• Nenhum resultado encontrado

De origens a ocasos: a crítica literária de Sérgio Buarque de Holanda na década de 1920

N/A
N/A
Protected

Academic year: 2021

Share "De origens a ocasos: a crítica literária de Sérgio Buarque de Holanda na década de 1920"

Copied!
140
0
0

Texto

(1)1. UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS DEPARTAMENTO DE TEORIA LITERÁRIA E LITERATURA COMPARADA. RAFAEL LOCHE BARBOSA. De origens a ocasos: a crítica literária de Sérgio Buarque de Holanda na década de 1920. São Paulo 2018.

(2) 2. RAFAEL LOCHE BARBOSA. De origens a ocasos: a crítica literária de Sérgio Buarque de Holanda na década de 1920. Tese apresentada ao programa de pósgraduação do Departamento de Teoria Literária e Literatura Comparada da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo como requisito para obtenção do título de Doutor em Letras. Orientadora: Drª Ivone Daré Rabello. Versão original. São Paulo 2018.

(3) Autorizo a reprodução e divulgação total ou parcial deste trabalho, por qualquer meio convencional ou eletrônico, para fins de estudo e pesquisa, desde que citada a fonte.. Catalogação na Publicação Serviço de Biblioteca e Documentação Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo. B136o. Barbosa, Rafael Loche De origens a ocasos: a crítica literária de Sérgio Buarque de Holanda na década de 1920 / Rafael Loche Barbosa ; orientadora Ivone Daré Rabello. - São Paulo, 2018. 140 f. Tese (Doutorado)- Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo. Departamento de Teoria Literária e Literatura Comparada. Área de concentração: Teoria Literária e Literatura Comparada. 1. Sérgio Buarque de Holanda. 2. Tradição. 3. Modernismo. 4. Futurismo. 5. Ruptura. I. Rabello, Ivone Daré, orient. II. Título..

(4) 4. BARBOSA, Rafael Loche. De origens a ocasos: a crítica literária de Sérgio Buarque de Holanda na década de 1920. Tese (Doutorado) apresentada à Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo para obtenção do título de Doutor em Letras.. Aprovado em:. Banca Examinadora. Prof. Dr. _____________________________________ Instituição: ______________________ Julgamento:__________________________________ Assinatura:______________________. Prof. Dr. _____________________________________ Instituição: ______________________ Julgamento:__________________________________ Assinatura:______________________. Prof. Dr. _____________________________________ Instituição: ______________________ Julgamento: __________________________________ Assinatura:______________________. Prof. Dr. _____________________________________ Instituição: ______________________ Julgamento: __________________________________ Assinatura:______________________.

(5) 5 RESUMO. BARBOSA, Rafael Loche. De origens a ocasos: a crítica literária de Sérgio Buarque de Holanda na década de 1920.2018. 140f. Tese (Doutorado) – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2018.. A presente tese de doutoramento intenta perscrutar a trajetória crítico-literária de Sérgio Buarque de Holanda pela segunda década do século XX. Partindo da análise de seu primeiro ensaio crítico publicado – “Originalidade Literária” – este trabalho passa por diversos momentos da formação buarqueana. Analisa-se como o desenvolvimento acelerado das capitais paulista e carioca refletiu decisivamente no processo de formação do jovem crítico, bem como de que forma ele influenciou a vida cultural dessas cidades. Pondera-se a utilização das formas ideológicas de expressão por Sérgio, utilização esta que só seria atenuada com o confrontamento direto do crítico junto ao peso da tradição do fin de siècle. Observa-se de perto a assimilação de Sérgio Buarque da vanguarda futurista que chegava no Brasil e todo o seu esforço por uma espécie de “ressignificação teórica”, a fim de melhor compreender o processo que se dava em nossos meios culturais. Acompanha-se o contato do jovem autor junto às agitações do Modernismo nascente e, mais tarde, a própria atuação de Sérgio como integrante desse processo, em militância e luta, além da fundação da revista Estética, e de se tornar o representante da revista Klaxon no Rio de Janeiro. E, em momento final, observa-se o que chamamos de ocaso do crítico modernista, que após publicação de ensaio denominado “O Lado oposto e outros lados”, encontra-se em meio a tantas desavenças e ressentimentos por parte de seus correligionários de movimento, que, logo à frente, decide tudo abandonar e manter-se em exílio voluntário.. Palavras-chave: Sérgio Buarque de Holanda. Tradição. Modernismo. Futurismo. Ruptura..

(6) 6 ABSTRACT. BARBOSA, Rafael Loche. From beginning to end: a literary critic of Sergio buarque de Holanda in the 1920s .2018. 140f. Tese (Doutorado) – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2018.. This doctoral thesis attempts to examine the critical-literary trajectory of Sérgio Buarque de Holanda in the second decade of the twentieth century. Starting from the analysis of his first published critical essay - "Literary Originality" - this work goes through several moments of the buarqueana formation. It analyses how the accelerated development of the capitals of São Paulo and Rio de Janeiro reflected decisively on the process of formation of the young critic, as well as how he influenced the cultural life of these cities. The use of the ideological forms of expression by Sérgio is considered, a use that would only be attenuated with the direct confrontation of the critic next to the weight of the tradition of the fin de siècle. It also closely observes the assimilation of Sérgio Buarque to the futuristic vanguard that arrived in Brazil and all his efforts through a sort of "theoretical re-signification", in order to better understand the process that was given in our cultural means. The young author's contact with the upheavals of nascent Modernism is also observed and, later, Sergio's own acts as a member of this process, in militancy and struggle, as well as the foundation of the magazine Aesthetics, and becoming the representative of Klaxon magazine in Rio de Janeiro. Finally a close observation is made of what is known as the sunset of the modernist critic, who, after an essay publication called "The Opposite Side and Other Sides", found himself amidst so many quarrels and resentments on the part of his movement co-religionists , that soon afterwards he decided to abandon everything and remained in voluntary exile.. Keywords: Sérgio Buarque de Holanda. Tradition. Modernism. Futurism. Rupture..

(7) 7. SUMÁRIO. Introdução .................................................................................................... 8 Capítulo 1: Originalidade Literária - irrealidades, fecundidades e imbricações................................................................................................. 11 Capítulo 2: Instabilidades - Circunstâncias e Rabugices ...................... 38 Capítulo 3: Uma unidade particular e presentificadora ....................... 70 Capítulo 4: O passadismo morreu mesmo/ virada modernista .......... 103 Capítulo 5: Outros lados – a ruptura .................................................... 120 Conclusão ................................................................................................. 128 Referências ............................................................................................... 131.

(8) 8. Introdução. Reconhecido como um dos maiores intérpretes do Brasil na atualidade, Sérgio Buarque de Holanda desenvolveu carreira sólida nos terrenos da interpretação social, da história e da crítica literária, constituindo-se, hoje, como um cânone da nossa inteligência. Embora o reconhecimento como intelectual tenha gerado inúmeros estudos sobre sua carreira e obra, a maioria destes mesmos estudos volve seu interesse para o Sérgio maduro, principalmente para o autor que se consagrou após a publicação de Raízes do Brasil, em 1936. O interesse do presente trabalho é justamente perscrutar a trajetória crítica de formação do jovem Sérgio Buarque de Holanda, principalmente a partir de seus primeiros textos de relevo, na segunda metade do século XX, certos de que tal interesse possa auxiliar mesmo na interpretação do crítico da maturidade, bem como ajudar a compreender os processos variados que se deram nos anos de 1920 - como a Semana de Arte Moderna de 1922 - através das lentes críticas do jovem intelectual. É nosso desejo que o próprio texto deste trabalho fale por si mesmo, ao denotar o percurso formativo do jovem crítico em seus momentos mais decisivos, em tropeços e conquistas e, por isso, faremos aqui apenas uma breve exposição daquilo que virá a ser tratado. Iniciamos nosso percurso pela primeira publicação de Sérgio Buarque de Holanda. Aos então 18 anos, o autor lança seu artigo “Originalidade Literária”, em que versa sobre as diferentes formas de colonização das Américas, a portuguesa e a espanhola, traçando uma espécie de relação que visava explicar o desenvolvimento cultural em nosso país e na América Latina, pressupondo a necessidade premente do desenvolvimento brasileiro por uma literatura autenticamente nacional. Sérgio perpassa grande parte de nossa historiografia crítico-literária a fim de ressaltar o fato de que somente a partir da emancipação cultural poderíamos encontrar a originalidade literária em nossas letras. Em nosso segundo capítulo, denominado Intabilidades: circunstâncias e rabugices, buscamos mostrar o processo de desenvolvimento acelerado que marcou as.

