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Clarice Lispector e Katherine Mansfield: relações de poder no uniso infantil

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Academic year: 2018

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CENTRO DE HUMANIDADES

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS MESTRADO EM LETRAS

SARAH MARIA BORGES CARNEIRO

CLARICE LISPECTOR E KATHERINE MANSFIELD: RELAÇÕES DE PODER NO UNIVERSO INFANTIL

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CLARICE LISPECTOR E KATHERINE MANSFIELD: RELAÇÕES DE PODER NO UNIVERSO INFANTIL

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Letras, como requisito para a obtenção do título de Mestre em Literatura. Área de concentração: Literatura Comparada.

Orientadora: Profa. Dra. Fernanda Maria Abreu Coutinho.

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CLARICE LISPECTOR E KATHERINE MANSFIELD: RELAÇÕES DE PODER NO UNIVERSO INFANTIL

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade Federal do Ceará como requisito parcial para a obtenção do título de Mestre em Literatura. Área de concentração: Literatura Comparada.

Aprovada em: 30 / 08/ 2013.

BANCA EXAMINADORA

_________________________________________________________________________ Profa. Dra. Fernanda Maria Abreu Coutinho (Orientadora)

Universidade Federal do Ceará (UFC)

_________________________________________________________________________ Profa. Dra. Ermelinda Maria Araújo Ferreira

Universidade Federal de Pernambuco

_________________________________________________________________________ Profa. Dra. Vera Lucia Albuquerque de Moraes

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A Deus, por ser meu sustento e minha alegria.

A minha orientadora profa. Dra. Fernanda Maria Abreu Coutinho, por ter vivido junto comigo as experiências dessas meninas, conjugando as tensões de suas moradas iniciais, junto à escrita de Katherine e Clarice, até o momento de situá-las em meu próprio texto: um percurso de aprendizagem.

A profa. Kênia Fernandes por ter me apresentado à escrita de Katherine Mansfield de maneira tão apaixonante.

As profas. Dras. Ana Maria César Pompeu e Vera Lucia Albuquerque de Moraes pelas contribuições feitas durante o exame de qualificação.

Aos amigos Lidiana Barros, Joana D’arc Araújo e Vinícius Bezerra por terem me

apresentado ao Grupo de Pesquisa Ateliê de Literatura e Arte, coordenado pela profa. Dra. Fernanda Maria Abreu Coutinho.

Ao amigo Thiago Menezes por ter me estimulado a dar continuidade ao projeto e por ter compartilhado leituras pertinentes para a melhoria do trabalho.

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“Muito bem, Dicky”, disse ela em voz alta,

“tenho de pensar em um meio de castigá

-lo”. “Não me importo”, ouviu-se a vozinha aguda. E, mais uma vez, a risada sonora. O menino estava inteiramente fora de si...”

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RESUMO

O presente trabalho tem como objetivo examinar comparativamente os contos “Felicidade

Clandestina”, “Preciosidade” e “Os desastres de Sofia”, de Clarice Lispector, e “A casa de bonecas”, “A pequena governanta” e “Aula de canto”, de Katherine Mansfield. O problema

se coloca no que diz respeito às estratégias desenvolvidas pelas crianças e adultos para circular entre as relações de poder que se desenvolvem associadas à infância. Mesmo ocupando espaços históricos e culturais diferentes, as escritoras se assemelham por destacarem a presença de personagens crianças em suas narrativas. Partindo da hipótese de que as tensões que ligam a ideia de poder e infância são instáveis, buscaremos verificar como as personagens dos contos selecionados circulam no universo da infância, rompendo com o paradigma da vitimização da criança.

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ABSTRACT

The present paper aims to exam comparatively the short stories “Felicidade Clandestina”, “Preciosidade” and “Os desastres de Sofia”, from Clarice Lispector, and “A casa de bonecas”, “A pequena governanta” and “Aula de canto”, from Katherine Mansfield. The

problem is concerned with the strategies developed by children and adults to move around the relations of power that are developed associated with childhood. Even though they belong to different historical and cultural contexts, the writers are similar because they point out the presence of children characters in their narratives. Working with the hypothesis that the tensions that connect the Idea of power and childhood and unstable, we intend to verify how the characters of the selected short stories move around the childhood

universe, breaking up with the paradigm of child’s victimization.

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1 INTRODUÇÃO...10

2 ESTRATÉGIAS E JOGOS DE PODER NA INFÂNCIA... 15

2.1 O universo infantil face ao poder... 15

3 INFÂNCIA E LITERATURA... 27

3.1 A criança na Literatura... 27

3.2 Clarice Lispector e Katherine Mansfield: o fazer literário no Brasil do século XX e na Inglaterra do século XIX... 47

3.2.1 Clarice e Katherine: lugar comum... 47

3.2.2 A escrita de Katherine Mansfield: A Inglaterra Vitoriana... 52

3.2.3 A escrita de Clarice Lispector na Literatura Brasileira...55

4 A DINÂMICA DO PODER NA INFÂNCIA ...61

4.1 Crianças de “Felicidade Clandestina” e “A Casa de Bonecas”: algozes ou vítimas?...61

4.2 “A pequena governanta” e “Preciosidade”: meninas, infância e violência... 85

4.3 “Os desastres de Sofia” e “Aula de canto”: jogos de poder na instituição escolar... 102

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS...116

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1 INTRODUÇÃO

Ainda durante a graduação, numa aula de Literatura Inglesa, fui apresentada aos contos de Katherine Mansfield. Aquelas narrativas sobre o mais trivial (uma moça que encontra um antigo amante descascando uma laranja à mesa de um café, uma mulher que prepara um jantar para seus convidados exóticos, meninas que ganham uma imensa casa de bonecas e compartilham a novidade com as colegas de escola) acabaram revelando uma preocupação em desvendar a psicologia de suas personagens diferente dos contos lidos até então, geralmente centrados em acontecimentos.

Descobri que a escritora teve um papel importantíssimo para a evolução de conto moderno, assim como Anton Tchekhov, por quem foi fortemente influenciada. As inovações na estrutura e na matéria da narrativa implementadas pelo escritor russo, dentre elas o abandono de um final surpreendente, de um enredo definido, e da narração sequencial dos acontecimentos, serviram de modelo para a escrita mansfieldiana. A ruptura com os padrões da narrativa clássica, focados na ação, proposta pela escritora, me causou um verdadeiro deslumbramento, me levando a investigar sua obra de forma mais aprofundada. Sua produção literária principal foi direcionada para o conto, envolvendo também textos críticos e confessionais, além de algumas poesias.

Seus contos de atmosfera buscavam desvendar as personagens, em vez de simplesmente explicá-las. Nessa escrita, até mesmo através de os silêncios, e a dificuldade de comunicação contribuem para esse processo. A percepção das experiências dos indivíduos é construída por Mansfield de forma inovadora, rompendo com os mitos românticos da pureza infantil e da felicidade conjugal e familiar. A aparente perfeição inicial é substituída pela sensação de solidão ou sufocamento diante da adaptação às regras sociais.

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concepção acerca da narrativa curta. A imagem e o cheiro da misteriosa Pearl, do conto

Felicidade, descascando uma tangerina com seus dedos languidos, e sensação de

abismamento ao final narrativa, que não corresponde à resolução da trama, nunca foram esquecidos.

Mais tarde tive a oportunidade de me vincular ao Grupo de Pesquisa Ateliê de Literatura e Arte – infância e Interculturalidade, coordenado pela Profa. Fernanda Maria Abreu Coutinho. Nas reuniões do Grupo nos aproximamos de vários estudos voltados para a temática da infância, presente em diferentes áreas de conhecimento.

As leituras do Grupo mostraram que a concepção de infância tem se transformado ao longo da história, caracterizando a criança ora como um pequeno adulto, ora como um ser lúdico, próximo de um ideal de perfeição alcançado através da ligação com a natureza. A Literatura também tem sido habitada por essas representações da infância nas obras voltadas para o público adulto, e, posteriormente, na elaboração de uma Literatura destinada às crianças.

