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Outra face: a noite da beleza do ilê aiyê

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Academic year: 2021

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UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA

FACULDADE DE COMUNICAÇÃO

HABILITAÇÃO EM JORNALISMO

IASMIN SOBRAL LINS DE OLIVEIRA

VALDNEIDE BENVINDO E. SANTO DOS SANTOS

OUTRA FACE:

A NOITE DA BELEZA DO ILÊ AIYÊ

MEMORIAL DESCRITIVO DO PROCESSO CONCEPÇÃO DA OBRA

Salvador

2016

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2 IASMIN SOBRAL LINS DE OLVIEIRA

VALDNEIDE BENVINDO E. SANTO DOS SANTOS

OUTRA FACE:

A NOITE DA BELEZA DO ILÊ AIYÊ

MEMORIAL DESCRITIVO DO PROCESSO CONCEPÇÃO DA OBRA

Memória do Trabalho de Conclusão de Curso apresentado à Faculdade de Comunicação da Universidade Federal da Bahia, como requisito parcial para obtenção do grau de Bacharel em Comunicação Social com habilitação em Jornalismo.

Orientador: Prof. Dr. Guilherme Maia de Jesus

Salvador

2016

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3 Dedicado aos nossos pais, Antônio e Lucia, Neide e Vivaldo, Que sempre nos apoiaram em nossas decisões, mesmo nem sempre concordando com os caminhos escolhidos, mas sempre incentivando a nossa veia artística e nossas empreitadas. Às mulheres negras, que lutam diariamente pelo seu lugar na sociedade. Aos envolvidos no espetáculo chamado Noite da Beleza Negra do Ilê Aiyê, que o concurso continue mudando vidas e criando um mundo melhor e livre de preconceito.

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4 RESUMO

O presente memorial tem como objetivo descrever o processo de produção e criação do “Outra Face: a Noite da Beleza Negra do Ilê Aiyê”, documentário de entrevistas realizado como projeto de conclusão do curso de Comunicação Social com habilitação em Jornalismo da Universidade Federal da Bahia (Ufba). O documentário quer mostrar todos os processos de seleção que envolvem a Noite da Beleza Negra, realizado pelo bloco afro Ilê Aiyê.

Além de traçar a motivação que levou as participantes a se inscrever no concurso, a intenção do trabalho é mostrar as mudanças que ocorrem na vida de algumas dessas mulheres negras, não apenas na questão estética, mas também a transformação política e social.

Os processos de seleção serão mostrados em um documentário, feito através de entrevistas com participantes do concurso, além da presença de importantes personalidades do Ilê Aiyê. O produto final possui a duração de 34 minutos e 28 segundos e vai ser exibido na internet, através do Youtube e Vimeo.

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SUMÁRIO

1. APRESENTAÇÃO ... 7

2. INTRODUÇÃO ... 9

2.1. ILÊ AIYÊ ... 9

2.2. NOITE DA BELEZA NEGRA ... 10

2.2.1 Pré-seleção ... 12

3. METODOLOGIA ... 14

3.1. PRÉ-PRODUÇÃO ... 14

3.2. ATO DE ENTREVISTAR ... 14

3.3. QUESTIONÁRIO ... 16

4. REFLEXÕES SOBRE A NATUREZA DOS DOCUMENTÁRIOS ... 17

5. DESENVOLVIMENTO ... 21 5.1. ESCOLHA DO TEMA ... 21 5.2. GRAVAÇÕES ... 22 5.3. ENTREVISTAS ... 25 5.3.1 Vovô do Ilê ... 25 5.3.2 Vivaldo Benvindo ... 26 5.3.3 Mirinha Cruz ... 27 5.3.4 Sergio Roberto ... 27 5.3.5 Arany Santana ... 28 5.3.6 Dete Lima ... 28 5.3.7 Larissa Oliveira ... 29 5.3.9 Gerusa Menezzes ... 30 5.3.9 Daiana Ribeiro ... 30 5.3.10 Edilene Alves ... 31 5.3.11 Vânia Oliveira ... 32

5.3.12 Mãe Hilda Jitolu ... 33

6. MONTAGEM ... 35 6.1. DECUPAGEM ... 35 6.2. ROTEIRO ... 35 6.3. EDIÇÃO ... 36 6.3. MONTAGEM ... 38 7. CONCLUSÃO ... 39 8. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ... 40 8.1 BIBLIOGRAFIA ... 40

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6 8.2 FILMOGRAFIA ... 42 9. APÊNDICES ... 43 9.1. MODELO DE ENTREVISTA ... 43

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7 1. APRESENTAÇÃO

Batom vermelho não combina com mulher negra. Roupa colorida não combina com mulher negra. Cabelo crespo é sinônimo de cabelo ruim. São incontáveis as ocasiões que escutamos comentários desse tipo, abastecidos de puro racismo e preconceito. Mas são incontáveis as mulheres que lutam para acabar com esses estereótipos. E temos consciência que o Ilê Aiyê, primeiro bloco afro do Brasil, teve forte influência nessa mudança de pensamento.

O Ilê subiu o Curuzu, em Salvador, e lá se instalou, criando sua sede no local que por muito tempo possuiu o título de bairro com maior população negra da cidade. A entidade representa a história de luta de um povo, muito sofrido e escravizado. Na teoria, essa época acabou há mais de 128 anos, mas até hoje as consequências permeiam, prejudicando e colocando fim a milhares de vidas.

Ser negro em um universo repleto de racismo e preconceito é difícil. São críticas a respeito da cor, da religião, dos costumes... Imagine então ser uma mulher negra? É uma batalha dupla, uma luta diária e constante. É sentir a necessidade de conhecer a sua história e batalhar por ela, lutar por uma vida melhor a cada segundo do dia. É precisar andar na rua exigindo respeito a cada esquina. É usar batom vermelho e roupa colorida e se sentir linda. É abraçar o empoderamento!

Quando ingressamos na universidade, temos diversos sonhos e a nossa vontade de aprender é admirável. Ao longo de quatro ou seis anos, ficamos enclausurados estudando em salas de aula, mas também temos a oportunidade de sair e conhecer o mundo, convivendo com pessoas de diferentes classes sociais, cultura, raça e religião. Observando distintas vidas convivendo lado-a-lado, sentimos a necessidade de doar um pouco de conhecimento, e não somente aprender.

Dessa maneira, construir um Trabalho de Conclusão de Curso se modifica em algo maior, que ultrapassa apenas uma forma de concluir essa etapa acadêmica. Para nós, esse documentário é um método de ressignificação, uma forma de mostrar o nosso novo olhar sobre a sociedade. O olhar de duas jornalistas, uma negra e uma branca, que são mulheres e que querem contribuir para uma consciência coletiva que transmita mais respeito e aceitação pelo outro (e pela outra).

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8 Criamos então o documentário “Outra Face”, com intuito de ajudar jovens negras a se sentirem um pouco mais representadas e colaborar com essa descoberta do belo, além dos padrões europeus e estéticos impostos pela sociedade, e do que pode ser a beleza quando nos colocamos no lugar de Rainhas e Deusas.

Este memorial vai descrever, sem muitas formalidades, o processo de realização e concepção do projeto. Esse texto exibe o processo de criação, de escolha de personagens, de elaboração de perguntas e montagem final do filme. O memorial também vai deixar em evidência a importância da nossa equipe de gravação e edição, formada por profissionais altamente reconhecidos no cenário baiano e brasileiro, aos quais muito temos que agradecer pelo sucesso desse projeto.

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9 2. INTRODUÇÃO

2.1. ILÊ AIYÊ

O Bloco Ilê Aiyê foi fundado em 1974, em meio ao cenário da ditadura militar no Brasil. Apesar disso, não havia intenção de se tornar um grupo com forte conotação política, como afirma o próprio fundador do bloco, o Vovô do Ilê. Foi nesse contexto que o primeiro bloco afro do Brasil foi às ruas pela primeira vez.

Hoje, 42 anos depois, o Ilê Aiyê ultrapassou o espaço de bloco carnavalesco e se tornou uma entidade afro que possui um grande compromisso com a sociedade brasileira, tratando de assuntos ligados às questões raciais e ao empoderamento feminino.

Valéria Lima, Mestre em Estudos Étnicos e Africanos, citou em sua dissertação, “Mãe Hilda Jitolu: a trajetória de uma líder espiritual baiana”, que “o Ilê Aiyê e Mãe Hilda mudaram e influenciaram escolhas e comportamentos de incontáveis homens e mulheres negras de todo o país. Foram responsáveis pelo surgimento de muitas outras instituições negras” (LIMA, 2014, p. 79).

Os projetos sociais do Ilê são apenas uma parte das ações da entidade, que hoje mantém a Escola Mãe Hilda, a Escola de Canto, Dança e Percussão Band’Erê e os Cursos Profissionalizantes.

A primeira foi fundada por Mãe Hilda Jitolu, mentora espiritual do grupo - falecida em 2009 -, e funcionava no Terreiro Ilê Axé Jitolu, onde a entidade também foi criada. Atualmente, atende cerca de 300 crianças da comunidade e do entorno, da alfabetização até a quarta-série do ensino fundamental.