(9) 9. capitais paulista e carioca, cidades estas por onde Sérgio Buarque passaria. Demonstramos o profundo processo de instabilidades sociais que guiou o desenvolvimento dessas cidades – sob o signo do progresso – e como tal processo interferiu de alguma forma na formação crítica de nosso autor, bem como de que modo Sérgio contribuiu para o desenvolvimento cultural dessas capitais. Analisamos ainda diversos artigos formativos de Sérgio, identificando tendências por vezes um tanto quanto questionáveis, e outras que anunciavam um novo tempo crítico para o autor, como as presentes no texto “Rabugices de velho”, que selecionamos para análise mais detida. Em. nosso. terceiro. capítulo,. intitulado. Uma. unidade. particular. e. presentificadora, interessou-nos a percepção da relação do jovem crítico com as vanguardas que chegavam no solo brasileiro, principalmente com a vanguarda futurista. Após a análise de três ensaios, “O Gênio do Século”, “Guilherme de Almeida” e “O Futurismo Paulista”, identificamos uma interessante unidade entre os textos, que prezavam por trazer detida análise do autor sobre o futurismo italiano, mas, principalmente, buscavam desenvolver uma espécie de ressignificação teórica da vanguarda e também compreender o reajustamento do movimento marinettiano junto às camadas culturais brasileiras. À frente, buscamos perceber como se deu a relação de Sérgio com o modernismo que se agitava em São Paulo. Ainda vinculado à ressignificação que fizera acerca do futurismo, Sérgio tem decisivo momento a partir do travar de relações com Guilherme de Almeida, Mário e Oswald de Andrade, em 1921. A partir daí, já fixa residência no Rio de Janeiro - saindo de São Paulo - como representante da Klaxon em terras cariocas. Ao identificar naquelas ideias revolucionárias dos jovens de São Paulo o ecoar de suas próprias aspirações intelectuais, Sérgio se engaja fortemente no movimento, exercendo intensa militância a partir de inúmeras publicações. Agora, acontecia a “virada modernista” em Sérgio Buarque de Holanda. Em nosso último e breve capítulo intentamos demonstrar que após a relação intensa de Sérgio Buarque com o Modernismo, e após o autor relevar o tom em defesa de seus correligionários e da própria causa, em si, Sérgio partia para um momento de ruptura para com aqueles que antes eram seus referenciais dentro do movimento. Com a publicação de “O Lado Oposto e Outros Lados”, o autor eleva o tom e denuncia, no seio do próprio movimento, os erros que, segundo seu juízo, estavam desvirtuando a proposta modernista brasileira. Era um período em que o Modernismo entrava em uma.

(10) 10. profunda crise, e Sérgio elevou o tom e, sem “diplomacias nocivas”, fez-se ecoar. Os resultados desse processo de ruptura com o movimento modernista calaram intensamente no jovem crítico, que após sentir-se perplexo e alvo de inúmeros ressentimentos, retirou-se para exílio voluntário no Espírito Santo. Assim, apresentamos o “esqueleto” de nossa tese. Como dissemos no princípio deste texto, esperamos que ele possa falar sobre si mesmo..

(11) 11. Capítulo 1: Originalidade Literária - irrealidades, fecundidades e imbricações. “Um estágio fundamental na superação da dependência é a capacidade de produzir obras de primeira ordem, influenciadas, não por modelos estrangeiros imediatos, mas por exemplos nacionais anteriores. Isto significa o estabelecimento do que se poderia chamar um pouco mecanicamente de causalidade interna, que torna inclusive mais fecundos os empréstimos tomados às outras culturas” Antonio Candido1. Intitular de “Originalidade Literária” o ensaio que abre as portas da própria estreia nos meios intelectuais de determinada época é marcante e sugestivo. Além das atribuições corriqueiras que cabem à titulação de um texto, a expressão escolhida por Sérgio Buarque de Holanda designa um outro viés: uma espécie de “prestação de contas” com a crítica literária que se formava a partir da tradição romântica até a crítica do início do século XX. O pressuposto crítico da originalidade literária é antigo, mas não um mote ultrapassado na formação da literatura brasileira, tal como a crítica literária a compreende desde o romantismo. Embora bem admitida a questão na crítica do século XIX até meados dos anos 1950, ela não deixa de ter apresentado seu aspecto controverso. Controverso devido ao caráter singular de nossa formação, que, por um lado, identificava os aspectos de nossas manifestações literárias que se inspiravam diretamente na tradição europeia e, por outro, buscava a superação da dependência. 1. CANDIDO, Antonio. Literatura e Subdesenvolvimento. In: A Educação pela Noite e Outros Ensaios. São Paulo: Ática, 1989, p. 153..

(12) 12. perante os mesmos padrões de influência. O problema estava traçado na largada de nossa constituição enquanto nação. A dependência, a influência e a herança culturais são fatores indeléveis em nossa formação. Assim sendo, e reconhecida a especificidade de nossa realidade e também a nossa necessidade de pertencimento ao concerto das nações, tomou-se ciência de uma noção erigida desde a nossa crítica romântica: a necessidade da afirmação de uma literatura nacional. No entanto, para a existência daquilo que se convencionou literatura, certas noções como a autonomia em relação aos padrões de cultura europeus e o estilo e temas de expressão próprios se davam como imprescindíveis. Para tanto, o sincretismo dos povos e das línguas, a exuberância do meio e das raças locais, bem como o clima dos trópicos, se tornaram motes de novas formas e temas à literatura que se intentava no solo brasileiro. Mas de que forma pode-se pensar em uma relação de autonomia cultural para a afirmação de uma literatura nacional diante de uma sociedade considerada desprovida de estilo ou tradição segundo um modelo normativo de cultura e civilização? O fator da originalidade literária vem ao encontro de tal questão. É notoriamente falso, por um lado, mas fecundo, por outro. Se pensada grosseiramente como elemento de inovação, a partir do qual outros modelos seriam inspirados, a ideia da originalidade dificilmente seria verificada, pelo fato de estar intrinsecamente aliada à sua contraparte – a tradição literária europeia – com seus modelos e raízes tradicionais da inteligência ocidental. No entanto, a ideia da originalidade é fecunda, se pensada em detrimento dos modelos formais utilizados, em relação a seu caráter “originário”, o que iria ao encontro do fértil terreno no Novo Mundo colonizado. O caráter “originário” é de pertencimento à ideia das “origens das culturas”, que se relaciona também às representações coletivas acerca do mito edênico, presentes nas narrativas dos primórdios de nossa colonização e descobrimento, além de largamente trabalhadas pelo próprio Sérgio Buarque em sua Visão do Paraíso, de 1959.2 Tal caráter “originário”, derivado da imagem do Novo Mundo colonizado, pressupõe uma abertura fecunda a novas formas e temas de trabalho, a partir do contato dos colonizadores com cores e civilizações que, apesar de integrantes de seu imaginário edênico, destoavam de seus paradigmas básicos de influência presentes em suas nações originárias. Tal contato 2. Tese apresentada em 1958 à cátedra de “História da Civilização Brasileira”, na Universidade de São Paulo, e publicada em 1959..

