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A CASA-GRANDE VAI ÀS RUAS: UMA ANÁLISE DE CASA-GRANDE

& SENZALA E SOBRADOS E MUCAMBOS NOS PROTESTOS CONTRA O SEGUNDO MANDATO DE DILMA ROUSSEFF (2015-2016 )

Fabielly Bellagamba Ramos

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1 INTRODUÇÃO

Atualizar os clássicos da sociologia brasileira é mais do que uma tarefa científica, é também uma estratégia de luta política. Ler, refletir e debater sobre as grandes obras que interpretam a formação da sociedade brasileira e repensar como persistem na atualidade indicam caminhos de organização das classes oprimidas contra o excludente e exploratório sistema capitalista. Frente a essa aspiração, este artigo busca demonstrar como as elucubrações teórico-sociais de duas obras valiosas de Gilberto Freyre – Casa-grande &

senzala (1933) e Sobrados e mucambos (1936) – persistem no Brasil até os dias atuais.

Para atingirmos tal objetivo, recuperamos um registro fotográfico de uma família, o pai, a mãe e seus dois filhos, com sua babá negra no Rio de Janeiro nos protestos de 13 de março de 2016 contra o segundo mandato de Dilma Rousseff (Partido dos Trabalhadores).

Fizemos também uma revisão bibliográfica de Casa-grande & senzala e Sobrados e mucambos resgatando os trechos que podem ser assimilados com a fotografia da família e sua babá negra.

Na primeira parte deste artigo, recuperamos o protesto específico do dia 13 de março de 2016 contra o segundo mandato de Dilma Rousseff (2015-2016), com o número de manifestantes e suas motivações e o registro fotográfico da família e a babá negra com a nota de resposta do pai perante as críticas recebidas. Na segunda parte, são retomadas, primeiramente, a vida e os prêmios de Gilberto Freyre e, posteriormente, o tema e a importância de Casa-grande & senzala e Sobrados e mucambos. Na terceira e última parte, são feitas algumas reflexões críticas a respeito da foto com base nas duas obras de Freyre, constatando-se que, mesmo com o fim do Brasil Colônia, ainda permanecem a sociedade patriarcal, a instituição social da família, a opressão contra a mulher, a desigualdade racial, a

1 Doutoranda em Ciência Política no Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (PPGCS-UFRN). Mestra em Ciências Sociais pela mesma instituição. O presente trabalho foi realizado com apoio do CNPq, Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico – Brasil. E-mail: fabiellyramos@hotmail.com.

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exploração dos trabalhadores negros, entre outras questões na sociedade brasileira.

2 OS PROTESTOS CONTRA O SEGUNDO MANDATO DE DILMA ROUSSEFF (2015-2016) DE 13 DE MARÇO DE 2016 E O REGISTRO FOTOGRÁFICO DE UMA FAMÍLIA E A BABÁ NEGRA NO RIO DE JANEIRO

Os protestos do dia 13 de março de 2016 ocorreram em várias cidades brasileiras e, ainda com as motivações contra o governo de Dilma e a corrupção, iniciaram-se no dia anterior, em 12 de março de 2016, na cidade de Chapecó (Santa Catarina), com vinte e cinco mil pessoas, segundo dados da Polícia Militar de Santa Catarina (FOLHA DE LONDRINA, 2016). Em Curitiba (Paraná), a Polícia Militar contabilizou duzentas mil pessoas, já em Porto Alegre o número foi de cento e cinco mil, passando perto de Florianópolis com noventa e cinco mil, todas estimativas das Polícias Militares dos estados.

As manifestações do dia 13 de março de 2016, ocorridas majoritariamente pela tarde até o início da noite, pediam o fim do comunismo e a intervenção militar, mas se dividiam entre a renúncia e o impeachment contra Rousseff. Ainda, cartazes difamavam a imagem e solicitavam a prisão do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (Partido dos Trabalhadores).

Na noite de 13 de março de 2016, a presidenta Dilma manifestou-se, através de uma nota do Palácio do Planalto, expressando o apoio e o respeito aos princípios da democracia, entre eles a liberdade de manifestação.

A maior cidade que concentrou os protestos fora a capital de São Paulo, na qual a Polícia Militar estimou o público de um milhão e quatrocentas mil pessoas, divergindo com o Datafolha que contabilizou quinhentas mil. Os manifestantes concentraram-se na Avenida Paulista, mas acabaram dispersando-se nas adjacências. As frases reproduzidas eram “fora PT”, o “PT é corrupto” e o “PT está transformando o Brasil em um país comunista”, entre outras.

