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Crianças de “Felicidade Clandestina” e “A Casa de Bonecas”: algozes ou

4 A DINÂMICA DO PODER NA INFÂNCIA

4.1 Crianças de “Felicidade Clandestina” e “A Casa de Bonecas”: algozes ou

O surgimento da ideia moderna de infância é acompanhado pelo fortalecimento de um discurso institucionalizado com relação à criança, cuja base mais forte é a escola. Apontada por Foucault como uma das instituições precursoras da modernização das relações de poder por utilizar meios de vigilância mais sofisticados que aqueles baseados na punição física, a escola passa a desempenhar um papel importante no que concerne à disciplinarização das crianças. Como apontara Foucault em Vigiar e Punir (2010), o espaço escolar é permeado por complexas relações de poder objetivando moldar os indivíduos física, intelectual e moralmente. Sob vigilância constante, submetidas a hierarquias e disciplinas estabelecidas através de regras que visam a controlar não apenas seu corpo, mas também seu desenvolvimento intelectual, as crianças acabam se tornando corpos dóceis. As disciplinas, definidas por Foucault (2010, p.133) como “os métodos que permitem o controle minucioso das operações do corpo, que realizam a sujeição constante de suas forças e lhes impõem uma relação de docilidade-utilidade”, passam a desempenhar um

papel basilar no sistema educacional, com base na argumentação de que essas são utilizadas para assegurar um nível de aprendizagem adequado.

A escola se torna a instituição responsável pela preparação para a vida adulta, moldando o caráter dos indivíduos desde os primeiros anos de vida, preocupação já manifestada pelos filósofos gregos do período clássico, mesmo que eles não compartilhassem da visão de infância moderna. Evidencia-se, portanto, que o fortalecimento do sentimento de infância está estreitamente ligado à noção de poder, já que as instituições destinadas a regulamentar o comportamento e o pensar da criança, dentre elas a escola, ganharam maior destaque na organização social na modernidade. A educação se torna o meio mais efetivo de se exercer domínio sobre as crianças, já que elas permanecem boa parte de seu tempo dentro do ambiente escolar, submetidasà vigilância de adultos. Por outro lado, a sociedade passa a responsabilizar a escola pela formação do caráter dos indivíduos, levando-a a ultrapassar o papel de instituição transmissora de conhecimento formal.

A escola é um dos grupos sociais que, por mais longo tempo, mantém contato sistematizado com indivíduos em desenvolvimento, donde a sua responsabilidade em favorecer o processo da evolução através da ação integrativa de todos os aspectos do viver, com a finalidade de assegurar a consistência e o equilíbrio pessoais, como resultantes de novas experiências e descoberta de novas capacidades. (NOVAES, 1970, p.14).

O livro Os intelectuais na história da infância (2002), coletânea com

contribuição de autores de vários países, apresenta o texto “O desencantamento da criança: entre a Renascença e o Século das Luzes”, de Carlota Boto. Nesse estudo, Boto dialoga

com as práticas pedagógicas numa perspectiva filosófica e histórica, buscando compreender a ideia moderna de infância através da análise da organização do sistema educacional. Ao discutir sobre os colégios jesuíticos e a institucionalização da educação escolar, a estudiosa enfatiza o papel das escolas enquanto instituições voltadas para o controle do

comportamento da criança, trabalhando para eliminar “quaisquer traços de espontaneidade infantil” (BOTO in: FREITAS, 2002, p. 24) através de um complexo sistema de regras.

Vários elementos, desde a disposição física do ambiente escolar, assim como o estabelecimento de horários para a realização de cada uma das atividades, contribuem para

tornar a criança um aluno, o que implicaria o controle sobre sua formação moral e cultural.

“A criança passava a ser, agora, aluno. O educador não falaria mais a um discípulo

específico, mas dirigia-se a todos os alunos, em séries; por classes.” (BOTO in: FREITAS, 2002, p.20). A infância moderna, fortemente influenciada pela escolarização, gerou hierarquizações entre as crianças determinadas por faixas etárias, conhecimento e até mesmo por classes sociais. Dessa forma, há uma supressão do indivíduo, que passa a fazer parte de um grupo e se adaptandoàs suas regras de conduta.

