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Rondônia no cenário do Pensamento Social Brasileiro

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Academic year: 2022

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Rondônia no cenário do Pensamento Social Brasileiro

Jania Maria de Paula1

Resumo:

Este artigo se propõe a abordar de forma abreviada algumas obras do pensamento social brasileiro que tem Rondônia como cenário geográfico. Trata-se, no primeiro caso, de uma obra de cunho mais científico, Rondônia de Edgard Roquette-Pinto, um pesquisador interessado pela questão regional. Em segunda análise estão outras três obras de cunho literário que se debruçam sobre uma das maiores sagas da historia brasileira e hoje completamente esquecida como patrimônio histórico nacional, a Estrada de Ferro Madeira Mamoré, construída no início do século passado para transportar a borracha boliviana e de todo o vale do conjunto hidrográfico Guaporé-Mamoré, são elas: A Ferrovia do Diabo, escrita pelo jornalista Manuel Rodrigues Ferreira e publicada na década de 1960, Mad Maria do escritor amazonense Márcio de Souza e Trem Fantasma: a modernidade na selva de Francisco Foot Hardmann, contemporâneas da década de 1980.

Palavras-chave: Rondônia; Ferrovia Madeira-Mamoré; Pensamento social.

Abstract:

This article proposes to approach in a abbreviated form of some works of the Brazilian social thought, that has Rondônia as geographic scenario. In the first case, it deals about a more specific work, Rondônia by Edgar Roquete-Pinto, a researcher interested in the regional question. In the second views, are three literary works, that dwell upon the biggest saga of brazilian history and that today is completely forgotten as national historic patrimony, the Railroad Madeira Mamoré, built in beginning of the last century to carry the bolivian rubber and from all over the Guaporé-Mamoré hydrographic: A Ferrovia do Diabo, written by the journalist Manuel Rodrigues Ferreira and published in 1960, Mad Maria by the Amazonian writer Márcio Souza and Trem Fantasma: a modernidade na selva, written by Francisco Foot Hardmann, in the decade of 1980.

Passwords: Rondônia; Railroad Madeira-Mamoré; Social Thought.

Introdução

Por tratar-se de uma das mais novas unidades federadas da República Brasileira e palco de um processo efetivo e definitivo de ocupação somente a partir da década de 1970, Rondônia tornou-se polo populacional com os projetos de colonização lá implantados Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária - INCRA, atraindo para si uma

1Geógrafa, professora do IFRO - campus Ji-Paraná. Doutoranda do PPGSCA - UFAM

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imensa gama de populações pauperizadas com baixos índices educacionais advindas de todas as regiões do país, condição que contribui para que o Estado ainda não tenha tradição consolidada do pensamento social local, realidade aquém de estados como o Amazonas ou o Pará, ambos componentes da grande região Amazônica.

Tais fatores, no entanto, não significam que produções intelectuais locais não estejam presentes no pensamento social tanto regional quanto nacional.

O processo histórico-político do Estado tem origem de antigas áreas pertencentes aos estados do Mato Grosso e Amazonas, transformadas em Território Federal do Guaporé2 em 1943, Território Federal de Rondônia em 1956 e por fim Estado de Rondônia em 1982, chamou a atenção de alguns estudiosos e escritores levando-os a produzir interessantes obras, cientificas ou literárias, abordando Rondônia como cenário ou recorte geográfico de pesquisa.

Este artigo se propõe, de início, a abordar de forma abreviada uma obra de cunho científico, Rondônia do médico-antropólogo Edgard Roquette-Pinto, que se destacou como um dos pensadores do cenário nacional interessado pela questão regional, como também se propõe a analisar três obras de cunho literário, cujos autores se debruçam sobre uma das maiores sagas da historia brasileira e hoje completamente esquecida como patrimônio histórico nacional, a Estrada de Ferro Madeira Mamoré, construída no início do século passado para transportar a borrada boliviana e de todo o vale do conjunto hidrográfico Guaporé-Mamoré. Trata-se de construções literárias sobre um mesmo tema, contudo tecidos com olhares distintos como A Ferrovia do Diabo, escrita pelo jornalista Manuel Rodrigues Ferreira e publicada na década de 1960, Mad Maria do escritor amazonense Márcio de Souza e Trem Fantasma: a modernidade na selva de Francisco Foot Hardmann, contemporâneas da década de 1980.