No Rio de Janeiro, em torno de um milhão de pessoas participaram do ato na Avenida

Atlântica, orla de Copacabana. O Movimento Vem Pra Rua foi o grande mobilizador do ato,

que durou cinco horas e teve concentração no Posto 5 às nove horas da manhã, seguida de

uma caminhada de dois quilômetros. As pautas eram contra a legalização do aborto, a favor a

prisão de Lula, pelo impeachment de Dilma Rousseff e para a candidatura do juiz Sérgio

Moro à presidência (EMPRESA BRASILEIRA DE COMUNICAÇÃO, 2016).

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Dentre os inúmeros registros fotográficos dos protestos do dia 13 de março de 2016, um, em especial, ganhou muita visibilidade: o de uma família com uma babá negra no Rio de Janeiro. A foto foi postada na rede social estadunidense Facebook pelo pai dos dois bebês, sendo compartilhada oitenta e três mil vezes e recebendo mais de cem comentários em apenas seis horas de publicação (GAZETA DO POVO, 2016). Na foto abaixo, o esposo e a esposa caminham de mãos dadas com a babá negra uniformizada atrás levando um carrinho com os filhos.

Figura 1- Registro fotográfico de uma família e sua babá negra no protesto de 13 de março de 2016 no Rio de Janeiro

Fonte: Rede Brasil Atual (2016)

Logo após a postagem, diferentes sites e pessoas nas redes sociais criticaram a foto, defendendo que no Brasil ainda persistiam o racismo e a forte segmentação racial e que o perfil dos manifestantes eram majoritariamente de pessoas brancas e de classe alta. O autor do registro, vice-presidente de Finanças do Flamengo e diretor executivo do Banco Brasil Plural, rebateu as críticas publicando uma nota em seu perfil na rede social Facebook.

Segundo o empresário, as pessoas não conhecem sua família com base em apenas uma foto e que o Brasil precisa de uma nova visão, sem preconceitos, sem extremismo e unitária.

Ainda, disse que ganha dinheiro honestamente, tem bens próprios, paga impostos, não dá propinas e gera empregos de centenas de pessoas. Todas as pessoas que trabalham para ele têm carteira assinada, recebem o salário em dia e que não faz mais que sua obrigação, sendo que se todos fizessem igual o país seria melhor.

O executivo também disse que a babá trabalhava apenas aos finais de semana e,

devido a isso, recebia o salário mais alto, sendo digna por ganhar seu dinheiro, sua profissão é

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regulamentada e todos da família têm muito carinho por ela. No final da nota, o empresário carioca ainda diz que a trabalhadora é livre e que se não se sentir confortável no emprego é livre para procurar outro.

3 CASA-GRANDE E SENZALA (1933) E SOBRADOS E MUCAMBOS (1936) DE GILBERTO FREYRE

Gilberto de Mello Freyre, um dos intelectuais mais premiados e importantes do país, nasceu em Recife (Pernambuco) em 15 de março de 1900 e foi sociólogo, antropólogo, ensaísta, historiador, escritor e pintor, formando-se em Bacharelado em Artes Liberais na Universidade Baylor, no Texas (EUA) e obtendo o título de Mestrado em Artes pela Universidade de Columbia (EUA). Freyre foi laureado com o Prêmio Aspen, com o Prêmio La Madonnina, com a Ordem do Império Britânico, com o Prêmio Jabuti de Literatura, com o Prêmio Machado de Assis da Academia Brasileira de Letras, entre outros.

Uma das obras mais importantes de Gilberto Freyre, Casa-grande & senzala, fora publicada originalmente em 1933, sendo escrita em Portugal. Na produção literária, o sociólogo critica as doutrinas racistas que propunham o branqueamento no Brasil, demonstra que o determinismo racial ou climático não interfere no desenvolvimento do país e afirma a importância da miscigenação das três raças (branca, negra e indígena), que formaram o povo brasileiro. Casa-grande & senzala, além de ser o maior clássico da sociologia brasileira, é fundamental para a compreensão da história, da composição, das fraquezas, das peculiaridades da origem do povo e da formação da sociedade patriarcal brasileira, ao lado de Sobrados e mucambos (1936) e Ordem e Progresso (1957).