As representações da infância na literatura são, quase sempre, mediadas pela perspectiva do adulto. Mesmo quando configurada através de uma escrita autobiográfica, como acontece em Infância (1945), de Graciliano Ramos, ou em Minha vida de menina (1942), de Helena Morley, a obra literária ainda representa a criança como o outro. Como a infância, noção já tão mutante na realidade, é apresentada na obra literária? A infância surge na literatura não como reprodução da noção difundida no universo empírico, mas como representação.

O conceito de mímesis é estabelecido nos diálogos de Platão através da alegoria da caverna, construindo realidades em camadas sobrepostas, organizadas de forma hierárquica. Sócrates, personagem dos diálogos platônicos, considera a arte triplamente distanciada da essência do mundo, comparando-a às sombras e aos reflexos formados na água e nos espelhos.

Antoine Compagnon menciona em sua obra O demônio da Literatura (2001) o célebre axioma ut pictura poesis, de Horácio, em sua Arte Poética, para ilustrar a importância dada ao caráter mimético da criação literária. Entretanto, é importante rever o contexto do qual a citação foi retirada. Para Abrams (2010), a expressão utilizada no verso 361 da Carta aos Pisões, ao ser empregada fora de seu contexto para fazer referência ao processo de criação literária, acabou sendo interpretada como um princípio de similaridade entre a pintura e poesia. A expressão está, entretanto, mais relacionada ao processo de percepção da obra do que ao seu processo de construção.

A poesia é como a pintura, haverá a que mais te cativa, se estiveres mais perto e outra, se ficares mais longe; esta ama a obscuridade, esta, que não teme o olhar arguto do crítico, deseja ser contemplada à luz; esta agradou uma só vez, esta revisitada dez vezes, agradará. (TRINGALI, 1993, p.35).

Assim como ocorre na Arte Poética de Horácio, Platão, n’A República, refere- se a imagens no espelho e à pintura para explicar sua concepção de poesia. A comparação foi utilizada em uma tentativa de ilustrar a qualidade mimética da poesia, que é menos perceptível do que em uma pintura. Porém, palavras como “cativar” e “agradar” fazem alusão àquele que interage com a obra de arte, não ao processo de criação do objeto em si. Abrams afirma que a aproximação da literatura com a pintura contribuiu para o conceito de que esta é um reflexo de objetos e eventos. O valor da obra literária está, nesse período, agregado ao seu caráter mimético. Compagnon questiona esse conceito afirmando que a crítica da mímesis é uma crítica capitalista, já que está associada ao realismo, e este, consecutivamente, ao romance e à burguesia. Compagnon cita As palavras e as coisas (1994), obra na qual Foucault estabelece um jogo de reflexo infinito com a análise da pintura de Velázquez. Não há como precisar quem está sendo representado ou quem é

“real”. O autor apresenta a referência ao real como uma ilusão, já que a arte acaba por criar algo novo. “A mímesis é, pois conhecimento, e não cópia ou réplica idênticas: designa um conhecimento próprio ao homem, a maneira pela qual ele constrói, habita o mundo.” (COMPAGNON, 2001, p.127). A obra literária, portanto, tem ligação com o mundo empírico. Tal ligação, porém, não vale como simples reflexo do real, mas trata de “[...] estabelecer relações entre os fatos que, sem esse agenciamento, surgiriam como puramente

aleatórios;” contribuindo assim para “desvendar uma estrutura de inteligibilidade dos

acontecimentos e daí atribuir um sentido às ações humanas” (COMPAGNON, 2001, p.128). A criação artística, mesmo regida por uma organização própria, que recria o real,

afastando o objeto artístico da realidade empírica, produz “[...] um efeito fora da ficção, isto

é, no mundo” (COMPAGNON, 2001, p.128), consequência do reconhecimento que proporciona ao leitor.

A representação das personagens crianças é, portanto, resultado de uma tentativa de compreendê-las, recriando-as na trama narrativa. A relação da criança com a Literatura passou por modificações, principalmente com o surgimento da Literatura infantil, produto da Revolução Industrial burguesa. Produzidas em massa, essas obras, inicialmente compostas por contos populares, objetivavam adaptar seus leitores aos valores e condições do mundo adulto. Mesmo sendo a partir de então vista como um leitor em potencial, a criança permanece submetida ao esforço do adulto de dominá-la através de um discurso

moralizador. Essa lógica de autoridade se reproduziu não apenas nas obras voltadas especificamente para o público infantil.

