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Academic year: 2018

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Christina Miranda Ribas*

A

Revista

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Fi

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Os direitos humanos no

mundo do animal laborans

* Professora de Filosofia do Direito na Universidade Estadual de Ponta Grossa (UEPG).

RESUMO

Partindo da distinção/indistinção entre as atividades da vida activa (action, work, labor), cuja prevalência pode ser percebida, historicamente, como organizadora de diferentes concepções antropológicas, procura-se pensar o significado dos direitos humanos no mundo do animal laborans, numa proposta de compreendê-los nos marcos do pensamento de Hannah Arendt, norteada pelo entendimento arendtiano da compreensão como produtora de sentido – enraizada no processo da vida – que permite a reconciliação com as razões e paixões humanas.

Palavras-chave: Direitos humanos; Apátridas; Refugiados; Hannah Arendt.

ABSTRACT

Starting with the distinction/indistinction among the activities of the vita activa (action, work, labor), whose prevalence may be acknowledged, historically, as the organizer of different anthropological conceptions, we try to ponder on the meaning of human rights in the world of the animal laborans, in an attempt to understand them under the theoretical perspective of Hannah Arendt, guided by the Arendtian conception of understanding as a producer of meaning - rooted in the life process - which allows for the reconciliation with human reasons and passions.

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I

Falar em direitos humanos é navegar num mar de incertezas, num mundo no qual sequer a paz, ainda que precária, chegou a instaurar-se, desfazendo-se entre corpos frágeis e esperanças malogradas, ou, para dizer com o poeta, num mundo “onde os frutos da paz” se esvaem “no

chão das guerras.”1

Ao refletir sobre o totalitarismo, Hannah Arendt identifica a

pri-vação da cidadania como condição sine qua non para a Solução Final, o

que vai constituir-se na base de sua formulação de um “direito a ter di-reitos” e de sua crítica aos direitos humanos. A tese principal de Arendt, nessa matéria, é a de que os acontecimentos que sucederam à Primeira Guerra Mundial demonstraram que os direitos humanos foram absolu-tamente inúteis para os que foram obrigados a viver fora da estrutura jurídica do Estado. Evidenciou-se “[...] a incapacidade constitucional dos Estados-nações europeus de proteger os direitos humanos dos que haviam perdido os seus direitos nacionais [...]” (ARENDT, 1989, p. 302). Arendt afirmou muitas vezes que o aparecimento do totalitarismo solapou a dignidade da tradição do pensamento político ocidental. No capítulo dos direitos humanos, essa afirmação também se revela assus-tadoramente verdadeira. Os eventos do período totalitário puseram por terra as teorias jurídicas nas quais esses direitos tradicionalmente se em-basavam. A concepção de direitos que pudessem ser atribuíveis a todos os seres humanos, independentemente da sua posição nas comunidades, pode ser localizada no pensamento jusnaturalista da era moderna, tendo significado uma revolução na forma de pensar o direito, possibilitada por um lado pela incorporação, no universo jurídico, das noções de pessoa e livre-arbítrio, desenvolvidas na filosofia cristã e, por outro, pela separação entre o Estado e a sociedade civil. A afirmação de que o homem teria direi-tos que transcenderiam o poder do príncipe se deu no bojo da luta contra o poder absoluto; tais direitos foram concebidos como naturais, atribuídos ao homem por leis naturais e, como as leis que os instituiriam, seriam imu-táveis e universais. Daí postular-se que o Estado, ao tutelar os direitos do homem, na realidade não os constituiria, mas simplesmente os reconhe-ceria. As cartas de direitos que vão surgir a partir do final do século XVIII

serão denominadas, significativamente, Declarações de Direitos.2

1 Vinicius de Moraes. Balada dos Mortos dos Campos de Concentração.

2 Nas duas declarações que se tornaram paradigmáticas, a Declaração dos Direitos do Homem e

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A fragilidade dos direitos humanos se tornou evidente na ruptura totalitária. Diante daqueles acontecimentos, para Arendt, a própria ex-pressão ‘direitos humanos’ tornou-se para todos os interessados – ví-timas, opressores, espectadores – uma prova de idealismo fútil ou de tonta e leviana hipocrisia. (1989, p. 302).

