comumente conhecidos estão comprometidos, os grandes discursos da modernidade estão postos em dúvida, o consumo de massa direciona o indivíduo a um comportamento individualista e irresponsável. Essas e outras realidades se manifestam na obra A era do vazio e fazem parte do objeto de estudo proposto pelo autor.

Seis anos após a publicação de A era do vazio, Lipovetsky escreve O império do efêmero, a moda e seu destino nas sociedades modernas, publicado em 1989. Neste texto, o autor mostra como a lógica da moda, do frívolo e do efêmero, tem se manifestado também em outras esferas sociais, reapropriando e redefinindo as relações sociais que se dão nestes contextos a partir das prerrogativas desta nova lógica. Ainda que Lipovetsky tivesse desfrutado de reconhecimento acadêmico meritório pela publicação de A era do vazio, o seu segundo livro, O império do efêmero, foi alvo de críticas mais incisivas, tendo em vista uma abordagem proposta pelo autor que não demoniza o fenômeno da moda. Quanto a isso, o autor comenta dizendo

Ainda que seus múltiplos e negativos defeitos sejam reais, seus benefícios estão muito longe de ser nulos. Eu simplesmente quis mostrar que a forma-moda não era sinônimo de “barbárie”, de ruína do pensamento e da liberdade. A questão merece exame mais atento e

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