Ainda, o livro destaca características específicas do Brasil Colônia, dedica-se

especificamente à colonização portuguesa, retrata a interferência da igreja católica nas

decisões do reinado português no Brasil, como a proibição do sacerdócio a negros e mestiços,

aborda alguns aspectos referentes à miscigenação, investiga a origem do mito da

promiscuidade brasileira (dos indígenas e escravos) e reflete sobre a forte opressão contra a

mulher. A miscigenação ocorreu fortemente devido à ausência de mulheres brancas na colônia

e a igreja católica motivou o casamento de portugueses com as indígenas. A promiscuidade

foi atribuída de forma equivocada aos índios e negros. A opressão contra a mulher via-se pelo

sentimento de posse dos homens pelas suas esposas e pela restrição do poder e da autoridade.

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Gilberto Freyre deu continuidade à Casa-grande & senzala com Sobrados e mucambos (publicada originalmente em 1936). Em Sobrados e mucambos, Freyre busca reconstruir e interpretar certas particularidades da família aristocrática brasileira, utilizando o conceito de cultura e seus correlatos, e estudar os processos de subordinação de uma raça a outra, de uma classe a outra, de várias tradições e religiões em uma só, que caracterizaram a sociedade patriarcal rural no fim do século XVIII. Tal sociedade constituiu-se nos sobrados urbanos e semi-urbanos. Ademais, Sobrados e mucambos examina o desenvolvimento das cidades, a formação do Brasil Império e do povo brasileiro.

A obra freiriana almeja compreender as mudanças pelas quais passou o patriarcado rural devido ao término da escravidão e às novas exigências da modernidade brasileira. A aristocracia agrária mudou-se da casa-grande das fazendas para os sobrados urbanos e os ex- escravos das senzalas para casebres nas cidades. A saída da casa-grande para os sobrados urbanos atravessou os séculos XVIII e XIX, demandando a adaptação das hierarquias às exigências das classes pobres por direitos e fazendo com que suas famílias, seus parentes e seus amigos fossem relativizados e as empresas, organizações religiosas, ideologias e partidos políticos fossem superestimadas.

4 A CASA-GRANDE VAI ÀS RUAS: UMA ANÁLISE DE CASA-GRANDE &

SENZALA E SOBRADOS E MUCAMBOS NOS PROTESTOS CONTRA O SEGUNDO MANDATO DE DILMA ROUSSEFF (2015-2016)

Analisando a foto do empresário carioca com sua família e a babá negra no protesto contra o governo de Dilma Rousseff, em 13 de março de 2016 no Rio de Janeiro, observamos como a obra Casa-grande & senzala, apesar de analisar o período do Brasil Colônia (1500- 1815), retrata a atualidade brasileira. As características da sociedade patriarcal do Brasil perpetuaram-se ao longo do tempo, advindas de uma burguesia branca escravagista, que sempre se identificou com o seu colonizador, o povo europeu, e, posteriormente, com o estadunidense (também imperialista).

Com o olhar sempre voltado para o estrangeiro, a elite dominante brasileira nunca disfarçou sua repulsa pelas classes médias e pobres e pelos negros, mestiços e indígenas.

Como amostras, basta abrirmos os jornais para visualizarmos as notícias, como o do índio

queimado vivo em Brasília, o do músico negro executado com 80 tiros pelo Exército no Rio

de Janeiro, o de um jovem negro que foi morto por um segurança no Supermercado Extra,

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também no Rio de Janeiro, as milhares de mortes dos negros nas favelas e nas áreas periféricas das cidades e os índios atacados constantemente pelos fazendeiros no Centro-oeste do país.

Citamos casos de morte e violência física, mas, se abrirmos as redes sociais, veremos, por exemplo, que a classe alta reclama constantemente dos aeroportos parecerem rodoviárias, devido à superlotação causada pelas classes médias e pobres estarem viajando de avião. Jessé de Souza corrobora com nossa tese, observando que: “(...) a miséria das classes excluídas do acesso ao capital cultural e capital econômico é, além de econômica e social, também uma miséria existencial e moral (...)” (SOUZA, 2009, p. 389).

