APROXIMANDO PENSAMENTO SOCIAL BRASILEIRO E PENSAMENTO PÓS-COLONIAL:
pressupostos e pistas para um diálogo descolonial com Sérgio Buarque de Holanda, à partir da releitura crítica de “Raízes do Brasil”
Thiago de Oliveira Thobias EPÍGRAFE
Minha última prece: Oh, meu corpo! Faça sempre de mim um homem que questione! (Frantz Fanon)
INTRODUÇÃO
Desde o final dos anos de 1980, a razão ocidental vem sendo colocada em xeque pelas chamadas teorias insurgentes, uma tendência que tem sido definida como desobediência epistêmica e que converge em um movimento mais amplo denominado giro decolonial. Essa investida teórico- epistemológica visa, principalmente, deslocar os habituais lugares de enunciação para, assim, refazer a atual geopolítica do conhecimento. Dito de outra forma, as perspectivas eurocêntricas estão sendo abandonadas em detrimento das epistemologias do sul. Em consonância com este contexto, o presente artigo promove uma leitura pós-colonial de “Raízes do Brasil”, de Sérgio Buarque de Holanda, por meio da articulação dessa obra com algumas sugestões pós-coloniais. Como ensaio histórico-sociológico, seu formato ensaístico nos oferece uma obra aberta, que convida para o diálogo e reflexão crítica sobre o Brasil. Trata-se, portanto, de um esforço teórico que toma uma obra clássica do pensamento social brasileiro e extrai dela novas potencialidades.
Coloco o pensamento social de Sérgio Buarque de Holanda, presente em sua obra Raízes do Brasil, em conexão com o pensamento descolonial de [1] Aimé Cesaire
1, em seu Discurso sobre o colonialismo, [2] Albert Memmi
2, em seu Retrato do colonizado, precedido de retrato do colonizador e [3]
1
Aimé Cesaire (1913-2008), nascido na Martinica, é reconhecido como um dos mais importantes poetas surrealistas do mundo e um dos grandes poetas de língua francesa do século XX, além de dramaturgo, ensaísta, filósofo anti- colonial e político. É co-criador, junto com Leopold Sédar Senghor, do conceito e movimento “negritude”, que formula dentro da própria França, uma crítica à opressão cultural do sistema colonial francês e afirma as raízes africanas. Autor, dentre outras obras, de Discurso sobre o colonialismo (1950) e Diário de um retorno à terra natal (1939).
2
Albert Memmi (1920-2020), nascido na Tunísia, foi um escritor e ensaísta. Em 1943, esteve em campos de trabalho
forçado na Tunísia e, após a independência de seu país, emigrou para a França, onde fixou residência. Em 1973 adotou
nacionalidade francesa. Professor honorário da Universidade de Paris. Possui vasta e premiada obra, traduzida para
Frantz Fanon
3em seu Os condenador da terra. Adoto esses três autores como tríade de pais fundadores do pensamento pós-colonial porque, apesar de anteriores à institucionalização do campo e de não o terem sistematizado, [1] já trabalhavam com essa divisão binária do mundo, [2] inauguram a descrição do mundo da perspectiva dos não-brancos e colonizados e [3] estão no interior do colonialismo, o que os favorece na proposta de recontar a história da perspectiva do colonizado Para tanto, afasto-me das leituras weberianas, demasiadamente vinculadas à lógica eurocêntrica, em prol de uma perspectiva do sul que permanece nas suas entrelinhas. A questão central é: o que Sérgio Buarque teria a dizer se fosse afetado pelas provocações do pensamento pós-colonial? A leitura e problematização pós-colonial produzirá inovações teórico-metodológicas no campo sociológico.
A relevância desse esforço teórico está em apontar possíveis caminhos para uma Sociologia Pós- colonial no Brasil.
O objeto de análise deste artigo é “Raízes do Brasil”, de Sérgio Buarque de Holanda, um clássico do Pensamento Social Brasileiro. Ao todo, a edição inaugural de 1936, da Editora José Olympio, sofreu quatro modificações nas edições de 1948 (2ª - Editora José Olympio), 1956 (3ª - Editora José Olympio), 1963 (4ª - Editora UnB) e 1969 (5ª - Editora José Olympio). A obra foi comemorada nas reedições especiais de 1971, 1976, 1986, 2006 e 2016. A última, organizada por Lilian Moritz Schwarcz e Pedro Meira Monteiro e editada pela Companhia das Letras, é um ótimo cotejo das várias edições. Foram quase 30 edições da obra, traduzidas para espanhol, o italiano, o francês, o japonês, o alemão e o inglês. Acredita-se que sua literatura secundária poderia ocupar uma biblioteca e, até hoje, críticos e comentadores não chegaram a um consenso sobre a interpretação correta de cada capítulo (COSTA 2014).
“Raízes do Brasil” é um ensaio de interpretação da formação da sociedade brasileira, unindo história da colonização portuguesa e sociologia dos processos colonizadores. Sérgio Buarque tem como tese central a cultura da personalidade ou personalismo português como raiz principal da subjetividade, da sociabilidade e da própria sociedade brasileira, bem como fonte da falta de racionalidade necessária à modernização e democratização autênticas do Brasil. Utiliza-se do arcabouço teórico-metodológico weberiano, principalmente seus tipos ideais, e da metodologia dos contrastes e contrários do pensamento latino-americano da época, para criar seu conceito-chave de homem cordial, além de outras fontes da história social, da antropologia, da sociologia, da etnologia e da psicologia. Divide-se em sete capítulos: 1 (Fronteiras da Europa), 2 (Trabalho & Aventura), 3 (Herança Rural), 4 (O Semeador e o Ladrilhador), 5 (Homem Cordial), 6 (Novos Tempos) e 7 (Nossa Revolução). Ao longo dos capítulos, o autor vai da colonização (tentativa de implantação da cultura europeia) à pós-colonização (permanência dos velhos padrões coloniais), finalizando com sugestões para o futuro (necessidade de aniquilação das raízes europeias).
Essas características da obra abrem a possibilidade de problematização no campo do pensamento social brasileiro, articulado a perspectivas teóricas transnacionais, como a teoria social e o pensamento pós-colonial. Essa é minha proposta: uma leitura panorâmica da obra, extraindo fragmentos do texto, porém uma leitura crítica, de uma perspectiva pós-colonial, distanciando-me das leituras weberianas adotadas pelo autor, por estarem vinculadas sobremaneira à lógica eurocêntrica. Articulando teoria e pensamento social brasileiro, meu objetivo, nos limites deste artigo, será verificar em que medida a obra pode se converter também em uma crítica da colonialidade.
cerca de 20 idiomas. Além de Retrato do colonizado, precedido do colonizador (1957), também é autor de A estátua de sal (1955) e Retrato do descolonizado árabe-mulçumano (2007).
3