As quatro obras em análise têm em comum o fato de que podem ser compreendidas como instrumentos de denúncia sobre as condições de vida da população local, sobre o efeito negativo do contato entre os povos indígenas e a sociedade envolvente, mas, sobretudo a forma violenta que o capital utiliza para se territorializar nos mais diversos pontos do planeta como mecanismo para garantir a manutenção de seus interesses.

2A criação do Território Federal do Guaporé está diretamente ligada ao contexto político internacional, por ocasião da II Guerra Mundial o acordo firmado entre o Governo Vargas e os E. U. A teve influência direta na retomada da extração gomífera da região Amazônica e como forma de incentivar a ocupação da região Vargas cria o então território (SANTOS, 2007).

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1 Rondônia: subsídios para construções científicas de Roquette-Pinto

Não é nosso objetivo aqui um aprofundado inventário a cerca do desenvolvimento de trabalhos científicos tendo Rondônia como tema ou área de estudo. Apesar da pertinência da questão dessa natureza, a empreitada requer tempo e disponibilidade para tal, fatores que não dispomos no momento. Desnecessário comentar que diversos autores e obras mereceriam um registro neste trabalho, dada a importância de suas contribuições3 para a melhor compreensão da região. Na impossibilidade de tratá-las aqui, abordaremos somente os registros do médico-antropólogo Edgard Roquette-Pinto, que em Rondônia relata os cinco meses de sua viagem como membro da Comissão Rondon em 1912, o livro foi publicado em 1917 e relançado em 2005 numa parceria entre a Academia Brasileira de Letras e a Fiocruz em comemoração aos 50 anos de morte do autor.

Nas primeiras décadas da República, o tema “sertão” ganhou grande importância no pensamento social brasileiro como objeto de análise capaz de explicar a construção de uma identidade nacional. Isto nos ajuda a compreender melhor as expedições ao interior, tão comuns à época. Muitas dessas viagens que tinham por objetivo desvendar o mundo sertanejo, hoje podem ser analisadas como expressão de um movimento de forte conteúdo simbólico que acompanhou os projetos de delimitação de fronteiras, saneamento e integração econômica e política do país.

Enquanto cientista preocupado em compreender os sertões brasileiros para posteriormente encontrar soluções, Edgard Roquette-Pinto embarcou em uma das expedições comandadas pelo Marechal Cândido Rondon que tinha como missão integrar os sertões do norte-noroeste brasileiro através das linhas telegráficas.

Analisando a mesma obra, Maria Laura V. C. Cavalcanti (2011) contextualiza a importância das viagens científicas de Roquette-Pinto no período inicial da República, também a importância de seu texto para o campo antropológico por tratar a antropologia tal como era compreendida em seu tempo, valorizando o sertanejo com tom de crítica social às suas condições de trabalho e de vida.

Enquanto médico, Roquette-Pinto seguiu a corrente do sanitarismo e da pureza das raças, mas sentia a necessidade de contribuir de alguma forma com a melhoria da vida do sertanejo. Neste sentido, apreendia como necessidade imediata o estabelecimento de

3Ainda de forma insipiente, nos últimos 20 anos os pesquisadores da Universidade Federal de Rondônia têm conseguido publicar (livros) os resultados de seus estudos e trabalhos, contribuindo sobremaneira para a socialização do conhecimento com a população local.

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comunicação com o interior do país, fato que o levou a participar da Comissão Rondon em 1912, e posteriormente produzir a obra aqui em questão. O médico-antropólogo acreditava ainda no rádio como mecanismo para fazer a escola chegar às populações pobres do sertão, levando-o, mais tarde, a promover a radiodifusão no Brasil.

Adriana Keuller (2007) comenta que em Rondônia ficam explícitos os sentimentos de indignação e excitação do autor ao longo do texto, indignação diante da condição social do sertanejo, por ele caracterizado como homens ‘pequenos e magros, enfermos e inésticos’, mas também fortes, por viverem trabalhando, trabalhados pela doença.