(13) 13. possibilitaria posteriormente um novo celeiro de inspirações à fatura de experiências na arte e na literatura em solo brasileiro, esclarecendo a semântica da fecundidade presente no tema da “originalidade literária”. A opção por esse tema em seu texto de estreia, quando o autor se encontrava com apenas 18 anos de idade, já revelava o anseio do intelectual na atualização de fontes e influências em busca de uma verdadeira expressão da nossa vida cultural. Para Antônio Arnoni Prado, em sua palestra Crítica aos modernistas, realizada no seminário Atualidade de Sérgio Buarque de Holanda, em 2011, são três as posições inovadoras características dessa primeira fase de Sérgio Buarque. A primeira “seria a necessidade de contato com outras tradições de cultura, que nos livrassem do peso excessivo da matriz portuguesa”. A segunda, “a urgência em pesquisar a nossa originalidade artístico/ literária”, e a terceira, “a abertura para a renovação das formas (...) formas que chegavam com o novo século”. 3 Apesar de ainda marcado pela herança da crítica do final do século XIX, com seus postulados muitas vezes passadistas e impregnados pela crítica naturalista, o interesse pelo tópico da originalidade literária, bem como seu tratamento dado ao tema, e a preocupação com a questão da inserção latino americana na cultura brasileira, tão largamente exposta em seu texto de abertura, já sugerem esse aspecto de inovação de Sérgio Buarque no terreno do ensaio brasileiro, tornando-o, ainda como assinala Antônio Arnoni Prado, uma espécie de “radar” de sua época, capaz de captar a “mudança de rumos” que se dava naqueles anos à véspera da revolução modernista. Foi a partir da busca por esse terreno fecundo da originalidade literária pensada a partir da valoração dos bens locais em relação aos estritos aspectos formais europeus, que nasceram inúmeras teorias em solo brasileiro a fim de consolidar as diretrizes necessárias ao processo de formação da literatura nacional. Além desse fator, teorias estrangeiras com base Iluminista que formulavam questões sobre a realidade nos trópicos, como a Teoria climática, de Montesquieu, e a Teoria Degenerativa das Raças, de Buffon, foram reinterpretadas, ou melhor, reajustadas à nossa realidade e à crítica literária principalmente pela chamada geração de 1870. 4 Intelectuais de vasta produção nas últimas décadas do século XIX, como 3. Palestra realizada no seminário "Atualidade de Sérgio Buarque de Holanda", promovido pelo Instituto de Estudos Brasileiros, IEB/USP, entre 13 e 16 de setembro de 2011. 4 Por finalidades didáticas, Roberto Ventura chama de “geração de 1870” esse grupo de intelectuais, sem reconhecer, no entanto, que houvesse a constituição de um movimento propriamente dito. É também Ventura que traz a tese do reajustamento das teorias à realidade brasileira. Cf. VENTURA, Roberto. Estilo Tropical. São Paulo: Companhia das Letras, 1991..

(14) 14. Capistrano de Abreu, José Veríssimo, Sílvio Romero e Araripe Jr., foram apenas alguns daqueles que se dedicaram à constituição daquilo que entendemos hoje como nossa tradição crítico-literária, a partir de reajustamentos e criações variadas no território das teorias literárias, como a ênfase dada por Romero às questões de miscigenação raciais brasileiras e as teorias que advieram de tais estudos, e o trabalho de Araripe Jr. sobre o “meio” brasileiro, com suas teorias como o estilo e a obnubilação tropicais, por exemplo. 5 Fica evidente na crítica do final do século XIX e início do século XX uma mistura generalizada dos campos de saberes. Como aponta Roberto Ventura em seu Estilo tropical, a especialização científica só foi consolidada no Brasil por volta de 1930, concorrendo para que muitas disciplinas estabelecessem, até então, intenso diálogo entre si. A estreia de Sérgio Buarque nos meios intelectuais brasileiros no ano de 1920 é também marcada por essa visada miscigenada de saberes, em uma ampla relação entre sociologia e literatura, principalmente até o contato com o Modernismo e as vanguardas, quando passa a se dedicar mais detidamente ao fenômeno estético da literatura. Seus textos iniciais, voltados à análise das tradições e costumes e à preocupação das relações culturais e políticas na América Latina, bem como seu gosto pelo romance realista e seus escritos ainda impregnados de concepções de extrato racial, parecem ditar o tom de sua crítica de estreia, eivada por um amplo espectro de erudição e por um “golpe de vista desigual e algo dispersivo”, como afirma Antonio Arnoni Prado6, e pelo horizonte sociológico, que primava por discussões de cunho temático e pela defesa de teses. É a partir de seu ensaio “O gênio do Século”, publicado na revista A Cigarra, em setembro de 1921, que se dá o contato de Sérgio com as vanguardas e sua guinada para uma crítica preponderantemente estética, sem ainda abandonar por completo seus debates de cunho mais precisamente temático, como ao retomar a ideia da originalidade: O futurismo quer simplesmente livrar os poetas de certos preconceitos tradicionais. Ele encoraja todas as tentativas, todas as pesquisas, ele incita a. 5. Idem. PRADO, Antonio Arnoni. O Espírito e a Letra – estudos de crítica literária. São Paulo: Companhia das Letras, 1996, p.15. 6.

(15) 15 todas as afoutezas, a todas as liberdades. Sua divisa é antes de tudo a originalidade. Sob esse ponto de vista é legítima e louvável a aspiração futurista. O próprio sr. Marinetti o sanciona, dizendo, como disse há tempos, entrevistado por um jornalista francês, que a nova escola ‘é apenas a exaltação da originalidade e da personalidade7. Nesse ensaio Sérgio exalta a modernidade e a vanguarda futurista sem, no entanto, abandonar a tese da originalidade que abordou em seu artigo de abertura. De formas distintas a tese da originalidade se apresenta nos ensaios “Originalidade Literária” e “O Gênio do Século”: neste, a tese se apresenta por um viés puramente estético, marcando um segundo momento na crítica inicial de Sérgio, posterior ao contato com as vanguardas europeias e com aquilo que se erigia no pensamento modernista brasileiro. Já naquele, apesar do mote da originalidade estar também presente, seu trato semântico parece ser bastante diverso. Em seu ensaio “Originalidade Literária”, percebe-se que a discussão temática sobre o mote da originalidade relaciona-se intimamente ao sentimento de nacionalidade brasileiro, ou à busca por sua representação nas artes/ na literatura. Para o autor estreante, em clara relação com a herança crítica do século XIX, o encontro da originalidade literária em terras brasileiras pressupunha também o encontro com o sentimento de nacionalidade, demonstrando mais uma vez o caráter de imbricação temática que o guiava naquele momento e o fundo de preocupações nacionalistas que o caracterizaram por toda sua trajetória intelectual. Importante notar que tal miscigenação de saberes - seja no tocante às disciplinas ou aos temas elencados por elas - se atrelava, na visão de nossos pensadores, a uma busca identitária nacional, constituindo, aos poucos, aquilo que passamos a entender como a ideia de nação brasileira. Benedict Anderson, em uma leitura antropológica, sugere a definição de nação através de um caráter duplo: “uma comunidade política imaginada – e imaginada como sendo intrinsecamente limitada e, ao mesmo tempo, soberana” 8. Para Anderson, uma 7. BUARQUE, Sérgio apud PRADO, Antonio Arnoni. O Espírito e a Letra – estudos de crítica literária. São Paulo: Companhia das Letras, 1996, p.111.. ANDERSON, Benedict. Comunidades imaginadas. São Paulo: Companhia das Letras,. 8. p.32..

