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"O sagrado vínculo do matrimónio não está sujeito ao arbítrio da vontade humana": a 'intemporalidade cristã em confronto com a modernidade (séculos XIX-XXI)

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Igrejas e Ditaduras

no Mundo Lusófono

Leandro Pereira Gonçalves

Maria Inácia Rezola

(organizadores)

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Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa Av. Professor Aníbal de Bettencourt, 9

1600–189 Lisboa – Portugal Telef. 21 780 47 00 – Fax 21 794 02 74

www.ics.ul.pt/imprensa imprensa@ics.ul.pt

Instituto de Ciências Sociais – Catalogação na Publicação GONÇALVES, Leandro Pereira

Igrejas e ditaduras no mundo lusófono /

Leandro Pereira Gonçalves, Maria Inácia Rezola. - Lisboa : Imprensa de Ciências Sociais, 2019.

ISBN 978-972-671-524-5 CDU 32

Capa: Mário Felix

Composição e paginação: Ana Cristina Carvalho Revisão: Vasco Grácio

Impressão e acabamento: Gráfica Manuel Barbosa & Filhos, Lda – Lousa Depósito legal: 451356/19

1.ª edição: Fevereiro de 2019

Imprensa de Ciências Sociais

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9 15 27 57 87 121 159 203

Índice

Autores ... Sob o signo da ditadura: Estado, Igrejas e religiosidade no espaço

lusófono ...

Leandro Pereira Gonçalves e Maria Inácia Rezola

Capítulo 1

O anticomunismo católico e a ditadura de 1937 ...

Rodrigo Patto Sá Motta

Capítulo 2

O catolicismo no Brasil do período Vargas: imbricações entre religião, política e espacialidade (1930-1945) ...

Cândido Moreira Rodrigues e Renato Amado Peixoto

Capítulo 3

Vozes dissonantes no catolicismo em tempos de ditadura (1964- -1985) ...

Gizele Zanotto

Capítulo 4

Mirando o espelho atlântico: Alceu Amoroso Lima e Portugal – do Estado Novo à Revolução dos Cravos ...

Marcelo Timotheo da Costa

Capítulo 5

Igreja Católica, sociedade e Estado em Portugal no século xx ...

Paulo Fontes

Capítulo 6

«O sagrado vínculo do matrimónio não está sujeito ao arbítrio da vontade humana»: a ‘intemporalidade’ cristã em confronto com a modernidade (séculos xix-xxi) ... Rita Almeida de Carvalho

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Capítulo 7

Estado Novo e a Igreja Católica: nem paz, nem guerra. A ges-tão política interna e externa por Salazar de uma segunda separação ...

Bruno Cardoso Reis

Capítulo 8

O catolicismo português e o debate sobre o desenvolvimento eco-nómico na década de 1960 ...

Nuno Estêvão Ferreira

Capítulo 9

«De utilidade imperial e sentido eminentemente civilizador»: a política missionária no Império Colonial Português durante o Es-tado Novo (C. 1930-1960) ...

Hugo Gonçalves Dores

Capítulo 10

Uma Igreja ambivalente: os católicos angolanos entre a «portu-galidade» e a subversão da ordem colonial ...

Maria Da Conceição Neto

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Autores

9

Autores

Bruno Cardoso Reis, é doutor em Segurança Internacional

(War Studies-King’s College) e mestre em História pela Univer-sidade de Cambridge. Docente do Instituto Universitário de Lisboa (ISCTE-IUL), membro do Centro de Estudos de História Religiosa da Universidade Católica Portuguesa (CEHR/UCP), da International Studies Association, da British International Studies Association e do Institute for International and Strategic Studies de Londres. Tem publicado em revistas nacionais e internacionais sobre temas de história e relações internacionais. O livro Salazar e o

Vaticano (Imprensa de Ciências Sociais, 2007), em que se analisam

estas relações do ponto de vista do contexto internacional, recebeu os prémios Vítor de Sá de História Contemporânea e Aristides de Sousa Mendes de Relações Internacionais. Atualmente desenvolve um projeto sobre a descolonização e o período imediatamente a seguir, olhando para o caso português numa perspetiva comparada com a França e a Grã-Bretanha, e prestando particular atenção ao papel da estratégia, da violência, da ideologia e das mudanças normativas no processo de descolonização.

Cândido Rodrigues, é doutor em História pela

Universi-dade Estadual Paulista (UNESP/SP) e pós-doutor em História Contemporânea pela Université Bordeaux-Montaigne/France. Professor Associado de História Contemporânea da Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT). É um dos líderes da rede de pesquisa História e Catolicismo no Mundo Contemporâneo. Autor de A Ordem – Uma Revista de Intelectuais Católicos,

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Igrejas e Ditaduras no Mundo Lusófono

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o Intelectual Alceu Amoroso Lima no Brasil dos Anos 1928-1946.

(Alameda, 2013). Atualmente desenvolve pesquisas na área de História Contemporânea, História Política, Intelectuais, Catoli-cismo no Brasil e Direita Francesa.

Gizele Zanotto, é doutora em História Cultural pela

Univer-sidade Federal de Santa Catarina (UFSC) e pós-doutora pela Universidad de Buenos Aires (UBA). Professora na Universidade de Passo Fundo (UPF), onde coordena o Núcleo de Estudos de Memória e Cultura (NEMEC), o Laboratório de Estudos das Crenças (LEC-PPGH), o Arquivo Histórico Regional (AHR). Também participa dos seguintes grupos de pesquisa interinsti-tucionais: Catolicismo, tradição e modernidade (PUC-Minas); Religiosidade e Cultura (UFSC). Radicada ao grupo de trabalho Religión y Sociedad en Argentina Contemporánea (RELIG-AR), vinculado à Universidad de Buenos Aires (UBA) e à Universidad Nacional de Luján (UNLu). É uma das líderes da rede de pesquisa História e Catolicismo no Mundo Contemporâneo e investiga-dora associada da rede de pesquisa Direitas, História e Memória. Membro cooperador de Civitas – Forum of Archives and Research on Christian Democracy.

