D E P A R T A M E N T O D E D O E N Ç A S IN F E C T U O S A S E P A R A S IT Á R IA S D ir eto r : P ro f. L a e rte M. G u im arães
D E P A R T A M E N T O D E H IG IE N E E PO L IC IA S A N IT Á R IA A N IM A L D ir eto r : P ro f. T. L ion de A raújo
OCORRÊNCIA DA NUTALIOSE EM EQUINOS PURO
SANGUE DE CORRIDAS, EM SÃO PAULO
(N U T T A L IO S L S O C C U R R E N C E I N T H O R O U G H B R E D H O R S E S , I N S. P A U L O )
La e r t e M. Gu im a r ã e s T. Lio n de Ar a ú j o Pa u l o M. G. d e La c e r d a J r .
A ssisten te I e s ta m p a (3 f ig u r a s )
0 gênero N uttalia, França 1910 encerra babesídios freqüentem ente parasitas de equídeos e uma de suas espécies a N. equi (Laveran 1901) é o agente etio-
lógico da nutaliose ou tristeza do cavalo. Esta espécie é praticam ente cosmo
polita, tendo sido sua ocorrência assinalada na E uropa (Itália, Rússia, França e B alcãs), Ásia (Transcaucásia, Turquestão, ín d ia, A n n am ), Á frica (U nião Sul- A fricana, Cabo, N atal, T ransvaal, — M adagascar) e América do Sul.
No B rasil, a prim eira observação docum entada da presença da N. equi í La
veran 1901) é a de Ca r in i (1 9 1 0 ). Êste autor, exam inando em São P aulo es-
fregaços de sangue de cavalo que lhe haviam sido enviados pelo Dr. P. Maugé, encontrou hem atozoários por êle reconhecidos como “ piroplasm as” e possivelmen te Piro plasm a equi.
Pa r r e ir a s Ho r t a & Fig u e ir e d o (1914) publicaram resultados de suas ob servações em Minas Gerais na cidade de O liveira e na V ila de Passa Tempo, onde estudaram uma enzootia dos equídeos da região, conhecida pelos nomes de “ mi-
jad eira” e “ curso” . No sangue de poldros doentes encontraram determ inado p a
rasita e classificaram -no como N uttalia equi (Laveran 1901), esclarecendo assim
tratar-se de uma enzootia de nutaliose ou tristeza do cavalo. Os anim ais doen
tes, observados, estavam parasitados por carrapatos, identificados como A m blyo-
ma cajennense (F abr., 1787) e, segundo os autores, seria êsse no seu modo de
ver o ixodídeo transm issor da nutaliose equina no Brasil.
Desde a publicação dos trabalhos de Ca r in i e de Pa r r e ir a s Ho r t a & Fig u e i
r e d o nada mais registra a literatura nacional sôbre a tristeza do cavalo. P a rece-nos que durante todo êsse tempo, ou os casos de nutaliose equina no B ra sil tornaram -se muito raros, como conseqüência do combate ao carrapato, p a rti cularm ente nos últim os anos com o aparecim ento de acaricidas eficientes, ou pas saram despercebidos ou, por últim o, o que é mais provável, foram confundidos
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com outras doenças. E’ o que se pode in ferir do silêncio da literatura in d í
gena sôbre o assunto. No entanto, desde alguns anos, vimos observando em equí deos puro sangue de corrida, na V ila H ípica do Jockey Club de São P aulo, e em alguns H aras, conjunto de sintomas, como febre, icterícia, hem oglobinúria, que faz pensar na tifose e na anem ia infecciosa do cavalo e que, posteriorm ente, p u demos dem onstrar tratar-se de nutaliose, como passam os a descrever.
Observações clínicas. — Desde aproxim adam ente 1942 vimos observando em
anim ais de ambos os sexos e de idades variáveis de 2 a 8 anos, alojados nas
cocheiras do Jockey Club de São P aulo, na bairro de Cidade Jardim , doença fe b ril de evolução aguda, caracterizada por anem ia, intensa icterícia, edema e he
m oglobinúria. Em alguns casos o exame clínico revelou congestão pulm onar,
pleuriz e perturbações digestivas. Em raros casos observamos perturbações lo-
comotoras. O aparecim ento concom itante de vários casos dava-nos a impressão
de tratar-se de doença transm issível, pois, por vêzes, êles se sucediam, atacando
anim ais alojados nos mesmos grupos de cocheiras. Alguns dos casos observados
foram fatais; a m aioria, porém , apesar da terapêutica instituída ter sido p u ra
mente sintom ática, evoluia p a ra a cura. A doença manifestava-se sempre com
muito m aior gravidade em anim ais adultos, nos quais, como regra, observamos a m aioria dos sintom as referidos acim a, sendo quase sem pre fatal, quando havia
comprom etim ento do aparelho respiratório. Em potros, comumente, reduziam-se
os sintom as a febre e icterícia que, na m aioria dos casos, cediam facilm ente à terapêutica sintom ática.