Se atentarmos para dois personagens específicos da foto do protesto, o pai e a mãe, ele do gênero masculino e ela do gênero feminino, percebemos a manutenção da sociedade patriarcal no Brasil ao longo do tempo. A constituição do patriarcalismo brasileiro, no período colonial, foi muito bem explicada por Gilberto Freyre no Capítulo I-Características gerais da colonização portuguesa do Brasil: formação de uma sociedade agrária, escravocrata e híbrida de Casa-grande & senzala.

No Brasil, a família foi a instituição social que mais se sobressaiu na colonização portuguesa, inclusive entrando em choque com a poderosa igreja católica, constituindo-se patriarcal, escravagista e aristocrática. A família brasileira é herança da família portuguesa, ditando as regras do Brasil Colônia e, segundo Freyre (2019, p. 71), “desenvolveu-se patriarcal e aristocraticamente à sombra das grandes plantações de açúcar (...)”.

No registro fotográfico, veremos que o pai está à frente, de mãos dadas com a mãe, conduzindo-a no caminhar. Tal imagem traduz que o homem, ou o patriarca, direciona a mulher para os caminhos em que quer, os quais devem ser seguidos por ela. A hierarquia patriarcal brasileira dá mais poder e autoridade ao homem, que, no Brasil Colônia, resolvia os assuntos da família enquanto a mulher controlava as escravas de origem africana, que cuidavam de seus filhos, e os afazeres domésticos.

Segundo uma pesquisa do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), as mulheres dedicam 21 horas semanais às tarefas domésticas frente as 10 horas deles (IBGE, 2019), provando que, mesmo com o passar dos séculos, a mulher continua a cumprir o papel de cuidar da casa. Freyre retrata a opressão da mulher ainda no Capítulo I, considerando que:

Resultado da ação persistente desse sadismo, de conquistador sobre conquistado, de senhor sobre escravo, parece-nos o fato, ligado naturalmente à circunstância econômica da nossa formação patriarcal, da mulher ser tantas vezes no Brasil vítima inerme do domínio ou do abuso do homem; criatura reprimida sexual e socialmente dentro da sombra do pai ou do marido (FREYRE, 2019, p. 107).

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Além da sociedade patriarcal, e da opressão contra a mulher, a imagem da família no protesto revela outra questão importantíssima: a herança da escravidão africana na atualidade brasileira. Freyre descreve a exploração dos escravos africanos pelos grandes proprietários de terra no período colonial:

Da energia africana ao seu serviço cedo aprenderam muitos dos grandes proprietários, (...) passarem a explorar o escravo no objetivo do maior rendimento mas sem prejuízo da sua normalidade de eficiência (FREYRE, 2019, p. 100).

A escravidão africana fora utilizada no Brasil devido à não adaptação dos indígenas à vida da plantação. Freyre (2019, p. 143) observa que: “A enxada é que não se firmou nunca na mão do índio nem na do mameluco; nem o seu pé de nômade se fixou nunca em pé de boi paciente e sólido”. A contribuição do indígena ao sistema de produção agrícola brasileiro foi quase insignificante, sendo a técnica de coivara (o fogo colocado nas plantações antes da semeadura) uma das poucas contribuições. As índias, por sua vez, não serviram para empregadas domésticas, sendo melhores as africanas.

Os escravos africanos influenciaram direta ou indiretamente o povo brasileiro, seja

“(...) nos sentidos, na música, no andar, na fala (...)” (FREYRE, 2019, p. 328), foram os protagonistas do progresso econômico do Brasil, principalmente do litoral agrário, tinham mais capacidade técnica e artística que os indígenas e portugueses e maior predisposição biológica e psíquica para a vida nos trópicos. Além de tudo, os negros africanos introduziram técnicas de produção, como a da mineração de ferro, a criação do gado, o trabalho com metais e a culinária, e desempenharam uma função civilizadora: “Longe de terem sido apenas animais de tração e operários de enxada, a serviço da agricultura, desempenharam uma função civilizadora” (FREYRE, 2019, p. 351).

No que tange ao trabalho doméstico, as escravas negras eram as amas de leite dos filhos da casa-grande, estabelecendo uma relação íntima com esses, inclusive em sua iniciação sexual. As negras também eram objetos sexuais dos senhores. Para as esposas brancas, Freyre restringe seu papel a meras procriadoras: “(...) Casadas, sucediam-se nelas os partos. Um filho atrás do outro. Um doloroso e contínuo esforço de multiplicação” (FREYRE, 2019, p. 406). Também das esposas eram retirados o papel de educação dos filhos e adicionado o de administrar a vida doméstica ou o serviço das escravas negras.