A Band’Erê é uma opção para os jovens que querem aprender a tocar percussão e ter domínio sob a dança afro, além disso os alunos tem aulas de matemática, português e cidadania. Por fim, a Escola Profissionalizante atinge aos jovens de 18 a 29 anos e oferece cursos nas áreas de Eletricidade Predial e Estética Afro.

O Ilê Aiyê promove um resgate da história do povo africano e afro-brasileiro em todos os seus projetos, sejam eles culturais ou sociais, e não seria diferente com a Noite da Beleza Negra, que será o produto a ser estudado no presente trabalho.

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O Ilê Aiyê continua o seu trabalho cultural e educacional no Curuzu. Atualmente desfila no Carnaval com mais de dois mil foliões, levantando a mesma bandeira, contra a descriminação racial e pela igualdade de direitos entre brancos e negros. (LIMA, 2014, p. 79)

2.2. NOITE DA BELEZA NEGRA

A Noite da Beleza Negra teve sua primeira edição em 1979, período em que não existiam muitos concursos de beleza em que mulheres negras fossem contempladas. Uma das exceções foi o Clube Renascença, do Estado de Guanabara, hoje Rio de Janeiro, que já realizava um importante trabalho de militância na época. No concurso de Miss do clube, Vera Lúcia Couto dos Santos se tornou a primeira negra a participar e ganhar um concurso de beleza e, posteriormente, se tornou a primeira mulher negra a ganhar o título de Miss Brasil.

No Brasil, a maior parte das vencedoras de concursos tinham o perfil de mulheres brancas e magras, se inspirando no padrão de beleza europeu, exceto nos concursos de “mulatas” e os “oba-obas” do “ziriguidum”. Essas disputas, contudo, não tinham como objetivo estabelecer uma consciência racial.

Por conta disso, desde o início, a Noite da Beleza Negra trouxe uma ressignificação do conceito de beleza, transformando a consciência das negras, para que elas abraçassem sua estética e começassem a se reconhecer enquanto belas. O concurso também firmou o espaço das mulheres negras como rainhas, escolhidas para carregarem título de Deusa do Ébano.

O concurso promove uma mudança na forma de pensar das mulheres negras - participantes ou não. Há uma conscientização das participantes, que passam a perceber cada vez mais seu espaço de mulher e negra, que precisa ser representada e da necessidade de lutar pelos seus direitos, ultrapassando o âmbito puramente estético.

A importância desse concurso, como parte das atividades do Ilê Aiyê, foi muito mais além do que outro qualquer, pois ele trata da promoção de uma cultura, ou conjunto de culturas, do qual somos herdeiros e transcende as medidas de cintura, quadris, cor de olhos e cabelos. Esse concurso reafirma uma identidade, resgata valores, mostra expressões de cultura, alavanca a comunidade para voos mais altos.1

1Trecho retirado do site do Ilê Aiyê numa página dedicada à Noite da Beleza Negra: http://www.ileaiyeoficial.com/noite-da-beleza-negra/

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11 Citando Sueli Carneiro (2004), Valéria Lima já tinha pontuado, de forma sensata, que “apesar do avanço dos Movimentos sociais como um todo, a mulher negra ainda é a última classe favorecida pelos mesmos”. (LIMA, 2014, p. 17)

O estímulo para a produção do documentário vem da percepção de quanto o concurso interfere em diversos níveis de vida das participantes. As transformações estéticas, política e social serão expostos nesse projeto, mostrando aos espectadores - e a nós mesmas - como as mudanças são positivas para todas e todos os envolvidos no concurso.

Tendo como maior símbolo de representatividade uma mulher negra, o Ilê Aiyê acabou por influenciar positivamente as mulheres negras como um todo, que se sentem representadas, tanto na figura de Mãe Hilda, como na beleza e expressividade das Deusas do Ébano do Ilê, eleitas anualmente na Noite da Beleza Negra. A exaltação da mulher negra, em todos os seus aspectos, faz do bloco uma referência, quando se trata do assunto. (LIMA, 2014, p. 77)

Pela aproximação maior de Valdneide Benvindo, uma das autoras desse TCC, com o concurso e, consequentemente, com o bloco, já que sua família participou diretamente da criação do Ilê Aiyê e integra até hoje a diretoria bloco, existe um grande conhecimento e ligação íntima com as ganhadoras e participantes da Noite da Beleza Negra.

Com base em entrevistas feitas com participantes, vencedoras ou não, e com personalidades centrais do Ilê Aiyê, como Sérgio Roberto, idealizador da Noite da Beleza Negra, buscamos refletir sobre o que leva essas mulheres e jovens negras a participar do concurso.

Também temos como objetivo entender como o concurso influencia direta ou indiretamente na vida das pessoas envolvidas. Nós queremos entender, por exemplo, como algumas concorrentes se interessam em ingressar em uma faculdade por causa do concurso, observando como a disputa influenciou o modo delas pensarem e a maneira delas se enxergarem dentro da sociedade ainda machista e preconceituosa que vivemos.

Nossa especificidade de ser mulher, sendo negra, exige de nós, cotidianamente, resposta também específica, quando a essas duas categorias gênero e cor, soma-se o dado igualmente fundamental: a pobreza. [...]. A mulher negra realiza no processo de formação histórica do país um exercício cotidiano de administrar contradições. (SIQUEIRA, 1993, p. 20)

Para Sueli Carneiro, existe uma dificuldade considerável para tratar assuntos como racismo e sexismo no Brasil, “seja pela escassez de fontes, seja pela imagem estereotipada da

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12 mulher presente nas poucas abordagens da temática da mulher negra na sociedade brasileira” (CARNEIRO, 2004).

[...] Necessidade de dar expressão a diferentes formas de experiência de ser negra (vivida “através” do gênero) e de ser mulher (vivida “através” da raça), o que torna supérfluas discussões a respeito de qual seria a prioridade do movimento de mulheres negras - luta contra o sexismo ou contra o racismo. (BAIRROS, 1995, p. 461)

2.2.1 Pré-seleção

O processo de escolha da Rainha do Ilê acontece em duas fases, no momento da pré-seleção, um mês antes, e no próprio dia do concurso, um sábado. Nos primeiros anos a escolha das 15 candidatas era feita no barracão de Mãe Hilda. Mas com o aumento significativo das inscritas, necessitando um espaço maior, essa etapa passou a ser realizada na Senzala do Barro Preto, sede do Ilê Aiyê, no bairro do Curuzu, inaugurada em 2003.

Na pré-seleção, as candidatas inscritas se apresentam do lado de, no máximo, 9 concorrentes, ou seja, são 10 jovens sendo avaliadas por uma comissão julgadora, constituída por Rainhas de anos anteriores, membros da diretoria da entidade e profissionais da área de dança. Somente 15 concorrentes são escolhidas para participar da Noite da Beleza Negra.

Elas recebem uma apostila com o tema do concurso e tem um mês para criar a roupa usada na apresentação de dança individual. Nesse período, elas vão frequentar encontros, aulas de dança e dar entrevistas, uma maneira que o Ilê encontrou de aumentar a aproximação das candidatas com a entidade.

Na semana do concurso, há uma reunião com as aspirantes a Deusa do Ébano e seus acompanhantes, pessoas que vão ajuda-las a vestir a roupa e se maquiar, para delimitar as regras do evento e conhecer melhor os ajudantes.

Na véspera da disputa, uma sexta-feira, há uma coletiva de imprensa na sede do Ilê e, em seguida, as 15 jovens são levadas para um hotel, onde ficam hospedadas tendo um verdadeiro dia de rainha para poderem descansar antes do grande dia. “Talvez se não fosse o concurso do Ilê, não teríamos a oportunidade de nos hospedar em hotéis tão renomados”, diz Vânia Oliveira, integrante da entidade.

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13 Antigamente, não havia esse tipo de confinamento, mas a reunião das candidatas em um espaço fora da entidade foi benéfico para o concurso, pois diminuiu a rivalidade entre as possíveis Deusas e melhorou a convivência e o espírito esportivo.

No sábado, o tão esperado dia, o grupo volta para a sede do Ilê pela tarde, por volta das 15h, para dar início ao processo de embelezamento para o concurso. No palco da Senzala do Barro Preto, chegada a hora da festa, primeiro as candidatas dançam de forma coletiva, usando uma vestimenta feita de amarrações com panos do Ilê. A responsável por essa etapa é Dete Lima.

Posteriormente, as candidatas vestem as roupas confeccionadas por elas e, de forma individual, se apresentam e dançam por cerca de dois minutos. Esse é o momento que elas podem desenvolver e exibir melhor seus atributos. Finalizadas as 15 apresentações, os jurados elegem as três melhores e a atriz e professora Arany Santana (quem é? Seu leitor pode não saber...) anuncia a vencedora do título de Deusa do Ébano.