(16) 16. nação é imaginada pois os membros de uma comunidade, mesmo considerando-se a menor delas, jamais conhecerão a maioria de seus conterrâneos, e é limitada pois mesmo a maior das nações possui limitações fronteiriças, que sugerem a não interpenetração entre os povos e, ao mesmo tempo, a soberania dessa comunidade dentro de sua extensão. No caso da realidade brasileira ao final do século XIX e primórdios do XX, o movimento de compreensão da constituição dessa comunidade imaginada se deu através da ação de seus membros da elite. Estes, aos quais não deixava de pertencer Sérgio Buarque, buscavam compreender a complexidade de uma nação marcada pela intensa miscigenação das raças, a extensa linha fronteiriça e o caráter de nossa herança colonial sem, no entanto, abandonar o olhar de classe que implicava a seleção dos elementos decisivos na constituição dessa nacionalidade imaginada, elementos que traçavam uma singularidade de difícil definição. Singularidade essa que foi percebida e refletida no ensaio primordial de Sérgio. Originalidade Literária encontra-se ainda em consonância com o ideário cultural crítico do século XIX, em seus planos de busca nacionalista, embora haja o reconhecimento de que o nacionalismo literário do século XIX e do princípio do século XX fosse fortemente permeado por uma visão eurocêntrica, devido à internalização das teorias naturalistas e das ideologias civilizatórias que nos chegaram. Para melhor compreender a busca pelo nacionalismo literário brasileiro recorremos a Antonio Candido, em seu ensaio Literatura e cultura de 1900 a 1945, no qual o crítico elenca “dois momentos decisivos que mudam os rumos e vitalizam toda a inteligência”: o Romantismo, no século XIX (1836 – 1870) e o Modernismo (1922 – 1945). Ambos os momentos são regidos por aquilo que Candido considera uma “lei de evolução da nossa vida espiritual”, representada pela dialética existente entre o localismo e o cosmopolitismo, manifestada pelos modos mais diversos. É do dilaceramento oriundo dessa tensão dialética entre o dado local – chamado pelo autor de substância da expressão – e os moldes herdados da tradição europeia – forma da expressão – que nasceram nossas mais variadas expressões do nacionalismo literário, que se manifestava ora a partir da afirmação premeditada e por vezes violenta “com veleidades de criar até uma língua diversa”, ora através do “declarado conformismo” e.

(17) 17. da “imitação consciente dos padrões europeus”. Apesar de reconhecer o Romantismo e o Modernismo brasileiros como fases culminantes de nossa particularidade literária, Candido assevera que “ambos se inspiram, não obstante, no exemplo europeu”, embora acentue que: (...) enquanto o primeiro procura superar a influência portuguesa e afirmar contra ela a peculiaridade literária do Brasil, o segundo já desconhece Portugal, pura e simplesmente: o diálogo perdera o mordente e não ia além da conversa de salão. Um fato capital se torna deste modo claro na história da nossa cultura; a velha mãe pátria deixara de existir para nós como termo a ser enfrentado e superado. 9. Portanto, é no momento crítico pós-romântico e pré-modernista que se insere o ensaio de Sérgio Buarque. Impregnado da matéria presente na tensão oriunda da dialética do local e do cosmopolita, em seus empenhos pela afirmação do nacionalismo literário brasileiro, e já próximo à promoção do “desrecalque localista” - como denomina Candido ante a mudança de horizontes empreendida pela revolução modernista - Sérgio Buarque, com seu ensaio de abertura, dois anos antes da Semana de Arte Moderna, já apresentava o tom presente nesses debates que serviriam de pauta de trabalho aos jovens que preparavam a semana modernista, segundo Antonio Arnoni Prado. 10 É notória a repetição das pautas de trabalho por parte de nossos críticos compreendidos entre os séculos XVIII ao XX. De forma semelhante ao mote da originalidade literária – que remonta das teorias do romantismo brasileiro - o tema do nacionalismo em nossa literatura participava também do afã intelectual daqueles que pretenderam pensar a nossa realidade tropical, desde a fase heroica de nosso romantismo até o nosso modernismo literário. Apesar de elementos pertencentes ao arsenal discursivo da crítica brasileira é evidente o contraste existente entre ambos os temas, embora não seja penoso observar o caráter de imbricação que ambos se possibilitam. O movimento empreendido na 9. CANDIDO, Antonio. Literatura e Cultura de 1900 a 1945. In: Literatura e Sociedade. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1976, p. 112. 10 PRADO, Antonio Arnoni. O Espírito e a Letra – estudos de crítica literária. São Paulo: Companhia das Letras, 1996, p.23..

(18) 18. argumentação de Sérgio Buarque em seu ensaio explora justamente essa espécie de pertencimento semântico existente em certos eixos marcantes da crítica literária brasileira. Como apresentado anteriormente, o encontro com a originalidade literária pressuporia também o encontro com o sentimento de nacionalidade brasileiro e, apesar de elementos díspares, acabam encontrando na linha argumentativa de Sérgio uma espécie de escala retórico/ascendente comum, em uma interpenetração temática em busca de uma finalidade única: a noção de nossa autonomia cultural a contribuir com o processo de nossa formação nacional. Pensar a formação nacional brasileira, em verdade, tornou-se verdadeira obsessão nacional de nossa elite letrada dos séculos XIX e metade do XX, e a forma como se tornou manifesto esse “propósito coletivo de dotar o meio gelatinoso de uma ossatura moderna que lhe sustentasse a evolução”, como diz Paulo Arantes 11 , é tão variado como pode se esperar do amplo espectro de caracteres constituintes de uma nação, ou, melhor dizendo, daquilo que se imagina dela. Roberto Ventura lembra a disparidade e semelhanças existentes entre dois letrados que se engajaram no propósito do pensamento sobre a formação nacional brasileira. Apesar das semelhanças de percursos individuais entre Sílvio Romero e Joaquim Nabuco, que passaram parte da infância ou adolescência em engenhos de açúcar no Nordeste e se formaram, ambos, pela Faculdade de Direito do Recife, nem sempre suas posições acerca dos encaminhamentos necessários ao desenvolvimento da nação se coadunavam. Em 1888, com a extinção da escravatura, ambos tiveram papéis determinantes nos debates da época, com suas defesas abolicionistas. No entanto, em 1889, com a queda da monarquia, ambos se arraigaram novamente em ruidosos debates, sendo Romero a favor da República e Nabuco sempre partidário da monarquia, mesmo após a sua queda. 12 O exemplo citado por Ventura ilustra a pluralidade de visões de nossa elite letrada, que embora não raro divergissem sobre variados pontos - ainda que pertencentes à mesma óptica de classe - concorriam à unidade de pensamentos acerca da formação nacional, seja ela em quais campos pudesse se dar – político, econômico, cultural, social - embora, como afirma novamente Paulo Arantes, “o horizonte descortinado pela ideia de formação corresse na direção do ideal europeu de civilização. 11 12. ARANTES, Paulo. Sentido da Formação. São Paulo: Paz e Terra, 1997, p. 12. VENTURA, Roberto. Estilo Tropical. São Paulo: Companhia das Letras, 1991, p.9..