Hugo Gonçalves Dores, é doutor em História no Programa

Interuniversitário de Doutoramento em História (PIUDH, ICS – Universidade de Lisboa). Atualmente desenvolve o seu projeto de pós-doutoramento – «‘Educating Empires’: International orga-nizations, inter-imperial cooperation, and educational policies in late colonialism» – no Centro de Estudos Sociais da Universi-dade de Coimbra (CES-UC). Membro do Centro de Estudos de História Religiosa da Universidade Católica Portuguesa (CEHR/ UCP) e do Consejo Academico de Centro de Estudios Afro-Hispanicos da Universidad Nacional de Educación a Distancia (UNED, Madrid, Espanha). Foi visiting scholar na Universidade de Lovaina (Katholieke Universiteit Leuven) e na Brown Univer-sity. Tem trabalhado sobre missões e império (séculos xix e xx),

nomeadamente sobre as políticas imperiais relativas à missionação (católica e protestante), à educação e ao desenvolvimento.

Leandro Pereira Gonçalves, é doutor em História pela

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Autores

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(junior visiting fellowship) no Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa (ICS-ULisboa) e com pós-doutoramento pela Universidad Nacional de Córdoba (UNC, Centro de Estu-dios Avanzados, Argentina). Professor do Departamento de História da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF) e inves-tigador estrangeiro associado ao Centro de Estudos de História Religiosa da Universidade Católica Portuguesa (CEHR/UCP). Coordenador da rede de pesquisa Direitas, História e Memória. As pesquisas recentes concentram-se em questões relacionadas à compreensão do conservadorismo do século xx, o estudo da

direita, cristianismo e autoritarismo, fascismo, integralismo e nos aspectos teorizados através da cultura política, tendo como foco os elementos transnacionais existentes entre a Península Ibérica e a América Latina. Autor de diversos artigos científicos e do livro

Plínio Salgado: Um Católico Integralista entre Portugal e o Brasil (1895-1975) (Imprensa de Ciências Sociais, 2017).

Marcelo Timotheo da Costa, é doutor em História Social da

Cultura pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio). Professor e Pesquisador da Universidade Salgado de Oliveira (Programa de Pós-Graduação em História, UNIVERSO). Foi visiting fellow no Center for World Catholicism and Intercul-tural Theology, da DePaul University, em Chicago. Autor, entre outros textos, do livro Um Itinerário no Século: Mudança,

Disci-plina e Ação em Alceu Amoroso Lima (Loyola/PUC-Rio, 2006).

Principais áreas de interesse: Pensamento Social Brasileiro, História do Brasil Republicano, Religião e Política no Brasil, História do Pensamento Cristão, História das Religiões Monoteístas, História e Sensibilidades Religiosas, Biografias, Relatos de Viagem e Escrita de Si. Bolsista APQ1 da FAPERJ (2010).

Maria da Conceição Neto, é doutora em História pela

Univer-sidade de Londres (SOAS), com tese que foca a história da urba-nização do Huambo (centro de Angola) no período colonial, com destaque para o impacto do cristianismo nas mudanças sociais na região no século xx. Historiadora angolana e professora de

História de Angola desde 1989, lecciona atualmente na Faculdade de Ciências Sociais da Universidade Agostinho Neto (Luanda). Foi investigadora (part-time) no Arquivo Nacional de Angola. Trabalhou também em História Oral, com maior incidência na luta

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Igrejas e Ditaduras no Mundo Lusófono

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anticolonial («Projecto Angola – Nos trilhos da Independência» 2010-2015). Tem publicados diversos artigos e capítulos de livros. Foi investigadora visitante no CEAN, Bordéus e na EHESS, Paris.

Maria Inácia Rezola, é doutora em História pela Faculdade

de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa (especialidade História Institucional e Política Contemporânea). É professora adjunta na Escola Superior de Comunicação Social do Instituto Politécnico de Lisboa e investigadora do Instituto de História Contemporânea (IHC-FCSH/UNL). Os seus interesses de pesquisa são as relações entre a Igreja e o Estado, as transições democráticas, o comportamento político das Forças Armadas, justiça de transição, história dos média e do jornalismo. Recente-mente foi co-coordenadora do Dicionário de História de Portugal

– o 25 de Abril. Porto, Ed. Figueirinhas, 2017, 8 vols.

Nuno Estêvão Ferreira, é doutor em Ciências Sociais

(espe-cialidade Sociologia Política) pelo Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa. Membro do Centro de Estudos de História Religiosa (CEHR), onde desenvolve projeto de pós- -doutoramento, com bolsa da Fundação para a Ciência e Tecno-logia (SFRH/BPD-104167/2014), sobre a relação entre catolicismo e corporativismo no pós-II Guerra. Interesses de investigação: processos de decisão política nos regimes autoritários europeus formados no período de entre-guerras; relação entre programas, instituições e aparelhos corporativos das ditaduras ibéricas; secu-larização das sociedades europeias contemporâneas.

Paulo Fontes, doutorou-se em História pela Universidade

Cató-lica Portuguesa (2007), onde é docente e desempenha funções de diretor e investigador do Centro de Estudos de História Religiosa. É membro da Comissão Directiva do PIUDHist Programa de Doutoramento InterUniversitário em História e tem participado em múltiplos projetos de investigação nacionais e internacionais. Dedica-se à história da sociedade e do catolicismo portugueses na época contemporânea, em particular a relação do movimento católico com os movimentos sociais. Dos seus trabalhos publi-cados, destaque para Elites católicas em Portugal: o papel da Acção

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Autores

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Renato Amado Peixoto, é doutor em História Social pela

Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Professor Asso-ciado na Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN). É um dos líderes da rede de pesquisa História e Catolicismo no Mundo Contemporâneo. Líder do grupo de pesquisa Teoria da História, Historiografia e História dos Espaços (UFRN). Inte-grado enquanto pesquisador à Red de Estudios de Historia de la Secularización y la Laicidad (REDHISEL/Argentina) e associado da Sociedade Brasileira de Teoria e História da Historiografia (SBTHH) e da International Network for Theory of History (INTH/Bélgica). Desenvolve investigações na aproximação História e Espaço pesquisando teoricamente e metodologicamente as relações de produção de espacialidades, temporalidades e iden-tidades nos campos político, cultural e religioso.