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14 3. METODOLOGIA

3.1. PRÉ-PRODUÇÃO

A partir do momento em que definimos que o bairro do Curuzu e, especialmente, a sede do Ilê Aiyê seria o plano de fundo desse projeto, entramos em contato com pessoas ligadas direta ou indiretamente à Noite da Beleza Negra e começamos a delimitar os possíveis entrevistados.

Inicialmente, participariam 20 membros da entidade, incluindo diretores e participantes do concurso, entre elas vencedoras do título de Deusa do Ébano, mulheres que não venceram a disputa e até algumas concorrentes que não conseguiram passar da etapa da pré-seleção.

Contudo, desde o princípio estávamos cientes de que construir um documentário com 20 depoimentos seria uma tarefa árdua e quase utópica, se pensarmos nos limites regimentais de prazo impostos a um Trabalho de Conclusão de Curso. Analisando melhor, e sendo aconselhadas pela nossa equipe de produção e pelo nosso orientador, Guilherme Maia, optamos por focar em apenas 12 depoimentos.

Seguimos a lógica de selecionar apenas indivíduos com opiniões fortes e com depoimentos que possivelmente se encaixassem de forma natural e harmônica durante a edição do documentário. Essa escolha acabou fluindo de forma positiva, pois os entrevistados elegidos a participar do “Outra Face” possuíam bons argumentos e tempo disponível, o que foi bastante agradável por conta da nossa flexibilidade de horários.

3.2. ATO DE ENTREVISTAR

Demos início às entrevistas no momento exato em que iniciamos as gravações, no mês de julho. Não houve necessidade de uma conversa prévia com os personagens eleitos para fazer parte do documentário, tendo em vista a proximidade que a estudante Valdneide Benvindo já possuía com eles.

Vale ressaltar que muitos dos depoimentos são provenientes de pessoas da própria família da futura jornalista. Dessa maneira, observamos e estudamos minuciosamente quais depoimentos nós gostaríamos que estivessem no filme, e quais eram necessários.

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A narrativa permite aos indivíduos organizarem a experiência cotidiana e o conhecimento acerca do mundo na medida em que ajuda a construir interpretações e sentidos gerados pelo exercício de narrar. Ou seja, narrar é organizar sistematicamente algo que já está lá. (PICCININ, 2009, p. 61)

Como somos duas estudantes de jornalismo, a arte de entrevistar já nos é um pouco familiar, por todos os anos de trabalhos desenvolvidos durante a faculdade e em nossos estágios. Iasmin Sobral, por exemplo, integra o Jornal Correio há mais de um ano e meio. Não só essa experiência, contudo, orientou os passos desse trabalho. O pensamento do sociólogo Pierre Bourdieu e a prática do cineasta Eduardo Coutinho também contribuíram para decisões tomadas ao longo do processo. Em grande medida, a maneira como Bourdieu entende a essência do ato de entrevistar exerceu importante influência sobre o nosso trabalho:

A entrevista pode ser considerada como uma forma de exercício espiritual, visando a obter, pelo esquecimento de si, uma verdadeira conversão do olhar que lançamos sobre os outros nas circunstâncias comuns da vida. A disposição acolhedora que inclina a fazer seus os problemas do pesquisado, a aptidão a aceitá-lo e a compreendê-lo tal como ele é na sua necessidade singular, é uma espécie de amor intelectual: um olhar que consente com a necessidade, à maneira do “amor intelectual de Deus”, isto é, da ordem natural, que Spinoza tinha como a forma suprema do conhecimento. (BOURDIEU, 2008, p. 704)

Por meio da apreciação de documentários dirigidos por Eduardo Coutinho e de estudos sobre a poética do diretor, aprendemos sobre a necessidade de pesquisar sobre os personagens antes de iniciar as gravações. Nos filmes de Coutinho, somente depoimentos realmente interessantes são incluídos no filme.

Sua equipe é responsável por realizar uma conversa prévia com os possíveis escolhidos, mostrando o resultado dessas entrevistas ao diretor. Esse primeiro contato também funciona para deixá-los mais à vontade na hora de dialogar com Coutinho, dando espaço para inesperados segredos e histórias interessantes serem reveladas de forma natural.

Antes de começarmos o processo de gravações e entrevistas, assistimos ao filme chamado Coutinho.doc - Apartamento 608 (FORMAGGINI, 2009), que exibe o processo criativo do diretor supracitado. O filme foi dirigido por uma de suas produtoras, Beth Formaggini, com imagens de making off do processo de criação e gravação do documentário Edifício Master (COUTINHO, 2002).

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16 Por ter mais conhecimento a respeito do Ilê Aiyê e da Noite da Beleza Negra, Valdneide foi responsável pela elaboração das perguntas utilizadas em nosso questionário e criou oito questionamentos para os dirigentes do bloco e cerca de doze indagações para as candidatas e Rainhas. Algumas das perguntas, é bom frisar, eram exclusivas para alguns dos personagens, como é o caso de Vânia Oliveira, a única entrevistada que não conquistou o título de Deusa do Ébano.

Os questionamentos elaborados falavam sobre a participação da personagem no bloco Ilê Aiyê e no concurso, sobre as transformações identificadas na vida de cada uma depois da disputa e indagavam sobre a importância da entidade na vida dos negros e negras, não somente das pessoas ligadas diretamente ao Ilê.

No final das contas, essas poucas indagações se multiplicaram e o questionário sofreu modificações, pois ao longo da conversa nós observamos outros possíveis questionamentos e detalhes que poderiam se tornar interessantes na edição do documentário. Dessa maneira, fomos adicionando novas perguntas aos entrevistados.

Com a ajuda da nossa equipe de gravação, que teve fundamental importância no desenvolvimento desse projeto, também inserimos elementos que não tinham sido delineados no roteiro inicial e na visão que tínhamos sobre o documentário. Com a experiência da consultora Maira Cristina, o responsável pelo som Nuno Penna, o diretor de fotografia Emerson Santos e o assistente de câmera OG Marcelo, optamos por diferentes formas de capturar os sons, criamos distintas áreas de locação e modificamos os planos de fundo das gravações, dando maior dinâmica ao processo de entrevistas. Fábio Barreto, percussionista do Ilê, atuou como roadie e nos ajudou a montar nosso set de filmagens.

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17 4. REFLEXÕES SOBRE A NATUREZA DOS DOCUMENTÁRIOS

O documentário “Outra Face” relata as mudanças ocasionadas na vida das personagens antes, durante e depois da participação na Noite da Beleza Negra. A visão crítica sobre a importância do concurso para a maioria das participantes é o foco do nosso projeto, detalhando como a disputa e o Ilê Aiyê influenciaram positivamente no modo das mulheres se enxergarem e dialogarem com a sociedade, ainda muito preconceituosa.

Definir o que é um documentário, contudo, é uma tarefa árdua e renomados autores recusam a tarefa de oferecer uma definição exata do gênero. “Uma das funções do documentário é contar aquelas fantásticas histórias reais” (ROSENTHAL, 1996, apud PUCCINI, 2009).

Segundo Bill Nichols, em sua obra Introdução ao documentário, “todo filme é um documentário. Mesmo a mais extravagante das ficções evidencia a cultura que a produziu e reproduz a aparência das pessoas que fazem parte dela” (NICHOLS, 2005, p. 26).

A definição de ‘documentário’ não é mais fácil que a de ‘amor’ ou de ‘cultura’. Seu significado não pode ser reduzido a um verbete de dicionário, como ‘temperatura’ ou ‘sal de cozinha’. Não é uma definição completa em si mesma que possa ser abarcada em um enunciado (...). (NICHOLS, 2005, p. 47)

Segundo Nichols, existem dois tipos de filme e cada um “conta uma história, mas essas histórias, ou narrativas, são de espécies diferentes”. (NICHOLS, 2005, p. 26). Os documentários de satisfação de desejos são chamados de ficção, expressando nossos sonhos e pesadelos. Já os documentários de representação social, categoria na qual “Outra Face” está incluído, são intitulados de não-ficção, representando aspectos da realidade social, “detalhes de um mundo que já ocupamos e compartilhamos” (NICHOLS, 2005, p. 26).

Nichols define os documentários como produtos que atuam como “uma reapresentação do mundo em que vivemos” e “significam ou representam os pontos de vista de indivíduos, grupos e instituições” (NICHOLS, 2005).

A concepção de um filme criado junto aos personagens, inserindo ainda a visão do diretor perante o mundo, surgiu com o primeiro documentário registrado na história, Nanook, o esquimó (FLAHERTY, 1922). Em expedição pelo Canadá, Robert Flaherty conhece Nanook e resolve filmar a luta de vida dele e de sua família pela sobrevivência no Ártico durante um ano.