A escrita de Clarice Lispector se destaca nesse sentido por ser permeada por figuras da infância. Sua obra voltada para o público infanto-juvenil é composta pelos livros O mistério do coelho pensante (1967), A mulher que matou os peixes (1968), A Vida íntima

de Laura (1975), Quase de verdade (1978) e Como nasceram as estrelas (1987). Apesar de

limitados, se comparados a sua obra como um todo, os textos de Clarice para crianças trazem importantes inovações. Dentre eles, Quase de verdade se destaca por aludir ao processo de criação literária, levando o leitor a questionar os limites entre realidade e ficção. O pequeno leitor é chamado a participar ativamente do processo de construção da narrativa. Porém, as representações da infância em Clarice não podem ser delimitadas pelo público-alvo das narrativas. Chamou-me a atenção a escassez de estudos acerca da infância dentre a imensa fortuna crítica da autora, que inclui análises de pesquisadores renomados, como Antonio Candido, Benedito Nunes e Roberto Schwarz. Mesmo que a infância surja nas crônicas, contos, romances e cartas de Clarice, a ligação entre o tema e sua escrita ainda não parece ter alcançado uma repercussão considerável sobre a crítica, como destaca o pesquisador Nilson Dinis (2006): “Mas além da “literatura infantil” de Clarice Lispector, a constante presença de imagens da infância mesmo nos seus textos para o público adulto

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Alguns estudos importantes focam a temática da infância contribuindo para a elaboração de uma perspectiva da criança, espalhada na escrita clariciana, como Perto do Coração Criança: Imagens da infância em Clarice Lispector (2006), e o recente Um olhar de criança: a percepção infantil do universo adulto em Clarice Lispector (2013). Nilson Dinis e Vera Moraes nos apresentam a infância como um espaço de transgressão através de uma visão multifacetada da infância, revelando os aspectos contraditórios que permeiam essa fase da vida.

Katherine Mansfield, por sua vez, não produziu nenhum texto para o público infantil. No entanto, sua obra tece um diálogo constante com a ideia de infância. Muitas de

suas histórias, como “Prelúdio” (1918), “Na baía” (1922), “A casa de bonecas” (1922) e “Festa no jardim” (1922), acontecem numa atmosfera familiar, trazida à imaginação do leitor pelos sentidos, o frio dos corredores da escola, as brincadeiras de criança, os imensos jardins, o cheiro do mingau preparado pela mãe. As crianças de Mansfield quebram a visão romântica de infância. Elas duvidam, questionam, desejam, manipulam, causam sofrimento.

Apesar da importância da escritora para a Literatura, mais especificamente para o conto, há poucos estudos sobre sua obra. Seus mais famosos críticos e biógrafos são Antony Alpers, Vincent O’Sullivan, Clare Hanson e Gillian Boddy. No Brasil, há alguns trabalhos críticos sobre sua obra, como a dissertações de Mestrado Epifania em Katherine Mansfield: imagens essenciais no espaço/tempo poético (2002), Instâncias Enunciativas Sujeitudinais na Obra de Katherine Mansfield (2006), A Literatura Crítica e Confessional

de Katherine Mansfield na Gênese do Romance da Nova Zelândia (2008).

O presente estudo propõe uma análise comparativa dos contos “Felicidade

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Partimos para uma leitura dos contos a partir do seguinte problema: quais são as estratégias desenvolvidas pelas crianças e adultos para circular entre as relações de poder que se desenvolvem associadas à infância? Buscaremos mostrar as diferentes posições ocupadas por esses atores numa espécie de jogo de tensão que permanece em constante mutação. As crianças de Clarice e Katherine não são passivas, mas questionam sua relação consigo mesmas e com o mundo.

Nossas hipóteses são as seguintes: a primeira é a de que as tensões que ligam a ideia de poder e infância são instáveis, logo não há um lugar fixo a ser ocupado pela criança ou pelo adulto nas relações de poder. A segunda é a de que as personagens crianças da contística de Clarice Lispector e Katherine Mansfield subvertem as relações de poder estabelecidas pelas instituições voltadas para a infância, destacando-se, nesse particular, a escola e a família. A terceira é a de que a infância é um elemento essencial no fazer artístico das escritoras, mesmo quando o foco narrativo privilegia a perspectiva do adulto.

No desenvolvimento do nosso estudo dialogaremos com a fortuna crítica das escritoras em questão. Utilizaremos, também, textos que trazem discussões teórico-críticas na área dos estudos literários e comparados e construiremos associações entre as obras selecionadas e os estudos do filósofo Michel Foucault sobre o biopoder e a sociedade disciplinar, tendo como referencial teórico principal as obras Vigiar e Punir (1975) e Microfísica do Poder (1979).

Os livros História Social da criança e da família (1960), de Philippe Ariès, Um outro mundo: a infância (1971), de Marie-José Chombart de Lauwe, Uma História da Infância (2001), de Colin Heywood, A infância (2006) de Peter Stearns e História das crianças no Brasil (2008), de Mary Del Priore deram suporte teórico sobre a elaboração e transformação no conceito de infância ao longo da história.

Com base no referencial teórico apresentado, buscaremos alcançar nossos objetivos, contribuindo para ampliar a fortuna crítica de Clarice Lispector e Katherine Mansfield. O interesse de Clarice por Katherine Mansfield enquanto leitora é anunciado em sua crônica O primeiro livro de cada uma de minhas vidas, publicada em 1973 no Jornal do Brasil. Pretendemos verificar as interelações estabelecidas entre essas duas escritas

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suposto desaparecimento, discutido por Neil Postman (2011). Apresentaremos algumas das diversas relações de tensão que circundam a infância, enfatizando que elas não devem ser reduzidas a uma perspectiva bilateral dominador-dominado. Na verdade, a teia de forças que envolvem esse sistema é muito mais intrincada. Por isso, a análise que será feita no trabalho em questão se dará por uma perspectiva foucaultiana. Utilizaremos os estudos de Michel Foucault para problematizam as relações de poder desenvolvidas nas narrativas em questão.

No capítulo “Infância e Literatura”, traçaremos um panorama sobre as representações da infância presentes na Literatura utilizando como principal referência a pesquisa de Fernanda Coutinho Imagens da Infância em Graciliano Ramos e Antoine de Saint-Exupéry (2012), que põe em evidência os personagens crianças em diferentes discursos, desde a mitologia greco-romana, passando pelo relato bíblico, até a atualidade, realizando uma análise comparativa da obra de Graciliano Ramos e de Antoine de Saint-Exupéry. Em seguida analisaremos o contexto histórico e cultural que recebeu a escrita de Clarice Lispector e Katherine Mansfield, evidenciando as semelhanças e diferenças encontradas entre suas escritas , e também a maneira como o lugar e o momento histórico influenciaram sobre sua escrita.

No capítulo “A dinâmica do poder na infância”, realizaremos a análise comparativa dos contos selecionados no corpus dispostos em pares da seguinte forma:

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2 ESTRATÉGIAS E JOGOS DE PODER NA INFÂNCIA

“A senhora não se importa que eu diga isso? Tenho certeza de que comete um grande erro tentando educar as crianças sem surrá-las. Não há nada igual. E eu falo por experiência própria, minha cara.”