Rita Almeida de Carvalho, é doutora em História pela

Universidade Nova de Lisboa (UNL). Investigadora no Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa (ICS-ULisboa). Tem participado em diversos projetos de investigação sobre as relações entre a Igreja Católica e o Estado português, os usos políticos da arquitectura, fascismos e autoritarismo. Tem seguido uma carreira paralela em arquivos históricos sendo responsável pelo Arquivo de História Social (ICS-ULisboa). Recentemente publicou A Concordata de Salazar (Temas e Debates, 2013),

Salazar, Manuel Gonçalves Cerejeira: Correspondência 1928-1968

(Temas e Debates, 2010), «Interwar dictatorships, the catholic church and Concordats: the portuguese new state in a comparative perspective», in Contemporary European History, 25 (1).

Rodrigo Patto Sá Motta, é doutor em História pela

Univer-sidade de São Paulo (USP). Realizou estudos de pós-doutorado e atuou como professor-pesquisador visitante na Universidade de Maryland e atuou como professor visitante na Universidad de Santiago de Chile, na Universidad Nacional de Colombia e no IHEAL da Universidade de Paris III (Cátedra Simón Bolivar). Atualmente é professor titular da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e pesquisador do CNPq. Tem experiência na área de História, com ênfase em História do Brasil República e História Contemporânea. Atua principalmente no campo da História Política, pesquisando tanto temas da vertente clássica (partidos,

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Igrejas e Ditaduras no Mundo Lusófono

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instituições) como abordagens que dialogam com a «nova história» (representações, iconografia, cultura política). As publicações mais relevantes são os livros: Em Guarda Contra o Perigo Vermelho: o

Anticomunismo no Brasil (Perspectiva, 2002), Jango e o Golpe de 1964 na Caricatura (Zahar, 2006) e As Universidades e o Regime Militar (Zahar, 2014). Foi presidente da Associação Nacional de

História (ANPUH) no período 2013-2015 e copresidente da Seção História Recente e Memória da Latin American Studies Association (2015).

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O sagrado vínculo do matrimónio

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Rita Almeida de Carvalho

Capítulo 6

«O sagrado vínculo do matrimónio

não está sujeito ao arbítrio da

vontade humana»: a

‘intemporali-dade’ cristã em confronto com a

modernidade (séculos

xix

-

xxi

)

De Trento à Monarquia Constitucional

Segundo a Igreja Católica o casamento é um contrato sancio-nado pela lei de Deus, cuja natureza natural e divina não pode ser alterada, nem pelos cônjuges, nem pela Igreja, nem pelo Estado.1

Assim, desde o Concílio de Trento (1545-63) que o Direito Canónico determina a indissolubilidade do casamento:2

Anátema a todos os que permitem aos cristãos terem muitas mulheres, como se isto não fora proibido por nenhuma lei divina; aos que afirmam que o laço conjugal pode ser dissolvido; aos que acusam de erro a infalível autoridade da Igreja quando afirma que

1 Beja Fino, Família, Casamento e Divórcio (Lisboa: Livraria Popular de

Francisco Franco, 1939), 27.

2 Delgado, Pedro, Divórcio e Separação em Portugal. Análise Social e

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Igrejas e Ditaduras no Mundo Lusófono

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o adultério não dissolve a união que Deus estabeleceu (Concílio de Trento, Sessão XXIV, can. 2, 5 de 7).3

Jack Goody, porém, explica o divórcio para lá da doutrina da Igreja, relacionando a resistência da Igreja em consenti-lo com questões de natureza patrimonial. Com a diminuição do poder e da riqueza da Igreja, a instituição do divórcio poderia comprometer a sua capacidade para acumular bens. Um casal sem filhos, passando a poder divorciar-se, podia voltar a casar-se, sendo possível que do novo casamento resultasse descendência, o que dificultava à Igreja a posse dos respetivos bens dos familiares.4

Seja como for, o avanço da secularização acabou por levar à introdução do divórcio nos ordenamentos jurídicos dos países ocidentais. Esta secularização da sociedade, processo no qual está compreendida a instituição do divórcio, é explicada por muitos como o resultado da industrialização – e da subsequente entrada da mulher no mercado de trabalho –, de certas alterações ideológicas – como a ênfase nos direitos e liberdades individuais –, do advento do capitalismo e «da desmistificação do mundo». Nesta linha de argumentação, Fernando Catroga considera que o divórcio vem resolver a crise da instituição familiar gerada pelos fatores acima referidos, e que se terão traduzido no aumento de filhos ilegítimos e de separações de pessoas e bens. O divórcio surgia assim como solução para estes problemas e ainda permitia a regulação de aspectos patrimoniais que o concubinato e a separação impediam.5

A perda de influência da Igreja, embora tenha origens remotas, designadamente na Reforma e no Iluminismo, agrava-se a partir da Revolução Francesa. O Estado quer então substituir-se à Igreja na regulação de todos os aspectos da vida social. É de facto neste período que se institui pela primeira vez o divórcio em França. A lei do divórcio de 1792, ao considerar o casamento um mero contrato civil fundado no mútuo consentimento, abria a possi-bilidade de denúncia também por mútuo consentimento «por

3 Fino, Família..., 223.

4 Jack Goody, Família e Casamento na Europa (Oeiras: Celta Editora, 1995),

200.

5 Fernando Catroga, «A laicização do casamento e o feminismo republicano»

(separata de A mulher na Sociedade Portuguesa. Actas do Colóquio. Coimbra 20 a 22 de março de 1885, Coimbra, 1986), 15.

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O sagrado vínculo do matrimónio

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incompatibilidade de humor e de carácter».6 Como afirma René

Rémond, «é a primeira vez que se legaliza um comportamento contrário ao ensinamento da Igreja Católica; até lá não se concebia que a lei civil e a lei moral pudessem divergir e, mais ainda, entrar em contradição».