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18 Afirmar que os filmes de documentário “são apenas uma reprodução da realidade, como já ocorreu durante sua história, é um caminho que apenas facilitaria a definição, mas não uma solução satisfatória para o problema” (COOK, 2016). Nichols também reflete sobre essa questão:

O fato de os documentários não serem uma reprodução da realidade dá a eles uma voz própria. Eles são uma representação do mundo, e essa representação significa uma visão singular do mundo. A voz do documentário é, portanto, o meio pelo qual esse ponto de vista ou essa perspectiva singular se dá a conhecer. (NICHOLS, 2005, p. 73)

Fernão Pessoa Ramos, em seu livro Mas afinal... o que é mesmo documentário?, também reflete sobre a dificuldade de uma distinção definitiva entre filmes ficcionais e documentais:

O trabalho de definição do documentário é conceitual. Estamos trabalhando com ferramentas analíticas que têm por trás de si uma realidade histórica. Não se trata aqui de estabelecermos uma morfologia do documentário, com a mesma metodologia que cerca, por exemplo, definições nas ciências naturais. Diferenças entre documentários e ficções, certamente, não são da mesma natureza das que existem entre répteis e mamíferos. Lidamos com o horizonte da liberdade criativa de seres humanos, em uma época que estimula experiências extremas e desconfia de definições. (PESSOA RAMOS, 2008, p. 22)

Nichols entende que uma das forças que atuam no processo de definição de um gênero é o modo como o filme se apresenta ao publico, ou seja: “Se John Grierson chama Correio noturno de documentário ou se o Discovery Channel chama um programa de documentário, então, esses filmes já chegam rotulados como documentário” (NICHOLS, 2005, p. 49). Dessa maneira, o espectador já inicia sua experiência esperando um documentário e não coloca em prática sua observação crítica a respeito da natureza do objeto.

Nesse contexto, tanto o realizador quanto o espectador passam a ser uma peça fundamental no processo: “O que ganha expressão é o ponto de vista pessoal e a visão singular do cineasta. O que faz disso um documentário é que essa expressividade continua ligada às representações sobre o mundo social e histórico dirigidas aos espectadores” (NICHOLS, 2005, p. 41).

O documentário é caracterizado também como um território de expressão menos contingenciado pelos ditames do mercado e, por isso, mais aberto a variedade temática e estética. Para Salles (2005), o distanciamento entre o documentário e outros gêneros repercute na falta de obrigação em inserir obras dessa espécie em um enquadramento rígido, regido pela

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19 indústria cinematográfica forte e pelo capitalismo, como ocorre nos filmes de ficção. Isso possibilita uma maior liberdade em relação aos temas e a forma que eles são discutidos.

Embora os autores consultados neste trabalho apontem para a dificuldade de definir o documentário - alguns, como Da-Rin2, chegando a interditar qualquer perspectiva de existência de um conceito de documentário capaz de operar no campo teórico -, os estudiosos também indicam aspectos que distinguem o documentário de seus companheiros cinematográficos.

Ramos (2008) destaca que o filme de não ficção exibe uma forte tendência em usar a enunciação em primeira pessoa, com um “eu” que faz asserções sobre sua própria vida, ainda que as falas sejam articuladas pela presença do diretor. Para o autor, o documentário teria como próprio à sua narrativa a presença da locução (voz over), de entrevistas ou depoimentos, a utilização de imagens de arquivo, rara utilização de atores profissionais (ele ressalta que não há um star system estruturando o campo documentário) e a intensidade particular da dimensão da tomada.

Já Nichols (2005), propõe que a categoria se define mais por um contraste com o filme de ficção ou filme experimental e de vanguarda do que por características intrínsecas referentes ao formato do filme em si, mas também aponta para aspectos internos operando no processo, ao afirmar que “os instrumentos de gravação (câmeras e gravadores) registram impressões (visões e sons) com grande fidelidade. Isso lhes dá valor documental, pelo menos no sentido de documento como algo motivado pelos eventos que registra.” (2005, p. 64)

“Outra Face” quis ser um documentário. “Outra Face” é um documentário. Um documentário baseado em entrevistas e material de arquivo, com vocação jornalística (desejo de informar) e pedagógica (desejo de formar), o que o aproxima mais do documentário expositivo. Por outro lado, pelas ligações familiares, culturais e afetivas de uma das autoras com o objeto, assim como pela realização de entrevistas, ele tem também uma natureza participativa. Além disso, ao explorar imagens que oferecem dança aos olhos e música aos ouvidos do espectador, ele incorpora uma dimensão poética. Utilizando a classificação de

2 “Devemos admitir que documentário não é um conceito com o qual se possa operar no plano teórico. Toda conceituação terá então que ser produzida pela própria análise” (DA- RIN, Silvio, 2004, p. 18)

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20 Nichols3, portanto, entendemos que o documentário que resultou dessa pesquisa se situa em um lugar entre o expositivo e o participativo, mas com generosas pinceladas de poesia.

3 Bill Nichols classifica os documentários em 6 modos de representação: poético, expositivo, observativo, participativo, reflexivo e performático.

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21 5. DESENVOLVIMENTO DE “OUTRA FACE”

5.1. ESCOLHA DO TEMA

Por ter crescido na Ladeira do Curuzu, no terreiro Ilê Axé Jitolu, onde nasceu o bloco afro Ilê Aiyê, e, por isso, estar inserida dentro das atividades da entidade, Valdneide sempre compreendeu a importância de ser negra, e a consciência política acerca das questões raciais esteve presente desde muito cedo na sua mente. A Noite da Beleza Negra a formou enquanto mulher e a fez nunca ter problemas com sua cor e suas características negras, como o cabelo crespo.

Desde quando fez o vestibular e conseguiu uma vaga para cursar jornalismo, Valdneide sabia que seu Trabalho de Conclusão de Curso seria um produto. Quando chegou o período de escrever o projeto, na disciplina Elaboração de Projeto em Comunicação, ela chegou a recuar em falar de algo tão próximo, mas acabou cedendo e resolveu contar a história da Noite da Beleza Negra e de algumas das suas participantes.

A estudante percebeu que assim como a Noite da Beleza Negra foi importante na vida dela, poderia ter grande significado para outras meninas e jovens negras que estão espalhadas por este mundo. “Para eleger o tema é preciso pensar sobre a sua importância histórica, social, política, cultural, científica e econômica” (CARVALHO, 2006, p. 02).

Valdneide percebeu que havia uma mudança muito explícita na vida das participantes e, mesmo as que não ganharam o título de Deusa do Ébano, conquistaram coisas tão importantes quanto, como autoestima, conhecimento sobre sua própria história e empoderamento. Ao analisar todo esse âmbito, a estudante viu que este era um desdobramento que, talvez, nem todos soubessem que existia em relação à Noite da Beleza Negra do Ilê.

Da década de 1970 até os dias atuais, as mulheres negras avançaram na construção de uma identidade dentro do movimento negro e feminista, aumentando assim as discussões acerca da mulher negra na formação e liderança das entidades. Esse avanço é de grande importância, não apenas no que se refere à inserção da mulher negra nas esferas de poder e narrativas, mas, principalmente, para mudanças a respeito de temas do cotidiano como a violência doméstica, políticas públicas que busquem acesso à educação, à saúde, melhores condições no mercado de trabalho, bem como as especificidades do gênero. Porém, destaca-se neste contexto o avanço no que diz respeito a religiosidade afro-brasileira. (LIMA, 2014, p. 17)

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22 Com toda essa motivação pessoal e uma facilidade em transitar nesse meio, já que está intimamente ligada ao Ilê desde o nascimento, Valdneide se preocupou com a qualidade do seu trabalho, pois a carga de conteúdo textual e filmográfico poderia superar sua capacidade de trabalhar sozinha. Em uma das disciplinas que cursava, ela encontrou a estudante Iasmin Sobral, ainda meio indecisa sobre o tema de seu trabalho final. As duas conversaram e decidiram seguir juntas nesse caminho.

Iasmin não é negra, então não poderia falar com propriedade sobre o assunto, sobre a aceitação e sobre os preconceitos sofridos. Mas isso não impede ela de ter a sensibilidade necessária para fazer parte de um projeto tão delicado e interessante. Iasmin é, acima de tudo, mulher, e conhece a importância do empoderamento e da luta por respeito e igualdade.

Analisando sempre a necessidade de abordar temas polêmicos e desconstruir pensamentos engessados na sociedade sobre as mulheres, principalmente as mulheres negras, Iasmin e Valdneide construíram esse documentário, sob supervisão do docente Guilherme Maia, que aconselhou e fez as correções necessários no projeto. O “Outra Face” visa aumentar a consciência dessas jovens afrodescentes, com a autoafirmação e a aceitação dos aspectos físicos da sua raça. “Nos documentários, encontramos histórias ou argumentos, evocações ou descrições, que nos permitem ver o mundo de uma nova maneira” (NICHOLS, 2005, p. 28).

5.2. GRAVAÇÕES

Tivemos o privilégio e o benefício de ter uma equipe profissional para filmar nosso documentário. Maira Cristina foi nossa consultora, Emerson Santos o diretor de fotografia, OG Marcelo atuou como assistente de câmera e Nuno Penna foi responsável pelo som. Fábio Barreto, percussionista do Ilê Aiyê, atuou como roadie e nos ajudou a montar nosso set de filmagens.

