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Fulana de Tal. Edmilson Antunes Tavares

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Academic year: 2021

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Fulana de Tal

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Direitos autorais © 2020 Edmilson Antunes Tavares

Todos os direitos reservados

Os personagens e eventos retratados neste livro são ctícios. Qualquer semelhança com pessoas reais, vivas ou falecidas, é coincidência e não é intencional por parte do autor.

Nenhuma parte deste livro pode ser reproduzida ou armazenada em um sistema de recuperação, ou transmitida de qualquer forma ou por qualquer meio, eletrônico, mecânico, fotocópia, gravação ou

outro, sem a permissão expressa por escrito da editora.

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F

de

ulana

tal

H

oje é sexta-feira, dia da minha formatura. Eu não pre-cisava ir ao escritório, ganhei folga hoje, mas tinha um assunto pendente. Esta é a minha penúltima semana nesse escritório de contabilidade, a semana que vem termina o meu contrato. Entrei nesse escritório para estagiar, gostaram de mim e no meio deste ano me ofereceram um contrato de

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pres-tação de serviço. Foi uma benção pois pagar a faculdade não foi fácil e acho que não teria condições de participar do baile de formatura de hoje se não fosse esse contrato. No início eu queria medicina, era o sonho da minha mãe, ela falava isso em média a cada três dias, mas só foi possível pagar a faculdade de ciên-cias contábeis. Tudo bem, amo contabilidade. Comecei a gostar quando ajudava uma colega no caixa de uma loja. Eu estava no se-gundo ano do ensino médio.

Hoje seria um dos dias mais felizes da minha vida, mas tem uma ponta de tristeza que não me deixa explodir de alegria. Talvez alguém queira saber como é a minha história. Bem, ela é triste, mas vou contar.

Eu sou de família pobre, pobre mesmo, daquelas que vivem em barracos nos morros. Lá onde os garotos se lançam na rede das drogas e da violência, e as meninas engravidam cedo. Meus avós paternos tiveram três lhos, pelo menos vivos, acho que tiveram dois que morreram. O mais velho é um dos tios que não conheço, foi para o Pará ainda rapaz e não voltou até então, o do meio é o meu tio Pedro, a quem devo muito por essa forma-tura, e por último meu pai, o mais novo.

A família da minha mãe era mais numerosa. Minha avó ma-terna teve 12 lhos. Dois nasceram mortos, um morreu do “mal de sete dias”, como diziam, e o outro morreu com uns seis a sete anos, contam que ele cava atrás da casa se coçando o tempo todo, diziam que ele havia pego doença no rio. Era companheiro da minha mãe, quando ele morreu minha mãe tinha de oito para nove anos. Desses meus tios tem cinco vivos, conheço três, tia Lúcia, tia Ana e tio Joaquim. Ainda assim, Tia Lúcia e tio Joaquim já tem, ou melhor, acho que nesse mês está fazendo uns 20 anos que não vejo. Tio Pedro (irmão de mãe) e tio Aécio, até onde eu sei, um mora em São Paulo e o outro em Goiânia. Mesmo tia Ana, tem uns cinco anos que não a vejo. Possivelmente, de todos os meus parentes, só minha prima Verinha (lha de tia Ana) deve aparecer na minha formatura. Eu e ela estudamos no mesmo prédio em salas vizinhas na faculdade, somos bastante amigas.

A casa de meu avô (pai de minha mãe) era praticamente

quatro cômodos: a sala, dois quartos e a cozinha. Tinha também uma espécie de varandinha, onde cava um fogão a lenha e um tanque velho, a uns sete metros cava a casinha, ou privada, como chamávamos. A casa era num morro e viviam amontoados ali. Na cozinha também tinha um fogão a lenha, onde minha vó esquen-tava a janta, tinha uma prateleira e uma mesa. No quarto de minha vó tinha uma cama e um guarda-roupa grande, o único para todo mundo, tinha ainda um berço onde meu tio que morreu dormia e uma esteira sobre um varal no chão, onde minha mãe dormiu até seus oito anos. Todos os meus outros tios dormiam em esteiras no outro quarto e na sala, onde tinha bancos no lugar de sofás, eram bancos de madeira.

Minha mãe era muito rebelde, detestava sobretudo ouvir conselho. Começou a namorar novinha, com onze anos, dobra-ram as preocupações com ela. Mulher pobre parece que é mais fértil, engravida com uma facilidade! Aconteceu de tia Lúcia car grávida, ela tinha quatorze anos. Meu avô deu uma surra nela, fez a casa cair. Ela continuou dentro de casa uns três meses, quando o rapaz que a engravidara arranjou uma casa e levou-a. Nem sei que primo meu nasceu desse fato, sei apenas que o relacionamento, ou melhor, o “casamento” deles durou apenas nove ou dez meses, eles se separaram e ele foi embora. Um ano depois ela conhe-ceu meu tio Auro, seu atual marido. Casaram na igreja. Meu Deus! Enche-me os olhos de lágrimas quando me lembro que minha mãe sonhava em casar, ela fazia vestidos de noiva para as suas bonecas. Alguns sonhos nunca vão se realizar. Que bom que isso nunca nos impediu de sonhar.

A gravidez de minha tia piorou as coisas para minha mãe. Meu avô tornou-se muito mais rigoroso com ela. As coisas piora-ram ainda mais quando ela começou a namorar com meu pai. Meu avô dizia que meu pai era malandro. Minha mãe apanhou, cou proibida de sair à noite, mesmo assim continuou seu namoro. A essa altura só tia Ana morava dentro de casa. Minha mãe fugia para car com meu pai, saltando a janela do quarto. Meu avô desco-briu logo, ele levantava cinco e quinze, cinco e meia, ela chegou quinze para as seis. Achou que iria apanhar, mas ele apenas disse:

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― Você arranja a barriga num dia, no outro você cai fora desta casa. A partir de hoje, saia e volte a hora que você bem en-tender.

Aí é que ela “caiu na gandaia” com ele mesmo.

Claro que não demorou para acontecer o que todo mundo sabe que acontece quando a menina nova resolve sair dando por aí a torto e a direito. Quando minha mãe cou sabendo tentou não acreditar. Que castigo seria esse? Ela mal zera treze anos. Ela contou para ele e ele disse a ela que na semana iria até a casa dela pedir seu pai um tempo para conseguir algum lugar para morar. Ela falou com meu avô:

― Essa semana Valtinho vem aqui conversar com o senhor: ― Conversar o quê?

― A gente vai morar junto. Minha vó deu um grito:

― Você ainda é uma criança, menina! ― Eu estou grávida.

Minha avó levou as mãos à boca, meu avô nada disse, nem esboçou qualquer reação, em silêncio saiu pela cozinha, pegou o machado e foi cortar uns galhos secos que algum de meus tios trouxe para lenha. Isso foi no domingo à tarde, ela esperou-o a se-mana inteira. No sábado, não tendo ele aparecido, ela foi procurá-lo. Chegou na casa dele o pai estava sentado na porta, fumando um cachimbo. Ela perguntou por meu pai e meu avô (o pai de pai) respondeu:

― Valtinho foi embora quarta-feira, lá para junto do irmão dele. Como é o nome da cidade mesmo, mulher?

Minha mãe cou tão aérea que nem ouviu o que a minha vó (mãe de pai) respondeu, e nem o que meu avô disse em seguida. Tão logo ele terminou de falar ela despediu-se e foi embora. Foi pelo caminho afora sofrendo. Ela não se deitava com ele só para afrontar meu avô, ela amava-o, sentia prazer nisso. Entregar-se a ele era um gesto de amor para ela. Chegou em casa doida de von-tade de chorar. Minha vó, ao vê-la chegar, foi logo perguntando:

― Cadê o vagabundo? ― Foi embora.

Respondeu no susto. Minha vó estava no quintal, meu avô na porta da sala. Minha vó falou para ele:

― Você tem que tomar alguma providência.

― Fiz o que pude, enquanto era tempo, agora acabou. Disse meu avô, descendo a pequena escada e indo em dire-ção à rua. Minha mãe apressou-se a chegar no quarto cuja cortina de outrora havia sido substituída por uma velha porta. Chorou até a noite, depois levantou-se, tomou banho (tomava-se banho na casinha, ou privada, numa bacia) e saiu para a rua. Queria vin-gar-se de meu pai. Saiu com o primeiro que chegou nela, e transou com ele. Sinto-me um pouco constrangida em contar isso, mas a verdade é que ela se tornou uma rapariga, dessas que cam peram-bulando pelas ruas à noite e que os homens pegam e levam para o mato. Ou matel, como se diz nas cidades pequenas. Faltando três dias para eu nascer ela ainda se deitou com um cara.

Minha mãe não cou o tempo todo de gravidez na casa de meu avô, pois lá pelo sexto ou sétimo mês alguém falou com meu avô que minha mãe andava muito sem-vergonha. No fundo ele já sabia, o fato de alguém ter tido coragem de falar com ele, ou, che-gar ao ponto de alguém falar com ele, isso foi o que mais o impor-tunou. Ele expulsou-a de casa. Certamente ele já tinha em mente que ela pediria socorro a tia lúcia. Era a única saída dela. Foi o que ela fez. No dia em que ela me deu à luz tia lúcia tinha ido para roça. Ia voltar no outro dia à tarde, pois minha mãe garantiu-lhe que ainda levaria uma semana ou mais para completar-se o tempo.

E eis o meu parto. Minha mãe, que sentiu as primeiras con-trações por volta do meio dia, seguiu para o hospital por volta das seis e meia da tarde. Na portaria a moça falou que ela precisava de um acompanhante, de um responsável, e precisava preencher uma cha. Ela resolveu voltar, pensando consigo: “Eu consigo”, mas na porta do hospital veio uma contração muito forte, ela dei-tou no banco do lado de fora. Esta parte é até engraçada, dizia ela que, percebendo que a bolsa havia estourado, levantou-se, tirou a calcinha, ela que estava de vestido folgado, deitou no tapete da porta do hospital e falou:

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A moça da portaria gritou:

― Moça, você não pode dar à luz aí, não!