René Rémond sublinha também que o estatuto do divórcio em França era o reflexo das relações entre religião e sociedade: «os governos conservadores, a fortiori os regimes reaccionários, aboliram o divórcio e tornaram-no difícil; as maiorias liberais e os governos democráticos restabeleceram-no ou facilitaram as suas condições. Assim a Segunda Restauração aboliu-o em 1816; os republicanos restabeleceram-no em 1884; o Governo de Vichy, sem corrigir o princípio, alongará os atrasos e multiplicará os obstáculos».7

O divórcio no ordenamento jurídico português

Com avanços e recuos, o exemplo francês viria a ser seguido em diversos países. Em Portugal, só no final do século xix se faz

sentir a influência da Revolução Francesa neste domínio, que se traduziu na edição da obra pró-divórcio A Família, de Francisco José Teixeira Bastos (1894). A Monarquia Constitucional seria derrubada em 5 outubro de 1910 e nem um mês depois – em 3 de novembro – é publicada a Lei do Divórcio. Esta consagra o divórcio, «não como sanção para o incumprimento dos deveres conjugais, mas como remédio para uma situação de crise matrimo-nial ou, mais que isso, mera constatação da ruptura do casamento».8

Contudo, Rui Ramos relativiza a problemática da introdução do divórcio em Portugal dizendo que só a partir de «1900 os repu-blicanos fizeram dele objecto de campanha» e que «foi sobretudo

6 Hunt Lynn, «Revolução Francesa e vida privada», in História da Vida

Privada, Ariès Michelle Philippe e Georges Duby, vol. 4, Michelle Perrot, Da Revolução à Grande Guerra (Porto: Afrontamento, 1990), 38-39.

7 René Rémond, Religion et Societé en Europe. La sécularisation aux XIXe et

XXe siècles. 1780-2000 (Paris: Édition du Seuil, 2001), 63. O mesmo se passará

em Portugal, como veremos à frente.

8 Francisco M. Pereira Coelho, «Direito da família», in Dicionário de História

de Portugal, António Barreto e Maria Filomena Mónica, vol. 7 (suplemento A/E) (Porto: Figueirinhas, 1999), 548.

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aproveitado pelos indivíduos das classes médias que já estavam separados». Chama ainda atenção para o facto de no final de 1911 haver apenas 2658 divorciados, «quase tantos como as pessoas que estavam separadas judicialmente em 1900».9

A instituição do divórcio não vai de facto recolher grande adesão até ao final do Estado Novo (e até para além dele). Quando se referiu ao escasso número de pedidos de divórcio, o advogado e político oposicionista Francisco Salgado Zenha lembrou que «a esmagadora maioria da população andava a lutar pela sua subsis-tência», e «as rupturas afectivas conjugais eram filtradas através da supremacia masculina – aceite sem discussão –, espraiando-se no machismo poligâmico, tolerado senão benquisto. A esposa – essa – tinha de, ou devia conformar-se com a sua sorte».10

Mesmo que assim não fosse, note-se que o novo ordenamento jurídico não traduz efectivamente uma nova conceção republicana de família, pois nas designadas Leis da Família publicadas em 25 de dezembro de 1910, embora se afirme que a sociedade conjugal se baseia na «liberdade», continua reproduzir-se o modelo tradicional de família monogâmica, incumbindo ao marido, «a obrigação de defender a pessoa e os bens da mulher e dos filhos, e à mulher […] o governo doméstico e uma assistência social tendente a fortalecer e a aperfeiçoar a unidade familiar».11

Isto significa que o divórcio foi sobretudo uma aspiração polí-tica de uma certa classe polípolí-tica, ilustrada e/ou urbana. Tal não quer dizer que o divórcio fosse uma matéria socialmente irrelevante. Na verdade, prendia-se com um aspecto fundamental para alguns para quem a questão tinha uma relação direta com o poder da Igreja e é, aliás, aí que reside a «modernidade» da introdução do divórcio no ordenamento jurídico português.

A importância política da problemática do divórcio fica ilus-trada pela delicadeza com que o Estado Novo português, insti-tuído em 1932 e dirigido pelo católico Oliveira Salazar, trata do assunto. Contra as expetativas iniciais da Igreja e dos católicos, o Presidente do Conselho não quis admitir a proibição do divórcio por temor das consequências políticas que tal determinação podia suscitar, designadamente entre os setores da sociedade laicos e

9 Rui Ramos, História de Portugal, vol. 6, A Segunda Fundação (1890-1926)

(Lisboa: Círculo de Leitores, 1994), 410.

10 Salgado Zenha, Cadernos O Tempo e o Modo, 2, ‘O Casamento’, 1969. 11 Delgado, Divórcio..., 74.

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republicanos. Aliás, pelos mesmos motivos não quis fazer grandes concessões à Igreja como, por exemplo, proceder à devolução da propriedade nacionalizada pela República. Foi isto mesmo que continuou a defender quando iniciou em 1937 as negociações com a Santa Sé para a celebração de uma concordata. Alegava então que perante o individualismo e a desestruturação familiar herdada do liberalismo tal medida iria causar perturbações políticas indesejá-veis que podiam fazer perigar o próprio regime.12

Contudo, no âmbito das negociações concordatárias, a Santa Sé fez saber que considerava que a existência do divórcio no ordenamento jurídico português se devia apenas, aliás como «nos restantes países meridionais e latinos», à «índole passional e sensual do povo, e à grandíssima ignorância da sua população, diversamente do que [acontecia] nos países nórdicos e anglo-saxónicos onde o matrimónio [era] considerado com ligeireza e o divórcio é devido à malícia e ao calculismo»13. A Santa Sé não se mostrava assim

sensível à argumentação do governo de que a sua proibição podia levar à instabilidade política e à queda da ditadura e continuava a exigir a simples abolição do divórcio. Após longas conversações, seria por fim alcançado um compromisso: a concordata de 1940 aboliu o divórcio apenas para os casamentos católicos. Salazar, no entanto, advertiu o papa de que as responsabilidades políticas de tal medida ficavam por conta da Santa Sé14.