Mesmo depois de cento e trinta e dois anos da assinatura da Lei Áurea (1888), ainda

impera no Brasil a herança de seu sistema escravagista: a desigualdade racial. A desigualdade

é vista pela ausência de condições econômicas, sociais, políticas, de emprego, de educação,

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entre outras, para os negros e pelo exercício da profissão de babá por uma mulher negra para uma família patriarcal, branca e de classe alta, a casa-grande da atualidade. Os negros permanecem, desde o período colonial, realizando diferentes trabalhos de subserviência à classe alta, ou até mesmo à média, que compreendem o cuidado de casas e de crianças, a limpeza, a zeladoria, a portaria e a segurança, os serviços de reparos e manutenção de casas, etc.

Apesar de não amamentar os filhos da família do carioca, a babá negra perpetua a mesma tarefa que as amas de leite, ou a senzala, realizavam com os filhos da casa-grande: o de cuidar. A babá negra, no registro fotográfico da família aristocrática carioca no protesto de 2016, difere-se da ama de leite por ter sua profissão regulamentada, ser livre (para mudar de emprego), deter direitos (poucos restantes), mas continua sendo explorada por uma sociedade excludente. Com o passar do tempo, mesmo com diferentes transformações econômicas e políticas no Brasil, a sociedade proprietária se mantivera, reformulando-se e readaptando-se, mas protegendo sua verdadeira essência: a exploratória.

Analisando, especificamente, a resposta dada pelo patriarca carioca às críticas da fotografia de sua família com a babá negra no protesto de 2016, visualizamos várias questões presentes também em alguns capítulos de Sobrados e mucambos.

Primeiramente, o discurso do empresário é recheado de valores, da moral e das tradições adquiridas no processo de urbanização brasileiro, iniciado no século XVIII, ao dizer que ganha dinheiro honestamente, tem bens próprios, não dá propinas e paga seus impostos.

Freyre no primeiro capítulo de Sobrados e mucambos, O sentido em que se modificou a paisagem social do Brasil patriarcal durante o século XVIII e a primeira metade do XIX, demonstra a formação de novos valores morais nos jovens filhos dos senhores de engenho que se estabeleciam nas áreas urbanas:

Período de equilíbrio entre as duas tendências – a coletivista e a individualista – nele se acentuaram alguns dos traços mais simpáticos da fisionomia moral do brasileiro.

O talento político de contemporização. O jurídico, de harmonização (FREYRE, 2013, p. 78).

Os valores “politicamente corretos” são, desde o período de urbanização brasileira,

verdades absolutas a serem seguidas pela totalidade da sociedade e o principal discurso da

aristocracia no combate à corrupção pública. Há um falso moralismo das elites pois, enquanto

a corrupção na esfera pública é atacada, na privada é realizada de forma desmedida. Não só a

corrupção, mas também as traições, as mentiras, as falsidades, as desonestidades são feitas

pela classe alta, e suas frações de classe, à sombra de uma imagem de honestidade, ética e

moral.

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Freyre exemplifica tal fato ao descrever a multiplicação de prostíbulos nas cidades, bancados pelos filhos dos senhores de engenho e roceiros ricos, que queriam encontrar a diversão que não era dada pelas suas esposas. As esposas são culpadas pelas atitudes dos homens, demonstrando que a opressão contra a mulher permaneceu durante o período de urbanização brasileira nos séculos XVIII e XIX. As mulheres continuaram submissas ao seus maridos e mantinham uma vida de reclusão, de afazeres domésticos, não saindo na rua e não tendo contato com estranhos. Freyre retrata tal condição opressora ainda no Capítulo I:

O patriarcalismo brasileiro, vindo dos engenhos para os sobrados, não se entregou logo à rua; por muito tempo foram quase inimigos, o sobrado e a rua. E a maior luta foi a travada em torno da mulher por quem a rua ansiava, mas a quem o pater famílias do sobrado procurou conservar o mais possível trancada na camarinha e entre as molecas, como nos engenhos; sem que ela saísse nem para fazer compras.

Só para a missa (...) (FREYRE, 2013, p. 86).

Duas outras questões ainda merecem destaque: o da liberdade e o da moradia da babá.