As personagens crianças são recorrentes nos contos, crônicas, romances e, mais especificamente nas obras de Clarice Lispector voltadas para o público infantil, assim como na contística de Katherine Mansfield. As personagens crianças construídas pelas escritoras ultrapassam a lógica bilateral das relações de poder presentes, por tanto tempo, na Literatura. Estas se mostram ora como dominadoras, ora como dominadas, desenvolvendo estratégias para lidar com as relações de poder que se estabelecem não apenas entre elas e os adultos, mas dentro dos próprios grupos nos quais elas se subdividem.

É predominantemente no ambiente escolar que a diegese do conto “A casa de

bonecas”, de Katherine Mansfield se desenvolverá. A maioria das personagens são

crianças, sejam elas apresentadas como indivíduos ou grupos, enquanto as personagens adultas interferem nas relações entre elas apenas em momentos específicos que contribuem para a resolução do conflito gerado pelo desejo de exercer domínio sobre o outro. A configuração do espaço na narrativa em questão assume uma posição de relevância, já que esse será o elemento que proporcionará o contato entre as personagens em questão pertencentes a realidades sociais distintas: duas irmãs são filhas de uma empregada doméstica e mãe solteira, enquanto as demais pertencem a famílias abastadas. A divisão de classes é apresentada de forma clara no conto, fator que enfatiza a importância do espaço

ficcional, que passa a atuar como elemento organizador da narrativa. “A escola era a única

num raio de milhas. E, em consequência, todas as crianças da vizinhança, as filhas do juiz, as filhas do médico, do merceeiro, do leiteiro, foram forçadas a se misturar.” (MANSFIELD, 1994, p.57). Se não fosse pela convivência na escola o conflito entre as meninas, muito provavelmente, não aconteceria de forma concreta, permanecendo velado por uma exclusão silenciosa.

Na narrativa, a hierarquização dos indivíduos por critérios como nível de conhecimento, faixa etária ou posição social, ultrapassa o espaço da escola, permeando o convívio das crianças em outros ambientes. É o que podemos observar, também, no conto

“Felicidade Clandestina”, de Clarice Lispector. Apesar de não fazer referência explícita ao

espaço escolar, a narrativa apresenta crianças dispostas em grupos determinados não apenas pela classe social à qual pertencem, mas também pela aparência física. A relação entre as

crianças é marcada por tensões que revelam um jogo constante pelo poder que ultrapassa a perspectiva dominador-dominado.

Em “Felicidade Clandestina”, a narradora intradiegética rememora um episódio

marcante de sua infância, quando fora humilhada pela colega, filha do dono de uma livraria, que utilizava o livro As Reinações de Narizinho, objeto de seu maior desejo, para manipulá-la. A referência à leitura também constitui um elemento de ligação com o ensino formal, mesmo que este não constitua o espaço ficcional do conto.

A beleza surge como critério para agrupar as meninas, mesmo que o conflito principal entre a narradora e seu algoz se desenvolva em torno do livro, representação do poder, cuja posse está ligada ao status social. O aspecto que abre a narrativa é a descrição física daquela que, supostamente, exerce poder sobre as demais. “[F]eia, gorda e de cabelos

excessivamente crespos”, a personagem não atende ao padrão de beleza. Ela não era como

as outras crianças, pois já apresentava sinais da puberdade. A descrição de seus seios já desenvolvidos, contrastando com as outras meninas, ainda “achatadas”, contribui para compor o quadro repulsivo tecido pela narradora, aumentando a distância entre sua antagonista e as demais. A narradora se camufla entre as outras meninas, colocando a única outra personagem construída de forma individual como um ser estrangeiro, não apenas por seu comportamento ou classe social, mas por sua descrição física. Há, portanto, dois grupos de crianças: a menina rica e fisicamente repulsiva em oposição às meninas atraentes, mas com status social inferior, semelhante às personagens do conto “Cinderela” (2010) na versão dos irmãos Grimm, no qual as irmãs adotivas se utilizam do poder conferido por sua mãe, madrasta da Cinderela, para subjugarem a personagem principal, fisicamente atraente, forçando-a a realizar trabalhos domésticos.