(19) 19. relativamente integrada – ponto de fuga de todo espírito brasileiro formado”. 13 Em 1920, com a publicação de seu primeiro artigo, o jovem Sérgio Buarque de Holanda também visava se inserir no polêmico debate sobre a formação nacional brasileira. Aos então 18 anos, seu ensaio Originalidade Literária pode ser entendido como um “bater à porta” na sala de debates onde se encontravam todos aqueles membros da tradição crítica brasileira, a pensar sobre a questão da formação nacional. Ainda que jovem e, em alguns pontos, imaturo – como se depreende a partir da leitura de seu ensaio de estreia - Sérgio Buarque já carregava consigo ampla erudição e o gérmen da coragem que o marcaria principalmente no momento do “Sérgio radical”, quando se engaja nas fileiras modernistas, poucos anos após.. *. Salvo em casos flagrantes de autoengano deliberado, todo intelectual brasileiro minimamente atento às singularidades de um quadro social que lhe rouba o fôlego especulativo sabe o quanto pesa a ausência de linhas evolutivas mais ou menos contínuas a que se costuma dar o nome de formação.14. A atenção a essas singularidades formativas do quadro social brasileiro mencionadas por Paulo Arantes não passaram despercebidas ao jovem Sérgio Buarque. Definido o espaço do qual desejava lançar a sua voz – claramente marcado através do pressuposto crítico da originalidade literária - e em um texto que sugere também um duplo caráter de formação – aquele que traça um diálogo junto à nossa tradição crítica e aquele próprio que denota a formação de um intelectual estreante – Sérgio inicia seu ensaio de forma sugestiva:. “A emancipação intelectual não é, nem podia ser, um corolário fatal da emancipação. 13 14. ARANTES, Paulo. Sentido da Formação. São Paulo: Paz e Terra, 1997, p. 12. Idem..

(20) 20. política. Esta é um fator secundário, se tanto, na evolução do espírito de um povo.” 15 Inspirado pelos escritos de Frédéric Mistral, o pressuposto básico da formulação de abertura do ensaio de Sérgio é valer-se da noção de “completa emancipação espiritual do Novo Mundo” - como anunciará mais à frente em seu texto – para pensar mais propriamente sobre a realidade brasileira e na “evolução do espírito” de seu povo, o que denota três pontos: a) sua preocupação com o aspecto da formação da nação, visto que o povo é elemento fundamental para sua constituição, b) a consciência de que, de alguma forma, esse mesmo povo encontrava-se agrilhoado e necessitava emancipar-se, e c) a necessidade de uma cisão entre os processos de entendimento acerca das autonomias política e intelectual no processo constituinte da nação brasileira. Marcus Vinícius Corrêa Carvalho analisa em sua tese. 16. que, apesar da. dissociação entre os elementos da literatura e da política na formulação de abertura do ensaio, sua menção conjugada já sugere um indicativo da atenção de Sérgio para questões suscitadas anteriormente por José Veríssimo e Sílvio Romero. 17 A vinculação mais estreita entre a autonomia política e a produção literária própria era parte integrada do pensamento dos dois críticos, embora a imbricação entre tais elementos não se demonstre cara ao pensamento de Sérgio. Esse afastamento crítico de dois de seus principais inspiradores intelectuais já no primeiro momento de seu ensaio de abertura denota certa autonomia e alguns dos caracteres de inovação com que Sérgio, apesar de seu nítido diálogo com a tradição, buscaria edificar a linha argumentativa ao longo de seu texto. Em verdade, Sérgio não olvidava as variáveis do problema sugerido pela tradição entre as questões da emancipação política e intelectual, mas sugeria um novo equacionamento dos fatores e defendia o fim da relação de interdependência entre eles: 15. BUARQUE, Sérgio apud PRADO, Antonio Arnoni. O Espírito e a Letra – estudos de crítica literária. São Paulo: Companhia das Letras, 1996, p.35. 16 CARVALHO, Marcus Vinicius Corrêa. Outros lados: Sérgio Buarque de Holanda, crítica literária, história e política (1920-1940). Tese (Doutorado em História) – Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2003. 17 É de Marcus Vinícius a citação a seguir que nos vale como suporte à questão mencionada: “No que diz respeito a Veríssimo, isso se depreende, por exemplo, quando em sua História da Literatura Brasileira, afirmava que “a literatura que se escreve no Brasil/’ já seria “expressão de um pensamento e de um sentimento que se não confundem mais com o português”. Isto seria certo, “desde o Romantismo, que foi a nossa emancipação literária, seguindo-se naturalmente à nossa independência política”. Romero, por seu turno, também associava de modo natural independência política e literária em sua introdução ao livro A literatura e a crítica moderna. Constatava ele, então, que “atravessamos uma época de crise para o pensamento nacional: na política e na literatura o momento é grave. Numa como noutra, nos falta a força própria.” Cf. nota in CARVALHO, Marcus Vinicius Corrêa. Outros lados: Sérgio Buarque de Holanda, crítica literária, história e política (1920-1940), p. 17..

(21) 21. Assim, se Sérgio Buarque não concordava com o equacionamento da questão feito por esses seus informantes intelectuais, ele se mostrava concorde com as variáveis do problema. Quer dizer, ele deixava claro que, ‘não é, nem podia ser, um corolário fatal’, procurando minimizar a naturalidade relacional, insinuada pela causalidade necessária, entre emancipação intelectual e política. Não significa, entretanto, que estivessem apartados, ao contrário, política e literatura se alinhavam, apesar de não serem consideradas mutuamente dependentes. 18. Além da “naturalidade relacional” apontada por Marcus Vinícius entre a “emancipação intelectual” e a “emancipação política”, a utilização de expressões negativas relacionadas ao elemento da emancipação intelectual como “não é” e “nem podia ser” e, principalmente a afirmação de que a emancipação política é “um fator secundário, se tanto” na “evolução do espírito de um povo”, marcam uma ordenação dos fatores defendida por Sérgio de forma a valorizar os quesitos que se relacionam prioritariamente à emancipação intelectual, em evidente discurso que visava à emancipação pela cultura no sentido mais vasto. Corroborado novamente por Mistral, Sérgio advoga que a emancipação política não garante a emancipação intelectual, o que dialoga, decerto, com os ajuizamentos apressados de que a independência nacional, por si só, não teria garantido a constituição da nação imaginada. Nesse ponto, fica clara a militância do jovem crítico por aquilo que ele chama de “emancipação intelectual”. Reconhecido o fato da independência política do país ter ocorrido já há quase cem anos e não ter assegurado a constituição da nação imaginada por nossas elites, Sérgio milita a partir de formas públicas modernas do esclarecimento, com a tese da possibilidade de um povo se integrar por meio da acumulação de sua própria tradição cultural. Ao sentenciar a emancipação política como um fator secundário à evolução do espírito de um povo, Sérgio incorre em uma noção judicativa, não necessariamente tornando a emancipação política um fator de menor relevância no processo de constituição de uma nação, mas apresentando a tese que viria a defender em seu ensaio,. 18. CARVALHO, Marcus Vinicius Corrêa. Outros lados: Sérgio Buarque de Holanda, crítica literária, história e política (1920-1940). Tese (Doutorado em História) – Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2003, p. 18..