De início pensamos, como aliás sucedeu com outros clínicos, na possibili dade de tratar-se de tifose ou de anem ia infecciosa, mas, a não contagiosidade direta, a baixa letalidade, a falta de resposta à medicação indicada p ara tais ca sos, enquadrando-se a sintom atologia geral na que ocorre em outras babesioses, a curva térm ica do tipo rem itente e, finalm ente, a possibilidade de observar m aior número de casos, levaram-nos à suspeita de nutaliose, posteriorm ente con firm ad a por provas de laboratório.
Em janeiro dêste ano, um de nós (L. M. G .), teve oportunidade de exam i n ar dois potros puro sangue, de dois anos de idade, procedentes de um H aras de São Caetano do Sul e que se encontravam , há seis meses, na V ila H ípica do
Jockey Club de São P aulo. À anamnese verificam os que os anim ais apresenta
vam inapetência há dois dias. Ao exame clínico verificam os síndrom a febril-
icteríco. Julgando tratar-se de infecção prescrevemos penicilina e sulfas. No dia
seguinte, a tem peratura voltou ao norm al, pela m anhã, e mostrou tendência a
elevação à tarde, persistindo essa oscilação por três dias. Após êsse período hou
ve acentuada elevação térm ica (39.6 no quarto dia, 40.4 no quinto d ia ), com intensificação da icterícia, aparecim ento de edema das partes ein declive e hemo globinúria.
L. M. G uim arães, T. L. A ra ú jo e P. Lacerda Jr. — N u taliose em equinos 35.0
Diante da agravação dos sintomas e admitindo-se a presença de germe não
sensível à medicação instituída, passam os ao emprego da estreptom icina. A tem
peratura voltou ao norm al no sétimo dia da doença, ou seja, após 48 horas do início das aplicações de estreptom icina e manteve-se entre 38.1 e 39 até ao nono dia, quando houve recrudescim ento, chegando a 40.5 no décimo dia.
Nessa ocasião, considerando o m alogro da medicação e a evolução da doen ça, passamos a pensar na possibilidade de tratar-se de uma babesiose. apesar de não surpreenderm os carrapatos nos anim ais e do tratad o r afiançar nunca os ha
ver encontrado nos anim ais a seu cuidado. O exame de esfregaços de sangue
confirm ou inteiram ente a hipótese, pois, encontram os hem átias parasitadas por
hem atozoários do tipo dos babesídeos. O emprêgo de medicação específica deu
como resultado o desaparecim ento rápido dos sintomas, com volta da tem pera tura ao norm al após 48 horas.
IN O C U LA Ç Õ ES E X P E R IM E N T A IS
De um dos anim ais acima citados, logo após a obtenção de esfregaços po
sitivos e antes da aplicação do específico, foram retirados 2 0 cm3 de sangue e re
colhidos a frasco com citrato de sódio, os quais foram inoculados por via sub
cutânea num cavalo mestiço, corn aproxim adam ente 1 0 anos de idade. Êste ani
mal foi submetido a observação diária — tom adas de tem peratura e exames de sangue — durante dois meses, sem apresentar qualquer sintom a de nutaliose ou qualquer form a de parasita no sangue.
Dado o conhecimento de que um ataque por babesídeos confere aos anim ais resistência à reinfestação e como o cavalo inoculado podia estar prem unido ou ter uma resistência n atu ral m aior que a dos de raças apuradas, procuram os re
petir a inoculação usando anim al puro sangue inglês. No mesmo anim al que
havia fornecido sangue p ara a prim eira inoculação, fizemos, dois meses após,
nova sangria. () fornecedor do sangue nesta ocasião já estava clinicam ente são,
mas, a exemplo do que sucede na babesiose bovina, deveria albergar os parasitas em seu organismo.
A 27-3-50 inoculam os 70 cm3 de sangue citratado, por via subcutânea, em
uma potranca puro sangue inglês, de dois anos de idade. A potranca inoculada
foi considerada em estado norm al, graças aos exames realizados. Nos dez p ri
meiros dias após a inoculação, nada de anorm al foi observado. No décimo p r i
meiro dia, pela m anhã, a tem peratura elevou-se a 39.4. No mesmo dia à tarde
a tem peratura baixou p ara 38.5 e nos esfregaços de sangue corados pelo Çiein-
sa, foram observadas num erosas form as do parasita. Nos dias subsequentes no
vas form as foram observadas rias hem átias, inclusive as típicas em cruz de M alta. Êsse anim al continuou a apresentar parasitas dem onstráveis em esfregaços de san
360 R ev. F ac. Med. Y et. S. P au la — Y o l. 4, fase. 2, 1950
negativos. Os sintomas observados neste caso de doença experim ental foram se
m elhantes àqueles vistos nos casos espontâneos.