Um médico que estava saindo no salão de atendimento também advertiu-lhe:

― Hei menina, isso não é lugar de parir, não!

Neste instante um doido chegava na porta do hospital, ele vivia zanzando pela cidade, ele olhou para entre as pernas de minha mãe, agachando-se um pouco, minha mãe estava com as pernas voltadas para a rua e com a cabeça voltada para dentro do hospital, ele levantou-se pondo a mão na boca:

― Vi! A mulher tem uma cabeça no meio das pernas!

Resultado: minha mãe dentro do hospital e eu nasci do lado de fora.

Quando tia Lúcia chegou no outro dia levou um grande susto, lá estava eu deitadinha ao lado de minha mãe.

Nem todo lho é planejado, alguns são indesejados, alguns, como eu, são pesadas cruzes que determinados homens colocam nas costas de pobres mulheres como minha mãe. Hoje meninas cada vez mais novas dão à luz. Minha mãe deu-me à luz aos treze anos, mas tem meninas que ganham lhos aos doze anos, aos onze, e meu Deus!, já tive notícia de uma que nem tinha onze anos. Pobres crianças! Que Deus se compadeça delas, tanto das que nas-cem, quanto das que dão à luz. E vejam como somos gente, eu nasci de uma adolescente de treze anos e estou aqui, cheia de vida, planos e sonhos.

Quem havia acompanhado minha mãe até a casa de tia, carregando-me, era conhecida de minha avó paterna. Meus avós paternos já sabiam que “aquela menina” estava grávida do lho deles. Quando a dona que acompanhou minha mãe contou à minha vó, ela veio até minha mãe. Trouxe algumas coisas para mim. Meu pai deve ter cado sabendo do meu nascimento, cer-tamente cou, acho que nunca perguntei isso a ele. Meus avós maternos não vieram. Isso deve ter sido muito duro para minha mãe. Uns dias depois minha vó materna trouxe algumas coisas de minha mãe que cara lá, especicamente umas roupinhas de quando mamãe era bebê e que tinham cado guardadas, não se

sabe nem porquê. Nessa época tia Lúcia já estava casada com tio Auro, se não me é engano, pois minha mãe cou grávida de mim ela já estava nos dias de ganhar nenê. E o namoro dela com tio Auro foi coisa rápida, eles conheceram-se, namoraram, noivaram e casaram em questão de meses. Minha mãe, durante o tempo em que esteve com tia Lúcia, era a babá dela. Tio Auro trabalhava numa mercearia, tia Lúcia era empregada doméstica, minha mãe, pelos serviços de babá, recebia morada e comida. Não era injusto, minha tia amparou-a.

Eu nasci e minha mãe continuou a mesma. Deixava-me dormindo e sumia para a rua. Umas três vezes que eu acordei sozinha e quei chorando minha tia pediu para ela ir embora. Para sorte dela, e de minha tia, uma senhora que morava na zona rural quis empregá-la, pressionada ela foi. Talvez ela sossegasse lá na roça, pensaram todos. Deve ter durado uns noventa dias esse pen-samento, a mulher tinha um lho de uns quinze anos e ele estava dormindo com minha mãe. Foi a patroa descobrir e mandá-la em-bora. Sem ter para onde ir e sem querer pedir ajuda ao pai, desde que saíra de casa não tinha mais falado com meu avô, sequer o tinha visto, ela foi pedir ajuda à minha tia.

― É só uns dias, Lúcia, eu arranjo um lugar logo. Minha tia não queria, mas cou com pena de mim.

― Se não fosse essa criança você ia ter que dormir na cal-çada, ouviu bem?

A revolta maior de minha tia era que minha mãe não se consertava, se ela não estivesse tão sem-vergonha estaria na casa do meu avô tranquilamente. Cerca de uns dois dias depois minha avô paterna, que soubera o que acontecera, foi até minha mãe. Gosto de ouvir tia Lúcia contar o curto diálogo das duas, que se deu na porta da cozinha da casa dela; bem, minha avó estava na porta (havia se recusado a entrar) e minha mãe sentada numa ca-deira junto à mesa, tia Lúcia estava próxima ao fogão, fazendo café, minha vó disse à minha mãe:

― Eu vim aqui pedir essa menina para mim, por favor, deixe-me criar essa menina.

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Sempre me vem lágrimas aos olhos quando me lembro deste fato. Se minha mãe não tivesse feito nada de correto em toda a sua vida, ainda assim, esse momento eu teria guardado no peito, assim como guardo, pelo resto de minha existência. Sinto muito orgulho dela por esse dia. Não que eu não gostasse de minha vó, na verdade, dos meus avós ela era a que eu mais amava, ela era uma mulher meiga e amável, mas a beleza da decisão de minha mãe por mim é que me deixa orgulhosa dela. Parece um fato bobo, mas hoje em dia, com a multiplicação dos casos de mães que jogam seus lhos recém-nascidos nos rios, o gesto dela toca-me mais ainda.

Naquela mesma semana, num sábado, minha mãe deixou a casa de minha tia. Tinha, não muito longe da casa de tia Lúcia, um terreno da prefeitura abandonado, tinha a base da constru-ção e três paredes erguidas, estava muito sujo, dentro e fora era só mato. Minha mãe viu e cou pensando como faria para limpar aquilo, uma vez instalada ali certamente a prefeitura nem iria incomodar-se, foi à rua e conseguiu papelão e plástico, iria por pa-pelão na cobertura e na parede que faltava e forrar o plástico por cima, teria que pagar alguém para fazer isso para ela, o dinheiro que a mulher lhe pagara era pouco, precisava deixá-lo guardado para ir comprando comida para nós duas até conseguir algum em-prego, o terreno cava num morro, próximo ao lugar tinha um pé de amêndoa, debaixo dela estavam quatro adolescentes, de idade entre doze e quinze anos mais ou menos, estava folheando uma revista de mulher pelada, ela aproximou-se deles e perguntou-lhes se eles queriam ver uma mulher pelada ao vivo, na qual eles pudessem até tocar. Caso quisessem, que zessem o barraco para ela. Antes das cinco da tarde o barraco estava pronto (e ela havia-os encontrado por volta das duas horas da tarde). Então ela entrou no barraco e, bem, ela pagou-os como combinado.

Não é fácil, para quem estiver enganado, não é nada fácil contar uma coisa dessas da sua própria mãe. Ela já havia me con-tado isso, bem por alto, minha tia Lúcia é que contou com um pouco mais de detalhes, o tanto que ela me julgava capaz de ouvir.

Naquele sábado mesmo ela juntou sua trouxa e foi para o

barraco. Tio Auro ajudou-a, levando um colchão e um cobertor que minha vó paterna havia dado-me. No iniciozinho cou tudo bem, minha mãe improvisou um fogão a lenha, conseguiu duas panelas não sei como e juntava lenha e papelão e não sei mais o que nos matos e nas ruas para fazer a comida. O dinheiro que a mulher lhe dera acabou, a partir daí as coisas começaram a car muito ruins. Ela começou a passar fome. Minha mãe não era pros-tituta, não se vendia, a não ser no caso do barraco, no entanto, continuava sua vida sexual desregrada. Nas suas saídas à noite ela sempre dava a cantada num lanche, mas escolhia os caras pela capacidade de lhe pagar o lanche. Por minha causa, trazia seus ho-mens agora para dentro do seu barraco. Era triste e vergonhosa a sua situação. Dos meus tios, só na casa de tia Lúcia ela ainda ia. Devido ao tipo de vida que ela estava levando, ninguém se inte-ressava por ajudá-la, apesar da compaixão por mim, ela até que não era preguiçosa, se achasse um emprego aceitaria, mas quem empregaria uma menina de quatorze anos com uma criança de seis, sete meses nos braços?

Eu estava sendo sustentada pelo leite materno, mas minha mãe chegava a car três dias sem comer nada, além do que eu já completava oito meses, o leite dela tornou-se insuciente para mim. Eu comecei a chorar muito, com fome. Por uma ou duas vezes, quando eu comecei a chorar com fome à tarde, ela levou-me à casa de minha vó paterna e de minha tia Lúcia, e lá eles levou-me deram comida, então eu dormi bem. Determinada quarta-feira, lá pelas cinco da tarde, eu comecei a chorar. Minha mãe deu-me peito, não foi suciente, tia Lúcia e tio Auro tinham ido, junta-mente com minha vó, visitar o irmão dela, tio Pedro, ela então foi à casa de minha vó paterna. Lá chegando soube que não tinha ninguém em casa. Minha mãe voltou comigo para casa. Ela tinha feito um lanche no domingo às seis da tarde, na segunda nada comeu, na terça achou duas bananas prata na rua, comeu uma e deu a outra para mim, por volta das quatro da tarde. À noite eu havia chorado muito, mas adormeci. Naquela quarta ela cou o dia todo sem comer nada e eu chorando constantemente. Ela foi lutando para fazer-me dormir, e nada. Ela começou a

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desesperar-se, a chorar também. Lá pelas onze e meia da noite ela desistiu de fazer-me dormir, enxugou o rosto, colocou um pano na minha

ca-beça e seguiu para a casa do meu avô. Ele não tinha ido visitar meu tio, estava sozinho em casa. Pelo caminho foi ensaiando o que diria a meu avô. Chegou e entrou pelo portãozinho, aproximou-se da porta da sala. A sua mão aparentemente pesou e faltou co-ragem para bater na porta. Eu vim choramingando pelo caminho, ela veio distraindo-me, quando chegamos z menção de voltar a chorar forte, ela então me sussou e viu que não tinha outro jeito, bateu na porta. Seu pai veio atender, tinha o sono leve, apareceu na segunda batida, abriu a porta e perguntou:

― O que você quer aqui?