É esse diagnóstico que procuro retomar aqui, para a partir dele pro-curar perceber a especificidade dos direitos humanos no mundo contem-porâneo, especificamente no que diz respeito a questão dos refugiados. Em Origens do Totalitarismo, Hannah Arendt analisa como a Eu-ropa tentou encaminhar os problemas das minorias produzidas pelas novas configurações territoriais após a Primeira Guerra e mostra que, num mundo dividido em estados – e estados concebidos como nações personalizadas – os seres humanos só podiam ser protegidos na medida em que fossem cidadãos. Essa concepção ela critica veementemente, como se fosse simplesmente natural – ou assim parecesse ao mundo – que o Estado não pudesse responsabilizar-se por não nacionais (1989, p. 308). A ideia de nacionalidade que se evocava aí transpirava uma ideolo-gia racial. Os não nacionais num território “estranho” eram vistos como anomalias, “exceções” num mundo de resto estável (ARENDT, 1989, p.

301).3 A existência mesma dos Tratados de Minorias implicava no

reco-nhecimento de que estas necessitavam de uma garantia adicional que o Estado em que elas viviam não lhes dava, evidenciando, afirma Arendt, a crença generalizada de que

a verdadeira liberdade, a verdadeira emancipação e a verdadeira soberania popular só podiam ser alcançados através da completa emancipação nacional, e que os povos privados do seu próprio governo nacional ficariam sem a possibilidade de usufruir dos direitos humanos. (1989, p. 305).

Mais grave que o das minorias, que bem ou mal pertenciam a al-gum corpo político (ARENDT, 1989, p. 309), era o problema dos apátri-das, que viviam fora do arcabouço jurídico do Estado, fora do “âmbito da lei” (1989, p. 310).

Ao narrar os caminhos para o “domínio total”, Arendt mostra como foi imprescindível para o sucesso do totalitarismo a exclusão de certos

3 “Os Tratados das Minorias diziam em linguagem clara aquilo que até então era apenas implícito no

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grupos de pessoas da proteção da lei, num processo que ela chamou de “matar a pessoa jurídica do homem” (1989, p. 498). A destruição da per-sonalidade jurídica, no sentido da destruição perper-sonalidade de alguém perante o direito, ou seja, da condição de sujeito – cuja atribuição a todas as pessoas também é uma conquista recente na história do pen-samento jurídico – foi conseguida “quando certas categorias de pessoas foram excluídas da proteção da lei e quando o mundo não totalitário”, diante da “desnacionalização maciça”, também passou a tratá-las como pessoas que estavam à margem, “fora da lei” (ARENDT, 1989, p. 498). Os direitos do homem, embora fossem vistos como inalienáveis, sagrados, universais, não foram capazes de fornecer a essas pessoas nenhuma garantia; a perda da cidadania equivaleu a perda dos direitos humanos que, num mundo dividido em Estados, só eram convenientemente pro-tegidos pelos próprios Estados.

Os apátridas foram submetidos a uma experiência de radical pri-vação de direitos, tendo em primeiro lugar sofrido a perda de seus la-res. Arendt ressalta que, embora a perda do lar não fosse sem prece-dentes, era sem precedentes a absoluta impossibilidade de encontrar um novo lar, resultando em algo como a “expulsão da humanidade.” (1989, p 331). Procurou-se resolver o problema por meio de repatriação ou naturalização (p. 314), sem sucesso (p. 317). Essas pessoas foram se tornando “indeportáveis”, ficando “completamente a mercê da polícia.” (p. 317 e 321), tornando-se corriqueiras a prática de contrabando de pes-soas nas regiões fronteiriças e outras formas de ilegalidade que no fim das contas levaram à “coordenação do mundo livre com a legislação dos países totalitários.” (p. 322).