Excitação, ainda na argumentação de Keuller (op. cit), quando o cientista estabelece contato com o grupo considerado, para a época, um dos povos indígenas mais arredios e desconhecidos do Brasil, os povos Nambikuara. Naquele momento, Roquette- Pinto já previa ser instantâneo em sua situação social, antropológica e etnográfica, pois o contato com nossa cultura decomporia a sua. Assim se expressa a visão do cientista:

Em minha excursão á Rondonia, em 1912, procurei archivar esses phenomenos que se vão sumindo vertiginosamente.Tentei tirar um instantâneo da situação social, anthropologica e ethnographica, dos Índios da Serra do Norte, antes que principiasse o trabalho de alteração que nossa cultura vai nella processando (ROQUETTE-PINTO, 1919: 20).

Sob alguns aspectos, suas previsões realmente se confirmaram. Neste sentido, sua obra, ainda que embasada em uma antropologia deterministas, foi também importante instrumento de denúncia a respeito de como viviam as populações interioranas no Brasil do início de século XX.

Tinha consciência de que o contato dos povos Nambikuara com a “civilização”

seria ameaça de fim à sua própria civilização ao deixar registrado que

[...] quando os Índios, porém, souberem falar a nossa língua, e algum de nós puder entender a língua delles, já innumeros phenomenos primitivos da sua ethnographia, usos, costumes, hábitos, práticas, indústrias, características artísticas, religiosas, sociaes, estarão deturpados pela intromissão de elementos extranhos, que os nossos fornecem continuamente. Agora mesmo, os machados de pedra não existem mais na Serra do Norte; cada índio já possue machado de aço. (ROQUETTE-PINTO, op.cit: 20).

A importância da obra de Roquette-Pinto, tanto para Rondônia quanto para o país é que podemos considerá-la como uma das primeiras obras produzidas no Brasil a alertar para os resultados negativos que traria o contato entre as populações indígenas locais e a sociedade não indígena. Décadas mais tarde, antropólogo francês Claude Lévi-Strauss em Tristes Trópicos (1955) confirmaria terem se realizado os prognósticos de Roquette-Pinto.

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Hoje os povos Nambikuara dos estados de Rondônia e Mato Grosso passam por uma série de problemas que vão desde as ameaças de perda de suas terras, à desintegração dos grupos causados por problemas como doenças, alcoolismo, exploração da mão de obra, entre outros.

Interessante notar que os planejadores, gestores e autoridades públicas em geral insistem em desconsiderar resultados de pesquisas científicas, diagnósticos ou registros antropológicos, permitindo assim, que os possíveis problemas previstos com ampla antecedência realmente se materializem.

2 Rondônia como cenário da literatura

Ganharam projeção nacional três obras literárias4 que retratam a saga da Estrada de Ferro Madeira Mamoré – E. E. M. M. construída no início do século XX para ligar a o pequeno vilarejo de Santo Antônio até a fronteira com a Bolívia (Guajará-Mirim) como forma de vencer os obstáculos encontrados pela navegação ao longo do trecho encachoeirado do rio Madeira. Pela ferrovia se tornava possível retirar a produção de borracha boliviana e de todo o vale do Guaporé-Mamoré.

A Ferrovia do Diabo é um romance histórico, também categorizado como aventura de viagem. Seu enredo está embasado em pesquisas desenvolvidas por Manuel R. Ferreira a partir de análise documental como notícias de jornais e revistas, relatórios médicos e de engenheiros, relatórios dos Ministérios.

As outras duas obras, Mad Maria e Trem Fantasma são contemporâneas entre si e como observa Nilza Menezes (2007) se trata de “dois olhares sob um mesmo objeto”.

A figura a seguir mostra todo o trajeto da Estrada de Ferro Madeira-Mamoré, que em seus 366 quilômetros percorreu, em sua maior parte, as terras margeadas pelo Rio Madeira que nos períodos de cheia tornam-se naturalmente a sua área de vazão.

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Outras obras literárias versam sobre o mesmo tema, como Estrada de Ferro Madeira Mamoré: história trágica de uma expedição, do norte-americano Neville Graig, publicada ainda em 1907 e As botas do Diabo do austríaco Kurt Falkenburger, publicada em 1971, contudo retratam olhar de fora sobre a Amazônia.

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Figura 01: Trajeto da Estrada de Ferro Madeira Mamoré

Fonte: SEDAM, 2007 Org.: SOUZA, M. M. O.