Ela não teve coragem de falar nada. Eu parara de chorar, com a atenção voltada para o meu avô, ela passeava os olhos no chão sem saber o que fazer. Pediu por m:

― O senhor daria alguma coisa para minha lha comer? Ela não pára de chorar com fome e por isso não consegue dormir. Qualquer besteirinha, é só para ela dormir.

Ele nada disse, acendeu a luz da sala (só tinha acendido a luz do quarto) e seguiu em direção à cozinha. A prefeitura tinha colocado energia elétrica em todas as residências habitadas pelos proprietários, ou seja, que não estavam alugadas. Quando entrava na cozinha ele falou para minha mãe.

― Vai car aí na porta?

Ela entrou. Lá no meu avô tinha uma cadeira de madeira de pôr criança à mesa. Ela era um presente do meu bisavô, que era marceneiro, à minha vó, quando ela teve o primeiro lho. Minha mãe pôs-me nela. Meu avô pegou um prato e uma única banana que tinha num cacho num canto da cozinha, descascou a banana e colocou no prato, que estava sobre a mesa, empurrou o prato na nossa direção, minha mãe pegou-o e começou a amassar a banana e alimentar-me. Meu avô pegou a casca da banana e jogou num balde velho nos pés do fogão a lenha que tinha ali na cozinha. Eu estava com tanta fome que rapidinho comi a banana, e com tanto sono que tão logo eu comi, dormi ali mesmo na cadeira. Meu avô tinha cado por um instante, depois saiu. Minha mãe estava

fa-minta, tão logo eu dormi, vendo-se só na cozinha, foi até o fogão e pegou a casca de banana que estava no balde de lixo, girou o corpo levando a casca de banana à boca, e então meu avó estava na porta da cozinha, olhando para ela, pasmo. Segundo ela, naquele ins-tante ela voltou a si, estava comendo do lixo da sua própria casa. Sentiu tanta vergonha do seu pai que começou a chorar, deixou a casca de banana cair no chão e baixou os olhos, e chorou. Meu avô abriu a porta de um velho armário na cozinha, que ele havia comprado de segunda mão, tirou um pacote de bolachas de sal que estava com menos da metade e pôs sobre a mesa. Minha mãe aproximou-se pegou o pacote de bolachas e começou a comer as bolachas, com certa voracidade. Terminou de comê-las, enxugou o rosto aproximou-se do meu avô e olhou-o nos olhos, contendo-se discontendo-se-lhe:

― O senhor foi e ainda é um homem trabalhador, que criou os lhos com honra e dignidade, pessoas – disse desviando o olhar para o lado – como o senhor não mereciam ter lhos como eu. – Depois, voltando a pôr os olhos no olhar do pai, completou – Por favor, pai, perdoe-me por eu ser sua lha.

As lágrimas transbordaram dos seus olhos, os olhos dele também se encheram d’água, mas ele virou-se rapidamente, disse enquanto se afastava em direção ao seu quarto:

― Ponha essa criança na cama, menina.

Ela enxugou as lágrimas, apanhou-me e colocou-me na cama, em seguida adormeceu, nesse dia ela mudou de vida. Sem-pre que alguém cai num buraco, e vai deslizando pelas paredes, se esse alguém não encontrar algo para rmar-se, não aceitar a ajuda de uma mão que surja para ajudá-lo, então só conseguirá parar quando chegar no fundo. Alguns olharão para o alto e desanima-rão, outros usarão o fundo para rmarem seus pés e conseguirem o impulso necessário para voltarem à tona. Foi o caso de minha mãe. Dizem que ninguém muda ninguém, e é verdade, mas sem-pre se muda por alguém. Minha mãe mudou por causa do meu avô, ele, segundo o pensamento dela, não merecia ter uma lha como era ela, então ela quis ser a lha que ele merecia ter.

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pró-xima, levantou-se, percebeu pela porta da cozinha que meu avô já se havia levantado e saído. Ele sempre levantava cedo. Foi até o fogão da varandinha, acendeu o fogo e dispôs-se a fazer o café. Meu avô chegou trazendo pães caseiros, ela estava terminando de passar o café. Sentaram-se à mesa em silêncio. Minha mãe, diante da comida, teve medo da fome. Ela havia conseguido perceber que, de certa maneira, ele queria que ela casse. No entanto, ela sabia que ele não lhe falaria isso, ela também não tinha coragem de pedir para car, então quis facilitar as coisas para ambos, teve uma brilhante ideia:

― Pai, eu não estou fazendo nada, se o senhor não se im-portar eu posso car aqui e fazer a comida para o senhor até a mamãe voltar.

Ele soergueu os ombros e fez aquela careta, típica de quem diz: “Por mim, tanto faz”. Isso representava um sim.

Durante quatro dias, contando aquela quinta, ela cou na casa do meu avô cuidando de tudo. No domingo fez um bom al-moço, a m de deixar para a janta, pois minha vó chegaria de cinco até cinco e meia da tarde. Quanto mais se aproximava a tarde mais preocupava-se com seu futuro: ela não queria sair dali. Quando minha vó chegou estranhou ao vê-la ali. Ela cou sem graça, pediu-lhe a bênção. Minha vó porém não fez qualquer co-mentário. Apesar disso, ela cou sentindo-se mal, como se fosse uma estranha. Durante o jantar, no entanto, minha vó, que estava cheia de histórias para contar a respeito da viagem, fê-la sentir-se de novo alguém da casa, mas ainda persistia seu drama: era ou não para ela ir embora?

Um pouco mais tarde, já quase à hora de ir dormir, aproxi-mou-se de meu avô que estava sozinho, sentado na porta da sala. Chegou à sua frente e perguntou-lhe, tentando mostrar-se forte:

― Pai, eu posso car?

Ele olhou para ela, franzindo o rosto:

― Quem está falando alguma coisa com você, menina? Isso signicava sim.

― Obrigado, pai, por essa segunda chance.

Ela sentiu grande vontade de beijar-lhe o rosto, como

quando era criança, cou sem jeito. Sem perceber acabou pergun-tando-lhe

― Posso dar-lhe um beijo?

Ele assustou-se, não respondeu. Era outro sim. Então ela aproximou-se e beijou-lhe o rosto. Entrou e foi dormir. Começou a pedir a Deus para ajudá-la. Como? Nem ela sabia. Ela não, mas Ele sim. Um mês e pouco depois apareceu, no início da manhã, uma mulher na casa da vizinha. Minha mãe estava no terreiro de casa e ouviu quando a mulher perguntou à vizinha se ela não sabia de uma moça que quisesse empregar-se ali na redondeza, pois al-guém lhe informara que tinha e que aquela mulher podia dar-lhe maiores informações. A vizinha de minha mãe respondeu que a moça da qual sabia já se havia empregado, tinha porém uma outra moça, bem mais nova, de uns doze anos, que estava procurando emprego. Quando a mulher falou que morava na zona rural e a em-pregada teria que ir e vir todo dia a vizinha comentou:

― Não quero desanimar a senhora mas acho que ela não vai querer, não

― A senhora pelo menos fala com ela para mim?

― Falo sim, assim que ela aparecer aqui em casa eu falo. E qual o nome da senhora?

― Fala que é dona Herotildes, a esposa do seu Vitório. Quando minha mãe ouviu que era dona Herotildes de seu Vitório lembrou-se que já havia estudado com ela. Seu Vitório ia buscá-la todo dia na escola, e geralmente na sexta-feira levava bala ou pirulito para todo mundo. Ela tinha sido a professora de minha mãe na segunda série do ensino fundamental. Minha mãe não se lembrava do rosto dela mas sabia quem era. Quando ela foi em direção ao carro minha mãe resolveu interceptá-la. No mo-mento em que ela pôs a mão na maçaneta do carro para abrir a porta minha mãe chamou-a:

― Dona Herotildes!

Ela virou-se, tirou os óculos dos olhos, minha mãe aproxi-mou-se.

― A senhora consegue lembrar-se de mim?

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lem-brança de minha mãe.

― Eu estudei com a senhora na segunda série. ― Espere um pouco, você é a menina da barata. Minha mãe cou sem graça.

― Sou eu sim, mas eu não z de propósito. Era a última aula do ano e eu queria dar uma lembrancinha para a senhora, como eu não tinha dinheiro algum para comprar nada falei para a minha mãe, ela tinha feito aqueles três bolinhos já no início da noite, disse para eu levar dois ou três para a senhora, eu peguei aqueles três e pus na vasilhinha, ela recomendou que eu deixasse a vasilha com a tampa apenas encostada, pois os bolinhos ainda estavam quentes, mas eu esqueci de fechá-la na hora de ir dor-mir, no outro dia de manhã acordei atrasada, e com pressa, apenas tampei a vasilha e sai, sem examiná-la por dentro. Eu não sabia da

barata, a senhora perdoe-me.

Foi então a hora de dona Herotildes car sem graça. Minha mãe continuou:

― Se a senhora quiser, dona Herotildes, eu estou desem-pregada e posso car com a senhora até conseguir alguém. O meu problema é que eu tenho uma lha de nove meses e não tenho com quem deixá-la.

― Esse não é exatamente o problema, o problema é que minha casa ca na zona rural e daqui lá deve dar uns três quilô-metros, e eu preciso de uma pessoa para ir e vir todo dia. Quanto à criança, eu também tenho uma, um menino, daqui a quatro dias ele faz um ano e eu gostaria de fazer um aniversário para ele. É mais por isso que eu gostaria de conseguir alguém por agora, pois sozinha posso até desistir de fazer alguma coisa.

― Quanto a ir eu dou conta.