Arendt cita em nota que o jornal oficial da SS publicara, um pouco antes da guerra, que

se o mundo ainda não estava convencido de que os judeus eram o refugo da terra, iria convencer-se tão logo, transformados em mendigos sem identificação, sem nacionalidade, sem dinheiro e sem passaporte, esses judeus começassem a atormenta-los em suas fronteiras. (ARENDT, 1989, p. 302).

O que ela chama de “silencioso consentimento” do mundo não to-talitário, que, ao menos num certo sentido, tornou possível o holocausto, de alguma maneira se relacionou a

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indeseja-dos, enquanto o desemprego tornava milhões de outros econo-micamente supérfluos e socialmente onerosos. (p. 498).

Nesse contexto, os campos de internamento foram se tornando progressivamente “solução de rotina” (ARENDT, 1989, p. 312); era esse “

o único território que o mundo tinha a oferecer aos apátridas” (p. 318). Simplesmente não tinham para onde ir. Para Arendt, “a história contemporânea criou um novo tipo de seres humanos – o tipo que é posto em campos de concentração pelos inimigos e em campos de internamento pelos amigos. (1978, p. 56).

À perda do lar somou-se a perda da proteção do governo - que ao fim e ao cabo foi equivalente a perda de toda a proteção legal - sendo que nenhuma delas poderia ser atribuída a qualquer ato que eles

pu-dessem ter praticado.4 Não foram privados especificamente de algum

direito humano, mas de uma comunidade que lhes garantisse direitos

(ARENDT, 1989, p. 328 e 331)5, encontrando-se numa situação de

com-pleta anomia (p. 320).

Para Arendt, “a privação fundamental dos direitos humanos mani-festa-se, primeiro e acima de tudo, na privação de um lugar no mundo que torne a opinião significativa e a ação eficaz” (1989, p. 330), envol-vendo a “perda da relevância da fala” e a “perda de todo o relacionamento humano”, as características mais essenciais da vida humana (p. 330).

No contundente texto “The Rights of man: what are they?”, Arendt afirma que o problema dos apátridas colocou em xeque as concepções tradicionais de direitos humanos: existiriam realmente? Existiriam com independência da situação política das pessoas, derivados unicamente da qualidade de ser humano? (1949, p. 25) Para ela essa ilusão se de-sintegrou quando apareceram “pessoas que na verdade haviam perdido todas as outras qualidades e relacionamentos específicos, exceto que eram ainda humanos.” (p. 32), demonstrando como homens e mulheres desprovidos de cidadania, mergulhavam numa “abstrata nudez”, na qual “o mundo não viu nada de sagrado.” (1989, p 333). A cidadania como di-reito a ter didi-reitos significa “viver numa estrutura onde se é julgado pelas

4 “A inocência, no sentido de completa falta de responsabilidade, era a marca da sua privação de

direitos e o selo da sua perda de posição política.” (ARENDT, 1989, p. 328).

5 “[...] a calamidade dos que não têm direitos não decorre do fato de terem sido privados da vida, da

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ações e opiniões” (1989, p. 330; 1949, p. 30), e a existência de tal direito, para Arendt, só tornou-se perceptível quando milhões de pessoas foram

dele privadas de forma definitiva e inexorável (1949, p. 30).6

O paradoxo envolvido na perda dos direitos humanos é que o instante dessa perda coincide com o instante em que a pessoa se torna um ser humano em geral – sem uma profissão, sem uma opinião, sem um feito através do qual identificá-la e especificá-la – e diferente em geral, representando nada a não ser sua indi-vidualidade absolutamente única, a qual, privada de expressão dentro e de ação sobre um mundo comum, perde toda a signifi-cação. (ARENDT, 1949, p. 33).