Iniciando pela liberdade, o vice-presidente de finanças do Flamengo defende que a babá é livre para escolher outro emprego, caso se sinta desconfortável no atual. A liberdade dos trabalhadores iniciou-se no período de urbanização do Brasil, mas trazia uma dicotomia para a nova classe sub-urbana: por um lado, a liberdade, e por outro, uma péssima alimentação. O prejuízo da péssima alimentação era causado pela ausência das refeições ofertadas aos escravos na casa-grande. Freyre descreve tal dicotomia:

Ao contrário dos escravos domésticos dos sobrados que participavam, como nas casas-grandes dos engenhos, da alimentação patriarcal, a pobreza livre desde os tempos coloniais teve de ir se contentando, nos mucambos, nas palhoças, nos cortiços, nas próprias casas térreas, nos próprios sobrados ou sobradinhos de aluguel, com o bacalhau, a carne-seca, a farinha e as batatas menos deterioradas que comprava nas vendas e nas quitandas (FREYRE, 2013, p. 177).

Com o fim do período patriarcal rural, as novas cidades ficaram repletas de trabalhadores livres abandonados, sem nenhuma ajuda ou assistência dos sobrados. A liberdade, entretanto, nunca fora conquistada pelos negros, pois, na condição de ex-escravos, tiveram que trabalhar em cafezais e indústrias, “prendendo-se” às empresas por questões de extrema necessidade e de sobrevivência.

Não obstante a babá não ser escrava, continua presa ao seu patrão e não possui a liberdade para sair de seu emprego dado que vive em um país com um alto desemprego.

Segundo dados de março de 2019 do IBGE divulgados no site do Jornal Estado de Minas (2019), o Brasil possui 13 milhões e 100 mil desempregados no país ou 12,4% da população.

A maior dificuldade percebida pelos trabalhadores é a qualificação exigida pelo mercado de

trabalho, entretanto ela é a ponta de um iceberg muito maior: o da não-geração de novos

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empregos. Por medo de não encontrar emprego e de deixar sua família na miséria, a babá mantém-se presa a um trabalho exploratório para sobreviver.

A segunda questão, a da moradia da babá, resgatamos os mucambos, que eram construções pequenas, sem higiene, cobertas de capim ou sapé, em áreas de morros, mangues ou beira de córregos, com pouca ventilação, umidade, altas temperaturas e grande proliferação de doenças. Os materiais utilizados na construção nessas construções eram de péssima qualidade e inferiores aos dos sobrados. Os sobrados, por sua vez, possuíam lindos jardins, muitas árvores, chafarizes e esculturas, sendo adornados com itens europeus que vinham através de navios.

A babá mora em uma casa simples na região metropolitana do Rio de Janeiro, na cidade de Nova Iguaçu, e para se deslocar para o trabalho pega quatro ônibus por dia (EXTRA, 2016). A moradia em uma região periférica do grande centro urbano do Rio de Janeiro prova que a “trabalhadora livre” citada pelo empresário carioca não possui condições financeiras de se fixar na cidade e, muito menos, em um bairro que ofereça melhores condições de vida para si e sua família. Como prova disso, resgatamos uma foto da babá negra e suas duas filhas em sua casa em Nova Iguaçu, Rio de Janeiro. A casa corresponde aos mucambos dado que possui péssimas instalações e condições de higiene, é pequena e tem serviços básicos precários (água, energia e saneamento).

Figura 2 - A babá negra e suas duas filhas em sua moradia em Nova Iguaçu (Rio de Janeiro)

Fonte: Extra (2016)

5 CONCLUSÃO

Infinitos debates poderiam ser levantados com base em Casa-grande & senzala e

Sobrados e mucambos, uma vez que são obras riquíssimas para a compreensão da sociedade e

da realidade brasileira, todavia recortamos algumas reflexões relevantes frente ao cenário

político e social atual.

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Resgatamos, inicialmente, os protestos do dia 13 de junho de 2016, ocorridos em várias cidades brasileiras, e o registro fotográfico de uma família com sua babá negra no protesto do Rio de Janeiro. Na segunda parte, apresentamos de forma sucinta a vida e duas obras de Gilberto Freyre: Casa-grande & senzala (1933) e Sobrados e mucambos (1936).

Na terceira e última parte, debruçamo-nos em associar alguns pontos das duas obras freirianas ao registro fotográfico da família e de sua babá negra. Discutimos criticamente a manutenção da sociedade patriarcal brasileira, a instituição social da família, a opressão contra a mulher, a desigualdade racial e a exploração dos trabalhadores negros, o falso moralismo das elites e a liberdade pós-escravidão, entre outros.

