• Nenhum resultado encontrado

Paidéia (Ribeirão Preto) vol.15 número31

N/A
N/A
Protected

Academic year: 2018

Share "Paidéia (Ribeirão Preto) vol.15 número31"

Copied!
3
0
0

Texto

(1)

182

REMINISCÊNCIAS DO

PROPEDÊUTICO

1

Edna Maria Marturano

FMRP - Universidade de São Paulo

A história da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto está sendo recontada hoje. Estão sendo lembrados feitos e conquistas que proje-taram o nome desta casa no cenário científico nacio-nal e internacionacio-nal. A comunidade acadêmica, que coletivamente construiu essa história, recebe a justa homenagem pelo patrimônio acumulado ao longo de 40 anos.

Convidada para a festa, como integrante da primeira turma da faculdade, meu depoimento se re-porta ao nascimento e ao primeiro ano de vida da nossa Filô.

AFaculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto surgiu não apenas como resposta a uma demanda da comunidade. Intentava-se uma ação proativa de inovação no ensino superior, fundamen-tada em dois pilares: uma ideologia democrática de acesso à universidade e a prioridade à formação ci-entífica do aluno.

A ideologia democrática se concretizava através da combinação de dois dispositivos: um vesti-bular que priorizava não os conteúdos escolares, mas as aptidões dos candidatos, e um ciclo propedêutico no qual a instituição se incumbia de oferecer ao aluno os meios de desenvolver um repertório de conheci-mentos, habilidades e atitudes necessárias para pros-seguir seu processo formativo dentro da carreira es-colhida.

A prioridade à formação científica do alu-no, o segundo pilar desse projeto inovador, também se viabilizava por meio de dois mecanismos princi-pais: a configuração do ciclo propedêutico no forma-to de iniciação científica e a exigência de uma monografia de conclusão, derivada de pesquisa empírica.

O ambicioso projeto original foi aos poucos modificado, à medida que a utopia era confrontada

com a realidade. Contudo, os alunos das primeiras turmas se beneficiaram enormemente dessa utopia. No meu caso pessoal, a proposta democrática de acesso abriu a oportunidade única de concorrer a uma vaga em curso de Ciências, sem formação pré-via e sem cursinho pré-vestibular. Essa é a primeira lembrança significativa, muito pessoal, que tenho da faculdade.

Uma aproximação circunstancial

Minhas reminiscências primeiras da FFCLRP remontam ao ano de 1963. Aluna do antigo curso clás-sico do Instituto de Educação Otoniel Motta, tradici-onal colégio de Ribeirão Preto, eu tinha uma aspira-ção: seguir o curso de Letras Neo-latinas na Facul-dade de Filosofia da USP, a famosa escola da Rua Maria Antonia. Esse era um sonho quase impossível, dada a situação econômica de minha família.

A Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto estava criada no papel desde 1959. No início de 1963, foi autorizado o funcionamento provisório de diversos cursos. Para meu desaponta-mento, nenhum na área de minha predileção: eram todos cursos de Ciências. Mas me incomodava muito a idéia de onerar meus pais com um grande sacrifício para me manter na capital. E entre os cursos autori-zados havia a psicologia... Um ramo do conhecimen-to relacionado às humanidades.

As únicas notícias que eu tinha da Psicologia vinham das aulas de Filosofia. Eu estivera, até então, mergulhada em literatura e lingüística, saboreando os clássicos franceses, traduzindo Cícero e desvendan-do os meandros da etimologia comparada. Nas horas vagas, dava aulas particulares de Português. Sequer ouvira falar da profissão de Psicólogo.

Era, com efeito, uma profissão nova, regula-mentada em 1962. Afinal, o que fazia um psicólogo? Conversei com um amigo médico e ele me disse: “Edna, a Psicologia é a medicina do futuro, uma ciên-cia com grande potenciên-cial de expansão e aplicação”. Não sei se médicos e psicólogos concordarão com essa profecia, mas o parecer daquele amigo pesou bastante na decisão de renunciar ao meu antigo pro-jeto lingüístico-literário. Afinal me agradava a idéia de perscrutar nossa humana essência... Desisti da Maria Antônia e me inscrevi no vestibular da Filô. Apenas nele e em nenhum outro. E esperei.

1 Depoimento apresentado durante a Sessão Solene da Congregação

(2)

183

O vestibular e os primeiros tempos

A lembrança do vestibular está bem viva na mi-nha memória. Era uma semana chuvosa de verão. No ginásio de esportes e em outras dependências da Facul-dade de Medicina, espalhavam-se os candidatos – cin-co por vaga, aproximadamente. Uma cin-competição fácil, se comparada à dos atuais vestibulares nas universida-des públicas paulistas. As provas, compreendendo uma redação e testes psicológicos de raciocínio abstrato, ra-ciocínio numérico e rara-ciocínio verbal, dispensavam a preparação dos já-então-quase-indispensáveis cursinhos. Era a nossa grande chance democrática! Consegui uma vaga na faculdade, a sorte estava lançada.