Daí, para Arendt, o ser humano enquanto tal teria apenas um di-reito, “o direito de nunca ser excluído dos direitos garantidos por sua comunidade [...] e nunca ser privado de sua cidadania.” (1949, p. 36). Como todos os outros direitos, tal direito à cidadania exige que os pró-prios seres humanos, através de acordos e garantias recíprocas, se dis-ponham a estabelecê-los (p. 37).

Hannah Arendt não se entusiasmou com as tentativas do pós--guerra de constituir uma nova Declaração de Direitos, na medida em que ali também não se conseguiu definir “com segurança o que esses direitos humanos em geral, enquanto distintos dos direitos dos cida-dãos, realmente são.” (1949, p. 26).

Ela percebeu que no fundo a Declaração Universal dos Direitos Hu-manos da ONU foi uma tentativa de reatar o fio da tradição. Os direitos humanos foram retomados quase como se o totalitarismo não tivesse existido, como se a nova preocupação com esses direitos pudesse ser pensada simplesmente como uma reafirmação das velhas miragens do século XVIII.7

A verdade é que um direito a ter direitos, como Arendt propôs, jamais chegou a se constituir, e as soluções pensadas na teoria jurídica – quando

chegaram a ser pensadas – são, para dizer o mínimo, insuficientes.8

6 “Nos demos conta da existência de um direito a ter direitos (...) e do direito a pertencer a algum tipo

de comunidade organizada, quando de repente apareceram milhões de pessoas que perderam e não podiam mais obter esses direitos por causa de uma nova situação política global.” (ARENDT, 1949, p. 30).

7 Ela se mostrou muito descrente da possibilidade desses fundamentos tradicionais dos direitos

humanos serem ferramentas adequadas para se lidar com a privação radical de direitos que o mundo presenciou. (ARENDT, 1949, p. 32).

8 Não vejo como dizer que essa situação foi superada pela mera inclusão, nos tratados internacionais,

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II

Em Origens do Totalitarismo Hannah Arendt afirmou que

nenhum paradoxo da política contemporânea é tão dolorosa-mente irônico como a discrepância entre os esforços de idealis-tas bem intencionados, que persistiam teimosamente em con-siderar inalienáveis os direitos humanos e a situação de seres humanos sem direito algum. (1989, p. 312).

Após tantas décadas e apesar de todas as conquistas celebradas pelos defensores dos direitos humanos pelo mundo afora, o abismo en-tre os direitos estabelecidos no plano internacional e a situação concreta

em que vive significativa parcela da humanidade jamais foi transposto.9

Com o desfile de horrores cotidianos levando a indiferença, per-manece a sensação incômoda de que - para usar a citação de Willian Faulkner que Arendt apreciava, “o passado nunca está morto, não é nem sequer passado.” (2004, p. 8). No entanto, não parece haver qualquer “sabedoria do passado” a nos guiar no mundo que assistiu a vitória do

animal laborans, cuja atividade, o trabalho, coeva a manutenção da vida

biológica, é interminável, devoradora, recorrente. Em A Condição

Hu-mana, obra publicada em 1958, Arendt afirmou que

[...] do ponto de vista das exigências do próprio processo vital, o trabalho e o consumo seguem-se tão de perto que quase chegam a constituir um único movimento – movimento que, mal termina, deve começar novamente. (1987, p. 111).

Aí, nada deve durar, tudo se torna absolutamente descartável, des-tinado a ser rapidamente substituído, rapidamente superado. Dominado

pela necessidade, o homem, como animal laborans, já não age,

com-porta-se, regido pelos imperativos da sobrevivência, “[...] como se a vida individual houvesse sido afogada no processo vital da espécie. (ARENDT,

1987, p. 335).10 Talvez, na sociedade de consumidores, a própria palavra

trabalho, ela diz, já seja “muito elevada, muito ambiciosa para o que es-tamos fazendo ou pensamos que eses-tamos fazendo [...]” (p. 335).

9 Isso é percebido na teoria do direito, gerando um certo mal-estar; desde os anos 60 Norberto Bobbio

chamava reiteradamente a atenção dos juristas para o problema, que formulava em termos de uma “crise de efetividade” dos direitos humanos.