Todas as gravações do documentário foram feitas no bairro do Curuzu. Com exceção da entrevista de Gerusa Menezzes, Deusa do Ébano 1998, todas entrevistas foram realizadas dentro da Senzala do Barro Preto, sede do Ilê. A intenção foi aproveitar o prédio da entidade e mostrar sua diversidade de espaços, ambientando os participantes em um lugar familiar e já conhecido por eles.

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23 Como aprendemos com Sergio Puccini, no livro Roteiro de documentário: da pré-produção à pós-pré-produção, a escolha do local da entrevista vai muito além dos aspectos técnicos, também por esse motivo escolhemos aquele ambiente que é tão próximo para todos os entrevistados.

Em um estúdio, cercado de parafernália técnica estranha ao entrevistado, o depoimento pode perder a espontaneidade, tornar-se mais frio e contido do que um ambiente de convívio diário, como a casa ou o local de trabalho, por exemplo. (PUCCINI, 2001, p. 70)

No caso de Gerusa, nossa preferência foi gravar dentro do salão de beleza que ela montou no bairro do Curuzu, onde mora há mais de dez anos. Observamos que aquele é um espaço que está intimamente ligado à transformação vivida pela personagem depois de receber o título de Deusa do Ébano. Durante a entrevista, ela deixou nítido, em diversos momentos, que o Ilê foi o grande responsável pela sua metamorfose e, sem a entidade, talvez seu salão não fosse criado e ela não seria tão reconhecida, sendo até fotografada por turistas que visitam o Curuzu.

A captação de imagens foi feita por duas câmeras, a que chamamos de câmera A foi a Sony FS100, com lente 16-35mm, e a câmera B Canon 6D, com lente Canon 70-200mm. A câmera A foi a responsável por planos mais abertos, enquanto a B pelos enquadramentos mais fechados e closes. O áudio foi capturado com um microfone boom e um de lapela.

A etapa de entrevistas do documentário foi realizada em apenas dois dias, 12 e 18 de julho. Escolhemos a sede do Ilê Aiyê, localizada no Curuzu, como o plano de fundo para o depoimento dos nossos entrevistados. E não poderia ser diferente, já que a entidade faz parte do documentário, se tornando quase uma personagem desta obra. A única exceção foi Gerusa Menezzes, como já explicamos anteriormente.

A equipe se reuniu na sede da entidade e, depois de alguns minutos arrumando o cenário, montando planos de fundos, movendo quadros, cadeiras e mesas do lugar, demos início aos primeiros passos do “Outra Face”.

Em mãos, tínhamos o roteiro de perguntas impresso. Valdneide conduziu o questionário com os entrevistados. Ela lutava para se colocar no lugar de diretora sem deixar os laços familiares atrapalharem, de alguma forma, a condução dos depoimentos. Trabalho feito com bastante êxito. Iasmin interferiu, pouquíssimas vezes, quando a relação de pai e filha, madrinha e afilhada, foi chegando muito perto.

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24 Assim como Valéria Lima, Valdneide também foi desafiada pela dificuldade de falar sobre algo tão próximo, já que a história do Ilê Aiyê está intimamente ligada à própria história de vida da estudante.

A história do mais antigo bloco afro ainda em atividade no Brasil se tornou conhecida mundialmente, e falar de algo tão comum acaba por se tornar uma tarefa mais difícil, principalmente a partir de onde eu venho. Eu nasci em 1985, e encontrei uma instituição consolidada, já com 12 anos de tradição, tudo isso faz com que eu veja o Ilê como algo sem valor inicialmente. Identificar a contribuição dada e reconhecer suas lideranças como algo importante a toda uma comunidade, estando tão próxima, se tornou uma grande tarefa para mim e na verdade, meu maior desafio. (LIMA, 2014, p. 64 a 80)

A equipe de gravação também colaborou de forma significativa, utilizando experiência que nós duas ainda não tínhamos. Maira Cristina contribuiu bastante para a condução das entrevistas no primeiro dia e interferiu quando era pertinente, dando dicas e sugerindo perguntas ao pé do ouvido de Valdneide.

A única vez que Maira assumiu o posto de diretora foi na condução da entrevista de Mirinha, primeira Rainha do bloco. Bastante envergonhada e com dificuldade em responder as perguntas, Mirinha começou a se sentir mais à vontade ao conversar com a nossa consultora.

Emerson foi muito importante no segundo dia de gravação, já que Maira estava viajando e, por isso, não pôde comparecer. Ele nos deu um grande apoio nos momentos em que as perguntas se escondiam em nossas mentes. Ambos contribuíram bastante e ajudaram até mesmo criando perguntas que estavam fora do roteiro, tornando os depoimentos mais leves, menos engessados e muito mais emotivos.

No primeiro dia de gravações, entrevistamos o Vovô do Ilê, seguido de Vivaldo Benvindo, Mirinha Cruz e Vânia Oliveira. No segundo dia, filmamos com Arany Santana, Dete Lima e a atual rainha do Ilê, Larissa Oliveira. Subimos a ladeira do Curuzu e seguimos para o salão de beleza de Gerusa Menezzes. No retorno à sede, finalizamos o processo de filmagem com as entrevistas de Daiana Ribeiro e Edilene Alves, última rainha a conviver com Mãe Hilda.

Todo o processo de gravação do documentário aconteceu com sucesso e sem grandes empecilhos. Por repetidas vezes fomos obrigadas a interromper as gravações e ir comprar mais pilhas para o equipamento de luz, mas isso não chegou a ser um problema irreparável.

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25 Acreditamos que o nosso maior desafio foi filmar com o barulho dos alunos que estudam na sede do Ilê. Foi bastante complicado dar seguimento às gravações enquanto as crianças estavam no horário do recreio! E nós perdemos essa disputa. Apesar da frustração, a espera por alguns minutos ajudava os entrevistados a ficarem mais soltos e ambientados com todas aquelas câmeras e olhos ao redor - além de dar uma chance para nós, que estávamos tão concentradas, darmos um tempo naquele trabalho e relaxarmos um pouco com as brincadeiras da equipe.

5.3. ENTREVISTAS

Inicialmente, selecionamos mais de 20 pessoas para serem entrevistadas, entre candidatas não escolhidas, rainhas e pessoas envolvidas com Ilê Aiyê. Tínhamos como objetivo conversar com quase todas elas, mas essa ideia foi efusivamente desconstruída pela equipe de gravação. Nuno Penna e Maira Cristina nos informaram que seria um trabalho árduo e até desnecessário entrevistar tantas pessoas, já que não conseguiríamos utilizar de forma satisfatória o depoimento de todos eles no documentário.

Seguimos o conselho e conseguimos reduzir o número de entrevistados para onze. A escolha foi bastante complicada, e a exclusão se tornou dolorosa para Valdneide, tão ligada pessoalmente à todos os convidados a participar do nosso projeto. Contudo, o necessário foi feito e selecionamos as pessoas mais importantes e com maior disponibilidade. No final das contas, entrevistamos Vovô do Ilê, seguido de Vivaldo Benvindo, Mirinha Cruz, Vânia Oliveira, Arany Santana, Dete Lima, Daiana Ribeiro, Edilene Alves, Gerusa Menezzes e Larissa Oliveira.

5.3.1 Vovô do Ilê

Ao longo de seus 64 anos, Antônio Carlos dos Santos Vovô, mais conhecido como Vovô do Ilê, viu crescer sua importância como figura central na luta contra o racismo. Fundador de uma das entidades negras mais antigas da Bahia, Vovô é sincero ao confessar que não imaginava a proporção que o bloco ia conquistar, se tornando uma instituição que ajuda milhares de negros e negras. “Nós fizemos o bloco pensando em ser um bloco carnavalesco, não tinha essa preocupação com o social, nada disso”, diz ele.

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26 É com orgulho, entretanto, que ele observa como o Ilê se tornou uma arma para a luta da raça negra, modificando a forma que os negros se enxergam, com a estética e a musicalidade de forte influência africana. “Essa questão de empoderamento do negro ainda é muito difícil, então a Bahia continua querendo se mostrar como europeia, o Brasil como tem vergonha de mostrar sua cara preta”.

Durante a entrevista realizada para a produção do documentário “Outra Face”, Vovô explicou de forma serena todos os detalhes do processo de surgimento do Ilê Aiyê e, em seguida, da criação do concurso da Beleza Negra, idealizado por Sérgio Roberto. “Esse evento é uma das principais ações afirmativas do Ilê Aiyê, né?! Mudou completamente o comportamento, a autoestima da mulher negra”, afirmou ele.

A figura principal da entidade conta também que vivenciou diversas transformações na disputa, incluindo diferentes locais onde o concurso foi realizado, a mudança no perfil das participantes.

Vovô caiu na risada ao responder nossas perguntas sobre sua influência na escolha das Rainhas, que supostamente eram “cartas marcadas”. “Dizem que pra ser Rainha tem que dormir comigo... mas isso não existe. É uma lenda. Eu nunca me envolvi com a Beleza Negra”, disse ele.

