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REMINISCÊNCIAS DO
PROPEDÊUTICO
1Edna Maria Marturano
FMRP - Universidade de São Paulo
A história da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto está sendo recontada hoje. Estão sendo lembrados feitos e conquistas que proje-taram o nome desta casa no cenário científico nacio-nal e internacionacio-nal. A comunidade acadêmica, que coletivamente construiu essa história, recebe a justa homenagem pelo patrimônio acumulado ao longo de 40 anos.
Convidada para a festa, como integrante da primeira turma da faculdade, meu depoimento se re-porta ao nascimento e ao primeiro ano de vida da nossa Filô.
AFaculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto surgiu não apenas como resposta a uma demanda da comunidade. Intentava-se uma ação proativa de inovação no ensino superior, fundamen-tada em dois pilares: uma ideologia democrática de acesso à universidade e a prioridade à formação ci-entífica do aluno.
A ideologia democrática se concretizava através da combinação de dois dispositivos: um vesti-bular que priorizava não os conteúdos escolares, mas as aptidões dos candidatos, e um ciclo propedêutico no qual a instituição se incumbia de oferecer ao aluno os meios de desenvolver um repertório de conheci-mentos, habilidades e atitudes necessárias para pros-seguir seu processo formativo dentro da carreira es-colhida.
A prioridade à formação científica do alu-no, o segundo pilar desse projeto inovador, também se viabilizava por meio de dois mecanismos princi-pais: a configuração do ciclo propedêutico no forma-to de iniciação científica e a exigência de uma monografia de conclusão, derivada de pesquisa empírica.
O ambicioso projeto original foi aos poucos modificado, à medida que a utopia era confrontada
com a realidade. Contudo, os alunos das primeiras turmas se beneficiaram enormemente dessa utopia. No meu caso pessoal, a proposta democrática de acesso abriu a oportunidade única de concorrer a uma vaga em curso de Ciências, sem formação pré-via e sem cursinho pré-vestibular. Essa é a primeira lembrança significativa, muito pessoal, que tenho da faculdade.
Uma aproximação circunstancial
Minhas reminiscências primeiras da FFCLRP remontam ao ano de 1963. Aluna do antigo curso clás-sico do Instituto de Educação Otoniel Motta, tradici-onal colégio de Ribeirão Preto, eu tinha uma aspira-ção: seguir o curso de Letras Neo-latinas na Facul-dade de Filosofia da USP, a famosa escola da Rua Maria Antonia. Esse era um sonho quase impossível, dada a situação econômica de minha família.
A Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto estava criada no papel desde 1959. No início de 1963, foi autorizado o funcionamento provisório de diversos cursos. Para meu desaponta-mento, nenhum na área de minha predileção: eram todos cursos de Ciências. Mas me incomodava muito a idéia de onerar meus pais com um grande sacrifício para me manter na capital. E entre os cursos autori-zados havia a psicologia... Um ramo do conhecimen-to relacionado às humanidades.
As únicas notícias que eu tinha da Psicologia vinham das aulas de Filosofia. Eu estivera, até então, mergulhada em literatura e lingüística, saboreando os clássicos franceses, traduzindo Cícero e desvendan-do os meandros da etimologia comparada. Nas horas vagas, dava aulas particulares de Português. Sequer ouvira falar da profissão de Psicólogo.
Era, com efeito, uma profissão nova, regula-mentada em 1962. Afinal, o que fazia um psicólogo? Conversei com um amigo médico e ele me disse: “Edna, a Psicologia é a medicina do futuro, uma ciên-cia com grande potenciên-cial de expansão e aplicação”. Não sei se médicos e psicólogos concordarão com essa profecia, mas o parecer daquele amigo pesou bastante na decisão de renunciar ao meu antigo pro-jeto lingüístico-literário. Afinal me agradava a idéia de perscrutar nossa humana essência... Desisti da Maria Antônia e me inscrevi no vestibular da Filô. Apenas nele e em nenhum outro. E esperei.