10 “Naturalmente, para que se tenha uma sociedade de operários não é necessário que cada um

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No final do século passado, Zygmunt Bauman, ao examinar o que ele chama de consequências humanas da globalização, assinala que a nossa sociedade engaja seus membros “pela condição de consumi-dores.” (1999, p. 88). Para ele, “o consumidor em uma sociedade de consumo é uma criatura acentuadamente diferente dos consumidores de quaisquer outras sociedades até aqui”... de tal modo que é possível questionar “se ainda somos capazes e sentimos a necessidade de dis-tinguir aquele que vive daquele que consome.” (p. 88-89). Ele considera que é pelo grau de mobilidade - a liberdade de escolher onde estar - que se dá a nova estratificação social de nossos tempos (p. 94). Assim,

o acesso à mobilidade global [...] foi elevado à mais alta catego-ria dentre os fatores de estratificação. Também revela a dimen-são global de todo privilégio e de toda privação, por mais locali-zados. Alguns desfrutam da nova liberdade de movimentos sans papiers. Outros não têm permissão para ficar nos seus lugares pela mesma razão. (BAUMAN, 1999, p. 96).

É significativo que essa descrição seja feita em termos que evocam, nitidamente, a situação dos refugiados e, especialmente, a dos apátri-das no período entre-guerras, conforme relatada por Hannah Arendt. Utilizando-se da metáfora turistas e vagabundos, Bauman considera os primeiros como aqueles que podem abandonar “a sujeira e a pobreza das regiões onde estão presos aqueles que não têm como se mudar” (p. 94), sendo “... volta e meia [...] expulsos do lugar em que gostariam de ficar” (p. 95):

Se eles não se retiram, o lugar muitas vezes é puxado como um tapete sob seus pés, de modo que é como se estivessem de qual-quer forma se mudando. Se põem o pé na estrada, então seu des-tino o mais das vezes ficará na mão de outros; dificilmente será um destino agradável e o que parecer agradável não será por op-ção. Podem ocupar um lugar extremamente pouco atraente que abandonariam de bom grado – mas não têm outro lugar para ir, uma vez que provavelmente em nenhum outro lugar serão bem re-cebidos e autorizados a armar sua tenda. (BAUMAN, 1999, p. 95).

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Bauman exemplifica citando o vertiginoso aumento no número de pessoas aos cuidados do Alto Comissariado da ONU para Refugia-dos, que passou de 2 milhões em 1975 para 27 milhões em 1995 (p. 95), para ele destinadas a “afundar cada vez mais no desespero, fruto de uma existência sem perspectiva” (p. 78), contidas por leis que visam evitar “o movimento daqueles que em consequência perdem, física e espiritualmente, suas raízes”, remetidas ao “isolamento que reduz,

di-minui e comprime a visão do outro.” (p. 102).11

III

Hoje, o Alto Comissariado da ONU para Refugiados propõe-se a atender 33,9 milhões de pessoas, incluindo refugiados, pessoas inter-namente deslocadas, requerentes de asilo, retornados e, finalmente, os apátridas. Além destas, outras 5 milhões estão sob a responsabilidade

da Agência da ONU para Refugiados Palestinos.12 Embora sejam

titula-res de direitos internacionalmente estabelecidos, povoam campos de refugiados destinados a suprir situações de emergência que todavia se eternizam.13

Tercio Sampaio Ferraz Jr. faz uma leitura instigante da obra de Arendt, mostrando como a progressiva indistinção das três atividades

da vida ativa que Arendt identificou – a ação, a obra e o trabalho14 – se

manifesta no universo do direito. Ferraz afirma que na antigüidade havia uma diferença entre direito e lei (ius e lex) na medida da diferença entre ação e fabricação (1988, p.). A semelhança do arquiteto que construía os muros da cidade, o legislador também estabelecia, através das leis, certos limites dentro dos quais o direito se produziria. Mas o direito não

se reduzia a essas leis. Quando o homo faber passou a ditar suas regras

em todos os espaços, e na medida em que a política, de espaço de apa-rição da liberdade, foi se convertendo num fazer, que deveria produzir resultados, como a paz, segurança, o bem comum, enfim, resultados

11“Em termos de labor compartilhamos todos de um mesmo destino, mas não compartilhamos coisa

nenhuma, porque a sobrevivência acossa a cada qual individualmente e nos isola uns dos outros.” (FERRAZ JR, 1988, p. 30).