Por fim, Vovô lamentou a falta de patrocínio e criticou o empresariado baiano. Segundo ele, o racismo ainda é maior que o capitalismo.

5.3.2 Vivaldo Benvindo

Vivaldo Benvindo é irmão de Vovô, diretor-fundador do Ilê Aiyê e sua importância no surgimento do bloco não pode ser deixada de lado. O pai de Valdneide é o atualmente o diretor responsável pela organização dos projetos sociais do Ilê, além de estar ligado também à parte comercial dos shows e eventos do Ilê.

Um dos responsáveis pela arrecadação e busca de patrocínio para o concurso da Beleza Negra e para outros eventos do Ilê, Vivaldo sente a dificuldade e o racismo existente na sociedade. Ele concorda com o Vovô e reafirma que o preconceito subjuga o capitalismo.

Apesar das dificuldades, que não são poucas, Vivaldo agradece a existência de um ambiente onde os negros e as negras se sintam em casa, se enxerguem como pessoas belas e passem a ter consciência da sua raça e da necessidade de afirmação. Nesse âmbito, a Beleza

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27 Negra se torna a maior realização de algumas mulheres, que ficam extasiadas apenas em “se arrumar e desfilar no Ilê Aiyê”.

5.3.3 Mirinha Cruz

Ela é a eterna Rainha. A primeira Deusa, a primeira negra a se consagrar bela no primeiro concurso de escolha da rainha de um bloco afro. Mirinha Cruz tinha apenas dezesseis anos quando participou do concurso, em 1975, que ainda não era a Noite da Beleza Negra, era apenas a escolha da Rainha do Ilê. Ao subir no palco para dançar e encantar os jurados, não imaginava o quanto sua vida ia se transformar.

Mirinha é a “tia Rainha” até hoje. É a primeira. É eterna. Todas são. Contudo, Mirinha tem o orgulho de possuir o título de primeira Deusa do Ébano e carrega consigo a responsabilidade que essa denominação requer. Ela é o orgulho estampado em todas as suas sucessoras, ela é o poder do batom vermelho nos lábios pretos, a consciência da beleza da raça, com estética diferente e, por isso, não menos bela. “Com o concurso, a nossa luta se torna mais fácil. Ganhamos uma ‘carta de alforria’”, diz ela.

Depois de mais de quarenta anos, Mirinha ainda lembra da sensação da vitória e ainda é reconhecida por onde ela passa. “Dizem que eu sou a Deusa mais linda. Eu estava bem simples, mas talvez isso que chamou a atenção”, relembra.

5.3.4 Sergio Roberto

Grande idealizador da Noite da Beleza Negra, Sergio Roberto foi diretor-fundador do Ilê. Com o tempo, ele foi se afastando das funções, porém mas nunca deixou de participar ativamente do bloco.

Criado numa família de mulheres negras já conscientes de sua raça e empoderadas, já naquela época Roberto enxergava em suas irmãs uma fonte de inspiração, um motivo para seguir o caminho pelos estudos.

Para a criação do concurso, ele buscou inspiração nos concursos de Miss, que não tinham grande representatividade de mulheres negras. “Eu queria que tivesse uma festa pra isso. Pra todo mundo comemorar isso, a existência da gente, o espaço da gente, o existir da

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28 gente com esse olhar africano, não essa coisa europeia”.

Depois do primeiro ano da competição, ele percebeu que sua ideia poderia se tornar algo ainda mais positivo. Buscando organizar a disputa, ele pensou em um nome e criou uma estrutura para a festa. Assim surgiu, na mente de Roberto, o nome “Noite da Beleza Negra”, pois ele relacionou o “noite” com a cor da pele negra e o termo “beleza negra” veio dialogar com o objetivo do concurso, que visa exaltar a beleza das mulheres negras. “A sociedade não negra da Bahia sempre foi extremamente racista e preconceituosa. Pra eles, a beleza do brasileiro é uma beleza que não é negra”, critica.

5.3.5 Arany Santana

Arany Santana é uma das principais figuras da Noite da Beleza Negra, distribuindo sua arte e sensibilidade na apresentação do concurso. Com uma vasta experiência no teatro, no cinema e na televisão, a atriz e professora faz questão de inserir sua marca nessa noite tão importante para as mulheres negras.

“É a mulher se achando negra como tal, se achando bonita e participando desse concurso, que é um conjunto de uma série de belezas... é a indumentária, é o penteado de cabelo, é a dança, é o corpo, como ela usa esse corpo. É conhecer a sua própria história”, explica Arany.

Para ela, as negras precisam ser “malassombradas”. “Dizer isso para as candidatas, ‘afemaria’, era uma coroa na cabeça. Ser negona ‘malassombrada’ significa ser uma negra de atitude, uma negra consciente da sua história, da sua raça, que se acha bonita, que pisa firme no chão, coloca o bico na diagonal e o nariz para cima”.

Com uma voz imponente, que faz todos ao redor se calarem e escutarem atentos ao mínimo som que ela emite, Arany nos conta detalhes da disputa, valorizando a grandiosa participação feminina. “É um concurso comandado pelas mulheres, sempre foi. Dete Lima, a cabeça desse concurso, porque é a pessoa responsável pelo figurino, pela estética dessas candidatas. Mãe Hilda foi a grande mãe nesse concurso”, diz ela, saudosa.

5.3.6 Dete Lima

Dete Lima é a responsável pela estética das participantes da Noite da Beleza Negra, ajudando as aspirantes ao título de Deusa do Ébano a se vestir, a colocar o torso e a se

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29 maquiar. “Andar com sua cabeça erguida, seu nariz empinado, seu bonito turbante na cabeça, suas cores fortes com muito orgulho. Então, eu acho que isso é resposta desses 37 anos de Ilê”.

Mas a responsabilidade de Dete vai além de transformar as jovens em possíveis rainhas. Ela cuida, dá amor, carinho, atenção. Em retribuição, ela recebe o agradecimento e a chance de perceber a influência que a entidade teve na vida de todas as participantes. “É uma oportunidade de você estar mostrando a sua beleza, é uma noite de empoderamento”, diz ela.

E ao falar disso não há como não lembrar da cabeleireira Gerusa Menezzes, que foi moldada e transformada em uma Rainha. Dete tem uma intimidade grande com o concurso e, para ela, um dos momentos mais emocionantes foi ver Mirinha Cruz, sua prima, ganhar o título de Rainha do Ilê.

5.3.7 Larissa Oliveira

Larissa Oliveira teve um apoio familiar muito intenso para participar do concurso. Ela foi incentivada pelo pai e pela avó, que já morreu e não teve a chance de presenciar a coroação da neta.

Sempre decidida a conquistar a vitória, Larissa teve alguns empecilhos em sua trajetória. Ela não se tornou Rainha nos dois primeiros anos que participou do Beleza Negra, mas isso não fez ela desistir.

Em 2014, depois da primeira derrota, Larissa foi concorrer no bloco afro Muzenza e conseguiu o título máximo da beleza do bloco, sendo a Muzenbela daquele ano. Com o passar do tempo, a experiência aumentou e ela retornou ao Ilê para seguir o seu sonho. Apesar disso, conseguiu apenas o segundo lugar na disputa.

Com a ajuda do seu pai, que não a deixou desistir em nenhum momento, Larissa competiu novamente ao título de Deusa do Ébano em 2016 e finalmente venceu. “Emoção a mil! Eu entrei e não vi ninguém. Só dançava e rodava”, lembra ela.

O concurso não foi apenas um título conquistado, e sim toda uma mudança de vida. Larissa se tornou uma pessoa mais madura, observadora e determinada, e ela dedica essa transformação à sua participação na disputa.

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30 5.3.8 Gerusa Menezzes

Gerusa Menezzes pode ser considerada uma das personagens mais marcantes nesse documentário, pela expressiva transformação que sua vida tomou depois da vitória no concurso da Beleza Negra.

A cabeleireira tem um salão no bairro do Curuzu, próximo à sede do Ilê, há mais de dez anos. Mas é pelo seu título de Rainha que todos a reconhecem, que os turistas pedem para tirar fotos. Gerusa Menezzes já é um nome consolidado, e ela se orgulha disso.

“Depois que eu entrei na entidade, você vai vendo a necessidade do nosso povo, da nossa estética. Do nosso cabelo, da nossa pele. Das roupas, das vestes, das bijuterias. Então tudo é embutido na nossa estética, na nossa identidade, na nossa auto estima”.

Em 1998, quando venceu a disputa e se tornou Deusa do Ébano, Gerusa era uma mulher completamente diferente. Antigamente eram shorts e blusas curtos, não havia uma consciência da sua beleza, de como enfeitar sua pele negra. Hoje são vestidos longos, “roupas de deusa”, como ela mesmo gosta de dizer, vestimentas que valorizam o corpo.