Ao persistir o divórcio para o estado civil, pode dizer-se que o Estado português se recusou a assumir nesta matéria a doutrina canónica. Foi assim criado um sistema dual que seria mantido durante todo o Estado Novo: os casados catolicamente estavam impedidos de se divorciarem, enquanto os casados pelo registo do estado civil mantinham esta possibilidade. Esta dualidade é, aliás, uma das razões que permitiram a sobrevivência da Concordata de 1940 até ao ano de 2004, embora tenha sido revista neste aspecto em particular logo após a revolução de 25 de Abril de 1974 – quer

12 Rita Almeida de Carvalho, A Concordata de Salazar (Lisboa: Temas e

Debates, 2013).

13 Archivio Segreto Vaticano, Affari Ecclesiastici Straordinari – Portogallo. IV

Periodo, pos. 398 P. O., fasc. 158, fls. 76 e segs. Relatório foi escrito por monse-nhor Colonna, alto funcionário da Secretaria de Estado, em agosto de 1937.

14 Biblioteca Geral da Universidade de Coimbra, Espólio Mário de Figueiredo.

Observações de Mário de Figueiredo às alterações da Santa Sé apresentadas em 21 de outubro de 1937.

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dizer, a cláusula que impedia a aplicação do divórcio ao casamento católico foi rapidamente revogada.

Em suma, ao contrário do que seria de esperar, o católico Salazar não proibiu simplesmente o divórcio como o fizeram outros ditadores do mesmo período com quem aliás o Estado Novo tinha afinidades ideológicas. Mussolini, por exemplo, proibiu o divórcio nos acordos com a Santa Sé de 1929, aí reco-nhecendo o sacramento do matrimónio; deste modo, o Estado ficou impedido de legislar sobre o divórcio mesmo no estado civil15. Ao contrário do que aconteceu mais tarde em Portugal,

o papa terá considerado a indissolubilidade do casamento católico em Itália uma condição sine qua non para o estabelecimento de um acordo16. Aparentemente mais surpreendente é o facto de o regime

democrático italiano do Pós-Segunda Guerra não introduzir alte-rações à norma que proibia o divórcio. Mas isto explica-se pelo facto de a Itália liberal estar historicamente ligada à instituição do casamento cristão. Como lembra John Pollard, entre 1865 e 1929 o parlamento italiano rejeitou nove tentativas de introduzir o divórcio no país.17 Essa ligação era de tal ordem que só em 1974

um referendo legitimou o divórcio em Itália.

Apesar de o direito ao divórcio ter sido incorporado no orde-namento jurídico espanhol em 1931 por iniciativa da segunda repú-blica, Franco, denunciando aliás a tendência totalitária desta fase do regime espanhol e o desejo simultâneo de adesão ao catolicismo tradicional,18 foi ainda mais longe do que Mussolini nesta matéria.

Em 23 de setembro 1939, já uma disposição legislativa anulara os divórcios decretados no caso dos casamentos canónicos e tornara possível a anulação dos divórcios no caso dos casamentos civis se a mesma fosse pedida por um dos cônjuges.19 A Concordata

15 Frank J. Coppa, «Mussolini and the concordat of 1929», in Controversial

Concordats. The Vatican Relations with Napoleon, Mussolini and Hitler, Frank J. Coppa (Washington, D.C.: The Catholic University of America Press, 1999), 99.

16 Frank J. Coppa, «Mussolini and the concordat», in John F. Pollard, The

Vatican and Italian Fascism. 1929-1932,34-35 (Cambridge: Cambridge University Press, 1985).

17 John F. Pollard, The Vatican and Italian Fascism. 1929-1932 (Cambridge:

Cambridge University Press, 1985), 69.

18 Stanley G. Payne, Fascism in Spain, 1923-1977 (Madison: Wisconsin, 1999),

294-388.

19 Guy Hermet, Les catholiques dans l’Espagne franquiste, vol. 2: Chronique

d’une dictature (Paris: Presses de la Fondation nationale des sciences politiques, 1981), 94.

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O sagrado vínculo do matrimónio

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espanhola de 1953 integrou as mesmas disposições canónicas em matéria de casamento e o divórcio só voltou a ser autorizado em Espanha em 1981.

Por que razão um regime como o português, que se assume claramente de matriz católica, procede de modo tão cauteloso, tanto mais que o número de divórcios em Portugal era escasso e, portanto, socialmente quase irrelevante?

Não esperando certamente uma contestação social generali-zada, tudo indica que Oliveira Salazar temia a reacção de setores da sociedade mais esclarecidos, republicanos laicos e politizados, apoiantes ou não do regime.

Mas tal não significa que o governo não aspirasse a erradicar o divórcio, pois entendia que, para além das questões doutrinárias, o divórcio era sempre um fator de dissolução da unidade familiar. Quer isto dizer que para o salazarismo, mais do que um problema religioso, o divórcio era um problema social.20 Contudo, havia

que mitigar as ameaças de ordem política, o que fazia aplicando a disposição concordatária que impedia o divórcio apenas dos casados catolicamente.

Tanto assim é que mais de vinte anos após a assinatura da Concordata, o Estado Novo promove alterações ao Código Civil de 1966 que terminam com o divórcio por mútuo consentimento em todos os casos: «à concepção do divórcio como remédio ou mera constatação da ruptura do casamento, o Código de 1966 substituiu a do divórcio como sanção». Este Código possibilitava ainda ao tribunal decretar unilateralmente, e se o achasse conve-niente, em lugar do divórcio, a separação judicial de pessoas e bens.21

Mas com estas alterações ao Código Civil, levadas a cabo já no ambiente pós-Concílio Vaticano II, momento a partir do qual emerge uma cultura cristã que substitui a tradição orgânica pela consciência individual,22 o problema social agrava-se – denotando

20 O deslocamento da questão do divórcio do plano religioso para o plano

social é ainda hoje uma constante do discurso da Igreja. Vide «Nota sobre uma proposta de lei acerca do divórcio» em: Conferência Episcopal Portuguesa, Documentos Pastorais, vol. 4, 1991-1995 (Lisboa: Rei dos Livros, 1996), 392-393.