12 Dados disponíveis nos sites oficiais (www.unhcr.org e www.unrwa.org). Acesso em 20 de janeiro de

2013. O UNHCR ressalta a dificuldade de apresentar números precisos, referindo-se a um contingente de pessoas sob sua responsabildade que chegava, em finais de 2011, a quase 35,5 milhões de pessoas.

13 Em fevereiro de 2012 foi amplamente noticiado que o Campo de Dadaab, no Quênia - o mais

populoso do mundo - completou vinte anos, com uma população 463 mil refugiados, entre eles perto de 10 mil pessoas que formam o que a chamada “terceira geração”: filhos de refugiados que também nasceram nos campos.

14 Acompanho a tradução de Adriano Correia, proposta na 11a. ed. revista de A Condição Humana,

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que variam conforme certos fins são postulados como mais ou menos valiosos, nessa medida o direito também se alterou, transformando-se em bem de uso, “um bem que se produz por meio da edição de normas”, percebido progressivamente como “mero objeto de atuação do homem sobre outro homem”, formando “a base de uma concepção que vê no direito e no saber jurídico um sistema neutro que atua sobre a realidade de forma a obter fins úteis e desejáveis.” (FERRAZ, 1988, p. 29-30).

Nesse diapasão, os direitos do homem aparecem ligados a pro-gressiva indistinção entre público e privado e à ascenção do social, que exige a proteção da sociedade econômica contra o Estado, bem como “a identificação do privado com a propriedade da riqueza.” (FERRAZ, 1990, p. 105).

Os direitos do homem constituíam assim um sistema ordenado e estático de direitos subjetivos universais. Contudo, como o homem era também concebido como um ser que age sobre o mundo circundante, o sistema de direitos do homem, manti-dos como um fim, passa a exigir uma certa dinamicidade que o transformará profundamente. Mormente a sua inscrição como Declaração de Direitos Fundamentais nas constituições do final do século XVIII confere ao sistema esse caráter de ordem dinâ-mica, capaz de absorver eventuais perturbações, em termos de articulação entre conflito e harmonia. O exercício dessa função, que está na base do constitucionalismo moderno, desvenda su-tilmente uma transformação dos direitos do homem em um meio que serve a um fim inconsciente, que será captado dentro da História, concebida não como categoria teórica, mas prática: a História deixa de ser a compreensão do passado, para ser uma projeção do futuro. (FERRAZ JR., 1990, p. 108).

Adquirindo caráter instrumental, os direitos humanos vão sendo colocados no bojo de projetos de transformação da sociedade que, con-forme assinala Ferraz Jr., não servindo mais a uma visão totalizadora da vida política e jurídica, o que destrói o sentido moderno dos direitos do homem (1990, p. 108). Na sociedade de consumidores, finalmente, o di-reito, como tudo o mais, vai ser marcado pela contingência, uma enorme disponibilidade de conteúdos. Ocorre

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Tudo pode ser normado e ao mesmo tempo tudo continua sendo aceito como direito, ele diz, “em termos de uma terrível uniformidade”, aceitação que se assenta em nada mais do que a imensa capacidade

para a indiferença do mundo do homo laborans (1988, p. 31-32).