Esperamos que tenhamos contribuído com a discussão de temas importantíssimos no Brasil, como o desemprego, a opressão contra a mulher, a exploração dos trabalhadores, entre outros. Vivemos um momento de retrocessos e perdas para todos nós brasileiros com a reforma da previdência, com o corte e a flexibilização dos direitos trabalhistas, com o congelamento das verbas para a educação pública, com a aprovação de leis que permitem o posse de armas, com a incitação do ódio, da violência e da homofobia, com o aumento da violência urbana, contra a mulher e do feminicídio, com a privatização das estatais, com a entrega da Amazônia’123 causados pelo “desgoverno” de Jair Bolsonaro.

Frente a tantos desgostos, acreditamos que a luta diária deve aumentar a cada dia e que devemos nos dedicar exaustivamente para romper a alienação de uma parcela da sociedade brasileira que apoia as atrocidades cometidas por este presidente despreparado. Rosa Luxemburgo nunca esteve tão correta quando disse: “Será preciso quebrar todas estas resistências passo a passo, com mão de ferro e uma brutal energia” (LUXEMBURGO, 1991, p.104).

REFERÊNCIAS

BRASIL DE FATO. Movimentos veem protestos em alta e preparam ato nacional no dia 10, 31 de maio de 2016. Disponível em:

https://www.brasildefato.com.br/2016/05/31/movimentos-veem-protestos-em-alta-e- preparam-ato-nacional-no-dia-10/. Acesso em: 11 jul 2019.

EMPRESA BRASILEIRA DE COMUNICAÇÃO. Manifestantes vão às ruas em protestos contra o governo em todo país, 13 de março de 2016. Disponível em:

http://agenciabrasil.ebc.com.br/politica/noticia/2016-03/manifestacao-no-rio-dura-cinco-

horas-e-ocupa-orla-de-copacabana. Acesso em: 07 jul 2019.

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EXTRA. ‘O pobre é que sofre’, diz Angélica, babá de foto polêmica em manifestação, 15 de março de 2016. Disponível em: https://extra.globo.com/noticias/rio/o-pobre-que-sofre-diz- angelica-baba-de-foto-polemica-em-manifestacao-rv1-1-18876978.html. Acesso em: 12 jul.

2019.

FOLHA DE LONDRINA. Maior protesto do Paraná reúne 200 mil em Curitiba, 13 de março de 2016. Disponível em: https://www.folhadelondrina.com.br/politica/maior-protesto- do-parana-reune-200-mil-em-curitiba-941765.html. Acesso em: 16 out. 2020.

FREYRE, Gilberto. Casa-grande & senzala. Formação da família brasileira sob o regime da economia patriarcal. São Paulo: Global Editora, 2019.

FREYRE, Gilberto. Sobrados e mucambos. Decadência do patriarcado rural e desenvolvimento do urbano. São Paulo: Global Editora, 2013.

GAZETA DO POVO. Babá negra cuidando de bebês em protesto causa polêmica, 13 de março de 2016. Disponível em: https://www.gazetadopovo.com.br/vida-publica/baba-negra- cuidando-de-bebes-em-protesto-causa-polemica-2h74sdosebc8evn8jknfjraqr/. Acesso em: 07 jul 2019.

JORNAL ESTADO DE MINAS. Brasil tem 13,1 milhões de desempregados até fevereiro, revela IBGE, 29 de março de 2019. Disponível em:

https://www.em.com.br/app/noticia/economia/2019/03/29/internas_economia,1042184/brasil- tem-13-1-milhoes-de-desempregados-ate-fevereiro-revela-ibge.shtml. Acesso em: 10 jul 2019.

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LUXEMBURGO, Rosa. A revolução russa. Petrópolis: Vozes, 1991.

REDE BRASIL ATUAL. Casal leva empregada a protesto e expõe parte da motivação contra o governo Dilma, 13 de março de 2016. Disponível em:

https://www.redebrasilatual.com.br/blogs/blog-na-rede/2016/03/casal-leva-empregada-a- protesto-e-expoe-parte-da-motivacao-contra-o-governo-dilma-9432/. Acesso em: 07 jul 2019.

SOUZA, Jessé. Ralé brasileira: quem é e como vive. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2009.

Referências

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