Katherine Mansfield

2.1 O universo infantil face ao poder

A concepção de infância disseminada atualmente tende a associar essa fase à dependência, à pureza e à necessidade de orientação moral. A se acreditar nessas postulações, a passagem para a vida adulta aconteceria com as crianças adquirindo paulatinamente o conhecimento antes monopolizado pelos adultos. Representada como um ser inocente e ainda em processo de construção, a criança requer, portanto, proteção contra a corrupção do mundo dos grandes. Daí a necessidade de um espaço reservado para elas, colocando-as quase que em um universo à parte, como um ideal de perfeição, distante dos episódios de violência física e psicológica que permeiam a vida adulta. Entretanto, não se podem ignorar as mudanças pelas quais o conceito moderno de infância tem passado, muito menos o que motivou seu surgimento. O sujeito infantil que conhecemos é, na verdade, produto das relações institucionais. Dentre elas, a que exerceu maior influência sobre a ideia moderna de infância parece ter sido, de fato, a escola, moldando os indivíduos tanto físico quanto intelectual e moralmente. A primeira tentativa de se instituir uma educação formal no Brasil ocorreu através do processo de catequização no século XVI. A ideia então vigente, e ainda hoje mantida, era a de que a educação seria a melhor maneira de se moldar os sujeitos, tornando-os obedientes à organização social. Educar as crianças representava uma possibilidade de se facilitar a relação com as gerações vindouras:

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falar, ler e escrever em português terminariam “sucedendo a seus pais”. Para usar uma imagem do irmão Anchieta, constituindo “um povo agradável a Cristo”, ou, como sugeria o irmão Antônio Blázquez na Carta

Quadrimestral de janeiro de 1577, para que ao menos sirvam de “exemplo

aos que depois deles vieram.” (DEL PRIORE, 2008, p.60).

A Igreja desempenhou um papel fundamental para a afirmação do sentimento de infância difundindo a noção de proximidade entre criança e pureza divina, presentes nos ensinamentos evangélicos, e, também, se preocupando em instruí-las. Mary Del Priore assinala que as crianças indígenas foram escolhidas nessa campanha de educação catequista por serem consideradas “[...] como o ‘papel branco’, a cera virgem, em que tanto se desejava escrever; e inscrever-se.” (DEL PRIORE, 2008, p.58). Escolher as crianças para disseminar uma ideologia reafirma a compreensão de infância imaculada e inocente. A criança era considerada tabula rasa por não ter sido ainda exposta ao pecado, ou seja, ao mundo dos adultos. A noção de infância como ideal de pureza é corroborada pela definição encontrada no Dicionário de Símbolos de Chevalier e Gheerbrant:

Infância é símbolo de inocência: é o estado anterior ao pecado e, portanto, o estado edênico, simbolizado em diversas tradições pelo retorno ao estado embrionário, em cuja proximidade está a infância. (CHEVALIER; GHEERBRANT, 2009, p. 302, grifo dos autores).

Educar as crianças era, portanto, não apenas uma forma de garantir seus direitos, mas um instrumento das autoridades para assegurar o controle sobre as novas gerações. As crianças do Brasil dos jesuítas, semelhante às crianças de hoje, eram apresentadas como seres que necessitavam de cuidados, e também de vigilância e disciplina. Mas quando surgiu essa preocupação? A infância que conhecemos não é um dado atemporal, mas uma invenção da modernidade. Os filósofos gregos do período clássico, embora se referissem a uma infância diferente daquela que conhecemos hoje, manifestavam grande interesse pela educação dos jovens, objetivando acostumar as crianças às práticas da vida adulta.

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alcançar a virtude, dever-se-ia prosseguir estudando a vida inteira, daí a importância dada pelo filosofo à educação, não apenas no início da vida. Já que a educação visava ao bem comum extensivo a toda a pólis, era considerada responsabilidade do Estado, ideia que repercute até os dias atuais. O pensamento de Platão no que concerne à educação também poderia ser considerado um avanço por defender a mesma instrução para meninos e meninas. Essa educação, em sintonia com a concepção platônica, objetivava testar as aptidões dos alunos para que apenas aqueles com melhor desempenho recebessem a formação completa para ser governantes. O sistema educacional arquitetado pelo filósofo objetivava, portanto, não apenas preparar o indivíduo, mas proporcionar o bem a toda a comunidade. O importante não era apenas transmitir conhecimento para as crianças, mas prepará-las para a vida adulta em sociedade.

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[...] a primeira idade é a infância que planta os dentes, e essa idade começa quando nasce e dura até os sete anos, e nessa idade aquilo que

nasce é chamado de enfant (criança), que quer dizer não falante, pois

nessa idade a pessoa não pode falar bem nem formar perfeitamente suas palavras. (ARIÈS, 1981, p. 36).

Para Ariès, o alto índice de mortalidade infantil, devido às condições de vida precárias, limitava o desenvolvimento do afeto em relação à criança. Essa relação muda a partir do século XVII, quando a criança passa a ser vista como um ser lúdico, capaz de fazer gracejos e entreter os adultos, assim como um animal de estimação. Após a fase de

“paparicação”, definida por Ariès como o primeiro sentimento que é nutrido em relação à infância, surge a necessidade de formação moral através da educação. Essa nova necessidade faz com que a infância passe a ser considerada uma etapa diferenciada da vida, exigindo cuidados especiais. Ariès, através da análise da evolução das pinturas do século XIII ao XVI, atesta que, a partir do século XVI, a arte passou a representar a criança de modo diferente, enfatizando sua relação com a família e a imagem da criança engraçadinha que encanta os adultos.A mudança substancial ocorrida nesse período, quando se constrói uma delimitação mais clara entre infância e vida adulta, leva a uma necessidade de restringir a participação das crianças no "universo dos adultos", criando-se, então, um lugar separado especialmente para elas. A educação surge como a principal forma de controle das crianças resultando numa forte repressão de sua fala com, repressão que abrigava um objetivo moralizador. Para o crítico social Neil Postman (2011) o fator que instituiu uma separação mais clara entre infância e o universo adulto foi a necessidade de aprender a ler e escrever, decorrente da popularização da prensa tipográfica.

Postman acredita que os cinquenta anos que se seguiram à invenção da tipografia refletiram-se fortemente na Europa causando uma nítida divisão entre os que

sabiam e os que não sabiam ler. Surgia então um novo tipo de adulto, o homem “culto”,

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Num mundo sem livros nem escolas, a exuberância juvenil contava com o campo mais vasto possível para se expressar. Mas num mundo de aprendizado livresco, tal exuberância precisava ser drasticamente modificada. Quietude, imobilidade, contemplação, precisa regulação das funções corporais tornaram-se extremamente valorizadas. (POSTMAN, 2011, p.60).

A construção da ideia de infância está diretamente ligada ao conceito de poder, pois houve, e ainda há um grande esforço para regulamentar o comportamento e o pensar da criança. O historiador americano Peter Stearns cita o estímulo do medo usado pelo cristianismo para controlar os pequenos: “De modo geral, o cristianismo estimulava o uso do medo da morte e da danação como instrumento regulador do comportamento das crianças, criando o que alguns historiadores veem como uma característica de profunda ansiedade.” (STEARNS, 2006, p.83). Os castigos eram comuns também no Brasil dos jesuítas, sendo, porém, aplicados por alguém de fora da ordem, de modo a evitar algum

possível sentimento de revolta por parte das crianças indígenas: “[...] os padres tinham o cuidado de não o aplicar (o castigo) pessoalmente, delegando a tarefa, de preferência, a alguém de fora da companhia.” (DEL PRIORE, 2008, p. 63).

A grande importância dada à educação depois das mudanças apresentadas esteve voltava à necessidade se exercer domínio não apenas físico, mas moral sobre as crianças. Estabelece-se então uma relação de tensão entre “eu” e o “outro”, ou seja, entre a criança e o adulto. A primeira permanece sem autonomia, mesmo quando sua história se torna o centro das discussões. Stearns enfatiza a circunstância de as informações acerca da infância serem relatadas, ou rememoradas por adultos. Mesmo enquanto sujeito, ela

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Michel Foucault desafia o pensamento de que o poder é exercido por pessoas ou grupos através de atos de soberania, de dominação ou coerção. Para ele, o poder se apresenta de forma dispersa e difusa, diluído nas relações sociais. Nessa perspectiva, não é mais possível localizar uma pessoa, instituição ou autoridade que o detenha. A obra de Foucault marca uma ruptura radical face às concepções anteriores de poder, já que este é agora exercido e não possuído. O filósofo reconhece que o poder não tem apenas efeitos negativos e não é exercido apenas através de forma coercitiva ou repressiva obrigando os sujeitos a agirem contra sua vontade, mas pode ser uma força necessária e produtiva para a sociedade.