IV

No mundo contemporâneo, os direitos humanos são estabelecidos nas constituições de diversos países, às quais se acrescentam inúmeros tratados internacionais. Muitos dos Estados-parte não se comprometem, de fato, com a sua observância, permanecendo na dimensão da retórica vazia. O processo de multiplicação e especificação desses direitos é in-tenso, mas, numa certa medida, parece cada vez mais desprovido de significado real. Mesmo a função que em algum momento o direito pôde exercer, apontada por Arendt, de construir canais de comunicação, radi-cada na faculdade de prometer - função que lhe permitiu proteger a es-fera da ação e ao mesmo tempo garantir a preexistência de um mundo comum - parece se perder.

Na lógica do animal laborans, que hoje se afirma, os direitos

huma-nos também são bens de consumo e como tais parecem condenados à ruína. Novos direitos humanos se acrescentam aos infindáveis catálogos, são exaltados nos discursos como a mais alta realização da humanidade e, ao mesmo tempo são esvaziados de conteúdo, banalizados, despre-zados na experiência humana, aprofundando-se cada vez mais a lacuna entre o direito e a realidade. Ao mesmo tempo, o direito de pertencer a uma comunidade política, que para Arendt é o único sem o qual nenhum direito pode se materializar, permaneceu absolutamente negligenciado.

Mais: a nossa situação se deteriorou a tal ponto que nem sequer é preciso privar as pessoas da cidadania para expulsá-las do mundo comum. Não mais de um terço das pessoas sob a proteção do Alto Co-missariado da ONU para Refugiados são apátridas. Para a imensa maio-ria – apátridas ou não – os campos de refugiados se tornaram solução rotineira. A cidadania (e a sua privação), tão importante no contexto eu-ropeu entre guerras, é agora engolfada no processo de absoluta descar-tabilidade que atinge tudo – inclusive o direito. Apátridas ou não, essas pessoas mais uma vez, são vistas como “exceções”, tal qual na narrativa

de Arendt (1989, p. 301), permanecendo sem esperanças concretas15,

15 É como se tivéssemos caído sob o encantamento de uma terra de fadas que nos permite fazer o

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encontrando mais apoiando na solidariedade do que nas instituições jurídico-políticas. Sua advertência, em Origens [...], ainda ecoa:

O perigo é que as soluções totalitárias possam sobreviver ao fim dos regimes totalitários, toda vez que parecer impossível aliviar a miséria, política, social ou econômica, de um modo digno do homem. (ARENDT, 1989, p. 511).

Parecem ter sido dados alguns largos passos na direção de um novo e curioso tipo de domínio total, que se amolda a nova configuração do Estado e das relações internacionais. “Soluções totalitárias” brotam um pouco por toda a parte, sem um centro de emanação identificável, tão pulverizadas quanto onipresentes, revestidas da ilusão da inevita-bilidade. Aí, é possível dizer, com FERRAZ JR, que “[...] a mais perversa característica da trivialização dos direitos do homem [é] a perda da di-mensão da responsabilidade humana por uma obra pela qual cada ho-mem é, de fato, responsável.” (1990, p. 115).

Talvez o aspecto mais cruel de todo o processo seja a crença na

sua inexorabilidade, solapando a capacidade de amor mundi,

dissol-vendo a disposição de transformar o mundo num lugar onde não ape-nas eu e tu, não apeape-nas nós – mas os seres humanos pudessem, afinal, sentir-se em casa.

Referências Bibliográficas

ARENDT, Hannah. A condição humana. Rio de Janeiro: Forense, 1987.

_____. Origens do totalitarismo: anti-semitismo, imperialismo, totalitarismo. São Paulo: Companhia das Letras, 1989.

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_____. Sobre a violência. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 1994.

_____. The jew as pariah: Jewish identity and politics in te modern age. New York: Grove Press, 1978.

_____. The rights of man: what are they?. Modern Review, v. III, n. 1, Summer 1949, p. 24-37.

BAUMAN, Zygmunt. Globalização: as consequências humanas. Rio de Janeiro: Zahar, 1999.

FERRAZ JR, Tercio Sampaio. Introdução ao estudo do direito: técnica, decisão, dominação. São Paulo: Atlas, 1988.

Referências

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