O parasita. — Em todos os casos em que nos foi possível exam inar o san
gue dos anim ais infetados, encontram os babesídeo por nós identificado como a
N uttallia equi (Laveran 1901). Êste hem atozoário apresenta-se de acôrdo com a fase da doença, sob form a de parasita pequeno, redondo ou oval, ou sob form a
de corpúsculo lem brando um anaplasm a. Muito típicas são as form as em cruz
de M alta, constituídas por quatro elementos piriform es, dispostos em cruz. As
medidas por nós tom adas coincidem com as indicadas por diversos especialistas no assunto; assim, os parasitas piriform es apresentam diâm etro máximo de 2.32jx. No início da doença, no sangue periférico, predom inam as form as anaplasm oides, enquanto as piriform es e em cruz de M alta são abundantes em fases posteriores.
Outros casos. — Além dos dois prim eiros casos diagnosticados e tratados
como foi descrito acim a, tivemos oportunidade de verificar e tra ta r, no Jockey Club, até ao presente, mais seis casos, diagnosticados pelo exame clínico, que foi, em todos êles, confirm ado pelo encontro do parasita em esfregaços de sangue. Todos êstes anim ais responderam prontam ente à medicação específica. Três ou tros potros, também acometidos de nutaliose diagnosticada clinicam ente, foram tratados, sem têrmos tido oportunidade de realizar os exames de sangue e se restabeleceram sem maiores contratem pos.
Tratamento. — Uma vez estabelecido o diagnóstico de nutaliose, usamos co
mo específico soluções a 5% de m etil-sulfom etilato de uréia da 6-aminoquinoleí-
na, por via subcutânea e em doses variáveis de 1 a 4 cm3. Obtivemos em to
dos os anim ais am plo sucesso, conseguindo curas clínicas, algum as vêzes em 24
horas e com uma única aplicação de 4 cm3 do medicamento, na concentração
acim a referida. Alguns anim ais, após a injeção do medicamento, m ostraram di
versos tipos de reação sem pre pouco intensa, como trem ores, suores, inquietação e cólicas intestinais que regrediam espontâneam ente.
Transmissão. — A nutaliose é veiculada por ixodídeos, e, entre êstes, já fo
ram assinaladas, como transm issoras, as seguintes espécies: R hipicephalus evertsi, Neumann, 1817 — na Á frica M eridional; R. bursa, Canestrini e Fanzago, 1.878 — na Itá lia; Dermacenlor sp., na Rússia. No B rasil, P a r r e i r a s H o r t a & F i g u e i r e d o lem bram a possibilidade do Ablyornm a cajannense ÍF abr., 1787) ser o tran s missor.
No Jockey Club de São Paulo, como dissemos acima, os anim ais aí m an tidos não são habitualm ente infestados por carrap ato s; entretanto, a hipótese de
serem parasitados, em rápidos períodos, não pode ser desprezada. A alim enta
L. M. Guim arães, T. L. A ra u jo e P. Lacerda Jr. — N u taliose em equinos 361
várzea do Butantã e proxim idades, onde se tem verificado de sobêjo a ocorrência
de carrapatos. () capim cortado nesses locais pode carrear ninfas que se fixam
aos anim ais e são dentro de pouco tempo retiradas pela ação da raspadeira. A liás, num a única oportunidade, um de nós (T. L. A.) pôde encontrar num po tro, um só exem plar fêmea de Boophilus m icroplus fixado ao abdome, próxim o
à região inguinal. Êste falo indica que pode ocorrer o mesmo, e com maiores
possibilidades, quanto às espécies do gênero A m blyom m a, dadas suas p articu la ridades biológicas.
R ESU M O
Os AA. descrevem casos de nutaliose equina, em cavalos puro sangue in
glês, observados cm São P aulo. Reproduzem experim entalm ente a doença, des
crevem as form as do agente etiológico — N uttalia equi (Laveran 1901) — en contradas em esfregaços de sangue e assinalam o sucesso do tratam ento com so
lução a 5% de metil sulfom etilado de uréia da 6-am inoquinoleína.
A B S T R A C T
The AA. describe the occurrence of equine nuttaliosis in race horses, in São Paulo. They reproduced the disease experim entaly, described the form s of the etiological agent — N uttalia cqui (Laveran 1901) — which they found in blood smears and consider the therapeutics success with the use of 5% urea-dimethyl- quinolyl sulfate solutions.
B IB L IO G R A F IA
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E s t a m p a I
F ig. I 'hlcmento globoso. F ig . 2 — Form a em Cruz de Malta.