A organização da sequência narrativa enfatiza a ideia de vilania da menina rica, caracterizando-a como uma espécie de bruxa dos contos de fadas. Já no primeiro parágrafo, a descrição revela alguém fisicamente repugnante e movida por um sentimento

perversidade. Em contrapartida, a repetição do pronome pessoal “nós” reforça a intenção da

narradora de se mostrar pertencente ao grupo socialmente aceito. Sua individualização se inicia apenas a partir do momento em que ela passa a ser alvo do sadismo daquela que, supostamente, odiava o grupo do qual era excluída.

Mas que talento tinha para a crueldade. Ela toda era pura vingança, chupando balas com barulho. Como essa menina devia nos odiar, nós que éramos imperdoavelmente bonitinhas, esguias, altinhas, de cabelos livre. Comigo exerceu com calma ferocidade o seu sadismo. Na minha ânsia de ler, eu nem notava as humilhações a que ela me submetia: continuava a implorar-lhe emprestados os livros que ela não lia.” (LISPECTOR, 1998, p.9, grifos nossos).

Apenas quando é escolhida como vítima, a narradora, que permanece sem nome, começa a adquirir uma identidade própria, distinta do grupo de meninas ao qual, até

então, afirmara pertencer. A razão para essa individualização é seu desejo pelo livro “[...]

completamente acima de (suas) posses.” (LISPECTOR, 1998, p.10). Mesmo que a dona do livro tenha sido colocada numa condição de afastamento das outras crianças, ela passa a manipular a colega apenas depois de tomar conhecimento de seu desejo de ler. O fato de possuir o exemplar não lhe conferia nenhum poder, era o desejo da outra que lhe dava uma superioridade ainda maior, da qual se tornaria consciente apenas diante da manifestação do desejo da narradora. Ao vislumbrar a possibilidade de submeter um membro do grupo que a

rejeitara, a personagem inicia o que a narradora chama de “tortura chinesa” (LISPECTOR,

1998, p.10), fazendo uma alusão às punições dolorosas e vagarosas às quais o governo chinês submetia os condenados.

A promessa do empréstimo do livro transporta a narradora a um estado de suspensão da realidade, levando-a a preencher seu dia com a esperança de alcançar seu

objeto de desejo. “[...] eu não vivia, eu nadava devagar num mar suave, as ondas me

levavam e me traziam.” (LISPECTOR, 2008, p.10). Ela vai até a casa da colega, e é jogada de volta à realidade ao receber a notícia de que ela havia emprestado o livro a outra menina.

Boquiaberta, saí devagar, mas em breve a esperança de novo me tomava toda e eu recomeçava na rua a andar pulando, que era o meu modo estranho de andar pelas ruas de Recife. Dessa vez nem caí: guiava-me a promessa do livro, o dia seguinte viria, os dias seguintes seriam mais tarde a minha vida inteira, o amor pelo mundo me esperava, andei pulando pelas ruas como sempre e não caí nenhuma vez. (LISPECTOR, 1998, p.10, grifos nossos).

Em vez de ser tomada pelo sentimento de decepção, a narradora segue o movimento ondulatório de esperança, negação da realização do desejo, e retomada da

esperança. Esse movimento torna-se uma metáfora para sua própria vida, como ela mesma percebe quando adulta. Ela, que inicialmente afirmara não atentar para as humilhações às quais era submetida, acaba por encontrar prazer nessa alternância de emoções e repete o mesmo padrão de comportamento, mesmo depois de finda a infância. Retardar a concretização de sua vontade passa a lhe proporcionar prazer. Após receber as mesmas desculpas indeterminadamente sem nunca conseguir o livro, a menina, mesmo já se admitindo ciente do jogo de tortura planejado pela filha do dono da livraria, continua a ir, dia após dia, à casa da outra, apesar de já conhecer todas as desculpas inconsistentes de seu

carrasco. “Eu já começara a adivinhar que ela me escolhera para eu sofrer, às vezes

adivinho. Mas, adivinhando mesmo, às vezes aceito: como se quem quer me fazer sofrer esteja precisando danadamente que eu sofra.” (LISPECTOR, 1998, p.11).