― O aniversário eu quero fazer sábado, então ca combi-nado de você ir até domingo.

― Ótimo.

E cou combinado assim. Minha mãe cou o resto do dia eufórica, contou, na hora do almoço, aos meus avós. Eles caram felizes mas minha vó recomendou:

― Vai bem cedinho antes do sol esquentar e volta só

de-pois que o sol esfriar. Se você tivesse desmamado-a podia deixá-la aí, eu passava o olho para você.

Não, não daria trabalho algum à sua mãe ou ao seu pai, achava que eles já haviam penado muito por causa dela. E mal clareou o dia lá se foi minha mãe comigo pela estrada. Para a alegria de todo mundo eu e o lho de dona Herotildes demo-nos muito bem. Demos pouco trabalho e no nal do dia dona Herotil-des estava satisfeita. O lho de seu Vitório e dona HerotilHerotil-des era Vitor Heron, em homenagem aos pais, mais todos chamavam-no de Heron. E lá foi-se um mês. Dona Herotildes gostou dela e ela de dona Herotildes. Para minha mãe era mais que um emprego, era mudar de vida. Ela ia todo dia cedo comigo nos braços, feliz da vida. Trabalhava o dia todo sorrindo, e isso conquistou seu Vitório. Quando chegou o primeiro pagamento seu Vitório cha-mou-a para assinar sua carteira, ela receberia uma porcentagem do salário e teria a carteira assinada como recebendo um salário completo. Ela não pensou duas vezes. Hoje não sei como ele colo-cou na carteira dela, já que ela não tinha dezesseis anos ainda.

Dona Herotildes deu algumas roupas de Heron para mim, por isso minha mãe usou o salário dela apenas para comprar duas mudas de roupa para ela e uma sandália, sobrou mais da metade. Chegando em casa ela entregou a meu avô, que se recusou a acei-tar.

― O dinheiro é seu, menina, que isso?

― Não, pai, é o senhor que está pagando as minhas despe-sas, eu já comprei o que precisava e quero ajudar o senhor. Todo lho consciente que pode ajuda os pais, e agora eu estou podendo e quero ajudar o senhor. Por favor, aceite.

Outro sim sem palavras.

Depois de uns meses seu Vitório construiu uma casa pró-ximo à sede, tinha um banheiro numa varandinha, uma dispensa, uma cozinha, uma sala e dois quartos, comprou até alguns móveis e deu para minha mãe morar; cresci lá, eu e Vitor Heron crescemos juntos.

Eu não sei dizer quando o meu pai voltou, eu estava por completar seis anos. Segundo minha mãe eu vivia falando nele e

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todo dia perguntava que dia iria conhecê-lo. Apesar de tão criança cou na minha mente o recorte de um momento: eu estava no terreiro quando o vi chegar. Apesar de não saber que era ele e da pouca idade, eu não esqueço mesmo aquele dia.

Ele não voltou por mim ou por minha mãe exatamente, o que o trouxe de volta foi a morte do pai dele, meu avô paterno. Ao meu tio que foi para o Pará nem tiveram como avisar. Não havia muito o que dividir, venderam a casa do meu avô, ou melhor, tro-caram num terreno, que cou para o meu pai, a volta foi usada por tio Pedro para trocar a casa dele numa outra maior, que tinha um quarto e um banheiro separado, onde minha vó foi morar. Minha mãe levou-me no velório, passamos a noite lá, mas não camos para o enterro. Quando meu pai chegou nós já tínhamos saído.

Minha mãe nunca me contou como foi o reenlace deles, mas creio que ele ainda pensava nela, e ela ainda era apaixonada por ele. Após meu avô ter sido enterrado ele veio conversar com ela. Ela concordou que ele voltasse mas precisava da autorização de seu Vitório. Ele só tinha uma objeção:

― Se ela permite você voltar, eu não me oponho à sua volta, ou seja, a você vir morar com ela, mas se você bater nela vai ter que sair, se ela quiser ir atrás problema dela, mas aqui na minha fazenda não mora homem que bate em mulher, não.

Aquele homem podia ter lá seus defeitos, mas era traba-lhador, não demorou para seu Vitório passar a gostar dele. Eu também, foi deixando de ser aquele homem para ser o meu pai. Aí começaram os anos dourados de minha infância. O amor que cresceu entre ele e minha mãe confortava-me. Eu e ela havíamos perdoado-o por deixá-la por ocasião da gravidez. O perdão refez-nos família.

Minha mãe tinha seus afazeres do dia a dia, ela era a gover-nanta da casa, tomava conta de tudo, inclusive de Heron, no outro ano, depois da volta do meu pai, dona Herotildes pegou dois car-gos na escola e passava o dia todo fora. Meu pai trabalhava durante o dia todo na fazenda e à noite trabalhava na sua casa na rua. Ele saia da roça umas seis da tarde e só voltava onze ou mais da noite. Seu Vitório gostava de pessoas trabalhadoras, ajudou muito meu

pai, dando areia, madeira, levando-o nas casas de materiais de construção, e ainda conseguiu com um vizinho as telhas de uma casa abandonada. No outro ano eu entrei na escola juntamente com Heron. Estudamos à tarde nos dois primeiros anos, íamos com dona Herotildes quando ela voltava do almoço para a escola e voltávamos quando ela voltava para casa, os horários coinci-diam. Não posso deixar de fazer um comentário, dona Herotildes me deu do apontador à mochila. Ela era um amor comigo. Aos oito anos eu já ajudava muito a minha mãe, praticamente tomava conta da nossa casa, até comida eu já sabia fazer.

Foi no nal de ano, no mês de dezembro, eu tinha nove anos. As aulas tinham acabado, o resultado nal saiu na terça-feira, mas eu não pude ir, minha mãe passou muito mal, desde a sexta-feira anterior ela já vinha passando mal. Heron tinha ido e de lá mesmo viajou para a praia com a tia e umas primas, eu gosto de pegar todas as minhas provas e trabalhos, tenho tudo arqui-vado, dona Herotildes cou de pegar para mim algumas coisas, na quarta porém, tendo minha mãe melhorado, resolvi ir, tinha -cado um trabalho para trás. Fui de manhã para estudar com uma amiga que estava de recuperação, tinha combinado com ela, e iria esperar a professora que estava de posse do trabalho, ela só viria à tarde, só saí da escola após ter recebido o trabalho, por volta das duas e meia da tarde. Recebi também a conrmação de que havia sido aprovada. Tinha cado de almoçar na casa de meus avós ma-ternos, mas não fui, almocei na casa de minha colega, onde estava estudando, ou melhor, ajudando. Voltei direto para casa. O sol es-tava quente, mas havia chovido na noite anterior, certamente meus pais iriam plantar as sementes de melancia no lugar que seu Vitório tinha arado. Eu estava louca para ir, adorava plantar. Cer-tamente eles iriam bem mais tarde, umas quatro e meia, dava tempo de chegar, fui pensando pelo caminho em milhares de coi-sas. Lembrei do episódio da sexta, último dia de aula, eu e Heron voltávamos a pé, saímos mais cedo, no meio do caminho ele disse que queria falar-me uma coisa, mas tinha que ser no meu ouvido, pois era um segredo muito grande, eu permiti, ele então osculou-me o rosto. Eu afastei-o com força, empurrando-o para trás, sai

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correndo, ele correu atrás de mim, pedindo-me desculpas, mas não lhe dei ouvidos, quei de fato com raiva, não conversei mais com ele até sua viagem. Relembrando isso eu passava a mão em minha face, agora tinha um sorriso no rosto. Analisava que volta-ria às pazes com ele. Apesar de minha reação, pensava agora nele como meu namoradinho. Depois do meu aniversário, quando eu completasse dez anos, eu deixá-lo-ia segurar na minha mão. Vi-nha envolvida nesses pensamentos quando cheguei em casa. A casa aparentemente fechada assustou-me, será que eles teriam ido plantar a roça sem mim? A porta estava trancada, a chave no lugar de sempre. Abri a porta e entrei, parei na sala, uma tristeza muito grande veio ao meio encontro, voltei para a porta (havia entrado pela porta da sala), sentei-me nela e chorei, com a cabeça entre os joelhos. Fiquei uns vinte minutos assim, depois ergui os olhos, esperava alguém vir pela estrada, encostei por m a cabeça no portal e quei a olhar a chegada. Em pouco tempo ouvi um ruído, percebi que era um carro. Levantei, enxuguei o rosto. Era o carro do seu Vitório, dona Herotildes estava na poltronada frente. Meu pai desceu, o carro tinha quatro portas, ele pegou minha mãe nos braços e passou por mim, eu acompanhei-o com os olhos. Ele colocou-a sobre o sofá na sala, pôs suas mãos sobre o ventre e veio até mim, disse, inclinando-se um pouco em minha direção:

― Vá pegar umas ores para sua mãe.

Eu fui, chorando, eu sabia o que estava acontecendo, mas não quis perguntar, pois tinha esperança de estar errada. De tudo tenho poucas lembranças, são como ashes. Lembro de meus tios chegando, lembro-me do caixão descendo à cova. Lembro-me do retorno para casa, eu chorando no terreiro, sem saber o que seria da vida, eu chamando por ela na quina da parede, olhando para a área coberta do fundo, com certeza de criança que ela iria aparecer. Lembro ainda da minha avó paterna ter vindo buscar-me à tarde, ela dizia que eu não podia car ali, pelo buscar-menos por enquanto, insistiu com meu pai também, mas lembro-me dele cando, em pé na porta da sala. Talvez isso tenha destruído nossas vidas.