1 Depoimento apresentado durante a Sessão Solene da Congregação
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O vestibular e os primeiros tempos
A lembrança do vestibular está bem viva na mi-nha memória. Era uma semana chuvosa de verão. No ginásio de esportes e em outras dependências da Facul-dade de Medicina, espalhavam-se os candidatos – cin-co por vaga, aproximadamente. Uma cin-competição fácil, se comparada à dos atuais vestibulares nas universida-des públicas paulistas. As provas, compreendendo uma redação e testes psicológicos de raciocínio abstrato, ra-ciocínio numérico e rara-ciocínio verbal, dispensavam a preparação dos já-então-quase-indispensáveis cursinhos. Era a nossa grande chance democrática! Consegui uma vaga na faculdade, a sorte estava lançada.
Primeiro dia de aula: 31 de março de 1964, sete e meia da manhã. A fila do ônibus, na praça Carlos Gomes, estava esticada naquele dia com a presença dos calouros da nova faculdade. Um colega passa um abaixo-assinado de apoio ao presidente da repú-blica, João Goulart. Todos assinam, ou melhor, quase todos; ao meu lado na fila, uma colega, cautelosa, avisa em voz baixa: “Melhor não assinar, coisas mui-to graves estão para acontecer”.
De fato, já estavam acontecendo naquela ma-nhã. O abaixo-assinado sumiu. O colega que o pas-sou garantiu tê-lo destruído, mas durante muito tem-po se comentou, entre os alunos da primeira turma, que ele guardava a lista cuidadosamente, disposto talvez a usá-la em alguma eventualidade.
Apesar do cenário nacional sombrio, estáva-mos naturalmente eufóricos. Essa euforia se expres-sava de várias formas: Regina Stella, nossa artista polivalente, tocava pífano para os colegas perfilados; Lordello apareceu com a cabeça raspada, ostentan-do uma boina. Nós não tivemos trote, e seguíamos de olhos compridos os calouros da medicina, com suas discretas boinas amarelas, e os da odonto, de bone-zinho vermelho e gravata borboleta...
Primeiras impressões
Ainda posso sentir a emoção que me empol-gava quando o bandejão da Viação Cometa nos des-pejou ali no ponto em frente ao prédio da Patologia. O lugar era lindo, cercado de arvoredo, com amplo pátio interno arborizado. Mas logo percebemos que o nosso espaço ali era acanhado e não se adequava ainda a um curso de tempo integral. Faltavam cadei-ras, não havia cantina, o azulejo branco das paredes
nos comunicava frieza, e ainda havia as câmaras frigoríficas. Uma sensação de confinamento às ve-zes nos dominava. A administração ficava longe, no prédio central da Medicina. Entretanto, o que ficava a desejar nas acomodações físicas sobrava na dedica-ção e na afabilidade dos funcionários. Éramos cari-nhosamente acolhidos e atendidos em tudo que fosse possível. Registro aqui meu reconhecimento aos fun-cionários dos primeiros tempos, representados na pes-soa da nossa inesquecível Maria Helena de Oliveira.
Logo nos primeiros dias, os professores pas-saram seus recados. Sauaia e Tereza Lemos davam o tom, falando do projeto de iniciação à ciência. Al-guns colegas reclamavam: isso é recapitulação do colegial! Era uma reclamação injusta. O conteúdo até podia ser semelhante ao do colégio, mas não a leitura que se fazia dele. E, além disso, nem tudo era recapi-tulação; havia uma novidade, a Psicologia, que Tere-za nos apresentava como a ciência do comportamen-to. Mais protestos. E Freud? E a psicanálise? Ficari-am para depois. Não estavFicari-am na ordem do dia.
Com o tempo, as condições foram sendo me-lhoradas. Veio a cantina da Dona Cida, vieram as cadeiras, os livros para a biblioteca.
Ah, a biblioteca! Ponto de referência diário onde íamos saciar a curiosidade despertada nas au-las e discussões, encontrávamos ali, solícita e atenta, dona Lia Becker Rocha, que nos instruía nos segre-dos da pesquisa bibliográfica e nas minúcias segre-dos sis-temas de referência e citação. Além dessa supervi-são cotidiana, dona Lia nos ministrou aulas e elabo-rou para os alunos uma apostila, que me foi extrema-mente útil depois de deixar a faculdade. Agradeço a Lia Becker Rocha a disponibilidade para nos atender, muito além de suas atribuições de bibliotecária.