Primeiro dia de aula: 31 de março de 1964, sete e meia da manhã. A fila do ônibus, na praça Carlos Gomes, estava esticada naquele dia com a presença dos calouros da nova faculdade. Um colega passa um abaixo-assinado de apoio ao presidente da repú-blica, João Goulart. Todos assinam, ou melhor, quase todos; ao meu lado na fila, uma colega, cautelosa, avisa em voz baixa: “Melhor não assinar, coisas mui-to graves estão para acontecer”.

De fato, já estavam acontecendo naquela ma-nhã. O abaixo-assinado sumiu. O colega que o pas-sou garantiu tê-lo destruído, mas durante muito tem-po se comentou, entre os alunos da primeira turma, que ele guardava a lista cuidadosamente, disposto talvez a usá-la em alguma eventualidade.

Apesar do cenário nacional sombrio, estáva-mos naturalmente eufóricos. Essa euforia se expres-sava de várias formas: Regina Stella, nossa artista polivalente, tocava pífano para os colegas perfilados; Lordello apareceu com a cabeça raspada, ostentan-do uma boina. Nós não tivemos trote, e seguíamos de olhos compridos os calouros da medicina, com suas discretas boinas amarelas, e os da odonto, de bone-zinho vermelho e gravata borboleta...

Primeiras impressões

Ainda posso sentir a emoção que me empol-gava quando o bandejão da Viação Cometa nos des-pejou ali no ponto em frente ao prédio da Patologia. O lugar era lindo, cercado de arvoredo, com amplo pátio interno arborizado. Mas logo percebemos que o nosso espaço ali era acanhado e não se adequava ainda a um curso de tempo integral. Faltavam cadei-ras, não havia cantina, o azulejo branco das paredes

nos comunicava frieza, e ainda havia as câmaras frigoríficas. Uma sensação de confinamento às ve-zes nos dominava. A administração ficava longe, no prédio central da Medicina. Entretanto, o que ficava a desejar nas acomodações físicas sobrava na dedica-ção e na afabilidade dos funcionários. Éramos cari-nhosamente acolhidos e atendidos em tudo que fosse possível. Registro aqui meu reconhecimento aos fun-cionários dos primeiros tempos, representados na pes-soa da nossa inesquecível Maria Helena de Oliveira.

Logo nos primeiros dias, os professores pas-saram seus recados. Sauaia e Tereza Lemos davam o tom, falando do projeto de iniciação à ciência. Al-guns colegas reclamavam: isso é recapitulação do colegial! Era uma reclamação injusta. O conteúdo até podia ser semelhante ao do colégio, mas não a leitura que se fazia dele. E, além disso, nem tudo era recapi-tulação; havia uma novidade, a Psicologia, que Tere-za nos apresentava como a ciência do comportamen-to. Mais protestos. E Freud? E a psicanálise? Ficari-am para depois. Não estavFicari-am na ordem do dia.

Com o tempo, as condições foram sendo me-lhoradas. Veio a cantina da Dona Cida, vieram as cadeiras, os livros para a biblioteca.

Ah, a biblioteca! Ponto de referência diário onde íamos saciar a curiosidade despertada nas au-las e discussões, encontrávamos ali, solícita e atenta, dona Lia Becker Rocha, que nos instruía nos segre-dos da pesquisa bibliográfica e nas minúcias segre-dos sis-temas de referência e citação. Além dessa supervi-são cotidiana, dona Lia nos ministrou aulas e elabo-rou para os alunos uma apostila, que me foi extrema-mente útil depois de deixar a faculdade. Agradeço a Lia Becker Rocha a disponibilidade para nos atender, muito além de suas atribuições de bibliotecária.

O ciclo propedêutico

Guardo do propedêutico as melhores lembran-ças de todo o tempo que passei na faculdade, e acre-dito que esse sentimento é partilhado por outros ex-alunos da primeira turma. Foi um período intensamente vivido, que impulsionou nosso amadurecimento.

(3)

184

egressos dos cursos científico, normal e clássico; ha-via profissionais estabelecidos nos ramos de odonto-logia, direito, ensino fundamental e outros; e, princi-palmente, havia uma enorme diversidade de experi-ências de vida. Essa diversidade nos enriquecia na convivência diária. Era preciso lidar com as diferen-ças, conciliar interesses conflitantes. Os mais aptos por formação procuravam ajudar os menos aptos nas dificuldades com as matérias. Sobretudo, essa diver-sidade garantia o apoio mútuo nas muitas horas de incerteza. Para nós, os adolescentes de então, aque-les colegas que já haviam conquistado alguma estabi-lidade afetiva ou profissional eram mentores provi-denciais, espécies de mães e pais substitutos que aco-lhiam nossas angústias e nos ajudavam a tolerar as frustrações. Maria Helena, Dea, Dora, Jairo, Lélio e outros formavam a rede de apoio emocional que nos protegia nos momentos críticos.