Depois do concurso, Gerusa aprendeu a colocar um batom vermelho sem medo das críticas. Antes a imaturidade era forte, hoje ela sabe o momento certo de se impor e de falar o necessário. “Eu dei uma virada na minha vida. Eu digo a todo mundo que eu tenho 19 anos, que é o tempo que eu tenho na entidade. Eu me realizei como pessoa, como mulher, como mulher negra. Com minha auto estima”, se orgulha.

5.3.9 Daiana Ribeiro

Daiana Ribeiro tem 30 anos e é nutricionista. Essa é a Daiana Rainha, Daiana integrante do Ilê Aiyê. Antes, Daiana não tinha profissão, não tinha grandes ambições na vida. Sonhava apenas em ser a Deusa do Ébano, mas demorou quase dez anos para conquistar esse objetivo.

Desde pequena ela tinha o sonho de ganhar o concurso da Noite da Beleza Negra. Ela ia para o carnaval e admirava as Rainhas do Ilê desde os 10 anos de idade. Mas participar do concurso não foi uma caminhada fácil, não só pelas inúmeras derrotas que sofreu... Quando adolescente, Daiana sentiu vontade de começar a dançar, mas sua mãe não deixou. Ela dizia

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31 que a filha tinha que estudar e ter uma profissão. Além disso, Daiana é católica e sua mãe é evangélica, e tinha muito medo da filha passar a seguir uma religião de matrizes africanas, o que não ocorreu, mesmo quando ela conquistou o título de Deusa do Ébano em 2013.

Daiana conta que a mãe não via com bons olhos a disputa e chegou até a vetar a participação da filha no desfile do Carnaval. “A gente tinha uma convivência difícil, por causa da religião. Ela não gostava muito e não acreditava que um dia eu fosse ganhar”, relembra Daiana.

Muitos anos e tentativas se passaram. Durante o árduo caminho, ela chegou a participar de outros concursos e conquistou o título de MuzemBela em 2006. Em 2012, ela foi para o bloco Ókánbí e também ganhou. Mas seu maior desejo, o de se tornar Deusa do Ébano, ainda não estava concretizado.

Em 2013, Daiana finalmente conseguiu alcançar seu maior sonho, quando nem ela cogitava ser possível. Ela tinha 30 anos e era a última chance de disputar. “Eu chorei a noite toda”, diz ela, que ficou um tempo sem acreditar que era a Rainha do Ilê.

A Noite da Beleza Negra e o Ilê Aiyê modificaram a vida de Daiana, interferindo na relação dela com a mãe, ajudando as duas a se entenderem, além de contribuir para o seu crescimento pessoal. Antes ela era tímida, usava o cabelo liso, com ajuda de química, não tinha coragem de vestir roupas muito coloridas. Depois do título, Daiana aprendeu a passar batom vermelho, assumiu seu cabelo afro e tomou consciência da sua raça e da luta do seu povo.

Com toda a felicidade de ver seu sonho concretizado, Daiana não imaginava que ainda se tornaria a primeira Deusa a participar das filmagens do primeiro DVD do Ilê Aiyê. “É uma emoção imensa! Só eu posso dizer que fui a primeira Rainha a participar da gravação do DVD. Mirinha é a primeira Rainha. Mas a primeira Rainha do DVD sou eu”, diz, com sorriso no rosto.

5.3.10 Edilene Alves

Edilene Alves é uma daquelas meninas criadas para se tornarem Rainhas do Ilê. Desde criança ela foi influenciada pela família e, principalmente, pela mãe, que é sócio-fundadora do

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32 bloco, a se interessar pela cultura e a entender sua descendência africana. “Desde pequena estava no meio. Então para mim foi como um chamado, uma missão”, explica ela.

Edilene conta que sua primeira vez saindo no bloco afro foi dentro da barriga da mãe, que, mesmo grávida, não deixou de desfilar. A paixão pelo Ilê e pela Noite da Beleza Negra foi surgindo de forma natural e espontânea.

“Desde criança venho observando aquela mulher negra linda dançando, e me imaginando no lugar dela. E observando a cada ano para aprender alguma coisa. Para quando chegasse a minha vez eu estar com um pouco mais de bagagem. E foi como aconteceu. Então eu acho que não foi motivação, foi cumprir um chamado, uma missão”, explica ela.

Sua coroação era esperada, e não demorou de acontecer. Edilene venceu a disputa no primeiro ano que concorreu, em 2009, quando tinha apenas 18 anos, e teve o privilégio de conviver com Mãe Hilda, que morreu durante o seu reinado. “Eu estava como rainha, estava para trazer sorte. Que aquele ano, as pessoas que tivessem aqui, pudessem olhar pra mim e viessem uma fortaleza de continuar”.

Hoje, sete anos depois da vitória, Edilene ainda é reconhecida como Deusa do Ébano. O título foi importante também para abrir caminhos, ajudando ela a se tornar uma das dançarinas do Balé Folclórico da Bahia. Depois de sua passagem pelo Ilê, a bailarina também conseguiu viajar para diversos países do mundo, sendo sempre bastante valorizada e bem recebida por onde passava.

Edilene também conquistou prêmios em blocos mirins, se tornando a Rainha do Malêzinho em 2001 e ganhando o título de MuzemBela em 2008.

5.3.11 Vânia Oliveira

Vânia Oliveira é a única entrevistada do documentário que não conseguiu o prêmio de Deusa do Ébano. Apesar disso, ela é uma das mulheres mais politizadas e ligadas ao Ilê Aiyê.

Vânia é uma daquelas mulheres que sofreu por ser negra e não se sentir reconhecida como bela somente pela cor da sua pele e pelos seus traços de descendente de africanos. “Tentei ser rainha do milho, da pipoca, mas nem do amendoim eu consegui. (...) Isso sempre foi um soco na minha autoestima”, relembra.

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33 Mas a entidade e a Noite da Beleza Negra surgiram como uma forma de colaborar com essa visibilidade do negro, destacando a importância que eles têm e exibindo o que eles possuem de belo. “O concurso luta contra os padrões estéticos impostos pela sociedade, faz uma reconfiguração identitária”, diz ela.

Vânia participou pela primeira vez da disputa nos anos 2000. De lá até o ano de 2014, quando conquistou o segundo lugar, sendo a Princesa do Ilê, ela teve uma transformação significativa na sua vida, “principalmente nesse senso de pertencimento étnico racial e nessa consciência política, que é justamente uma transformação que é provocada pelo próprio concurso”.

Com uma consciência de raça instituída com grande influência do Ilê, Vânia entendeu seu lugar enquanto mulher negra e passou a exibir isso em sua forma de vestir e de se arrumar, usando batons e roupas com cores exuberantes, desfilando seus atributos encantadores e sua inteligência social e política por onde passa.

5.3.12 Mãe Hilda Jitolu

Talvez a personagem mais emocionante desse documentário. Ela não participa diretamente, não concede entrevistas e não esteve presente nos dias de gravação. Esses detalhes se tornam insignificantes ao analisar a dimensão da sua importância. Mãe Hilda está inserida em toda a história do Ilê Aiyê e, dessa maneira, não poderíamos deixar de defini-la como uma personagem do “Outra Face”.

Tendo isso em vista, um dos trechos do nosso projeto é dedicado de forma exclusiva à sua participação na criação e na afirmação do Ilê como uma instituição de luta dos negros. Mãe Hilda possui uma grande história a ser narrada, e parte dela poderá ser observada no nosso documentário, e também nesse memorial, que funciona também como homenagem à essa grande mulher.

Segundo a escritora Maria Lourdes Siqueira (2013), “Dona Hilda era uma pessoa que ficava acima dessas questões (de separação entre os movimentos negros), porque ela tinha postura, que era maior, que uma postura de uma pessoa que era mãe, que era educadora, que era uma líder comunitária, uma líder cultural, e aí coincide, que, com essa reunião dos orixás aqui na Bahia, a questão dos orixás ganha mais visibilidade, e ela era uma das lideranças”.

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Ela tinha uma liderança superior, ela não ficava entre aquelas pessoas. Dona Hilda entra numa situação privilegiada para os que conviviam com ela e um lugar privilegiado em que ela própria se colocou, pela postura dela, pela sabedoria dela, pela disponibilidade dela. (SIQUEIRA, Maria de Lourdes. 2013)

Valéria Lima relembra a contribuição de Mãe Hilda “para o surgimento e manutenção do Ilê Aiyê foi reconhecida por diversas vezes, a primeira homenagem que o bloco prestou a sua matriarca foi ainda na década de 1970, com a música Mãe Preta, escrita por Apolônio (idealizador e fundador do Ilê) e Jailson (diretor e fundador do Ilê).” (LIMA, 2014, p. 69 a 75)

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35 6. MONTAGEM

6.1. DECUPAGEM

Depois de finalizadas as entrevistas dos personagens, realizadas em dois dias, demos início à uma nova fase, a decupagem do material. De acordo com Sérgio Puccini:

Deixamos o campo de planejamento das filmagens para entrar no campo de planejamento da montagem, etapa distinta da primeira, por trabalhar com a seleção de um material mais restrito, limitado a um arranjo de combinações dentro do universo das imagens já captadas para o filme. Se, por um lado, essa restrição limita o campo de escolha para o diretor e o montador do filme, por outro, esse é o momento em que o documentarista adquire total controle do universo de representação do filme, é o momento em que a articulação das sequências do filme, entre entrevistas, depoimentos, tomadas em locação, imagens de arquivo, entre outras imagens colocadas à disposição do repertório expressivo do documentarista, em consonância com o som, trará sentido ao filme. (PUCCINI, 2009, p.17)

Nessa fase, começamos a verificar trechos, tanto sonoros quanto imagéticos, de tudo que gravamos. Optamos por dividir os depoimentos e cada uma de nós decupou metade do material, de forma que nenhuma das duas ficasse sobrecarregada.