(22) 22. tendo a busca pela independência intelectual. 19. como principal fulcro de suas. argumentações e ambições enquanto crítico estreante. Dessa forma o autor precisava claramente, de antemão, nas primeiras linhas de sua estreia intelectual, o espaço do qual falava. Para Sérgio, sua tese - em pleno reconhecimento dos fatores que constituíam os debates da tradição crítico-literária brasileira e latino-americana - estava lançada: a emancipação política não garante a emancipação intelectual. Vale ressaltar que a formulação da tese de Sérgio Buarque necessariamente não se dá em detrimento de uma perspectiva à autonomia política e em abandono dos fatores entrevistos anteriormente pela intelectualidade brasileira. Ainda que Sérgio - para finalidades argumentativas e ensaísticas – tenha promovido a cisão na interdependência com que parte da crítica considerava os fatores da emancipação intelectual e política, tais elementos, no limite argumentativo, se equacionam. A questão está não no desconhecimento da relação entre os fatores, mas na quebra da dependência entre eles e, no caso do ensaio de Sérgio, na apresentação daquele elemento que elegera para a primazia de sua argumentação. Todavia, é notório o fato de que o reconhecimento da emancipação cultural também se transmuta como um ato político, já que, a partir da autoafirmação de uma identidade cultural e intelectual, engendra-se uma poderosa arma à “evolução do espírito de um povo” e à autonomia política daquilo que se imagina de uma nação. Para a defesa de suas impressões, Sérgio se alinha fortemente a um ensaio presente no volume Idéas y impressiones, de Francisco García Calderón. Nessa obra, o crítico e poeta peruano estuda justamente a originalidade literária na América, historiando todos os fatores que poderiam contribuir para a “completa emancipação espiritual do Novo Mundo”. 20. , o que vem justamente ao encontro dos pressupostos. críticos do jovem ensaísta, que, ao conjecturar sobre o processo de emancipação intelectual do país e relacioná-lo aos mecanismos de emancipação de nossos pares latinos, associa a busca de nossa identidade como única forma capaz de superar os obstáculos das influências de fora, fossem aquelas que já nos marcavam devido à nossa herança colonial, fossem aquelas que nos chegavam mais e mais alicerçadas no 19. Optei aqui, e ao longo da análise, por fazer uso das sinonímias utilizadas pelo próprio Sérgio Buarque, ao aproximar os vocábulos emancipação, autonomia e independência. Cf. BUARQUE, Sérgio apud PRADO, Antonio Arnoni. O Espírito e a Letra – estudos de crítica literária. São Paulo: Companhia das Letras, 1996, p.35. 20 BUARQUE, Sérgio apud PRADO, Antonio Arnoni. O Espírito e a Letra – estudos de crítica literária. São Paulo: Companhia das Letras, 1996, p.36..

(23) 23. cosmopolitismo moderno. A trajetória do intelectual peruano, marcada pela “defesa das origens e do passado indígena como referência fundamental às artes, à cultura e à política de seu país” 21, e sua historicização de todos os “fatores que têm contribuído e ainda podem contribuir para a completa emancipação espiritual do Novo Mundo” 22 , decerto se articulam aos anseios de Sérgio Buarque, nesse momento histórico em que, mergulhados ainda nas tradições da República Velha, alguns de nossos intelectuais sentiam a necessidade intelectual e política de atuar na direção de certa modernização de ideias e de práticas. Percebido um pouco daquilo que norteia Sérgio Buarque neste ensaio de abertura, nota-se também o percurso trilhado por sua argumentação: a preocupação com o caráter formativo de nossa nação passa justamente pela busca de nossa identidade, o que seria inviável sem a emancipação intelectual, que só se daria através do encontro da originalidade literária. Por fim, uma questão se alinhava de maneira simples: a conquista da originalidade literária seria também o encontro de nosso “caráter nacional”. Em sua obra Desenvolvimento e cultura, no capítulo que trata especificamente d´O problema do estetismo no Brasil, Mário Vieira de Mello, ao abordar as relações entre subdesenvolvimento e cultura, defende que, até mais ou menos o decênio de 1930, pairava entre nós a perspectiva de um “país novo”, que ainda não pudera realizar-se, mas que atribuía a si mesmo grandes possibilidades de progresso futuro23. Para Antonio Candido, em Literatura e Subdesenvolvimento, apesar da discordância em alguns pontos sobre o trabalho de Vieira de Mello, a matéria presente nessa perspectiva esperançosa denota certos aspectos fundamentais para a “criação literária, derivadas da surpresa, do interesse pelo exótico, de certo respeito pelo grandioso e da esperança quanto às possibilidades”24, o que muito se alinha às inferências de Sérgio Buarque em suas teses e busca pela originalidade literária em solo brasileiro. Esse estado de euforia foi herdado pelos intelectuais latino-americanos, que o transformaram em instrumentos de afirmação nacional e justificativa ideológica. A literatura se fez linguagem de celebração e terno apego,. 21. Idem. Idem. 23 MELLO, Mário Vieira de. Desenvolvimento e cultura. O problema do estetismo no Brasil. São Paulo, Nacional, 1963. 24 CANDIDO, Antonio. Literatura e Subdesenvolvimento. In: A Educação pela Noite e Outros Ensaios. São Paulo: Ática, 1989, p. 141. 22.

(24) 24 favorecida pelo Romantismo, com apoio na hipérbole e na transformação do exotismo em estado de alma. O nosso céu era mais azul, as nossas flores mais viçosas, a nossa paisagem mais inspiradora que a de outros lugares, como se lê num poema que sob este aspecto vale como paradigma, a “Canção do exílio”, de Gonçalves Dias, que poderia ter sido assinado por qualquer um dos seus contemporâneos latino-americanos entre o México e a Terra do Fogo. 25. O reconhecimento da herança desse estado de euforia por parte dos intelectuais latino-americanos também se fez presente nas teses de Calderón, no início do século XX, em que, segundo informa Sérgio, o crítico peruano defendia que o “mais remoto fator de originalidade literária” teria surgido na América a partir da contemplação dos conquistadores, ao perceberem “uma flora mais grandiosa e magnífica”, uma fauna “mais rica e interessante que a europeia” e principalmente a partir do contato com as “nações selvagens desconhecidas até então para eles, de costumes, tradições, ideias e crenças diversas das suas” 26 , convergindo para que houvesse o nascedouro de manifestações intelectuais dos conquistadores em terras americanas, análise que corrobora o comentário de Antonio Candido sobre a matéria de criação literária no específico caso brasileiro. Assim, ao perseguir a ideia da originalidade literária em seu ensaio, traçando o percurso desde as primeiras manifestações literárias dos conquistadores, passando pela crítica de nossos pares latinos e chegando ao romantismo de José de Alencar e Gonçalves Dias, Sérgio se vale do reconhecimento de uma espécie de “substrato comum” que nada mais seria que toda e qualquer forma de afirmação e valorização daquilo que seria original em nossa natureza e costumes, conjugando seu intento ensaístico à própria busca pela originalidade literária em nossas produções nacionais. Tratava-se de buscar a identificação do elo que conjugaria diferentes obras, em diferentes épocas, ao propósito do encontro da originalidade literária, reconhecendo que o encontro desse ideal ou a própria busca por ele necessariamente já pressuporia atos de insurgência contra os padrões normativos estrangeiros, visto que na própria ideia da originalidade literária está marcado o caráter da emancipação intelectual. Dessa forma, portanto, basilado por suas próprias formulações e de seus 25. Idem. BUARQUE, Sérgio apud PRADO, Antonio Arnoni. O Espírito e a Letra – estudos de crítica literária. São Paulo: Companhia das Letras, 1996, p.36. 26.