2.1 Manuel Rodrigues Ferreira e a Ferrovia do Diabo

Paulista de Itapuí (1915-2010), o engenheiro e jornalista free lance como se autodenominava, Manoel Rodrigues Ferreira foi trabalhar no jornal A Gazeta, em São Paulo. Em 1944 teve como primeiro trabalho uma série de seis reportagens publicada naquele jornal sobre sua viagem de campo pela ferrovia Brasil-Bolívia que atravessa o pantanal sul mato-grossense.

Entre os diversos trabalhos de Ferreira, o de maior destaque é A Ferrovia do Diabo que teve seus originais entregues à editora em 1959. Sobre a referida obra, em sua autobiografia o jornalista explica:

Ainda nesse ano de 1959, entreguei às Edições Melhoramentos os originais do meu livro “A Ferrovia do Diabo”, a história dramática e trágica da Estrada de Ferro Madeira-Mamoré, construída na região Amazônica. É oportuno relatar como e porque escrevi esse livro. [...] Em novembro de 1956 fui procurado na redação do vespertino A Gazeta pelo seu fotografo Ari André que me mostrou uma caixa contendo muitos negativos fotográficos. [...] prontifiquei-me a examiná-los. Até que um certo negativo mostrava um indiano de turbante e brinco nas orelhas, tendo ao fundo um vagão, no qual estavam gravadas as letras E. F. M. M. [...] em São Paulo pesquisei em todas as bibliotecas, o que havia sobre a construção dessa ferrovia entre 1907 e 1912. [...] No dia 09 de janeiro de 1957 A Gazeta começou a publicação dessa história sob o título geral: “Estrada de Ferro Madeira-Mamoré”. [...] Dado o sucesso da série, o editor chefe das Edições Melhoramentos me propôs publicá-la em livro (FERREIRA, 2003: 44).

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A obra divide-se em três capítulos que narram as dificuldades de navegação da região desde as expedições bandeirantes do século XVII, a necessidade boliviana de encontrar saída para o oceano como escoadouro de sua produção gomífera e a ideia já amadurecida parecendo de extrema facilidade vencer o rio: a construção da ferrovia. Por fim, o autor narra como o Brasil assume a obrigação de construir a ferrovia num prazo de quatro anos, por força do Tratado de Petrópolis assinado em 1903.

Manoel R. Ferreira (2005) optou por contar a história da segunda etapa da construção da ferrovia, determinada pelos acordos do Tratado de Petrópolis. Registra os episódios ocorridos durante o período considerado mais trágico em todo o processo de construção – a morte que se abatia sobre um sem número de trabalhadores oriundos de diversas partes do mundo, arregimentados mensalmente para os canteiros de obras da ferrovia.

Segundo o autor criou-se aí o mito de que cada dormente que compõe a estrada de ferro representa um trabalhador morto em sua construção. Para Ferreira (op. cit.) trata-se de um exagero e demonstra dados que comprovariam ser praticamente impossível a morte de tantos trabalhadores na selva.

Podemos receber esta obra também como instrumento de denúncia, o romance baseado em fatos reais evidencia a ineficiência de um projeto elaborado sem estudo prévio e construído sem maiores conhecimentos sobre a região escolhida para o empreendimento, segundo Ferreira,

Em Londres, todos os passos da operação financeira haviam sido minuciosamente estudados. Nenhum detalhe fora omitido. Tudo mais sobre a operação financeira, bem entendido. Porque do terreno onde seria construída a ferrovia ninguém sabia nada. Absolutamente nada. Ninguém, até aquele momento, havia percorrido o terreno adjacente às cachoeiras, em toda a sua extensão, a fim de ao menos o conhecer superficialmente. Ninguém sabia o que se escondia atrás da pujante floresta amazônica que se divisava das cachoeiras do Madeira. Não se sabia se era terreno montanhoso, plano e enxuto, ou alagado. A ignorância sobre a zona que a ferrovia deveria atravessar era completa. Não se sabia nem qual a extensão ao menos aproximada que teria a futura estrada de ferro. Nenhum engenheiro boliviano ou brasileiro fora chamado para opinar sobre a construção. E naquele mês de janeiro de 1872, tudo na praça de Londres estava concluído, para ser dado início aos trabalhos da construção. (FERREIRA, 2005: 80).