O modelo de ensino - Foi no ciclo propedêutico que se deu nossa iniciação cientifica, sob a orienta-ção de professores como Heny Sauaia e Tereza Le-mos, Vasconcelos e Sebastião. Para eles também, eu suponho, foram tempos difíceis. Era preciso muita paciência e pulso firme para conter nossa inquieta-ção, que às vezes transbordava, diante da imprevisibilidade dupla da situação: era a incerteza própria de uma primeira turma somada à novidade do modelo de ensino.

O que mais inquietava no modelo de ensino era o fato de os professores não nos abarrotarem de conteúdos e, ao invés disso, priorizarem o desenvol-vimento de habilidades. Por um lado, havíamos sido socializados em uma cultura escolar que entronizava o conteúdo, e alguns alunos se desesperavam por ‘não estarem aprendendo nada”. Por outro lado, Sauaia e Tereza desafiavam nosso ego todos os dias, propon-do problemas cuja solução exigia algo mais que as competências trazidas do colegial. No começo, fica-mos um pouco perdidos.

O professor - Aos poucos, fomos percebendo a excelência daquele aprendizado. Nesse processo, ficamos devendo muito à dedicação de um professor. Sauaia era a alma do propedêutico. Era dele que emanava aquele entusiasmo pela ciência como ofí-cio, que pouco a pouco nos conquistou. As discus-sões que ele promovia sobre temas palpitantes da bi-ologia tinham grande impacto. Lembro um fato

ocor-rido quando tratávamos da teoria da evolução das espécies. Uma aluna se levantou, visivelmente alte-rada, protestando contra aquela teoria sacrílega que contrariava suas convicções. Pacientemente, Sauaia argumenta. Mostra analogias, fala de símbolos. Inútil naquele momento, era preciso dar tempo às transfor-mações. Mas a semente fora plantada.

Esse episódio foi significativo para mim. Na sua interpretação evolucionista da Gênese, Sauaia de-monstrava que razão e fé podem conviver em har-monia.

O fato é que Sauaia trabalhava com sabedoria aquelas mentes jovens. Ele primeiro despertou em nós o desejo de fazer ciência, depois disciplinou nos-sa curiosidade nos rigores do método científico, atra-vés dos projetos de pesquisa que conduzíamos sob sua supervisão. Mas havia uma terceira preocupa-ção: estimular nos alunos a criatividade, o pensamen-to divergente, a capacidade de identificar novos pro-blemas de pesquisa. Esse era o desafio mais difícil, porque dependia mais do talento do aluno que do empenho do professor.

Professor Sauaia era de uma dedicação sem limites, jamais usava o relógio para controlar o tempo que os alunos lhe solicitavam fora dos horários de aula. Um idealista que encarnava seus ideais. Um professor em tempo integral. Não conheci outro como ele.

O legado do propedêutico

Aquele modelo de ciclo propedêutico não sub-sistiu, por razões várias. Difícil avaliar seu impacto. Meu testemunho pessoal não tem validade científica, mas tenho a impressão de que saímos do propedêutico com um entendimento de método científico e um re-pertório de habilidades cognitivas para pesquisa que muitos egressos de cursos de mestrado não têm.

Referências

Documentos relacionados

testemunhou parte do transito de sua casa em Much Hoole, Lancashire, e um amigo ao qual notificou por carta, William Crabtree, o viu em Manchester. Os transitos seguintes, no

When the relative spatial positions of the contours of the target changed (a rectangular target in which direction of motion was parallel to either the major or minor axis), effects

Ainda na segunda parte do segundo capítulo, Menahem aponta que, de acor- do com McDougall, muitas vezes a sexualidade é uti- lizada como uma droga na tentativa de eliminar an-

em Psicologia pela Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo, Assistente editorial da revista Paidéia:. Cadernos de Psicologia

Dizer que foi vice-diretor daquela Faculdade, diretor da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto (FFCLRP) da USP, produziu mais de uma centena de

Em regiões com poucas estruturas deformacionais, onde os refletores sísmicos são paralelos ao fundo submarino, fica bastante difícil a identificação dos BSR´s e por outro

Nesta aula, você viu que a realização dos sinais em Libras obedece a parâmetros que orientam o ponto de articulação, a forma assumida pela mão, o tipo de movimento executado,

relativos ao abandono escolar no IPB, através da análise das matrículas anuladas pelos estudantes, que se desdobra no objetivo específico de analisar os motivos para o abandono