Os estudos foucaultianos acerca do biopoder e da sociedade disciplinar apontam para a mudança ocasionada pela transição da sociedade feudal à modernidade. Tradicionalmente centrado em estados feudais e utilizando métodos de coerção explícita dos súditos, o poder deixa de ser exercido de forma soberana. O autor aponta um novo tipo de poder disciplinar presente nos sistemas administrativos criados na Europa do século XVIII, como prisões, hospitais mentais e escolas. Essas instituições já não necessitam mais da violência física para controlar e disciplinar os indivíduos. Dessas considerações é possível depreender, portanto, que houve um aperfeiçoamento do exercício do poder, que deixou de recorrer a punições públicas para tornar-se mais sutil, sendo exercido através da aplicação da disciplina através da vigilância constante.

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É preciso, antes de qualquer coisa, conhecer o conceito de disciplina trabalhado pelo filósofo, a qual possui dois diferentes usos: um na ordem do saber e outro na do poder. Como esta pesquisa se debruça sobre as estratégias desenvolvidas nas relações de poder, iremos nos deter ao último uso. Nessa perspectiva, a disciplina é vista por Foucault como o conjunto de técnicas que permitem a normatização dos corpos.

Esses métodos que permitem o controle minucioso das operações do corpo, que realizam a sujeição constante de suas forças e lhes impõem uma relação de docilidade-utilidade, são o que podemos chamar as “disciplinas.” (FOUCAULT, 2010, p.133).

Essa nova organização política se apresentou inicialmente nos colégios para depois penetrar o espaço hospitalar, e, algumas décadas depois, reestruturar a organização militar. Os processos disciplinares aos quais nos referimos são métodos que permitem o controle minucioso das operações do corpo e lhe impõe uma relação de docilidade. Apesar de já terem sido utilizados anteriormente em instituições como conventos, exércitos e oficinas, foi apenas no decorrer dos séculos XVII e XVIII que vieram a se tornar fórmulas gerais de dominação.

A instituição escolar é apontada por Foucault como uma das primeiras a praticar as disciplinas, buscando organizar não apenas o espaço ocupado pelo indivíduo,

mas também seu tempo de aprendizagem. A própria distribuição dos alunos em “fileiras” é

resultado de um sistema disciplinar. Essa organização espacial permite que o professor circule pela sala, monitorando todos os alunos ao mesmo tempo. Os professores “[...] marcam lugares que indicam valores; garantem a obediência dos indivíduos” (FOUCAULT, 2010, p. 142). Porém, não se pode esquecer que os próprios indivíduos contribuem para a manutenção da ordem vigente. O professor supervisiona os alunos, mas as crianças em sala, por sua vez, supervisionam umas às outras e também ao professor.

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Ao passo que os corpos são fortalecidos, tornando-se mais eficientes, são, igualmente, controlados. É pela disciplina, a qual não deve ser vista de forma unilateral, que as relações de poder se tornam mais facilmente observáveis, pois é por meio dela que se estabelece a interação entre os indivíduos, ou entre esses e as instituições.

O controle das minúcias contraria os grandes aparelhos do Estado, pois vai invadir e modificar as estruturas maiores de forma compassada e discreta. A determinação da regulamentação de horários, espaços, do corpo e da fala esmiúça as inspeções, fazendo

com que o controle se estenda às mínimas parcelas da vida, a “microfísica” do poder, que

gera sujeitos submissos. Essa sujeição, diferentemente do que ocorria na Idade Média, não é obtida apenas através de instrumentos de violência ou da ideologia, e pode muito bem ser direta, usar a força, porém, sem ser violenta.

A grande eficácia da disciplina se dá pelo efeito do dispositivo panóptico1 sobre os indivíduos e consiste em tornar o poder visível e inverificável. Aquele que é observado tem a silhueta do observador constantemente diante de si, sem, porém, saber ao certo se está realmente sendo observado. Foucault exemplifica a utilização do panóptico no sistema carcerário, mas este serve para ilustrar o poder disciplinar desde o começo do século XIX. A visibilidade torna-se uma armadilha. Enquanto a masmorra servia para esconder o condenado e privá-lo da luz e da liberdade, o panóptico coloca-o sob a luz, sob eterna vigilância. A ordem é garantida através do isolamento dos sujeitos: “Se os detentos são

condenados não há perigo de complô”, entre as crianças “não há “cola”, nem barulho, nem

conversa nem dissipação.” (FOUCAULT, 2010, p. 190). Essa invisibilidade lateral,

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resultante do constante monitoramento das minúcias, acaba por gerar uma fissura entre os indivíduos. Eles controlam uns aos outros, quebrando a ideia de poder exercido de forma hierárquica, e monitoram, também, seus superiores. Para Foucault, o temor constante de estar sendo observado faz nascer a sujeição. Como consequência, aquele que está, supostamente, submetido ao olhar do observador faz com que o poder limite a si mesmo,

“[...] inscreve em si a relação de poder na qual ele desempenha simultaneamente os dois papéis; torna-se o princípio de sua própria sujeição” (FOUCAULT, 2010, p.192).

Ao investigar os regulamentos das instituições disciplinares, Foucault destaca o controle das minúcias que levará à construção de um complexo conjunto de relações de poder e saber. Dentro dessas relações, a escola funciona como instituição reguladora do comportamento e do saber da criança, mas não atua somente de forma repressiva. Ela funciona como produtora de saber e subjetividade, que vão além do espaço da escola, afetando o processo de constituição da identidade do sujeito. As disciplinas e o panoptismo ultrapassam o espaço escolar e se dissipam nas relações entre indivíduos, e, até mesmo, desses consigo próprios. Mas como a escola adquiriu um papel de tamanha relevância na formação das crianças?

A Revolução Industrial contribuiu para o fortalecimento dos espaços institucionais reservados às crianças, alterando a organização da sociedade que passou de rural para urbana, fator que contribuiu para a modificação do conceito de infância. Com a necessidade de trabalhar por longas horas e recebendo baixos salários, os casais precisaram limitar o número de crianças, o que resultou em uma relação de maior proximidade entre pais e filhos. Esses, que antes ajudavam no trabalho no campo, agora geravam gastos. A nova organização social desse período ocasionou mudanças na estrutura familiar e na escola, que passa a se dedicar a disciplinar as crianças a partir de regras e valores morais. Como resultado dessas alterações, a necessidade de exercer controle foi o pensamento que caracterizou o segundo sentimento em relação à infância e influenciou fortemente a educação do século XX, tendo grande repercussão até os dias atuais.

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que estivessem em situações vulneráveis.” (STEARNS, 2006, p.67). Mesmo que o conceito de lei seja moderno, o autor enfatiza a preocupação com o cuidado das crianças presente nas leis do Islamismo, a “[...] religião de maior expansão durante o período pós-clássico.” (STEARNS, 2006, p.67). Mesmo com o crescimento do interesse pela infância, o assunto ainda permanece um tanto obscuro, já que os registros que se têm sobre esse período são, geralmente, relatos de outrem, e não daquele que vivencia a infância.

Crianças deixam relativamente poucos registros diretos. Justamente por isso, é mais fácil tratar historicamente da infância do que das crianças em si, porque a infância é em parte definida pelos adultos e por instituições adultas. (STEARNS, 2006, p.13).

Stearns apresenta uma nova perspectiva acerca da obra de Ariès no que tange à

falta de afeição com relação às crianças. Para ele, Ariès “sustentou que os europeus tradicionais não tinham uma concepção muito clara da infância como estágio separado da vida, e tendiam a marginalizar as crianças da atividade familiar” (STEARNS, 2006, p.74). Stearns, porém, chama a atenção para as interpretações confusas da visão de Ariès.