Os elementos do livro contribuem para meior compreensão da formação histórica de Rondônia, bem como de sua importância ao país, considerando que a demarcação de nossa última fronteira geopolítica está intrinsecamente relacionada à construção da

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ferrovia. Antes de ser a ferrovia que ligaria o “nada a lugar nenhum” ela seria via de escoamento da borracha, um dos principais produtos que compunham a base da economia brasileira na transição do século XIX para o século XX. Neste sentido, o romance de Manuel R. Ferreira configura-se como proposta para entender o Brasil a partir da questão regional que tem a Amazônia, de forma geral, e o atual estado de Rondônia, de forma particular, como pano de fundo.

Entretanto, o papel do autor vai além da construção e publicação da obra A Ferrovia do Diabo. Em sua autobiografia, o jornalista comenta que por ocasião de um convite do governador do então Território Federal do Guaporé para que jornalistas conhecessem o território e comprovassem a necessidade de integração da região com as outras áreas do país e pelo fato de ser o autor d’A Ferrovia do Diabo, A Gazeta determinou-o para a visita que ao final resultou numa série de 21 reportagens sobre o Território com apelos diretos ao então presidente de República, Juscelino Kubitschek abordando em cada uma delas a necessidade imediata de construção da BR- 029. Em 05/02/1960, o dia seguinte após a publicação da última reportagem da série, o Presidente noticia em cadeia nacional, a ordem para a construção da rodovia (FERREIRA, 2003: 47- 52).

Neste sentido, Manoel R. Ferreira teve papel importante no crescimento de cunho desenvolvimentista de Rondônia, mais do que tornar a saga da construção de E. F. M .M.

conhecida a partir do romance histórico, como jornalista e escritor seu posicionamento enquanto promoveu a integração definitiva de Rondônia e Acre com o restante do Brasil, os resultados socioambientais que tomaram lugar a partir do novo caminho de acesso à Amazônia são bastante conhecidos e questionados.

2.2 A Mad Maria de Márcio Sousa

O romance é ambientado no canteiro de obras da E. F. M. M., publicado em 1980 pela editora Civilização Brasileira e traduzido para cinco línguas, se trata na verdade de uma sátira que o autor faz à visão de progresso imposto para a Amazônia a partir do olhar do colonizador. Marcio Souza que é amazonense, romancista celebrado e reconhecido internacionalmente se utiliza da ficção para satirizar a ideia de progresso e desenvolvimento, trazido à região por pessoas que não a conhecem e não estão abertas para ouvir as vozes locais (NENEVÉ e GOMES, 2011).

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O autor inicia o romance já alertando o leitor sobre a realidade implícita na obra, tanto no sentido da veracidade da história, quanto nas coincidências tão comuns entre a ficção e a realidade

Quase tudo neste livro bem podia ter acontecido, como vai descrito. No que se refere à construção da ferrovia há muito de verdadeiro. Quanto à política das altas esferas, também. E aquilo que o leitor julgar familiar, não estará enganado, o capitalismo não tem vergonha de se repetir (SOUZA, 1983: 03).

Márcio Souza utiliza o romance como ferramenta capaz de expor ao mundo uma forte crítica à visão colonialista que impera sobre a Amazônia ao longo tempo, assim como o total desconhecimento da região, de suas culturas e de seus povos, costumeiramente concebidos como invisíveis, considerando que estes povos não costumam ser lembrados, consultados ou mesmos respeitados pelos planos arquitetados para a Amazônia, quer aqueles estruturados pelo governo brasileiro, quer aqueles diretamente orquestrados pelo capital nacional e estrangeiro. De forma muito usual, impera-se a concepção de vazio demográfico local.

Sobre a voz discordante da visão exógena sobre a Amazônia, tão presente em Márcio Souza, os pesquisadores Miguel Nenevé e Márcia L. Gomes (op.cit.: 26) argumentam que o autor critica “os tecnocratas e os responsáveis pelo ‘desenvolvimento’

da região que são muitas vezes incapazes de aceitar as experiências vividas pelo povo local e sentem-se com poder para impor métodos de desenvolvimento. Isso tem levado a desastres, a catástrofes”.