O ciclo propedêutico
Guardo do propedêutico as melhores lembran-ças de todo o tempo que passei na faculdade, e acre-dito que esse sentimento é partilhado por outros ex-alunos da primeira turma. Foi um período intensamente vivido, que impulsionou nosso amadurecimento.
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egressos dos cursos científico, normal e clássico; ha-via profissionais estabelecidos nos ramos de odonto-logia, direito, ensino fundamental e outros; e, princi-palmente, havia uma enorme diversidade de experi-ências de vida. Essa diversidade nos enriquecia na convivência diária. Era preciso lidar com as diferen-ças, conciliar interesses conflitantes. Os mais aptos por formação procuravam ajudar os menos aptos nas dificuldades com as matérias. Sobretudo, essa diver-sidade garantia o apoio mútuo nas muitas horas de incerteza. Para nós, os adolescentes de então, aque-les colegas que já haviam conquistado alguma estabi-lidade afetiva ou profissional eram mentores provi-denciais, espécies de mães e pais substitutos que aco-lhiam nossas angústias e nos ajudavam a tolerar as frustrações. Maria Helena, Dea, Dora, Jairo, Lélio e outros formavam a rede de apoio emocional que nos protegia nos momentos críticos.
O modelo de ensino - Foi no ciclo propedêutico que se deu nossa iniciação cientifica, sob a orienta-ção de professores como Heny Sauaia e Tereza Le-mos, Vasconcelos e Sebastião. Para eles também, eu suponho, foram tempos difíceis. Era preciso muita paciência e pulso firme para conter nossa inquieta-ção, que às vezes transbordava, diante da imprevisibilidade dupla da situação: era a incerteza própria de uma primeira turma somada à novidade do modelo de ensino.
O que mais inquietava no modelo de ensino era o fato de os professores não nos abarrotarem de conteúdos e, ao invés disso, priorizarem o desenvol-vimento de habilidades. Por um lado, havíamos sido socializados em uma cultura escolar que entronizava o conteúdo, e alguns alunos se desesperavam por ‘não estarem aprendendo nada”. Por outro lado, Sauaia e Tereza desafiavam nosso ego todos os dias, propon-do problemas cuja solução exigia algo mais que as competências trazidas do colegial. No começo, fica-mos um pouco perdidos.
O professor - Aos poucos, fomos percebendo a excelência daquele aprendizado. Nesse processo, ficamos devendo muito à dedicação de um professor. Sauaia era a alma do propedêutico. Era dele que emanava aquele entusiasmo pela ciência como ofí-cio, que pouco a pouco nos conquistou. As discus-sões que ele promovia sobre temas palpitantes da bi-ologia tinham grande impacto. Lembro um fato
ocor-rido quando tratávamos da teoria da evolução das espécies. Uma aluna se levantou, visivelmente alte-rada, protestando contra aquela teoria sacrílega que contrariava suas convicções. Pacientemente, Sauaia argumenta. Mostra analogias, fala de símbolos. Inútil naquele momento, era preciso dar tempo às transfor-mações. Mas a semente fora plantada.
Esse episódio foi significativo para mim. Na sua interpretação evolucionista da Gênese, Sauaia de-monstrava que razão e fé podem conviver em har-monia.
O fato é que Sauaia trabalhava com sabedoria aquelas mentes jovens. Ele primeiro despertou em nós o desejo de fazer ciência, depois disciplinou nos-sa curiosidade nos rigores do método científico, atra-vés dos projetos de pesquisa que conduzíamos sob sua supervisão. Mas havia uma terceira preocupa-ção: estimular nos alunos a criatividade, o pensamen-to divergente, a capacidade de identificar novos pro-blemas de pesquisa. Esse era o desafio mais difícil, porque dependia mais do talento do aluno que do empenho do professor.
Professor Sauaia era de uma dedicação sem limites, jamais usava o relógio para controlar o tempo que os alunos lhe solicitavam fora dos horários de aula. Um idealista que encarnava seus ideais. Um professor em tempo integral. Não conheci outro como ele.
O legado do propedêutico
Aquele modelo de ciclo propedêutico não sub-sistiu, por razões várias. Difícil avaliar seu impacto. Meu testemunho pessoal não tem validade científica, mas tenho a impressão de que saímos do propedêutico com um entendimento de método científico e um re-pertório de habilidades cognitivas para pesquisa que muitos egressos de cursos de mestrado não têm.