Nossas anotações foram realizadas por cerca de duas semanas, pois possuíamos onze entrevistas e quase doze horas de conteúdo e a serem detalhados. Listamos de forma específica os timecodes, marcando a entrada (in) e saída (out) dos trechos que iríamos utilizar no roteiro - mesmo que no fim várias aspas tenham sido excluídas, por motivos diversos.

Ao final desta etapa, analisamos brevemente as melhores falas e recuperamos os momentos já marcados em nossa memória para dar início ao processo de criação do roteiro.

6.2. ROTEIRO

Assim como a produtora cultural Bruna Cook (2006) citou Amir Labaki e Giacomo Puccini em seu Trabalho de Conclusão de Curso, nosso documentário foi levado pela mesma ideia de que o acaso é o melhor roteirista de documentários (LABAKI, 2005, apud PUCCINI, 2009).

No nosso caso, começamos a entrevista sem um roteiro pré-determinado, tanto no momento inicial do projeto quanto ao longo dos depoimentos. O roteiro veio a ser concebido apenas com o término da etapa de entrevistas e com a finalização total da decupagem.

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36 Seguimos o pensamento de Jean-Claude Bernadet sobre a produção dos documentários brasileiros:

A quase exclusividade da entrevista estreita consideravelmente o campo de observação do documentarista: atitudes, o andar, os gestos, a roupa, os objetos, os ambientes, os sons que não sejam verbais etc. (BERNARDET, 2003, apud PUCCINI, 2009).

6.3. EDIÇÃO

Com o fim da decupagem das entrevistas realizadas, demos início a uma nova fase do trabalho, e talvez uma das mais delicadas: a edição do documentário. Esse é o momento em que vamos relembrando cada detalhe das falas dos nossos personagens, cada sorriso estampado no rosto, cada lágrima derramada, unindo os momentos mais emocionantes e emotivos em um mesmo lugar. De acordo com Rabiger (1998), “um documentário que não possua uma tensão que gere movimento é apenas um catálogo de episódios” (RABIGER, apud PUCCINI, p. 55).

Esse foi um momento também bastante interessante, apesar de tenso no nosso projeto, pois, como ficou claro ao longo deste memorial, Valdneide tem uma ligação muito forte com o Ilê Aiyê e a Noite da Beleza Negra. Para ela, esse documentário vai além de um simples trabalho de conclusão de curso, é uma parte da história dela e de sua família sendo narrada, é o exemplo de como o concurso da Noite da Beleza Negra pode modificar a vida de jovens negras e influenciar elas a aceitarem seus traços, para além dos padrões estéticos europeus.

Tendo isso em vista, e analisando nossa falta de experiência em edição de vídeo, decidimos contratar uma pessoa para editar o documentário. Júlio Popó foi o nosso escolhido, se interessando pelo projeto e cobrando um valor muito abaixo do mercado, apenas para cobrir eventuais custos. Com a ajuda e o profissionalismo dele, o filme foi se desenhando e se tornou um objeto palpável.

Utilizando o programa Final Cut 7.0.3, começamos o trabalho no dia 8 de agosto, na própria casa de Popó. Um mês depois, no dia 12 de setembro, terminamos a montagem do documentário, faltando apenas alguns pequenos detalhes e ajustes a serem feitos, como a inserção definitiva da trilha sonora, criada com exclusividade por Jarbas Bittencourt com o programa Logic Pro X.

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37 Vale lembrar que Jarbas é diretor musical do Bando de Teatro Olodum e do Coletivo Criativo N., responsável pela direção musical das três últimas edições da Noite da Beleza Negra. Para nosso documentário, tivemos a possibilidade de utilizar as gravações feitas para o evento.

Desde o início da edição tivemos como objetivo organizar as falas de forma que o filme tivesse uma linha emotiva e, ao mesmo tempo, cronológica. Tendo isso em vista, nossa prioridade foi mostrar, nos minutos iniciais do documentário, detalhes da história do concurso e, consequentemente, do bloco Ilê Aiyê.

Puccini relembra o caso do cineasta Eduardo Coutinho:

A entrevista não serve aos propósitos de uma ação dramática. A cada nova entrevista, instalasse uma nova situação, novos personagens entram em cena para contar novas histórias. (PUCCINI, 2009, p. 71)

A idealização da Beleza Negra, criada por Sérgio Roberto, foi bastante frisada no nosso projeto. Tivemos o cuidado de mostrar que ele foi o responsável pela autoria do concurso, pois como Roberto não faz mais parte da diretoria do bloco, a sua forte participação na criação da disputa acaba se perdendo e muitas pessoas não sabem da importância dele.

Ao longo do período de edição, também excluímos diversas falas que, inicialmente, estavam no roteiro criado ao fim da decupagem. Essa exclusão se deu em razão da falta de funcionalidade desses depoimentos, que no processo final não conseguiram harmonizar com os outros excertos do documentário. Nos baseamos na citação de Puccini sobre Eduardo Coutinho, ao destacar a importância das entrevistas, dos personagens, em detrimentos dos efeitos sonoros e visuais durante a montagem do filme:

A experimentação de Coutinho é marcada por um enxugamento da forma, em busca da valorização do evento da entrevista em detrimento de efeitos de edição e fotografia. Em outro extremo, poderíamos citar documentários que valorizam uma expressão poética, do autor, nas escolhas do texto e na composição das imagens. (PUCCINI, 2009, p. 129)

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38 6.4. MONTAGEM

O processo de montagem foi particularmente difícil para Valdneide, responsável direta pela montagem do material, feito por Júlio Popó. Iasmin, por sua vez, ficou incubida de construir esse memorial. Essa divisão foi combinada pelas estudantes, para que ninguém ficasse sobrecarregado com o trabalho. Apesar disso, o caminho das duas se cruzava diariamente, com o compartilhamento de informações e das evoluções feitas ao longo do processo.

Essa etapa durou cerca de um mês, entre erros e acertos, e o nosso roteiro original sofreu modificações, pois a teoria nem sempre funciona na prática. Com a ajuda do nosso orientador, Guilherme Maia, e de Júlio Popó, fomos delineando a melhor forma de contar essa história.

Optamos por uma linha cronológica, mas também emotiva, para o documentário. A ideia era mostrar os depoimentos relacionados à criação do Ilê Aiyê, seguido das entrevistas que falassem sobre a Beleza Negra e como o concurso modificou a vida das participantes escolhidas para o “Outra Face”. Por fim, o documentário foi finalizado com 34 minutos e 28 segundos de duração.

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39 7. CONCLUSÃO

É facilmente perceptível o quanto a construção desse documentário nos deixou orgulhosas e satisfeitas. Antes não nos conhecíamos, nem tínhamos grande nível de amizade ou intimidade. Mas decidimos seguir um caminho juntas e essa escolha nos fez realizar um projeto melhor do que poderíamos caso estivéssemos separadas.

A união entre duas futuras jornalistas, sedentas por liberdade, duas jovens que valorizam muito o seu lugar de mulher e se impõem a todo momento, não poderia ser mais produtiva do que foi em “Outra Face”.

É gratificante ver o documentário tão sonhado por Valdneide se tornar algo concreto. Iasmin se uniu ao projeto pelo interesse nas motivações da colega, e por sentir necessidade de falar sobre assuntos como esse, sobre mulheres, sobre negras e sobre o que é belo.

É interessante perceber o quanto nós nos transformamos ao entrevistar pessoas de diferentes culturas, de ambientes diversos e com visão de mundo distintas da nossa. O orgulho descreve a sensação que sentimos hoje, de encerrar um ciclo tão importante na nossa vida acadêmica - e por que não pessoal? - de forma tão construtiva.

Nosso objetivo era construir algo que pudesse interferir de forma positiva na vida de outras pessoas, e sentimos que realizamos isso de forma satisfatória. Ao assistirmos o “Outra Face” finalizado e pronto para ser avaliado pela banca examinadora, notamos surgir um desejo imenso de que seja visto por diversas pessoas, sejam amigos, familiares, professores ou até desconhecidos.

Já almejamos também que o documentário possa abrir portas para novos projetos, novas pessoas e parcerias, que possa concorrer a prêmios... Mas, para além dessas aspirações, nosso maior desejo é que o “Outra Face” ajude jovens e mulheres, mostrando a elas que a beleza está além dos padrões, além do que é dito, está dentro de nós.

Referências

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