Nesta mesma linha de análise, segue o pensamento de Andréia M. S. Lima ao argumentar que

[...] seu foco em Mad Maria não é uma Amazônia físico-geográfica, é uma Amazônia política, uma Amazônia histórica, enfim, o resgate da vida daqueles que nela viveram. Ele retrata um local arraigado de relações de poder, contaminado pelo capitalismo, fazendo parte deste contexto pessoas de altas esferas assim como simples trabalhadores. Com essa Amazônia, o escritor aborda pontos não mostrados pela história, mostra a história da construção da ferrovia Madeira-Mamoré de um ângulo diferente. Mostra a exploração e a violência humana, justificada pela ganância do dinheiro, justificada pela construção de “uma estrada que ligava o nada”, frase esta que aparece algumas vezes na narrativa. Resgata um trágico episódio da história rondoniense e denúncia o selvagerismo do capitalismo que, por meio do capital estrangeiro, tentou rasgar a selva com o progresso dos trilhos à custa de milhares de mortes (LIMA, 2013:56).

Ao retratar num romance, a conjuntura real da construção da E. F. M. M., Márcio Souza revela os malefícios do capital que se territorializa em uma região para atender aos seus interesses imediatos. É imprescindível não esquecermos de que este comportamento

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econômico tem se repetido inúmeras vezes em Rondônia e na Amazônia como um todo, sempre em obediência à lógica de desenvolvimento das forças produtivas e das relações de produção capitalistas (DAL MASO, 1990).

A obra Mad Maria possibilita para o autor apresentar ao mundo a ferocidade do capital norte-americano sobre a América Latina. À personagem (de real existência) Percival Farquar imprime a face do colonizador em busca de lucros fáceis no Brasil por julgar que o “atraso” do país lhe proporcionasse condições para tal:

Fora de sua cada vez mais influente organização, entre políticos, ministros, era uma reprodução de energia dos negócios norte-americanos. Sorria pouco, nunca prometia nada e cumpria rigorosamente todos os acertos. Por este motivo, era igualmente respeitado e odiado, o que compreendia perfeitamente, pois sabia que num país como o Brasil, repleto de vícios e não inteiramente democrático, a objetividade, ou seja lá que outro nome usassem, era uma virtude menor frente a dissimulação (SOUZA, 1983: 20-21).

Misturando a ficção com a realidade histórica, Márcio Souza consegue reverter a ordem estabelecida das possibilidades de criação dos ficcionistas da Amazônia como instrumentos de consolidação do colonialismo, contrapondo aí uma realidade comum presente em obras que abordam a Amazônia produzidas fora do contexto local.

Corroboram com a postura ideológica de Márcio Souza, as críticas de Marcílio S. Freitas e Marilene Corrêa Freitas (2000: 10) sobre as produções ficcionais exógenas ao argumentarem que “se a posse e a conquista colonial produziram as estruturas de subalternidade pela exploração econômica, a produção ficcional etnocêntrica influiu nos processos de dominação pelas composições inventadas, para dar conta de um conflituoso encontro de culturas.”

Utilizando-se da Literatura, Márcio Souza cumpre importante papel que as historiografias regional e brasileira não deram conta de abordar, ou seja, tornar conhecida a saga de uma história local que evidencia como uma longínqua região do planeta pode ser utilizada para atender aos interesses do capital internacional na conjuntura política e econômica mundial.

Por fim, é ainda possível absorvermos como efeito positivo, o fato de que a obra popularizou parte da história regional em cenário nacional. Como a prática da leitura ainda não pode ser considerada um hábito universalizado ao povo brasileiro, a transformação deste romance em minissérie exibida pela televisão aberta no país no ano 2005 tornou possível que uma significativa parcela da população nacional tomasse conhecimento de um fragmento da formação histórica de Rondônia no início do século XX.

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2.3 O Trem Fantasma de Francisco Foot Hardman

O livro Trem Fantasma: modernidade na selva de Francisco Foot Hardman, lançado em 1988 pela Companhia da Letras é o resultado de sua tese de doutoramento baseada nas consideradas primeiras obras sobre a ferrovia: A Ferrovia do Diabo de Manuel R. Ferreira, aqui já analisada, e Estrada de Ferro Madeira-Mamoré: história trágica de uma expedição de Neville Graig (1947). O autor utilizou-se também de Tudo o que é Sólido se Desmancha no Ar, de Marshall Bergman (1982) e que na visão de Walmir da S.