Segundo ele, “Ariès não pensava que os pais deixassem de ter afeição pela criança –

admitia que isso fosse uma manifestação natural –, mas que simplesmente não dedicavam muito tempo ou atenção especial a elas.” (STEARNS, 2006, p.74). O autor apresenta teses revisionistas que atestam o amor paternal através da análise de cartas nas quais os pais manifestam pesar diante da perda de um filho ou orgulho diante de seu nascimento. Até mesmo as representações artísticas são repensadas por ele:

Mesmo a arte, contrariando a visão de Ariès, mostrava interesse centrado na criança: afinal, um dos temas artísticos mais constantes era Maria e o bebê Jesus, indicando que a Igreja ocidental privilegiava a família voltada para as crianças (embora talvez com certo

constrangimento em encaixar os pais). (STEARNS, 2006, p.77).

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melhora na condição de vida da população, de modo geral. Tais mudanças ocasionaram uma diminuição no número de crianças. A consequente intensificação na relação entre pais e filhos mostra que “[...] o investimento emocional em cada criança aumentou” (STEARNS, 2006, p.92). O fortalecimento de espaços reservados para as crianças gera uma alteração na visão das crianças construída pelo mundo adulto.

Ficou mais difícil ver a infância em conexão direta com os demais estágios da vida. É claro, as escolas estavam preparando para a vida e muitos o percebiam, porém as conexões podiam ser bastante abstratas, e o fato é que a maior parte do dia da criança se passava longe do mundo

adulto – o “mundo real” como os americanos, de maneira reveladora,

chamavam. Essa separação podia afetar as atitudes dos adultos com relação às crianças, que agora podiam parecer privilegiadas, e complicar esforços das crianças para encontrar sentido em suas vidas, estimulando novos tipos de estresse e desorientação. (STEARNS, 2006, p.93).

Ocorreram, também, mudanças relacionadas às questões de gênero na infância. As meninas enfrentaram um longo período de silenciamento por serem crianças e por pertencerem ao gênero que historicamente teve seus espaços de atuação limitados. Entretanto, apesar da diminuição nas distinções de gênero e do aumento da liberdade das meninas, que passaram a poder frequentar a escola e se sair tão bem, ou até melhor, que os meninos, ainda persistia o raciocínio de que meninos e meninas deveriam estudar assuntos diferentes. Mesmo após meninos e meninas serem colocados nas mesmas salas nos EUA em 1920, divisões ainda eram mantidas com o intuito de enfatizar a diferença entre os eles, como a prática de esportes distintos e o uso de uniformes diferenciados. O comportamento das meninas recebia, portanto, monitoramento não apenas pela suposta fragilidade de sua pouca idade, mas também devido ao seu gênero, mesmo que as pequenas tenham conquistado espaços antes proibidos.

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novo cenário.” (DEL PRIORE, 2008, p. 10). Enquanto uma pequena parcela da elite tinha aula com professores particulares, à maioria das crianças, filhas de pobres, restava tornarem-se “[...] cidadãos úteis e produtivos na lavoura.” (DEL PRIORE, 2008, p.10). Priore explica que no Brasil do século XIX os pais consideravam o trabalho a melhor

escola e até mesmo uma distração para as crianças. “Assim, o trabalho, como forma de complementação salarial para famílias pobres ou miseráveis, sempre foi priorizado em detrimento da formação escolar.” (PRIORE, 2008, p.10-11). Apesar de algumas disparidades entre culturas diferentes, podemos concluir que houve, de maneira geral, um esforço para controlar a infância através de instrumentos reguladores, dentre os quais se destacam a educação e os castigos.

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3 INFÂNCIA E LITERATURA

“Quando criança, e depois adolescente, fui precoce em muitas coisas. Em sentir um ambiente, por exemplo, em apreender a atmosfera íntima de uma pessoa. Por outro lado, longe de precoce, estava em incrível atraso em relação a outras coisas importantes. Continuo aliás atrasada em muitos terrenos. Nada posso fazer: parece que há em mim um lado infantil que não cresce jamais”

Clarice Lispector

3.1 A criança na Literatura

As representações da infância ao longo da História estiveram constantemente circundadas pela ideia de poder, mesmo antes da elaboração de um pensamento formal sobre o que significa ser criança. A figura iconográfica infantil, por exemplo, ilustra as mudanças na posição de poder ocupada pelas crianças não apenas nas artes, mas também na organização social de forma geral. Os estudos de Ariès, historiador que considera a

“invenção” da infância um fenômeno da modernidade, apontam a ausência de representações artísticas da criança durante o período medieval. Quando esta aparecia, não possuía uma morfologia própria, mas surgia como um adulto em escala menor.

Até por volta do século XII, a arte medieval desconhecia a infância ou não tentava representá-la; é difícil acreditar que essa ausência se devesse à falta de habilidade ou de competência. Parece mais provável que a infância não tivesse lugar naquele mundo. (ARIÈS, 1973, p. 23).

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haver necessidade de que sejam traçadas fronteiras entre o mundo adulto e o mundo infantil nesse período. Até os séculos XV e XVI, que preparariam o cenário da ascensão da burguesia europeia, a instituição clerical seria a grande fomentadora da produção artística. Dessa forma, a presença da criança na pintura e escultura nesse período propagava um modelo da infância influenciado pela iconografia religiosa através das figuras de anjos ou da virgem com o menino Jesus, tema constante durante a Idade Média, pintado principalmente por artistas italianos como Sandro Botticelli, Leonardo da Vinci, Duccio di Buoninsegna, Giotto di Bondone, Giovanni Bellini, dentre outros.

Posteriormente, a Renascença Italiana sinalizaria a mudança na concepção de infância do sagrado para o profano, a qual viria a se consolidar na modernidade. Passa-se a destacar as peculiaridades da criança, retirando-a da aura imaculada que predominava até então. Apesar da presença dessas figuras, ainda que ocupando uma posição de menor destaque, o estudo de Philippe Ariès no início dos anos 60, avaliado como um trabalho seminal, considera que o conceito de infância era ignorado pelo mundo medieval. De fato, a Idade Média não se esforçou por elaborar um pensamento sistematizado acerca dessa ideia, mas certamente havia interesse em estudá-la e representar suas particularidades, como nos mostra, por exemplo, a mitologia grega, repleta de personagens crianças.

Ariès sublinha a movimentação na posição ocupada pelas crianças nas relações de poder. No século XVII elas deixam de ocupar um papel secundário na organização familiar e passam a ser consideradas figuras centrais, fator que sinaliza uma mudança no seu peso nas relações sociais. Tal alteração pode ser observada nos retratos de família, que,

nesse momento, “[...] tendem a se organizar em torno da criança, a qual se torna o centro da

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Figura 1 – Mulheres rindo. DURAN (1828).

PERROT (1991).

A historiadora Michelle Perrot (1991) também enfatiza a atenção especial dedicada aos pequenos. Para ela, a criança passa a ser considerada objeto de investimento não apenas afetivo, mas também econômico, educativo e existencial. “O filho no século XIX, ocupa mais do que nunca o centro da família [...] Como herdeiro, o filho é o futuro da família, sua imagem sonhada e projetada, sua forma de lutar contra o tempo e a morte.” (PERROT, 1991, p. 146). Seria essa nova organização familiar em torno da criança uma tentativa de representá-la enquanto indivíduo, admitindo a existência de um universo distinto daquele regido pelos adultos? Para Perrot, a resposta é negativa, uma vez que o

filho ainda era visto como “[...] o futuro da nação e da raça, produtor, reprodutor, cidadão e

soldado do amanhã” (PERROT, 1991, p. 148), e não como indivíduo. A relação entre pais e

filhos ultrapassava o ambiente familiar, refletindo o desejo do homem de vencer a morte, continuando seu legado em sua prole. Daí a necessidade de instituições voltadas para a preparação desses herdeiros do futuro, prontas a educá-los e discipliná-los, preservando os valores vigentes. Após o fortalecimento do modelo familiar burguês proporcionando o

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Sua linguagem, seus afetos, sua sexualidade, suas brincadeiras são objeto de anotações que dissipam os estereótipos, em favor dos casos concretos e desconcertantes. A infância, a partir de então é vista como um momento privilegiado da vida. Toda autobiografia começa e se demora nela, enquanto o chamado romance “de formação” descreve a infância e a

juventude do herói. (PERROT, 1991, p.162).