O jogo de tensões ultrapassa a perspectiva vítima – algoz, mostrando relações de poder muito mais complexas. A organização da narrativa opera de forma a criar uma imagem negativa da filha do dono da livraria, descrita como uma criança perversa que sentia prazer em massacrar as meninas que tinham uma condição financeira inferior. à sua Caracterizada, no parágrafo inicial da narrativa, como cruel, perversa e vingativa, a personagem só tem voz para maltratar a outra, sempre com espantosa passividade.

O plano secreto da filha do dono de livraria era tranqüilo e diabólico. No dia seguinte lá estava eu à porta de sua casa, com um sorriso e o coração batendo. Para ouvir a resposta calma: o livro ainda não estava em seu poder, que eu voltasse no dia seguinte... E assim continuou. Quanto tempo? Não sei. Ela sabia que era tempo indefinido, enquanto o fel não escorresse todo de seu corpo grosso.” (LISPECTOR, 1998, p. 10-11 grifo nosso).

Apesar da obstinação pela vingança reforçada pelo discurso da narradora, a dona do livro ocupa, também, a posição de dominada, pois é excluída do grupo por seu status social e por conta de sua aparência, que foge dos padrões de beleza vigentes. Tal exclusão demonstra como as crianças têm dificuldade em aceitar o diferente, tendendo a repeli-lo de seu convívio. O fato de ter um poder aquisitivo maior auxilia de forma a aprofundar o abismo entre ela e as outras crianças, apresentadas como um coletivo, descritas com características semelhantes, arrumadas como um grupo. Inicialmente, não há uma tensão clara entre a narradora e a filha do dono da livraria, mas entre “nós”, ou seja,

todas as outras crianças, e a última. Ainda que crianças de classe sociais diferentes frequentassem a mesma escola, havia uma distinção entre elas determinada pelas estratégias de poder articuladas em suas relações. No Brasil, é no início do século XX que ocorre uma mobilização por parte do governo para assegurar o ensino público para os pobres, mesmo que a quantidade de crianças de classes mais baixasainda não fosse tão expressiva. Priore destaca que o estado de São Paulo garantia uma quantidade de vagas limitadas ao ginásio

para os alunos pobres “das escolas primárias que mais se distinguiam durante o ano e fossem reconhecidamente pobres”(DEL PRIORE, 2008, p.359), de acordo com a lei nº 88, de 1892, artigo 21, § 2º:

haverá nos ginásios um número de lugares gratuitos, igual ao décimo do número total de alunos que pode receber o ginásio, destinados aos meninos pobres, inteligentes e laboriosos que, em concurso, se mostrarem mais habilidosos.

O acesso à educação após o ensino primário não era garantido a todos os alunos, mas apenas para os que obtivessem um bom desempenho. No conto em questão, a menina rica frequenta a mesma escola que as pobres que manifestam maior interesse pela leitura. Seu sadismo, atestado pelo discurso da narradora, é uma forma de confrontar um dos membros desse grupo que a repele. A posse do livro é o fator que lhe confere poder para manipular a outra criança, personificação de sua exclusão.

A narradora, por sua vez, passa a sentir prazer em sua tortura, admitindo aceitar o jogo de humilhações para, supostamente, proporcionar prazer a quem precisa que ela sofra assumindo uma postura masoquista. As visitas em busca da resposta já repetitiva se repetem de forma indefinida. A narradora enfatiza o prolongamento desse processo de

subordinação através da repetição da pergunta “[q]uanto tempo?”, cuja primeira resposta, “[n]ão sei” (LISPECTOR, 1998, p.10), reflete a vaguidão à qual a personagem fora submetida. A segunda resposta, “[e]u iria diariamente à sua casa, sem faltar um dia sequer.”

(LISPECTOR, 1998, p.11), enfatiza o controle que se constituíra sobre a rotina da personagem, limitando o espaço ocupado por ela e a regulamentação de seu tempo. A disciplinarização do tempo do indivíduo e o estabelecimento de gestos idênticos e repetitivos que, segundo Foucault, visa ao aumento da qualidade de desempenho dos corpos através da precisão dos movimentos, para, então utilizá-lo até sua exaustão surge no conto

como uma forma de demonstração de poder e de construção de identidade, pois é a partir dessa relação de exploração que a narradora se distingue do grupo, adquirindo características individuais, como a disposição ao sacrifício.

O gesto de se oferecer em prol do outro, tal qual a figura do cordeiro imolado do cristianismo pode ser compreendido não como um verdadeiro sacrifício, mas como uma