(25) 25. informantes intelectuais, poder-se-ia admitir que Sérgio elabora uma espécie de “crítica própria”, já antecipando as mudanças radicais e a autoafirmação brasileira “contra todos os importadores de consciência enlatada” 27 que viria marcar o modernismo brasileiro, dois anos após o seu ensaio de estreia. Apesar dessa leitura progressista de Sérgio Buarque, o autor não deixa de apresentar ambivalências que o relacionavam ainda ao passadista arcabouço crítico do século XIX. Em seu “Originalidade Literária”, ao interessar-se pela natureza das impressões causadas nos europeus dominadores diante da observância de nossa “natureza onímoda” e pelas manifestações intelectuais que dela advieram, Sérgio analisa que as mesmas produções estavam de acordo com os “moldes consuetudinários”28. À frente, entretanto, o autor acentua que os primeiros resultados dessa tendência no tocante à cultura aqui produzida nasceram justamente nos locais onde a maior violência no embate entre conquistadores e aborígines se deu ou onde o “estado de adiantamento e cultura social destes era relativamente elevado” 29. A menção de Sérgio Buarque sobre a violência ocorrida entre aborígenes e conquistadores a inspirar parcela de nossas primeiras manifestações literárias não parece controversa. Talvez, o quesito da pathesis presente na própria matéria da violência e a possibilidade do retratar o embate com sociedades - aos olhos europeus - repletas de exotismo, tenham sido os artifícios inspiradores à fatura de epopeias, por exemplo, comuns à época. Entretanto, a ambivalência mencionada parece refletida no contraste entre o reconhecimento dos “moldes consuetudinários” empregados pelos conquistadores em suas primeiras obras e a interpretação possível contida na sentença “estado de adiantamento e cultura social destes era relativamente elevado”. Se, por uma perspectiva, observa-se a percepção de Sérgio Buarque no reconhecimento da utilização das formas costumeiras da tradição letrada europeia empregadas em suas primeiras manifestações intelectuais em solo brasileiro - moldes consuetudinários estes diante dos quais o crítico se insurge30 ao longo de seu ensaio na 27. ANDRADE, Oswald, Revista de Antropofagia, Ano 1, No. 1, maio de 1928. BUARQUE, Sérgio apud PRADO, Antonio Arnoni. O Espírito e a Letra – estudos de crítica literária. São Paulo: Companhia das Letras, 1996, p.36. Grifos meus. 29 Idem. 30 A crítica do autor se baseia não na insurgência contra as formas literárias presentes na tradição europeia, mas na necessidade de que essas mesmas formas, apesar de utilizadas, fossem ressignificadas através da utilização do substrato de nossa matéria nacional, a fim de que o encontro da originalidade 28.

(26) 26. crítica de que eles não fossem meramente replicados por nossos intelectuais - por outro ângulo, o autor se mostra partidário ainda de uma noção eurocêntrica de cultura, ao sentenciar que os primeiros resultados da tendência à produção intelectual por parte dos conquistadores em solo brasileiro também se deram onde o “estado de adiantamento e cultura social destes(aborígenes) era relativamente elevado”. Segundo Roberto Ventura, a internalização da ideologia civilizatória e de teorias climáticas e raciais levaram os críticos brasileiros a incorporarem a “ambivalência do discurso europeu perante o mundo selvagem e as realidades exóticas, idealizando padrões metropolitanos de civilização”. 31 Portanto, se por um lado Sérgio se aliava aos ares modernistas em ascenso na crítica aos padrões estéticos e ideologias que vinham de fora, por outro, conservava-se ainda como receptáculo a essa mesma influência, ao assumir a visão estrangeira acerca de um possível desenvolvimento necessário a uma sociedade, utilizando como parâmetro de referência a idealização metropolitana europeia, o que é verificado pela utilização de termos como “adiantamento social e cultural” e “elevado” em sua sentença, ao referir-se a uma sociedade americana autóctone. Naturalmente, apesar do autorreconhecimento do intelectual periférico como pertencente a uma realidade de exotismo, seria impossível o trabalho intelectual nos trópicos se não houvesse uma adequação mínima aos modelos que nos trouxeram os paradigmas para essa dialogia e criação. O problema estava não em flertar com os modelos normativos da tradição europeia, mas na busca pela superação na relação de dependência estabelecida entre colono versus colonizado. É na busca pela superação dessa relação de dependência ante as influências colonizadoras que Sérgio - em seu empenho pelo reconhecimento da originalidade literária - invoca outro elemento que vem ocupar espaço importante na edificação interna de sua linha argumentativa: o americanismo. Como frutos principais da tendência antes sugerida acerca da produção intelectual dos conquistadores em terras americanas, Sérgio, seguindo ainda o pensamento de Calderón, observa que as obras Araucana, do espanhol Alonso Ercila y Zuñiga. e. a. Rusticatio. mexicana,. do. padre. jesuíta. guatemalteco. Rafael. literária se desse e, em consequência, o encontro de nossa própria identidade, o que não poderia se dar através da simples imitação do estilo dos conquistadores. 31 VENTURA, Roberto. Estilo Tropical. São Paulo: Companhia das Letras, 1991, p. 37..

(27) 27. Landívar 32 ,apresentam claros vestígios de americanismo, ressaltando, entretanto, que tais obras não passaram de “produtos de um esforço ingente da raça conquistadora” e sentenciando que “o americanismo não passou daí”33. A inclusão do elemento do americanismo nesse momento de seu ensaio ressalta novamente o esforço de Sérgio Buarque no reconhecimento de obras que teriam alcançado a originalidade literária em terras americanas. O americanismo, como forma embrionária do nacionalismo – pois no contexto de Ercila e Landívar não se poderia falar em uma nação brasileira – é também responsável pela valoração do sentimento do local e, decerto, ajudará a compor uma estrutura de sentimentos que posteriormente se tornará um elemento decisivo para o nacionalismo, ou para aquilo que se imagina dele. Parece-nos crucial a observação da estrutura discursiva desse primeiro ensaio do autor. Sérgio Buarque elenca elementos de constituição e momentos diversos, aproximando-os, comparando-os e assumindo a autonomia de uma verdadeira imbricação temática entre eles com a finalidade argumentativa da quebra do impasse da dependência intelectual entre a tradição europeia e a produção literária americana, o que, para o autor, só se daria através do alcance da originalidade literária. Tal imbricação parece razoável se considerado o fato de que a parte priorizada pelo autor na constituição da definição de elementos como o americanismo ou o nacionalismo literários é justamente aquela que ressalta a necessária insurgência contra a dependência europeia, o que se faz presente em ambos os termos através da exaltação e afirmação dos valores locais em relação aos estrangeiros. Ao sentenciar que o americanismo estaria limitado aos vestígios produzidos pelas obras de Landívar e Ercila e que “os poetas que se sucederam não trataram de conservar essa tendência” 34, Sérgio inicia um tom diverso em seu ensaio, em um novo movimento argumentativo. Até esse ponto, o autor se apoiava largamente na pesquisa do desenvolvimento da América Hispânica, como um todo, que inegavelmente já trazia evidências de certo avanço na constituição da emancipação intelectual em relação à Europa dominadora. Seu sustentáculo crítico principal era o peruano Garcia Calderón, em seus escritos em favor do lirismo autêntico na América Latina na valoração do passado indígena como 32. Nota aparentemente equivocada. A Rusticatio mexicana não é de 1871, mas sim, de 1781. Cf. nota in PRADO, Antonio Arnoni. O Espírito e a Letra, p. 36. 33 BUARQUE, Sérgio apud PRADO, Antonio Arnoni. O Espírito e a Letra – estudos de crítica literária. São Paulo: Companhia das Letras, 1996, p.36. 34 BUARQUE, Sérgio apud PRADO, Antonio Arnoni. O Espírito e a Letra – estudos de crítica literária. São Paulo: Companhia das Letras, 1996, p.37..