Meu pai pediu contas, também vendeu a casa que tinha

feito na cidade, não era mais capaz de viver lá, comprou uma casa em outra cidade, conseguiu um trabalho por lá, só então voltou para buscar-me. Eu não o via desde a tarde do enterro, no entanto não me abraçou ou brincou comigo, só disse para eu pegar minhas coisas. Tive um pouco de receio, não parecia meu pai. Fomos. Eu ainda chorava por minha mãe, não, eu ainda choro por minha mãe, quero dizer que àquela época eu ainda chorava muito. Lem-bro que a gente viajou após o almoço, o ônibus saía, acho que até hoje ainda é, por volta de meio dia. Paramos em outra cidade e pegamos outro ônibus. Lembro-me que quando chegamos já es-tava tarde, o sol quase entrando. A casa que meu pai havia com-prado era simples, ainda lembro com clareza de toda ela, do lado esquerdo tinha um muro rosa, a casa desse lado era toda murada, ao fundo tinha uma cerca de arame farpado, depois da cerca um verdadeiro matagal. Do lado direito tinha uma cerca de madeira, que vinha até na frente. A casa não era pintada, tinha uma sala, dois quartos com porta para a sala e um outro com porta para a cozinha, tinha a cozinha, uma pequena despensa e um banheiro com a porta para a cozinha. Era simplesinha mas podia ser con-siderada como uma pequena mansão em relação à grande maio-ria das casas da circunvizinhança. Não lembro de termos comido nada naquela noite. No outro dia meu pai trouxe uma pequena feira e eu z o almoço. Por aquela semana ele procurou outro emprego e no sábado daquela mesma semana ele conseguiu uma empreitada numa fazenda, o serviço cava próximo da cidade, ele ia a pé de manhã, levava o almoço numa marmita. Ele estava meio estranho, não era mais o mesmo pai, e no sábado depois de receber algum adiantamento, ele chegou em casa meio bêbado. E assim foi por toda a outra semana. Não conversava comigo, só o estritamente necessário. Eu estava sentindo-me tão só!

Estava ruim, péssimo, mas podia piorar, e muito. Na outra semana, que era a terceira em que estávamos morando lá, na quarta-feira, começou a pior fase da minha vida. Eu estava com um vestido que dona Herotildes me havia dado, era vermelho, com bordados, as alcinhas tinham laçadas que cavam sobre os ombros, quando eu o ganhara ele batia no meu tornozelo, agora

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ele chegava a no máximo um terço da minha coxa. Eu já pratica-mente não usava, mas depois da morte da minha mãe eu voltei a usá-lo constantemente, é que eu o havia rasgado na cerca do fundo do quintal lá da roça, e cou na minha lembrança na tarde daquele dia eu sentadinha, só de calcinha, na porta da cozinha e ela, sentada numa cadeira no terreiro, costurando o meu vestido. Meus olhos enchem-se d’água sempre que eu me lembro dessa passagem. Naquela quarta eu estava olhando o costurado feito por ela e chorando. Lá por volta das oito horas eu ouvi os pas-sos dele no terreiro da casa. Havia algo de estranho. Estranho era ele quando entrou na sala, olhou-me de cima a baixo, não era o meu pai. Havia bebido, era perceptível, ainda assim, a estranheza que me lhe era notável denunciava-o estar sendo dominado por algo além da bebida. Fiquei temerosa. Estava em pé à porta do meu quarto. Ele tirou a camisa e jogou-a no chão da sala, aos pés de uma cadeira, onde tentara a camisa jogar. Depois olhou para o meu lado, fez gesto para que eu me aproximasse. Já um pouco trêmula, aproximei-me, ele pegou-me pela mão e colocou-me em seu colo. Olhou-me como jamais o tinha feito, levou a mão numa alça do meu vestido, e depois à outra, o vestido desceu, deixando à mostra meus seios que se formavam. Gelei-me, estatizei-me, eu não era capaz ali naquela hora de mover o meu polegar. Ele tocou meus seios, primeiro com a mão, depois com os lábios, depois ele … Não, eu vou poupar-lhes desses detalhes imundos. Até porque eu não quero retorná-los à mente. Relato porém que, quando ele me penetrou, a dor foi tanta que gritei, ele mandou-me calar:

― Psiu! Quietinha.

Aquela noite foi negra. Sentei no chão, recostei na parede, apoiei o braço nos pés da cama, passei uma boa parte da noite, ou quase toda ela, ali naquele canto, chorando, implorando à minha mãe que viesse busca-me. Adormeci ali. Meu quarto não tinha porta, apenas uma cortina. Assustei-me com os passos do meu pai dentro de casa, vi sua sombra na cortina, passando de um lado para outro. Levantei-me e deitei na cama, quei quietinha. Daí há pouco ele saiu. Levantei-me, fui ao banheiro. Estava muito do-lorida. Tomei banho. Minhas lágrimas misturaram-se à água do

chuveiro, e ambas misturaram-se ao meu sangue. Derramando-se de mim deixava-me ainda mais vazia. Sai do banho, notei que a porta da cozinha estava trancada. Dei uma olhada pela casa, todas as janelas fechadas e ambas as portas trancadas, as vasilhas do café, que todo dia de manhã eu lavava no tanque do lado de fora, estavam lavadas do lado de dentro. Estava claro que não era para eu sair de casa. Fiquei o dia todo trancada. A tarde veio chegando e eu comecei a chorar. Lá pelas seis e pouca da tarde meu corpo tre-meu, eu conheci seus passos. Tentei controlar-me, mas ao ouvir a chave girar na fechadura da porta da cozinha eu corri para a cama, deitei e quei quietinha. Ouvi uma vizinha cumprimentá-lo e pe-guntá-lo:

― Cadê sua lha? Eu não a vi o dia todo. ― Ela foi morar com uma tia.

Pronto, estava sentenciada a viver trancaada ali, aquela casa seria a minha prisão. A porta fechou-se, ouvi o ruído da chave na fechadura. Seus passos em direção à sala, quei paralisada. Sua voz no diálogo com a vizinha denunciara-me que ele bebera, seus passos eram daquele homem estranho. Sentou-se na poltrona e chamou por mim. Juntei forças, não sei de onde, e fui de encon-tro à minha cruz. Enquanto acontecia lembrei-me de minha mãe, sentia-me traindo-a, não era mais o meu pai que estava ali mas eu me sentia traindo-a. A realidade mesmo é que eu estava sofrendo abuso sexual do meu pai, do meu próprio pai.

E arrastei minha cruz por mais de um ano, e o único Simão que me apareceu foi uma bíblia, dona Herotildes havia trago-a de Aparecida, durante uma viagem à cidade da padroeira do Brasil, e dado-a à minha mãe. Lendo-a fui mudando minha oração, já não pedia para morrer, eu pedia ajuda, queria continuar na vida, per-petuar minha mãe de alguma forma. No íntimo no entanto pedia a Deus para o meu pai morrer, não tinha coragem de falar, de pedir diretamente, só permitia que o pensamento passasse de leve por minha mente, sabia que Deus o ouvia, reetia que era melhor ele morrer a continuar fazendo aquilo comigo. Pensava às vezes em fugir, mas para onde? Eu não tinha coragem de contar a ninguém sobre o que estava acontecendo comigo. Além do mais as

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jane-las estavam muito bem pregadas, como eu não tinha qualquer ferramenta dentro de casa teria que tentar arrombar, e tanto as janelas como a porta da sala estavam tão bem fechadas que o mais fácil seria arrombar a porta da cozinha. Isso certamente causaria muito barulho e chamaria a atenção, certamente chamariam a polícia, iriam prendê-lo e judiar dele, depois matá-lo-iam,

lem-bro de um caso desse na escola, uma menina da oitava série foi estrupada por um colega dela, ele foi preso e uns quinze dias de-pois acharam-no morto na cela. A professora falou que judiaram muito dele antes de matá-lo. Eu queria que meu pai morresse, só isso. Não queria que ele sofresse. De alguma forma eu acreditava que não era culpa dele. Para ele, era como se não fosse eu, era a minha mãe. Durante o momento em que ele abusava de mim eu não ouvia ou dizia nada, era como se eu casse paralisada. Um dia porém eu ouvi-o balbuciar o nome da minha mãe, chamou-me pelo nome dela.

Ele sempre chegava até no máximo sete e meia da noite, era impressionante como o meu corpo tremia quando ele se apro-ximava, era o meu sinal, quando o meu corpo tremia eu apurava os ouvidos, então ouvia seus passos. Eu sempre torcia para che-gar logo, já que tinha que acontecer, que acontecesse de uma vez. Numa sexta porém ele se atrasou. Umas oito e vinte mais ou menos deitei em minha cama, já estava me perguntando o que teria acontecido. Cochilei e assustei-me com o ruído da chave na fechadura da cozinha. Atentei para os seus passos, não pareciam os mesmos passos de outrora, talvez não tivesse bebido. Ouvi-o esquentar o jantar, depois comer, lavar as vasilhas, vir para a sala. Neste instante eu virei na cama, de forma a esconder o rosto, e ngir-me dormindo. Ele veio, passou pelo meu quarto e seguiu para o dele. Fiquei quietinha, tentei escutá-lo. Omiti um outro fato atípico naquele dia, ele chegou e banhou-se antes do jantar. Ele nunca tomava banho ao chegar, não depois de estar fa-zendo aquilo comigo, ele às vezes o fazia no outro dia de manhã. Bem, naquela noite, chegando ele ao quarto fez-se silêncio na casa. Adormeci novamente. Acordei de madrugada, a luz do meu quarto acesa. No relógio eram três e dez da madrugada. Teria sido

um sonho? Fiquei alguns instantes, talvez mais de um minuto, tentando certicar-me se tinha sido sonho ou realidade, não pude fazê-lo só no pensamento, levantei-me e fui até a cozinha. Sim, era real. Voltei para o quarto e deitei, pulei em pé novamente, quase no mesmo instante, pus-me ao lado da cama, de joelhos, e rezei, por uns cinco minutos eu rezei, as lágrimas rolando do meu rosto, z aquela oração de duas palavras, repetidas ene vezes: muito obrigada! Muito obrigada! Muito obrigada! … Enxuguei o rosto e deitei novamente. Fiquei pensando que talvez ele tivesse achado outra mulher, ou talvez ele tivesse parado de beber, sem beber ele não tinha coragem de tocar em mim. Quando voltei a olhar para o relógio já eram três e quarenta. O relógio tinha sido presente de Heron quando eu zera nove anos. Tinha a forma do boné do Chaves e o retrato dele era o fundo do relógio. Engraçado é que tinha uma plaquetinha no alto do relógio escrito: “de V. Heron”, embaixo outra plaquetinha, esta com o meu nome, ao lê-las quei perguntando-me: por que o V? de repente caiu a cha, o nome dele é Vitor Heron. Como estaria ele? Fiquei a perguntar-me. Será que algum dia voltaríamos a ver-nos? Adormeci novamente.