O chamado Romance de Formação2, ou Romance de Educação, gênero narrativo mencionado pela pesquisadora, narra os caminhos percorridos pelo protagonista desde o início de sua vida até um estado de maior maturidade. De acordo com a estrutura narrativa em questão, as intempéries enfrentadas pelo herói desde seus primeiros anos contribuiriam para a formação do indivíduo adulto, já que este procura conhecer não apenas o mundo, mas a si mesmo. O desejo de autoformação é a força que impulsiona o protagonista. Há, portanto, uma visão da infânciacomo um momento de preparação, como o início de uma jornada cujos resultados serão colhidos na vida adulta. A ideia de vir-a-ser presente no gênero em questão faz parte do momento histórico no qual ele teve seu início. A Alemanha do final do século XVIII valorizava a educação como uma maneira de moldar o caráter dos indivíduos, dessa forma, o Bilgunsroman traz um ideal pedagógico em suas origens. A formação intelectual, porém, não acontecia apenas por meio da educação formal, mas também era resultado dos acontecimentos e conflitos enfrentados ao longo da jornada percorrida pelo herói. O projeto pedagógico iluminista e pós-iluminista permeia a estrutura do romance.

[...] pode-se iluminar uma das mais determinantes configurações

históricas que atuaram na origem do Bildungsroman: o desejo do burguês

culto e esclarecido pela ampliação dos limites de suas possibilidades de atuação, pelo auto-aperfeiçoamento, pela formação universal. (MAAS, 2000, p.46).

2O termo “Romance de Formação” é originário do alemão

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A aprendizagem do herói opera como modelo para a formação humanista dos próprios leitores dessa modalidade romanesca.

As mudanças por que passa o herói adquirem importância para o a enredo romanesco que será, por conseguinte, repensado e reestruturado. O tempo se introduz no interior do homem, impregna-lhe toda a imagem, modificando a importância substancial de seu destino e de sua vida. Pode-se chamar este tipo de romance, numa acepção muito ampla, de romance de formação do homem. (BAKHTIN, 2000, p. 237).

Construída em torno de uma ligação entre o indivíduo e as relações sociais, a narrativa se torna, então, um encontro do indivíduo com a coletividade. Seu aprimoramento não envolve apenas o desenvolvimento do intelecto, mas também o comportamento diante das regras sociais. Georg Lukácscontrapõe a narrativa épica ao romance, evidenciando os

“[...] dados histórico-filosóficos com que se deparam para a (sua) configuração” (LUKÁCS, 2006, p.55). Enquanto o herói épico não busca uma aventura da exterioridade, pois seu destino já está escrito, o protagonista do romance burguês experimenta o que o escritor chama de “romantismo da desilusão”, uma ficção marcada pelo fracasso do indivíduo em sua busca por um lugar no mundo. Lukács considera a obra de Goethe, Os

anos de aprendizagem de Wilhelm Meister, publicada entre 1795 e 1796, o marco entre os

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O sentimento de valorização da infância como força de energia e vitalidade retornaria mais tarde com o Romantismo através da representação de um ideal de infância pura, quando o homem experimentaria uma ligação com o estado primitivo da natureza. A leitura romântica do mito da infância enxerga a criança como um ser que evoca as características mais nobres do homem, propagando o pensamento primitivista proposto por Jean-Jacques Rousseau, proposto não apenas em seu Emílio, ou da educação (1762), mas disseminado em sua obra de forma geral. Rousseau critica a cultura moderna que associa o progresso da civilização humana à comodidade proporcionada pelos bens materiais. O pensador defende um estilo de vida contrário ao artificialismo e à futilidade da sociedade moderna através da valorização da conexão entre o homem e a natureza, engendrada no

“bom selvagem”.

Rousseau não pretendia alcançar esse estado de integração ao primitivo com um retorno ao passado, mas questionando a formação da criança em seu tempo orientada pelo racionalismo e pelo desenvolvimento técnico-científico. A proposta pedagógica de Emílio defende que os conhecimentos transmitidos às crianças preparassem-nas como cidadãos cumpridores de seus deveres cívicos. Porém, a perspectiva adotada na obra preserva a individualidade da criança, já que tenta construir conhecimento de forma natural sem impor valores morais, e respeita as peculiaridades do mundo infantil. Dessa forma, a criança não seria guiada ao mundo adulto através da mera reprodução dos valores estabelecidos pelas gerações mais velhas, mas se descobriria com prazer a construir escolhas críticas que resultariam em um adulto aprimorado. “Com esta obra de Rousseau, não somente a infância conquista o direito à alteridade, como se instaura uma nova epistémê com relação às etapas do viver.” (COUTINHO, 2012, p.32).

O gozo da infância como um caminho para despertar as potencialidades da criança resultando na formação de um adulto maduro, como pode ser verificado em Emílio, está presente no poema de William Wordsworth (1988) “My Heart Leaps Up”. “No verso

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constante do fazer poético romântico. A Literatura figura entre os vários produtos culturais que contribuem para aprofundar sua subjetividade, levantando a problematização de seu lugar no mundo. Como apontado no capítulo anterior, a representação de personagens crianças surge como uma tentativa de compreendê-las através das narrativas, porém seu lugar nas relações de poder não é estável.

Até mesmo o surgimento de uma Literatura de cunho didático voltada para criançasdenota a condição de fragilidade ainda imposta a elas em alguns contextos, mesmo que a história e a produção cultural tenham reconhecido sua relevância. Composta a princípio por contos populares, a Literatura Infantil objetivava transmitir as normas de conduta do universo adulto aos seus leitores. Essas narrativas de origem popular não eram, inicialmente, destinadas em especial ao público infantil. Na obra O grande massacre de gatos e outros episódios da história cultural francesa (1986), o historiador Robert Darnton examina várias versões de contos populares e critica os caminhos seguidos por psicanalistas renomados como Erich Fromm e Bruno Bettelheim ao empreenderem suas análises dos aludidos relatos.

Darnton destaca que os símbolos tomados como base para a interpretação, na

verdade, “[...] não existiam nas versões conhecidas dos camponeses, nos séculos XVII e XVIII.” (DARNTON, 1986, p.23). Fromm utiliza todo um aparato de construções simbólicas para se referirà sexualidade em “Chapeuzinho Vermelho”: a menstruação seria representada pelo capuz, a garrafa levada pela menina seria uma referência à virgindade enquanto o caçador faria alusão à punição por infringir um tabu sexual. O problema, observa Darnton, é que nenhum desses elementos estaria presente nas versões anteriores dos irmãos Jacob e Wilhelm Grimm, de onde o psicanalista provavelmente retirou o texto da seu estudo. O universo simbólico, tão importante para Fromm, não assume uma posição

de relevância já que “[l]onge de ocultar sua mensagem com símbolos, os contadores de

histórias do século XVIII, na França, retratavam um mundo de brutalidade nua e crua.” (DARNTON, 1986, p.29).

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Não havia uma distinção clara entre o universo infantil e o adulto, portanto, não era necessário censurar nenhum assunto para as crianças. Elas não eram vistas como criaturas inocentes e compartilhavam a rotina de trabalho dos camponeses, os maus tratos e a falta de recursos, assim como a cultura popular transmitida por esses povos ao longo dos tempos. Mesmo que os contos populares sejam considerados parte da gênese da Literatura para crianças, deve-se considerar a circunstância de serem eles voltados para o público adulto e contados por eles como escape às dificuldades potencializadas pela explosão demográfica e a exploração da burguesia ascendente. Os contos oferecem uma resposta à crueldade do mundo através de personagens, dentre eles um número crescente de crianças, que mesmo fracos e oprimidos se utilizam da patifaria para lograr os mais poderosos. Essa relação não se constrói apenas entre adultos e crianças, cujos casos de abandono se multiplicavam a cada período de calamidade, mas dramatiza também o embate entre os pobres, petit gens e os ricos, les grands. João e Maria, inclusive na versão atenuada de Perrault, retrata a perigosa condição enfrentada pelas crianças na França do século XVIII. Nesse período de crise demográfica, a temática do abandono dos filhos se torna comum, aparecendo em vários contos juntamente com outras formas de maus-tratos infligidos a eles.