21 Coelho, Direito..., 550.

22 António Matos Ferreira, «A acção católica: crise, inadequação ou paradigma

ultrapassado? Notas para outro modelo explicativo», in Interacções do Estado e das Igrejas, orgs. António Matos Ferreira e Luís Salgado de Matos (Lisboa: ICS, 2013), 132.

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Igrejas e Ditaduras no Mundo Lusófono

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igualmente uma acentuada inabilidade política. É que, na verdade, o processo de autonomia da sociedade civil relativamente à Igreja, isto é, o processo de secularização, não parece ter recuado por ação das políticas de Salazar.23

Mas a questão do divórcio tem também relação com o cres-cimento económico a partir da década de 50, o fenómeno da urbanização e a crescente independência da mulher. Deste modo, à medida que o tempo passa, elevam-se os protestos e a questão ganha dimensão social. Por um lado, os juristas reclamam que se o divórcio é admitido para uns, deve igualmente ser admitido para outros, independentemente da fé que professem. Por outro lado, com o avançar do tempo, é cada vez é maior o número de católicos que recusam a legitimidade de a Igreja recorrer ao poder temporal para impor a sua doutrina.

Na imprensa diária, chamou-se a atenção para as consequências práticas do impedimento do divórcio, afirmando-se que eram aos «milhares e milhares» as pessoas que, separadas de pessoas e bens, viviam «há dezenas de anos em situações profundamente angustiosas» (Jorge Fragoso Pires, «Concordata e iniquidades»,

A Capital, 27 de agosto de 1970).

Multiplicando-se os protestos, os «dramas individuais» e os «filhos ilegítimos», Marcelo Caetano, que entretanto sucedera a Oliveira Salazar, propõe dois caminhos alternativos. Em primeiro lugar, que a doutrina do artigo 24.º da Concordata só começasse a ter efeito após 1 de janeiro de 1973, para permitir divulgar convenientemente as consequências do casamento católico. No entender do então chefe do Governo, a pressão social para celebrar canonicamente o casamento tinha levado a que muitas pessoas sem fé contraíssem um sacramento sem entenderem o seu significado.24

Em segundo lugar, que o artigo concordatário que impedia o divórcio dos católicos fosse revogado unilateralmente, o que, no seu entender, não iria suscitar mais do que um protesto inofensivo do Vaticano. A hierarquia portuguesa opôs-se a qualquer uma das soluções e Marcelo Caetano desistiu da iniciativa.25

23 Nuno E. Ferreira, A Sociologia em Portugal: da Igreja à Universidade

(Lisboa: ICS, 2006), 54-64.

24 António Leite, «A Concordata e o Casamento», in A Concordata de 1940.

Portugal – Santa Sé, AAVV (Lisboa: Edições Didaskalia, 1993), 296.

25 Entrevista realizada por Pedro Aires de Oliveira e Rita Almeida de Carvalho

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Divórcio no regime democrático

A revolução de abril de 1974 alterou rapidamente o ordena-mento jurídico português no que respeita ao divórcio. Surgiram de imediato comícios onde se ouviam as palavras de ordem «Concor-data não, divórcio sim» e «Os presos da Concor«Concor-data querem a libertação», entre eles o realizado no Pavilhão dos Desportos, em Lisboa, em 21 de julho de 1974, por iniciativa do Movimento Nacional Pró-Divórcio (MNPD). Ao mesmo tempo, espalhou-se a notícia de que existiam mais de cem mil uniões matrimoniais não regularizadas e dois milhões de filhos ilegítimos.

É então que em 15 de fevereiro de 1975, alguns meses depois da queda do Estado Novo, é celebrado um protocolo com a Santa Sé para a eliminação do artigo 24.º da Concordata. A norma trans-formar-se-á numa mera recomendação da Santa Sé: daí em diante passa a caber apenas aos cônjuges casados catolicamente o dever de ser aterem às normas canónicas e, assim, «não [se] valerem da faculdade civil de requerer o divórcio». O divórcio para os católicos tornou-se então uma mera questão de consciência, e em 28 de fevereiro o MNPD organiza, «uma manifestação de alegria, que consagra dez anos de luta pelo reconhecimento do direito ao divórcio para os casados canonicamente».

Destaque-se que, apesar da revolução de abril de 1974 e da instabilidade política que se lhe seguiu, o artigo não foi revogado unilateralmente, resultando a sua anulação de um pedido de revisão por parte do Governo português junto da Santa Sé. Em outubro desse ano, o embaixador de Portugal no Vaticano, José Calvet de Magalhães, foi encarregado de negociar a sua supressão. Por sua vez, o cardeal Agostino Casaroli foi designado pela Santa Sé chefe da delegação que iria negociar com o diplomata português. Nas suas memórias, Calvet de Magalhães observa que, após numerosas sessões de trabalho entre juristas de ambas as partes, «o impasse […] relativamente à indissolubilidade do casamento venceu-se no momento em que o embaixador sugeriu a supressão do artigo e uma declaração unilateral da Igreja reafirmando a indissolubili-dade do casamento católico. Para convencer a Santa Sé, o embai-xador lembrou a necessidade de, num período politicamente tão conturbado, evitar que o problema das relações entre o Estado e a Igreja fosse arrastado até à campanha eleitoral para as eleições

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à Assembleia Constituinte (inicialmente marcadas para março de 1975 e que viriam a realizar-se no mês de abril). Terá dito ainda que, caso o artigo não fosse eliminado, a denúncia unilateral da Concordata iria ser exigida pelas forças políticas da extrema- -esquerda. Esta solução, segundo Calvet de Magalhães, tinha ainda a vantagem de se confirmar tacitamente o restante articulado. Casaroli, sensível a estes argumentos, terá aceitado rapidamente a proposta do embaixador.26

A vontade do Governo de eliminar apenas o artigo 24.º da Concordata, a anuência da Santa Sé e a rapidez com que tudo se resolveu espelham, sem dúvida, o empenhamento das partes em evitar o renascer da «Questão Religiosa» que, no passado, tinha comprometido o regime republicano e conduzido ao golpe de 28 de maio de 1926.