O sábado foi igual aos demais até a tarde, até a chegada do meu pai, chegou outra vez depois das oito, tomou banho, jantou e foi dormir. Não havia bebido, eu percebi. Repeti a mesma ora-ção de palavras repetidas. Foi assim no domingo e na segunda. Na terça meu corpo tremeu involuntariamente. Apurei os ouvidos, ouvi seus passos, era o homem estranho. Na quarta de manhã ele parecia abatido. Na quarta à noite e na quinta o horror de todos os outros dias. Na sexta ele chegou antes das seis, surpreendeu-me. Não parecia ter bebido. Tomou banho, arrumou-se e saiu. Certamente ele não me tocaria naquela sexta, ele tinha mesmo arrumado outra. Era inacreditável mas eu senti tristeza ao vê-lo sair arrumado. Sentia alívio por saber que muito provavelmente ele não iria violentar-me, mas triste por vê-lo sair para encontrar com outra, por causa de minha mãe. Dei-me por conta que não queria vê-lo com outra, preferia suportar os abusos a ver outra mulher no lugar de minha mãe.

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noite de sexta. Alivio e tristeza, que mistura estranha. Pensei em juntar coragem e perguntar ao menos o nome dela. Ele chegou por volta de nove e meia, eu tive medo, perdi a coragem de fazer qual-quer pergunta, comecei a pedir que ele não me chamasse, encolhi-me sobre a cama, e rezei, pedi Deus para livrar-encolhi-me mais uma vez, ao menos mais aquela noite. Adormeci chorando. Estava muito dividida, de um lado eu queria livrar-me do suplício de toda noite ser violentada, de outro não queria ver outra mulher no lugar de minha mãe. Mas algo havia mudado. Sábado de manhã, antes de ir trabalhar ele foi ao mercado, trouxe beterraba. Minha mãe detestava beterraba, gostava de jiló e berinjela, eu era o contrário, detestava estes últimos, gostava daquela. Meu pai nunca foi exi-gente com comida, comia o que tinha. Desde que fomos morar ali, porém, nunca mais comprara beterraba, mas sempre trazia jiló e berinjela. Outra coisa é que ele foi para o trabalho, depois de dei-xar a feira em casa, e deixou a porta destrancada. No domingo ele cou em casa parte do tempo, por volta das seis da tarde tomou banho, arrumou-se e saiu, só voltou nove horas. Jantou e foi para o quarto. Visivelmente não bebera. Pela semana percebi o quanto ele estava mudado. Não conversávamos mas ele parecia muito arrependido do que vinha fazendo. Não me tocara uma única vez, comprou coisas que eu gostava e comprou também uma televi-são. Parece que eu ganhara meu pai de volta, mas não era mais a mesma coisa, eu odiava-o pelo que me zera. Agora que a porta estava cando aberta eu iria aproveitar para ir embora, iria morar com meus avós maternos. Eu iria deixar apenas um bilhete. Na sexta de manhã eu acordei com ele andando dentro de casa, ge-ralmente acordava às cinco da manhã, mesmo no domingo. De repente ele parou frente à porta do meu quarto, virei lentamente o rosto para a parede e ngi dormir. Ele entrou lentamente, eu estava de barriga para cima, a coberta estava à altura dos meus ombros, ele consertou-a, pondo-a à altura do meu queixo. Ele de-morou ali algum tempo, certamente me olhando, ouvi-o respirar fundo, como quem está à beira das lágrimas. Aquela sexta era 29 de junho, dia de São Pedro.

Não bastasse todo aquele abuso, era aquele o segundo ano

fora da escola. Durante o dia quei pensando comigo: não queria mais estudar. O gesto de meu pai naquela manhã de sexta deu-me certeza que não mais abusaria de mim, que eu teria a liberdade de voltar à escola, de retornar à minha vida normal, mas o fantasma da lembrança dos abusos estava entre ele e eu, entre eu e a vida. A porta destrancada e eu não fui sequer ao terreiro. Tive a dura certeza de que as portas trancadas e as janelas pregadas não eram exatamente as grades que me prendiam. A tarde estava fria, tomei banho, deitei em minha cama e quei lembrando o passado. Agora eu já tinha corpo de mulher, mas ainda era uma garotinha, meus pensamentos, minhas lembranças, eram coisas de criança, mas meu sofrimento era de gente adulta. Chorando adormeci. Acordei com meu pai andando dentro de casa. Ele já estava saindo. Voltou depois das nove. No sábado e no domingo ele saiu também, vol-tou em torno das nove, daí até na quinta ele cou em casa depois das seis. Só voltou a sair na sexta.

Na segunda daquela semana ele havia trago dois livros para mim. Bem, não havia dito que era para mim mas eram livros infantojuvenis e eu nunca o vi lendo, além do que deixou-os sobre uma mesinha na sala, ao lado de outros livros meus. Os livros vinham sendo a minha distração, uns que Heron me deu, outros presente de dona Herotildes, dois de minha mãe e até mesmo um de seu Vitório, que aliás eu adoro: Heide, de Carlos Heitor Cony, nenhum deles, creio eu, li menos de três vezes. Os que ele havia trago eu li um na segunda, terça e quarta, e o outro eu comecei na quarta e terminei sexta de manhã. Terminei umas dez horas da manhã. Foi outra semana sem sair de casa. Por volta das seis horas daquela primeira sexta de julho eu decidi que iria conhecer a tal mulher com a qual meu pai vinha encontrando-se, foi quando ele entrou para o banheiro para tomar seu banho, eu iria segui-lo. Procurei uma roupa para vestir, percebi que quase nenhuma me servia, eu havia crescido desde a última vez que comprei alguma coisa. Vesti uma blusa que me deixou a barriga de fora e uma calça que, apesar de ter servido na cintura, cou um tanto aper-tada nas pernas e batendo no meio da canela. Por último cobri-me com um casaco da minha mãe, pus um boné na cabeça e olhei-me

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no espelho. Confesso que ri de mim mesma. Tirei rapidamente o boné e o casaco assim que percebi meu pai saindo do banheiro. Ele não podia ver-me vestida daquela forma. Tão logo ouvi a porta fechar-se vesti-me novamente, ao invés do boné lembrei-me do gorro que tia Lúcia me dera outro dia, coloquei-o. Ouvi o ruído do velho portão e então sai.

Aquela noite parecia ser a mais fria do ano. Ao abrir a porta da cozinha espatifei-me num céu de estrelas, a boca aberta, os olhos para o alto, que lindo! Nossa casa cava num morro, lá em cima parece que o céu ca mais perto. Segui pelo lado direito, junto à cerca de madeira, segui até o portão, ele ia bem à frente. Felizmente o frio fez o favor de espantar os vizinhos da rua. Devia ser seis e meia mas poucos eram os usuários da rua, isso me preo-cupou em parte, pois eu não podia misturar-me às pessoas. Che-gou ele na descida íngreme, ao m desta uma encruzilhada, à di-reita voltava para o lado de nossa casa, à esquerda na rua de baixo paralela àquela por onde seguíamos, que era a chegada da cidade para quem vinha da rodovia, até então era a única chegada asfal-tada da cidade, por onde inclusive nós chegamos, seguindo em frente, logo após um quebra-molas, num portão amarelo à direita ca a casa onde morou o namorado de uma colega minha da facul-dade, um pouco mais à frente tinha uma entrada à esquerda para a rua de baixo. Meu pai seguiu em frente. Um pouco à frente tinha uma entrada à direita, mais à frente, uma outra à esquerda, e por m outra encruzilhada. Quem seguisse em frente entraria por uma rua de chão que passava próximo a uma quadra e chegava pela lateral esquerda de um supermercado ao centro da cidade, à direita voltava para o morro e à esquerda íamos para a rua de baixo, e foi por onde meu pai seguiu. Na rua de baixo ele virou à direita em direção à praça. Olhei para trás, certicando-me do trajeto percorrido, senti um pouco de medo de perder-me. Eu mal conhecia a cidade, apesar de um ano e meio morando nela. Ele cruzou a ponte, subiu e virou na segunda rua (eram três ruas para-lelas, todas indo para o centro, uma mais baixa, onde cava a câ-mara de vereadores, acima desta uma outra, por onde meu pai se-guiu, elas voltavam a encontrar-se em frente ao correio, e,