(28) 28. referência fundamental às artes, à cultura e à vida política de seu país.35 No entanto, ao optar pelo tema da originalidade literária como mote principal de seu ensaio de estreia, Sérgio não o sustentaria somente a partir da fronteira generalizada da América Latina, mas acentuaria sua óptica à específica realidade de produção em solo brasileiro, como fica nítido ao desfecho de seu ensaio. A aproximação do caso latino americano constitui, para o autor, a formação de um panorama geral, em que o reconhecimento de convergências de emancipação cultural por processos coloniais, de certa forma, similares se dão, e também a percepção de divergências, devido à singularidade formativa do específico caso brasileiro. Ao se valer da observação de Calderón sobre a “raça espanhola”, em que o crítico peruano afirma que “os poetas imitam, em vez de descrever, o vasto cenário que os rodeia. Raça individualista, a espanhola, aventureira e lutadora, não quer églogas nem aspira a confundir-se com a terra pródiga, num delírio panteísta”,36 Sérgio inicia uma diferenciação entre o povo espanhol e o caso brasileiro - diante do povo português - ao afirmar “isso (se dá) na América espanhola. No Brasil, o espetáculo divergiu bastante”. 37 O povo português, menos idealista e, se quiserem, mais prático que o espanhol, não teve uma impressão tão sutil da natureza do Novo Mundo como aquele. Além disso, as tribos selvagens e erradias que aqui habitavam não podiam inspirar, aos dominadores, em geral incultos e rudes, senão o desprezo e ódio. Por isso, afora as narrações áridas e ingênuas dos cronistas, não tivemos nenhum poema ou epopeia dignos desse nome. Nem assunto havia para tal. 38. Marcado pela ironia que o seguiria em muitos de seus ensaios, Sérgio chama de “espetáculo” o processo colonial empreendido pelos portugueses em solo brasileiro. Avalia que “não tivemos nenhum poema ou epopeia dignos desse nome”, com exceção das “narrações áridas e ingênuas dos cronistas”, e aparenta justificar esse dado em crítica direta aos dois agentes primeiros envolvidos no processo colonial: as tribos 35. Cf. nota in PRADO, Antonio Arnoni. O Espírito e a Letra – estudos de crítica literária. São Paulo: Companhia das Letras, 1996, p.35. 36 BUARQUE, Sérgio apud PRADO, Antonio Arnoni. O Espírito e a Letra – estudos de crítica literária. São Paulo: Companhia das Letras, 1996, p.37. 37 Idem. 38 Idem..

(29) 29. submetidas à dominação e os portugueses dominadores. Ao referir-se às “tribos selvagens e erradias que aqui habitavam”, o jovem crítico decerto estabelece uma condição distintiva em relação às comunidades ameríndias dominadas pelo processo espanhol, reconhecidamente investidas de complexidade organizacional, com modos de produção relativamente fixos e características que poderiam aproximá-las do estado de “adiantamento e cultura social relativamente elevados”, de acordo com ideal metropolitano de civilização europeia. Roberto Ventura, ao considerar a representação do “mundo selvagem” de acordo com os conquistadores, apresenta o pensamento antitético recorrente à época: A realidade do mundo selvagem é encerrada em uma rede de negações que expressa tanto o desencanto com a civilização, quanto o seu elogio. Ou se fala de povos sem história, sem religião, escrita ou costumes, imersos na ignorância e idolatria. Ou, ao contrário, se elogia a vida de homens livres e nobres, libertos de senhores e padres, de leis, vícios e propriedades. Dois discursos antitéticos interferem na representação do mundo selvagem: um de afirmação da felicidade natural e infinita dos trópicos; outro que proclama as vantagens da civilização. É uma visão ambígua, em que emerge a percepção de uma realidade contraditória. 39. Aparentemente partidário de uma das vertentes apontadas por Ventura, Sérgio Buarque é incisivo ao afirmar em seu comentário que as tribos brasileiras não podiam inspirar aos dominadores senão “ódio e desprezo”, o que, todavia, de acordo com a sentença do autor, gera uma interpretação dúbia, visto que a não assimilação das impressões sutis da natureza americana – como teria ocorrido com o povo espanhol em suas colônias – pode ter se dado devido ao caráter, em geral, “inculto e rude” dos dominadores portugueses. Mais à frente, Sérgio sentencia que “nem assunto havia para tal”, ao referir-se sobre a ausência de “poema ou epopeia dignos desse nome”. A afirmação gera semelhante complexidade interpretativa. O pessimismo presente na observação do autor sugere: a) não seriam as tribos brasileiras detentoras de interesses à inspiração de arte/ literatura – o que liga o detrimento analítico de Sérgio a uma concepção aliada às vantagens da civilização metropolitana e b) não seria o povo português capaz da 39. VENTURA, Roberto. Estilo Tropical. São Paulo: Companhia das Letras, 1991, p. 24..

(30) 30. percepção de assuntos à fatura de poemas ou epopeias inspirados na realidade da colônia brasileira. Por justiça, e considerando a defesa do indianismo que o jovem autor fará mais à frente em seu ensaio, consideramos uma análise mesclada entre as possibilidades supracitadas. Sérgio não deixa de criticar as sociedades indígenas da colônia portuguesa - em uma leitura negativa em aparente relação comparativa com as comunidades hispânicas – mas a primazia de seu comentário parece centrar-se na crítica ao povo português colonizador, menos idealista, mais prático, inculto e rude. Aparentemente, para o autor, a mescla de tais elementos diante de uma realidade incapaz de causar-lhes assombro lírico, esterilizou as produções literárias “dignas desse nome” por parte dos colonos do primeiro momento brasileiro. A respeito da análise feita pelo jovem autor sobre o povo português, disciplinas como a História das Mentalidades poderiam vir dar lume à interpretação, já que seu pensamento encontra-se em consonância com o ideário da tradição cultural, seguida de perto por Sílvio Romero, por exemplo. “O maior historiador da nossa literatura”, segundo o próprio Sérgio Buarque40, traça ao final do século XIX uma teoria etnográfica hierarquizada, em que - assumindo o ponto de vista arianista e corroborado por teorias como as de Montesquieu e Buffon “estabelece distinções no interior da raça branca, que divide em diversos ramos: enquanto os germanos, eslavo e saxões caminham para o progresso, outros grupos, como os celtas e latinos, mostram claros sinais de decadência”.41 Sérgio parece aliar-se à visão da tradição cultural dos povos defendida por Romero, principalmente na concordância negativa acerca dos sinais de decadência do povo latino. Roberto Ventura novamente elucida o argumento ao sintetizar o pensamento de Sílvio Romero: Os portugueses são vistos como povo inferior, resultante do cruzamento entre ibéricos e latinos, que apresentam a impossibilidade orgânica de produzir por si. Como povo de origem latina, os portugueses estão incapacitados para a civilização, ainda que de modo menos acentuado do que negros e indígenas. Os colonizadores trouxeram, assim, para o Brasil os males crônicos das raças. 40. BUARQUE, Sérgio apud PRADO, AntonioArnoni. O Espírito e a Letra – estudos de crítica literária. São Paulo: Companhia das Letras, 1996, p.38. 41 VENTURA, Roberto. Estilo Tropical. São Paulo: Companhia das Letras, 1991, p. 49..

Referências

Documentos relacionados

Neste capítulo foram descritas: a composição e a abrangência da Rede Estadual de Ensino do Estado do Rio de Janeiro; o Programa Estadual de Educação e em especial as

No primeiro capítulo a pesquisa se concentrou no levantamento de dados da escola no Projeto Político Pedagógico (PPP) e análise dos indicadores do SPAECE. No

de professores, contudo, os resultados encontrados dão conta de que este aspecto constitui-se em preocupação para gestores de escola e da sede da SEduc/AM, em

De acordo com o Consed (2011), o cursista deve ter em mente os pressupostos básicos que sustentam a formulação do Progestão, tanto do ponto de vista do gerenciamento

volver competências indispensáveis ao exercício profissional da Medicina, nomeadamente, colheita da história clínica e exame físico detalhado, identificação dos

Nesse mesmo período, foi feito um pedido (Processo do Conjunto da Avenida Rio Branco, no Rio de Janeiro nº 860-T-72) pelo Instituto dos Arquitetos do Brasil e pelo Clube de

Realizar a manipulação, o armazenamento e o processamento dessa massa enorme de dados utilizando os bancos de dados relacionais se mostrou ineficiente, pois o

Nesse contexto, o presente trabalho tem como objetivo realizar testes de tração mecânica e de trilhamento elétrico nos dois polímeros mais utilizados na impressão