Sem fazer pregações nem dar lições de moral, os contos franceses demonstram que o mundo é duro e perigoso. Embora, na maioria, não fossem endereçados às crianças, tendem a sugerir cautela. Como se erguessem letreiros de advertência, por exemplo, em torno à busca de fortuna: “Perigo!”; “Estrada interrompida!”; “Vá devagar!”; “Pare!” (DARNTON, 1986, p. 78).

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Não se podem ignorar as mudanças nas versões dessas narrativas motivadas pela transição dessas histórias da classe camponesa para a burguesia, nem mesmo a passagem do tempo que separa a primeira versão de Perrault do presente. O momento histórico vivido pelo autor certamente influenciou na escolha de um toma mais suavizado e moralizante na reescrita. A França do século XVII estava passando por um momento de grande progresso e transformações político-sociais, portanto o cenário em que Perrault escreveu os contos requeria uma maior preocupação em propagar ideais de comportamento para as gerações vindouras em vez do simples entretenimento. Somente um século mais tarde, na Alemanha no século XVIII, as pesquisas dos irmãos Grimm resultariam na consolidação dos contos na Europa e nas Américas. O tom prescritivo torna-se um ponto chave das narrativas, utilizadas como instrumento educacional, como destaca o psicanalista Bruno Bettelheim (2004):

Enquanto diverte a criança, o conto de fadas a esclarece sobre si mesma, e favorece o desenvolvimento de sua personalidade. Oferece significado em tantos níveis diferentes, e enriquece a existência da criança de tantos modos que nenhum livro pode fazer justiça à multidão e diversidade de contribuições que esses contos dão à vida da criança. (BETTELHEIM, 2004, p. 20).

O estudioso afirma que os contos de fadas ensinam as crianças a lidar com os problemas interiores e encontrar soluções no contexto social em que estão inseridas. Elas aprenderão a enfrentar e aceitar sua condição como seres atuantes da sociedade. Apesar da relação inicialmente normatizadora construída entre a criança e a Literatura, as obras às quais ela tinha acesso não se limitavam àquelas impostas por instituições ou indivíduos adultos. Havia também a leitura de títulos escolhidos livremente, uma leitura não funcional, voltada exclusivamente para a fruição.

Mas como as personagens crianças são construídas nas obras não especificamente voltadas para o público infantil? A Literatura esteve interessada nas crianças desde seus primórdios. É o que nos mostra a obra Imagens da infância em

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um estudo panorâmico que põe em evidência os personagens crianças em diferentes discursos, desde a mitologia greco-romana, passando pelo relato bíblico, até a atualidade, realizando uma análise comparativa da obra de Graciliano Ramos e de Antoine de Saint-Exupéry. Segundo a pesquisadora, as representações da infância constituem uma temática constante ao longo da história, presentes não apenas em investigações históricas, mas também nas artes, em especial na Literatura.

A mitologia greco-romana exemplifica a impossibilidade de precisar um início para a importância dada aos novos descendentes. Os personagens crianças ocupam uma pluralidade de lugares nas relações de poder que se entretecem entre elas e os adultos ou entre as próprias crianças, fator que ilustra sua multiplicidade de representações. Alguns desses personagens surgem como responsáveis pela salvação ou destruição de seu núcleo familiar e social. Édipo Rei, de Sófocles, considerada a mais representativa das tragédias gregas, envolve o abandono de um recém-nascido numa tentativa de evitar o cumprimento de uma profecia maldita trazida por ele. Os infortúnios que circundam o adulto são determinados desde seu nascimento.

Homero e os tragediógrafos gregos fixaram a máscara adulta destas personagens (Perseu, Édipo, Páris e Télefo) na memória do sistema literário, não sem deixar implícito, no entanto, que o peso de sua dramaticidade advém, em primeiro lugar, das sombras que lhe rondam o berço. (COUTINHO, 2012, p.48).

Outro personagem da mitologia abandonado após o nascimento é Atalanta. Rejeitada por seu pai, que desejava filhos homens, sobrevive sendo alimentada por uma ursa. O mito de fundação de Roma, assim como o de Atalanta, aproxima as crianças rejeitadas da natureza, que as acolhe através de animais. Os gêmeos Rômulo e Remo, jogados no rio Tibre por ordem de Amúlio, numa tentativa de proteger o trono, são amamentados por uma loba e, mais tarde, fundariam a cidade de Roma no mesmo local onde haviam sido deixados.

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Conhecido como “massacre dos inocentes”, este é um dos vários episódios bíblicos

envolvendo a execução em massa de crianças. Numa vertente oposta à ideia da criança maldita ou ameaçadora, Isaac é o filho desejado de Abraão. Promessa divina ansiada por toda uma vida, seu nascimento é motivo de extrema alegria, assim como o do filho de Zacarias, visto como a esperança de continuação de seu legado.

É importante destacar que as personagens crianças também ocupam a posição de protagonistas no discurso bíblico. No Novo Testamento, Davi confronta a representação da criança como um ser frágil e desprotegido, livrando seu povo do gigante Golias, capaz de derrotar os mais fortes homens de sua tribo. Por ser o mais novo dentre oito irmãos, Davi guardava os rebanhos de seu pai. Menosprezado por sua pouca idade, seus feitos extraordinários têm início antes do embate que o tornaria conhecido pelas futuras gerações. O pequeno pastor mata um leão e um urso que haviam atacado as ovelhas de seu pai, sem receber, no entanto, crédito por seus prodígios já que era o menor de sua casa.

Ora maldita, ora redentora, a criança é capaz despertar as mais diferentes visões que têm sido representados na Literatura, como temor, ira ou empatia. Além das narrativas míticas, o interesse pela infância tem suas raízes, também, no discurso filosófico. Platão, por exemplo, mesmo não tendo utilizado uma nomenclatura que designasse a criança de forma mais específica, demonstra uma preocupação com essa primeira etapa da vida.

O discurso sobre a infância apresenta uma grande versatilidade de gêneros, temas e personagens, ilustrando a complexidade de delimitação de suas representações no sistema literário. Presentes desde a mitologia e o teatro greco-romanos, da narrativa bíblica, e até mesmo anteriormente, as representações da criança na Literatura têm se transformado através dos séculos. Ela não é mais vista apenas como um ser em desenvolvimento, mas

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A criança e a infância são também delimitadas pelos códigos que concernem às relações da pequena personagem com outrem: seus parceiros crianças ou adultos, e seu ambiente. A comunicação supõe dois polos e relações mais ou menos hierarquizadas e valorizadas.

(CHOMBART de LAUWE, 1991, p.21).

Através de seu abrangente estudo, Chombart de Lauwe conclui que as representações da infância contribuem para a construção de uma imagética da criança na sociedade por meio de uma visão crítica do universo adulto. A relação dessas personagens

com o sistema social é múltipla, mas, segundo a escritora, “[...] são variações de um ser

único: ‘a criança autêntica’” (CHOMBART de LAUWE, 1991, p. 448), espectro de uma misteriosa ligação com a natureza e uma sabedoria sobrenatural. Elas estão, portanto, inseridas numa dinâmica do poder na qual ocupam diversas posições, o que contradiz a noção limitada de criança como um ser frágil. Essas personagens podem também adquirir

maior poder nas relações por seu estado de infância. “Os escritores criam, com elas, uma

outra maneira de existir, e as ficções fantásticas contribuem, sem dúvida, para levar a seus extremos as características atribuídas à infância.” (CHOMBART de LAUWE, 1991, p. 449). Mesmo que não haja um lugar fixo reservado para a criança nas relações de poder, Chombart de Lauwe percebe a permanência de uma oposição entre o mundo da infância e o mundo adulto. Enquanto o primeiro adquire caráter mitológico, remontando a um tempo

maravilhoso e efervescente, o último é “[...] criticado através dos indivíduos aprisionados em seus papéis e em suas normas ou através das instituições e da sociedade global, é simplesmente mostrado sob seu aspecto mais sombrio.” (CHOMBART de LAUWE, 1991, p. 452). Diante do rigor do universo adulto, os pequenos enfrentam um sentimento de inadequação.