sepa-rada desta última por um canteiro, a terceira, os carros iam pelas de baixo e voltavam pela outra). Ele seguiu um pouco pela cal-çada pelo lado de baixo e mais à frente cruzou a rua, atravessou o canteiro e foi para a outra rua. No m do canteiro tinha um prédio onde funcionava o escritório do instituto de agropecuária do es-tado, depois dele vinha um quarteirão inteiro separando as duas ruas, as quais voltavam a “ver-se” na praça. Aí tinham lojas, casa de morada, o prédio dos correios, como já disse, uma cooperativa de crédito, o banco do Brasil, entre outros. O banco do Brasil -cava, pode-se dizer, nos fundos dos correios, ao lado do banco ti-nha um cabeleireiro, depois uma loja de roupas e depois um bar, isso tudo cava, ou creio que ainda ca, defronte à igreja matriz, ou melhor, à sua praça, já que a igreja cava a uns cinquenta, cem metros acima, meu pai passou pela calçada do banco, seguiu em frente e entrou no bar, eu segui para a outra calçada. Na esquina daquela rua que seguíamos com a que descia do lado direita da igreja havia uma farmácia, que estava aberta, passei em frente e parei atrás de um poste que cava exatamente na esquina da rua. De repente a mulher estava esperando-o no bar, reeti comigo. Daquele lado da farmácia, tanto na rua que descia da igreja como na que eu tinha vindo, tinha uns hotéis, a praça da igreja servia-lhes de estacionamento, por isso sempre tinha carros ali. Corri para entre os carros, neste instante ele saiu do bar. Ele saiu e foi em direção à praça da igreja, do lado oposto ao que eu estava. Entrei em pânico. Ora, a praça era estreita, nem era na verdade uma praça, era o estacionamento da igreja, denido pelas duas ruas que passavam pelas laterais da igreja, uma à direita e outra à esquerda, logo o estacionamento era mais largo que a igreja pouca coisa, eu já havia passado do primeiro carro, havia um outro carro estacio-nado atrás do primeiro e, depois dele, uma moto, meu pai passou atrás da moto, de maneira que cou o carro e a moto entre ele e eu, imaginei que ele caria zangado e certamente bateria em mim. Fi-quei olhando para ele, quando olhasse para mim eu chamá-lo-ia: “Pai.” E depois inventaria alguma coisa. Por incrível que pareça ele passou e nem me notou. Minhas pernas estavam bambas e meu coração disparado. Perdi a coragem de continuar seguindo-o. Ele

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seguiu em frente. Tinha um caminhão grande em frente, escorei no carro e deixei-o ir. Comecei a voltar. Já na esquina da farmácia virei-me e vi a igreja aberta, deu-me vontade de ir até lá, meu pai ainda demoraria voltar, dava tempo.

Para chegar à igreja tinha-se que subir, minhas pernas pa-reciam não querer levar-me. Entrei pela lateral direita (que ca à esquerda de quem sobe). A igreja estava cheia e isso era bom, nin-guém iria car reparando em mim. Todos estavam de pé quando entrei, alguém estava começando a reunião, dando boa noite e acolhendo, ouvi então alguém dizer o nome e agradecer pela aco-lhida. O evento daquela noite tinha toda sexta-feira, ali naquela igreja matriz, era o grupo de oração da renovação carismática ca-tólica. Naquela sexta em especial tinha vindo um pregador de fora. Ele disse que há quase um ano a visita estava programada, mas algo sempre impedia, até que chegou aquela sexta, e deu certo dele vir. Talvez seja soberba de minha parte, mas creio que Deus o tenha enviado por mim e meu pai. Era um rapaz baixo, um pouco franzino, e bonito. Depois da acolhida e apresentações ele parou, cou sério e perguntou ao povo:

― Esperem um pouco, em nome de quem estamos reuni-dos?

Uma mulher perto dele levantou a voz e começou a can-tar: “reunidos em nome do Pai …” e todos a acompanharam: “… reunidos em nome do Filho, reunidos em nome do Espirito Santo, amém. A tristeza lá fora deixei, a alegria aqui dentro encontrei …”, e cantou-se outra vez, e mais uma vez, e na quarta vez eu também cantei. E não era porque todos estavam cantando, eu também me sentia contagiada. Havia um clima agradável ali e eu senti-me envolvida por ele, e de fato eu havia encontrado a ale-gria ali e deixado a tristeza do lado de fora. Nesse momento o pregador mandou que sentássemos, eu rapidamente obedeci, sen-tando-me num banco ali da lateral. Ele então começou:

― Eu liguei para a coordenadora do grupo de oração de vocês ontem à noite para saber qual Palavra a oração tinha indi-cado para a noite de hoje. O combinado era d’eu ligar na terça-feira para saber a Palavra, mas no meu coração é como se ela não

estivesse decidida. E agora, eu sinto uma grande vontade de ler para vocês a parábola do lho pródigo. E não vou resistir a Deus, não, vou proclamar para vocês o santo Evangelho do nosso Se-nhor Jesus Cristo segundo Lucas.

As pessoas levantaram-se, mas eu continuei sentada. Ao longo da parábola emocionei-me, e antes do término já chorava. Quando ele falou, ou melhor dizendo, proclamava a parte em que o lho desejou comer da lavagem dos porcos, lembrei-me da minha mãe, levando à boca a casca de banana do lixo da casa do meu avô. Quando ele terminou de falar cantaram a música ‘Abraço de Pai’. Sinceramente eu não sei de quem é essa música, quem a gravou, garanto porém que ela é linda. Durante toda ela eu chorei. Eles foram abaixando o tom da voz e as pessoas foram sentando-se, fui controlando-me até cessar o choro. Mais algumas coisas: orações, reexões, músicas alegres, brincadeiras, e decidi que era hora de voltar, aquilo parece que não acabava nunca e eu precisava estar em casa antes do meu pai. Olhei para os lados e quei sem jeito de levantar e sair, então resolvi aguardar que todos se levantassem para eu ir embora. Naquele momento o pre-gador, após um pouco de silêncio, começou a falar pausadamente: ― Eu sinto em meu coração que tem uma pessoa com o coração muito machucado aqui nesta noite … talvez um pai, um lho, um irmão, amigo … Você, meu irmão, minha irmã, que ma-goou tanto esse alguém que você tanto ama, venha aqui para po-dermos rezar por você, pedir a Deus que essa pessoa perdoe você.

Um pouco e levantou uma senhora, ela foi para onde es-tava o pregador, e depois foi mais um, e mais um, e mais outro, e já devia ter entre quinze e vinte pessoas lá. Por último levantou um homem, ele estava lá do outro lado, sentado na ponta de um banco próximo à primeira porta da lateral daquele lado (eu tinha entrado pela porta lateral e ido para o fundo, cerca de três ban-cos atrás, de forma que, em relação ao altar, ele estava em minha frente). Quando ele se levantou eu assustei-me, apesar dele estar do outro lado da igreja e da iluminação cá atrás estar frágil eu o reconheci, era o meu pai. O que senti na hora não lembro, recordo-me d’eu entendendo o seu comportarecordo-mento recente.

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Todos ajoelharam-se diante o altar. O pregador pediu ao meu pai que se ajoelhasse no segundo degrau da escada frente ao altar. O pregador pediu que todos da igreja se ajoelhassem e esten-dessem a mão em direção ao altar, e pedissem a Deus por aqueles que lá estavam, para serem perdoados por Deus e por aqueles a quem ofenderam. Findada a oração as pessoas foram sentando-se, inclusive eu, os que estavam lá na frente o pregador foi tocando na cabeça de cada um deles e despedindo-os, cou meu pai por úl-timo. Ele aproximou-se de meu pai e perguntou:

― O senhor deseja falar o que houve?

Ele balançou a cabeça que não. O pregador insistiu: ― O senhor está buscando aqui o perdão de sua esposa? Ele balançou a cabeça de novo, dizendo que não. Disse: ― Minha lha.

Continuou cabisbaixo, o pregador prosseguiu:

― Eu sinto em mim que a mãe do céu está tocando no co-ração de sua lha, e ela, que é nossa intercessora junto a seu Santo Filho, está pedindo a Ele agora para curar o coração de sua lha, para dar a ela forças para perdoá-lo.

Começaram a cantar uma música mariana, não me lembro qual, lembro-me de ter sentido algo estranho, aquilo tocou-me, mexeu comigo, então “autorizei-me” a pensar em perdoar. A es-perança de que tudo voltasse ao normal aqueceu-me. Ajoelhei-me, como z tantas outras vezes, e comecei a rezar: “Jesus, ajude-me a perdoar”. Fui repetindo essa oração até o m da música. Meu pai retornou ao seu lugar, eu acompanhei-o com os olhos. A von-tade de perdoá-lo foi ganhando espaço, a mágoa, o ressentimento, foram perdendo terreno. O pregador voltou a falar:

― A palavra perdão está vindo muito forte para mim. Uma vontade enorme de pedir para vocês se perdoarem. Paulo aconse-lha-nos em uma de suas cartas: perdoem-se mutuamente. O pró-prio Jesus, na oração que nos ensinou, exorta-nos a isso: perdoai-nos os perdoai-nossos pecados assim como perdoamos a quem perdoai-nos tem ofendido. Então saia do seu lugar meu irmão, minha irmã, e vá até aquela pessoa que, tendo magoado você, torna-se em Jesus Cristo digna do seu perdão.

Vi meu pai, nesse instante, olhar de súbito para trás, como se esperasse eu entrar pela porta da igreja, claramente com a alma em pedaços voltou a olhar para o chão onde estavam os seus pés. Enquanto cantava uma canção as pessoas foram saindo dos seus lugares, abraçando-se em perdão, talvez verdadeiro, talvez não, mas boa parte das pessoas que lá estavam procuraram alguém ou foram procuradas. A vontade de ir até meu pai e abraçá-lo era grande, a coragem faltava. Saí do meu lugar e fui para o fundo da igreja do lado oposto, quei atrás do meu pai. A música parou, quei parada no fundo da igreja. Não, eu não podia perdoá-lo, sentia nojo dele, sai pela porta do fundo da igreja, caminhei ra-pidamente em direção à nossa casa. Meu pai havia morrido para mim. Confesso que lá na igreja alguma força misteriosa tocou em mim, moveu-me no sentido do perdão. E quanto ao que o prega-dor dissera, parecia conhecer nossa história, saber que eu e meu pai estávamos ali. Talvez ele tenha chutado, anal de contas em meio à tanta gente devia ter alguém que ferira alguém. Melhor mesmo era não julgar. Mal cheguei em casa desabei em lágrimas sobre minha cama, acordei no outro dia de manhã.