Curiosamente, apesar da legalização do divórcio, a taxa de divórcio por número de casamentos só alcança os dois dígitos nos anos 80. Tal traduz a prevalência dos cânones morais católicos na sociedade portuguesa. Contudo, a resistência às conceções familiares da modernidade enquanto «espaço de pluralidade»27

deveu-se mais a um efeito de rotina e à influência social da Igreja do que ao facto de a sociedade portuguesa ser dominantemente tradicionalista.

Esta resistência à «modernidade» parece diminuir acentuada-mente a partir dos anos 90. Em três décadas, Portugal aproxima-se da realidade europeia. Aliás, o número de divórcios por casamento em Portugal é hoje o maior de toda a União Europeia, embora estes números possam estar distorcidos pelas uniões de factos já que em Portugal, em 2007, por exemplo, mais de metade dos casais optou pelo contrato civil, que é atualmente a modalidade dominante de casamento, quando em 1960 representava apenas dez por cento dos casamentos. Ora, o desfecho das uniões de facto não é contemplado nas estatísticas do número de divórcios

26 José Calvet de Magalhães, Diplomacia Doce e Amarga (Lisboa: Bizâncio,

2002), 143.

27 ‘Modernidade: um espaço de pluralidade (o termo «moderno» é, ele

próprio, plurívoco) que permite um amplo campo de «conflito» entre diferentes legitimidades, procurando hegemonizar/equalizar o espaço político (no sentido etimológico)» (Sérgio Ribeiro Pinto, «Modernidade e tradição em A Igreja e o Pensamento Contemporâneo», in Interacções do Estado e das Igrejas: Instituições e Homens, orgs. António Matos Ferreira e Luís Salgado de Matos (Lisboa: ICS, 2013), 172.

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por casamento. De uma forma ou de outra, a secularização parece estar instalada e a religião remetida para o domínio da consciência individual.

Laicismo secularizante ou secularização não

laicista?

Na Primeira República o divórcio não correspondia senão a uma aspiração quantitativamente muito diminuta da sociedade portuguesa, indo ao encontro dos desejos de algumas elites polí-ticas e intelectuais. Nesse sentido, a introdução do divórcio no ordenamento jurídico português deve ser enquadrada mais num laicismo secularizante do que numa secularização não laicista. Por secularização entende-se aqui, como afirma Fernando Catroga, uma «distinção entre o século e as objectivações dogmáticas e institucionais do religioso como Igreja».28

A valorização da instância da consciência e da liberdade indi-vidual garantida pelo Estado a que assistimos com o advento da modernidade muda, naturalmente, a perceção do religioso.

Sem dúvida que em Portugal é nos séculos xix e xx que as

relações entre o Estado e a Igreja portuguesa se alteraram de forma acentuada, iniciando-se aí o processo de laicização. Nesse sentido, o Estado assume-se como a entidade capaz de garantir a liberdade individual dos cidadãos. Porém, tal não significa que a esta liberdade individual imposta de cima adira, ou seja capaz de aderir, a sociedade portuguesa. Isto não significa que o desapego à doutrina católica de que fala Salazar relativamente aos portu-gueses careça de fundamento. Diz Salazar em 1937: «Em Portugal, as classes populares são católicas por rotina, a meia burguesia e a meia culta ou se desinteressaram dos problemas religiosos ou professam um catolicismo frouxo, de procissão, que não tem dúvida em abjurar se nisso encontrarem qualquer interesse e a alta burguesia com os intelectuais estão muito divididos no capítulo da concepção da vida».29 O catolicismo frouxo dos portugueses

28 Fernando Catroga, Entre Deuses e Césares: Secularização, Laicidade e

Reli-gião Civil (Coimbra: Almedina, 2006), 21.

29 Arquivo Nacional Torre do Tombo, Arquivo Oliveira Salazar.

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fora já anteriormente identificado por intelectuais portugueses, como Ramalhão Ortigão e Oliveira Martins.30 Fora também

corro-borado por estrangeiros que visitavam Portugal, como o filósofo espanhol Unamuno, que em 1908 terá afirmado: «Em Portugal, os problemas da religião não interessam de todo a ninguém».31 Numa

reportagem sobre Portugal escrita nas vésperas da implantação da República em 1910, o político italiano Romolo Murri observa

Portugal até é menos católico que a Itália e a Espanha, sobretudo nas províncias do Sul. Há observadores católicos que admitem que a religião entrou em rápido declínio nos últimos vinte anos. O clero secular é muito pouco estimado, e as igrejas pouco frequentadas. As ordens religiosas, depois da supressão radical de 1834, quase deixaram de existir, e as poucas que sobreviveram tiveram de ocultar-se ou mudar de nome; as novas e as restauradas são uma importação do estrangeiro […]. Todavia, também aqui, o clericalismo é, por muitas razões, uma sólida organização e uma força; nunca poderia, como em Espanha, tentar uma luta política por sua conta, mas é um aliado poderoso, odiado ou procurado como tal.32

Ora, estas afirmações ilustram que não obstante o sentido de pertença católica ser absolutamente dominante entre a população portuguesa, o seu catolicismo era, como aliás ainda é, frequente-mente indiferente à doutrina. Quer dizer, a «lassidão» do catoli-cismo português não interfere porém com um sentido de pertença católica.

Tudo isto faz pensar que o monolitismo religioso de que falam alguns estudiosos referindo-se aos séculos xix e xx é questionável,

embora não se duvide da acentuação da sua heterogeneidade a partir do final do século xx.33

Mas, mais do que a dicotomia monolitismo/heterogeneidade, o que faz a grande diferença relativamente à atualidade é a

dimi-do Governo relativamente às modificações sugeridas pela Santa Sé, na contra-proposta que apresentou em 21 de outubro de 1937», 367-385.