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indiferença, ou o percebem diferentemente ou se refugiam no imaginário.

(CHOMBART de LAUWE, 1991, p. 453).

Presença constante nos livros, quando a criança passa a ocupar uma posição de relevância também enquanto leitora? O fomento de uma produção literária direcionada especificamente para a criança ocorreu de forma moralizadora, portanto, os livros voltados para esse público não tinham, a princípio, o objetivo único de proporcionar prazer. Colin Heywood (2004) reforça a publicação de obras protestantes inglesas como exemplo de uma literatura de cunho normatizador destinada às crianças, preocupada com sua conversão através da educação. Não apenas os protestantes, mas os jovens católicos tinham leituras direcionadas para a temática religiosa, dentre elas a própria Bíblia, assim como manuais de comportamento como o Token for Children (1671-1672) e a obra The divine songs attempted in easie language for the use of children (1715).

Os pais poderiam dar livros a seus filhos, cuja maioria, até meados do século XVIII, estavam na categoria daqueles procurados para ensinar as crianças e aprimorar suas mentes, diferentemente de livros infantis propriamente ditos, definidos por Harvey Darton como aqueles elaborados basicamente para dar prazer. (HEYWOOD, 2004, p.126).

Na Inglaterra, o aumento do número de periódicos destinados ao público infantil ocorreu simultaneamente ao crescimento da alfabetização. Os avanços na tecnologia de impressão e distribuição resultaram numa expansão do mercado editorial voltado para esse grupo específico no decorrer do século XIX. Segundo Diana Dixon3 (1986), as revistas infantis saltaram de cinco, em 1824, para 160 em 1900. Não apenas a quantidade, mas também a qualidade do design, com a proliferação dos livros ilustrados, assim como de seu conteúdo, melhorou consideravelmente durante o período vitoriano inglês.

3

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Contrastando com as obras pensadas para o ensinamento do evangelho, surgem os antididáticos Alice no País das Maravilhas (1865) e Aventuras de Alice através do espelho (1871). A curiosidade da menina Alice, personagem subversiva e desafiadora, contraria o olhar normativo arraigado no puritanismo vitoriano ridicularizando a incoerência que rege as normas sociais e até mesmo a linguagem. Lewis Carroll oferece uma visão transgressora da sociedade, recriando o real de forma absurda, ao revelar a crueldade e falta de lógica das convenções sociais.

É através de constantes questionamentos sobre a rigidez imposta às crianças que a menina Alice pode compreender sua própria relação com a infância, o mundo, e a transição para a vida adulta. Desafiada pela pergunta da Lagarta sobre sua identidade, Alice

percebe a efemeridade de seu estado. “Eu... eu... nem eu mesmo sei, nesse momento... eu...

enfim, sei quem eu era, quando me levantei hoje de manhã, mas acho que já me transformei várias vezes desde então.” (CARROLL, 2006, p. 50, tradução nossa). Ressignificando seu

diálogo com o “outro”, e consigo mesma vertiginosamente Alice metaforiza as constantes transformações pelas quais passamos até entrarmos na idade adulta e a incoerência de certas regras de conduta que nos são impostas. A imagem de uma lagarta que constrói o casulo do qual sairá como borboleta, um ser que já não é o mesmo, valida uma alegoria dessa transformação. Ao participar do julgamento do Valete de Copas, Alice questiona a autoridade do Rei, representante do poder que beira a estupidez, caricatura de déspota subordinado à Rainha. A notória falta de inteligência e lógica no discurso adulto, tão insólito quanto os padrões que regem a sociedade vitoriana, são parodiadas pelas regras absurdas dos detentores do poder no País das Maravilhas.

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atacar a ordem vigente, colocando o ideal acima do status quo. Sob a aparente inocência de muitas narrativas e poemas para o público infantil, emergem discussões sobre ideias como religião, classe social, gênero e sexualidade. Esse universo mágico, mas ao mesmo tempo terrificante e contestador criado na narrativa de Lewis Carroll reverbera aquele no qual habitam os contos de fadas.

A estrutura narrativa dos contos maravilhosos revela semelhanças com a ficção do inglês Lewis Carroll. Na Morfologia do conto maravilhoso, publicado em 1928, o folclorista Vladimir I. Propp efetua uma investigação sobre os contos populares, enxergando uma relação íntima entre o folclore e a literatura. Através de um corpus composto por cem contos de magia russos, Propp conclui que os esquemas narrativos ocorrem de forma semelhante na contística de povos que muito dificilmente tiveram contato entre si. Uma menina que parte de casa em uma aventura e é questionada pelos personagens exóticos que encontra ao passar por uma floresta, Alice se encaixa em algumas das funções de personagens propostas pelo pesquisador, o qual esquematiza uma sequência de funções desempenhadas pelos protagonistas: “[o] herói deixa a casa... é submetido a uma prova; a um questionário; a um ataque, etc., que o preparam para receber um meio ou um auxiliar mágico.” (PROPP, 2010, p.37-38).

Os meios mágicos podem ser animais, objetos dos quais surgem auxiliares mágicos, qualidades doadas diretamente. Na narrativa vitoriana, após responder a indagação da Lagarta, Alice recebe dois pedaços de cogumelo contendo um novo enigma cuja solução lhe trará poderes mágicos, sem, porém, assegurar o sucesso de sua jornada, tais quais os feijões de João. Como Propp já previra, seu estudo contribui não apenas para a análise do conto maravilhoso, mas levantou questões sobre a narrativa em geral. A análise estrutural dos contos nos revela que os esquemas fixos dos contos maravilhosos, transmitidos de geração em geração, se revestem de um novo sentido. Carroll nos apresenta uma dessas novas formulações. A ambientação, o enredo, a escolha dos personagens de ambas as narrativas protagonizadas por Alice estabelecem uma comunicação com os contos populares, ou contos de fadas, que ocupam uma posição central quando se trata de literatura para crianças na atualidade.

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voltada para o ensino dos mais diversos assuntos, “indo do comportamento das senhoritas

diante da sociedade (postura, modo de falar, hora certa de ruborizar, etc.), até

aconselhamento quanto à saúde e educação dos filhos” (MORAIS, 2004, p.25). Margaret Gatty escreve uma coletânea de cinco volumes intitulada Parables from nature, publicada pela primeira vez em 1855, quando alcança grande popularidade. Gatty apresenta uma série de alegorias cristãs, usando animais, plantas e personificações de forças da natureza para ensinar valores morais e lições religiosas. Mesmo não tão notoriamente didática quanto as parábolas de Gatty, The Water-Babies (1863), de Charles Kingsley, contém uma variedade de lições morais e sociais. O menino Tom, protagonista da narrativa, é punido por mau comportamento, como o roubo, por exemplo, e recompensado quando pratica atos de altruísmo e compaixão. Esse tipo de texto reafirma a importância dada pela sociedade vitoriana às aparências, disseminando a ideia de que seguir regras de conduta moral, mesmo sem crer nelas, assegura a virtude.

Era realmente complexo categorizar alguns trabalhos de acordo com seus leitores alvo, especialmente pelo fato de que grande parte da ficção e poesia era apreciada por um público de várias gerações. A divisão intrincada entre essas “Literaturas” é facilitada pela predileção dos autores vitorianos do século XIX por personagens crianças. Essas figuras da infância servem a uma variedade de propósitos: exorcizar decepções dos primeiros anos, escapar para um refúgio dourado, lamentar a perda de um filho, melhorar as gerações vindouras, experimentar novas formas de retratar a consciência humana, etc.

Imagem

Figura 1  –  Mulheres rindo. DURAN (1828).

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