Despertei ao nascer do sol. Estava de barriga para cima, fazia frio. O sol entrava pelas frestas do telhado.: “Vou para casa de vó”, balbuciei. Referia-me à casa de minha vó paterna. O problema é que ela estava morando na casa de tio Pedro, mas tudo bem, acho que ela iria querer-me ainda assim. O primeiro pensamento foi fugir, ou seja, sair sem que meu pai soubesse, ele certamente estava na rua comprando alguma coisa, iria voltar, tomar café e ir para o trabalho. Seria a deixa para eu partir. No entanto eu não tinha dinheiro, não era nem um pouco prudente sair sem rumo, melhor era arriscar pedir. Levantei-me, fui ao banheiro e quando estava saindo ele chegou. Disse-lhe sem reetir:

― Quero ir para a casa da vovó, quero car uns dias com ela lá na casa de tio Pedro.

Não sei como reagiu, não estava olhando para ele, sai da sua presença indo em direção ao meu quarto sem esperar qual-quer resposta. Voltei-me para trás na porta do quarto e comple-tei:

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― Se não puder levar-me eu consigo ir sozinha.

Fui para o meu quarto. Uma meia hora depois ele falou da sala:

― Vamos meio dia.

Fiquei ansiosa. Arrumei minhas coisas todas em uma mo-chila de escola e uma velha sacola. Por volta das dez e meia já estava com tudo pronto, inclusive o almoço. Fui tomar banho, estava terminando quando ele chegou. Enquanto ele se banhava eu almocei. Ele saiu do banho e foi almoçar, quando terminou foi arrumar suas coisas e eu fui arrumar a cozinha. Já quase meio dia saímos. Íamos pegar o ônibus no posto de gasolina da saída, que cava perto de casa. Coloquei a mochila nas costas e sai quase que arrastando a sacola. Ele trancou a casa e alcançou-me já saindo para a rua. Ele pegou minha sacola e eu não me opus. Em poucos minutos o ônibus chegou, subi primeiro, a primeira poltrona era única e estava vazia, sentei-me nela. Não queria ir do lado dele. Ele foi sentar-se mais atrás, o ônibus estava vazio. O trocador che-gou perguntando para onde eu ia, respondi, ele começou a preen-cher o bilhete de passagem, meu pai anunciou-lhe lá de trás:

― Ela está comigo, trocador.

Ele entregou-me a passagem e foi para trás. Chegamos na outra cidade e descemos na segunda vez que o ônibus parou, ca-minhamos um bom pedaço, iríamos ter que esperar um bocado até o outro ônibus passar, para nossa sorte não camos nem meia hora, passou um conhecido de meu pai e deu-nos carona. Sentei-me atrás e ele na frente, o hoSentei-mem estava sozinho. Ele deixou-nos no centro de nossa cidade. Descemos e começamos a caminhar, não andamos dois minutos e vi meu avô, gritei-o acenando, ele es-tava do outro lado da rua:

― Vovô!

Ele parou, corri em sua direção, ele pareceu-me um conhe-cido numa multidão de desconheconhe-cidos. Pedi-lhe a bênção e abra-cei-o. Ele sorriu e disse-me que eu havia crescido. Chamou-me para acompanhá-lo. Resolvi ir, disse:

― Eu vou sim, amanhã eu vou para a casa de tio Pedro. Meu pai não fez objeção, entregou minha sacola ao meu

avô e seguiu sozinho. Não o vi mais naquele nal de semana, quando cheguei na casa de tio Pedro no domingo ele já havia ido embora de volta. Uma das primeiras coisas que tio Pedro me per-guntou foi:

― Menina, por que você saiu da escola?

Bem, eu não podia contar a verdade inteira, então contei a última verdade:

― Estou tão desanimada com a vida, tio.

Ele consolou-me, disse que era normal o desânimo mas não era normal ninguém fazer nada para ajudar-me. Ele queria que eu voltasse para a escola ainda aquele ano.

― Uma prima de sua tia pediu-nos para conseguir alguém, pode ser uma mocinha em idade escolar, se você quiser ir eu con-verso com seu pai, ela é uma pessoa maravilhosa.

― Será que ela vai gostar de mim, tio? ― Por que ela não iria gostar?

Meus olhos brilharam, era hora de voltar para a vida. Tio Pedro fez tudo. Pegou meu histórico na escola e até comprou material escolar para mim. Não foi possível matricular-me numa escola pública, matricularam-matricular-me numa escola privada, com aquele jeitinho brasileiro. Todo o restante do mês de julho quei estudando, tinha ido na casa de tia Lúcia e pego o caderno de minha prima, a menina de tia que tinha quase a mesma idade que eu, da qual minha mãe tinha sido babá. Não vi tia Lúcia, es-tava para a roça. Acabei nem me encontrando com ela. Parti na úl-tima semana de julho.

Tio Pedro tinha especial interesse que eu fosse, sua única lha, Elisângela, tinha sido transferida para uma escola de lá, ela estava concluindo o ensino fundamental naquele ano, tinha quinze anos. A intenção dela era matricular-se num colégio par-ticular para fazer o ensino médio, um ensino médio voltado para o vestibular, e no m do ensino médio tentar ingressar na uni-versidade federal. Haviam conseguido para ela emprego em uma indústria têxtil, que abrira vagas para menores, do sexo femi-nino, a partir dos quatorze anos, que estivessem estudando, após completarem dezoito anos poderiam tornar-se funcionárias com

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carteira assinada e tudo. Mesmo sendo na condição de estagiárias até lá o salário era bom. Lembro-me de ter cado deprimida, sen-tindo-me sozinha e abandonada, será que se eu tivesse quatorze anos alguém se interessaria em conseguir uma vaga para mim? Chorei de tristeza, saudade da minha família, de minha mãe já fa-lecida, do pai que eu tinha.

No dia de ir embora tio Pedro conversou comigo, explicou que não tinha condições de pagar a escola particular para mim. Eu estudaria o mês de agosto na escola particular e no mês seguinte eu seria transferida para uma escola pública. Ele também

lem-brou-me que eu estava virando mocinha, tinha que tomar certos cuidados. Teve comigo aquela conversa que, bem, meu pai teria. E dessa forma aconteceu. Estudei muito aquele ano, na escola par-ticular eu havia feito uma prova, na verdade uma prova para cada matéria, no valor do semestre anterior, o resultado foi péssimo, não consegui a metade em nenhuma das provas. Não consegui re-cuperar as notas, fui reprovada.

Ser reprovada, tudo bem, pois, sendo sincera em relação a isso, eu nem acreditava muito que conseguiria, apenas sonhava, mas ser criticada por isso eu não esperava. Ora, todo mundo sabia da minha situação, ou pelo menos de parte dela, sabiam que ser aprovada era algo excepcional, uma façanha, no entanto zeram-me perceber que zeram-melhor era eu desistir “desse negócio de escola.” Não me deixei abater. No outro ano, ajudada, confesso, pelo fato de ter visto boa parte da matéria no ano anterior, conse-gui minha aprovação no terceiro bimestre, com exceção de uma matéria. E não foi nem português nem matemática, foi história, pois detesto história. Essa volta por cima foi crucial para minha autoestima. Acho que a força veio de minha mãe, digo essa força para erguer a cabeça e continuar, mesmo em direção a um futuro não grandioso, estando em meio a um mar de espinhos. Recebi muitos elogios pelo feito.

O inevitável acabou acontecendo, eu atrai a atenção dos homens. Eu era bonita, bem, ainda dizem que sou, mas naquela época eu ainda me achava mais. Na oitava série zeram um con-curso de beleza, numa brincadeira, se não me falha a memória

eram sessenta e uma meninas nas três oitavas do matutino, e eu quei em terceiro lugar. No outro dia a professora de língua es-trangeira procurou-me, disse-me que eu fora injustiçada, que eu era a menina mais bonita das oitavas, e olhe lá se não do colégio inteiro, o meu único problema era não saber vestir-me direito. Fi-nalizou dizendo:

― O que sua mãe faz da vida que não a ajuda a arrumar-se, ou ao menos a orienta?

Veio repentinamente em minha mente a imagem de minha mãe arrumando-me para a escola, um dia especial em que ela terminou de arrumar-me e depois, olhando para mim, disse-me:

― Se você não fosse minha lha eu iria sentir tanta inveja da sua mãe!

Tal lembrança atingiu-me tão violentamente que meus olhos se encheram d’água, não pude evitar que as lágrimas se der-ramassem por meu rosto afora, minha professora cou descon-certada, olhei para ela e falei-lhe:

― Ela morreu.

Percebendo o estado dela disse, enxugando o rosto: ― Já faz algum tempo.

Era fato. Eu vestia-me mal, não penteava os cabelos. Quando digo vestir mal rero-me às combinações, pois o que dona Amanda, a mulher para a qual eu trabalhava, pagava-me era o suciente para eu comprar roupas, além do que, minha vó paterna havia mandado-me duas calças e, não me recordo bem, três ou quatro blusas. O meu jeito de vestir e arrumar, ou desar-rumar-me, era para manter os meninos o mais desinteressados possível. Ainda assim apareceram muitos candidatos. Apesar da insistência, até o nal da oitava eu me safei. No início do outro ano quando ingressei no primeiro ano do ensino médio, eu era a única da turma que ainda não tinha cado com ninguém, come-çaram chamar-me de “a encalhada”. Não me importava, fazia de conta que nem era comigo. Ao voltar das férias do meio do ano percebi que minhas duas melhores amigas se afastaram de mim. Elas já vinham agindo um pouco estranho e nas férias não me

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