30 Steffen Dix, «As esferas seculares e religiosas na sociedade portuguesa»,

Análise Social, 194 (2010): 10-11.

31 Dix, As Esferas..., 19-20.

32 Cit. João Miguel em Almeida, org., Da Monarquia à República. Cartas

Portuguesas de Romolo Murri (Lisboa: Universidade Católica, 2010), 125.

33 José Machado Pais, «O que explica a religiosidade dos portugueses? Um

ensaio de análise tipológica», in Religião e Bioética, José Machado Pais, 10-11 (Lisboa: ICS, 2001), 10-11.

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nuição da influência social, e também política, da Igreja, sendo que as rupturas institucionais com a hierarquia e a dissociação entre a sociedade civil e os dogmas da Igreja se agudizaram a partir da década de 1950. Como afirma Matos Ferreira relativamente aos católicos, é a partir de então que «ao paradigma da união [se contrapôs] o da pluralidade; ao perfil de unidade requerida para agir evidenciou-se o valor da comunhão como percurso».34

É a partir daqui que se pode falar da secularização da sociedade portuguesa, sem que tal decorra do recurso a uma política laicista. Esta heterogeneidade é facilmente identificável em matérias como o aborto.35 Quando o católico e professor universitário Manuel

Braga da Cruz analisa um inquérito de 1998 encomendado pela Universidade Católica Portuguesa sobre as práticas religiosas, considera «particularmente surpreendente e desafiador que, num país em que cerca de 90% da população se identifica como católica e cerca de 35% se confessa praticante, apenas 27% dos inquiridos se identifica prioritariamente na questão do aborto, com as posi-ções da Igreja Católica».36

Ora, também no caso do divórcio, apesar de a grande maioria dos portugueses continuar a declarar-se católica (86% em 1986, 92% em meados dos anos 90 e 84% em 2010), não há uma adesão à doutrina da Igreja Católica. Em suma, grande parte dos católicos não incorpora as posições tradicionais da Igreja quanto ao casamento e ao divórcio, ao papel da mulher na sociedade, à sexualidade ou ao divórcio.37 Pelo que temos vindo a afirmar, é

naturalmente provável que este diagnóstico se aplique não apenas ao último quartel do século xx, mas tenha origens mais remotas

ou traduza mesmo uma realidade ancestral.

Assim sendo, a persistência do catolicismo enquanto religião dominante não invalida a existência de uma identidade religiosa polissémica. Aquilo que aparenta ser um paradoxo não é afinal mais do que uma reconfiguração do catolicismo em que, como

34 Ferreira, A Acção..., 118.

35 Rita Almeida de Carvalho, e João Miguel Almeida, «La stampa Cattolica

Portoghese tra l’adattamento e la resistenza alla laicità (1976-1998)», in La lacità dei cattolici sul declinare del xx secolo: Francia, Spagna e Portogallo, Alfonso Botti

e Ilaria Biagioli (Roma, Viella [no prelo]).

36 M. Braga da Cruz, «O aborto em Portugal», Brotéria, 146 (1998): 591-595. 37 José Barreto, «Panorama da religião na Europa e em Portugal», in 20 Anos

de Opinião Pública em Portugal e na Europa, José Barreto, <http://www.pop.pt/ download/20-anos-opiniao-publica.pdf>, 2013.

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o sociólogo José Machado Pais afirma, atualmente a religiosidade dos portugueses «é de natureza heterodoxa, sincrética e pessoal, muito embora sob o amplo chapéu de um catolicismo nominal-mente unificante».38

Aliás, esta identidade religiosa ultrapassa o estrito âmbito de uma confissão religiosa. Efetivamente, o cristianismo está asso-ciado à construção da identidade nacional. Por um lado, o próprio desígnio nacional assenta em fundamentos católicos, pois, como afirmou António Mega Ferreira: «O Reino de Portugal formou-se no contacto de uma guerra religiosa medieval, que continuou em África e em outros continentes, com o poder laico e religioso» e é daí que [também] advém o enraizamento cultural do catolicismo.39

Por outro lado, os mitos fundacionais envolvem frequentemente a intervenção divina. É o caso do Milagre de Ourique, atribuído às circunstâncias em que o príncipe Afonso Henriques vence inespe-radamente uma batalha contra os Mouros, após o que, assim reza a lenda, decide declarar-se rei de Portugal.

Este entrelaçado entre fé, religião e comunidade pode também ajudar a explicar o facto de a Concordata de 1940 ter vigorado até 2004, bem como que, nessa mesma data, quando da assinatura de uma nova concordata, o então primeiro-ministro Durão Barroso tenha afirmado que apesar de Portugal ser um Estado secular, a sua própria fundação estava ligada à Igreja Católica. Para dar um exemplo mais recente do entrelaçado entre Fé, identidade nacional e política, nada mais claro do que o discurso do Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa, na inauguração de uma estátua de D. Nuno Álvares Pereira (São Nuno de Santa Maria) no Jardim Ducla Soares, em Belém, Lisboa, em 6 de novembro de 2016: «Fez uma Pátria. Fez pelas armas e pela doação comunitária, como que a dizer-nos que um Portugal efetivamente independente só o é se a determinação de lutar por essa independência for constante e consequente». Saliente-se ainda que o presidente da Câmara Municipal de Lisboa se associou à mesma homenagem pois tratava-se de «um dos heróis da história portuguesa», como se pode ler no website da referida Câmara.

Esta relação entre identidade nacional e catolicismo ajuda também a compreender por que razão, não obstante uma lei da

38 Pais, O Que Explica..., 10-11. 39 Visão, 19 de setembro de 2002.

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liberdade religiosa ter sido aprovada em 2001 (Lei n.º 16/2001, de 22 de junho), a Igreja Católica goza ainda hoje de um estatuto privilegiado no Estado português sem que o mesmo seja grande-mente contestado. Aliás, essa condição privilegiada é-lhe também reconhecida internacionalmente, sendo a única religião do mundo que, indiretamente, através da Santa Sé, goza da condição de observador permanente junto da Organização das Nações Unidas.

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