Pereira (1991: 131) se compôs de um trabalho que “pode ser compreendido como um exitoso exercício intelectual e criativo de análise, a um espaço-temporalidade concreto a partir do referencial analítico-conceitual contido em nível lógico e um tanto abstrato de Tudo que é Sólido Desmancha no Ar”.

Se é possível apreender a obra de Manuel R. Ferreira como um romance histórico, do ponto de vista mais factual, sem pretensões de provocar análises mais elaboradas; a obra de Márcio Souza que de forma bem humorada joga em cena as artimanhas do colonialismo, vitimando áreas remotas do planeta na transição do século XIX para o XX, a obra de Francisco F. Hardman se compromete em evidenciar uma discussão sobre a modernidade no mundo (a era da maquinaria) que se insere em qualquer espaço, se destitui de qualquer noção de fronteira e objetiva consolidar com brevidade os interesses imediatos do capital.

Para a consolidação destes objetivos, criam-se verdadeiros espetáculos e que neste caso é o espetáculo da selva, como bem observa Mauro B. W. Almeida:

[...] o imaginário do maquinismo é levado à periferia do mundo pelo

“movimento do capital”. A montagem do “espetáculo na selva”, com destaque para as estradas de ferro que levam nada a lugar-nenhum produz uma convicção de que o espaço da modernização não tem limites. [...] a encenação do fetichismo industrial nos limites da civilização tem um alto custo em figurantes e em cenários (ALMEIDA, s/d: 02).

É mesmo o evento da modernidade que de forma efêmera, leviana e convulsiva apropria-se de espaços considerados por ela como lugar-nenhum, transformando-os em lugares que Antony Giddens (1991) considera fantasmagóricos: isto é, os locais que são completamente penetrados e montados em termos de influências sociais totalmente distintas e distantes de sua realidade. Sobre estas influências sociais pesam em maior grau

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as influências econômicas, e nestes casos o local passa atender aos interesses de fora, arcando solitariamente com o ônus das transformações que lhes são exigidas.

São estas influências e transformações que Francisco F. Hardman buscou enfatizar em sua obra ao tratar da modernidade na selva e as implicações dela decorrentes. A narrativa trabalha as fantasmagorias destacadas como luminosas por seu aspecto de

"vitrine", mas obscuras, porque se cercou de fantasmas como as "ruínas arqueológicas precoces", fruto da destruição de formas recém-construídas (MASSI, 2009), originando vilas fantasmas que se tornaram cemitérios das ruínas de velhas locomotivas e seus vagões abandonados à beira de uma ferrovia também tornada fantasma.

O legado da obra em questão é poder contribuir como instrumento para análises mais aprofundadas das implicações da modernidade e da territorialização do capital sobre uma determinada região do planeta, demonstra como a periferia do mundo se torna palco experimental da modernização em benefício do capital. Logo, pode ser considerada também como obra de cunho sociológico, geográfico e econômico.

Considerações Finais

Os programas sociais, econômicos e ambientais para o desenvolvimento de uma região devem levar em conta todo o arcabouço de conhecimentos produzidos por ela e sobre ela, quer de caráter científico, humanístico ou artístico, pois são capazes de somar para a construção de conhecimentos mais complexos e auxiliarem no embasamento de programas, projetos ou políticas públicas locais. Podem se constituir num olhar fotográfico aprofundado sobre um povo, sua cultura, seu modo de vida.

Cada uma das obras, aqui superficialmente analisadas, contribuem para pensarmos Rondônia de forma mais complexa. No caso específico das obras literárias, nos oferecem um ponto de vista que a História Regional ainda não conseguiu atingir – uma análise mais minuciosa de questões e situações que somente os simples registros factuais não respondem, pois como bem registra Renan Freitas Pinto (2006), a relação da literatura com os processos de construção da identidade nacional se concentra fortemente na questão da busca de nossas mais profundas origens.

Sob esse viés podemos concluir que as obras em questão inscrevem no tempo um rico conjunto de características que fazem parte da multifacetada identidade rondoniense em seu contínuo processo de construção.

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Referência

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Referências

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