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Ventos que Animam a Terra: Voz e Criação na Trajetória do Espetáculo Rosário

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Academic year: 2021

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ESCOLA DE TEATRO

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ARTES DO ESPETÁCULO

FELÍCIA DE CASTRO MENEZES

VENTOS QUE ANIMAM A TERRA – VOZ E

CRIAÇÃO NA TRAJETÓRIA DO ESPETÁCULO

ROSÁRIO

Salvador, Bahia

Maio de 2012

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FELÍCIA DE CASTRO MENEZES

VENTOS QUE ANIMAM A TERRA – VOZ E

CRIAÇÃO NA TRAJETÓRIA DO ESPETÁCULO ROSÁRIO

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Artes do Espetáculo da Universidade Federal da Bahia, como requisito parcial para a obtenção do grau de Mestre em Artes Cênicas. Orientadora: Prof.ª Dr.ª Meran Muniz da Costa Vargens (PPGAC-UFBA)

Salvador, Bahia

Maio de 2012

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Menezes, Felícia de Castro.

Ventos que animam a terra – voz e criação na trajetória do espetáculo Rosário / Felícia de Castro Menezes. - 2012.

378f. il.

Orientadora:Prof.ª Drª. Meran Muniz da Costa Vargens.

Dissertação (mestrado) - Universidade Federal da Bahia, Escola de Teatro, 2012.

1. Teatro. 2. Criação (Literária, artística etc.). 3. Cultura popular -Brasil. 4. Representação teatral. 5. Criatividade. I. Universidade Federal da Bahia. Escola de Teatro. II. Título.

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Para minha mãe Regina de Souza Castro e meu pai José Arli Menezes Sobrinho que me deram a vida, a arte e a espiritualidade.

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Ao Venerável Geshe Kelsang Gyatso e a todos os guias espirituais e seres sagrados, pela companhia incansável desde sempre.

À minha avó Almerinda Alves da Rocha (in memoriam) por ter sido uma guerreira que me acalentou e me ensinou.

Ao meu companheiro Eduardo Ravi, pela paciência e presença amorosa em todos os momentos.

À minha “tia-mãe” Maria Luiza Gonzaga de Menezes que me apoiou em todos os momentos. À minha “prima-irmã” Nina Menezes Alves pela grande inspiração que é em minha vida. À meu tio Álvaro Gonzaga, à minha madrinha Joana Rocha, à Ronald Lobato, à Lena Brasil, à Bárbara Gonzaga, e a todos os meus familiares.

À Lurdinha (Mãe Lurdes) minha querida e doce prima anciã, pela lembrança da ancestralidade.

À Conceição Ferreira, que além de terapeuta é uma grande amiga que sempre torceu por mim.

Às professoras Regina Dórea e Lúcia Maciel, ao Centro Budista Kadampa Tara, e à Tradição de Budismo Kadampa pelo apoio espiritual inesgotável.

À Maria Paixão Gonçalves (Lia), minha rainha-guerreira, que sempre cuidou de mim com tanto amor e dedicação e me inspira no percurso.

À minha orientadora, Meran Vargens, por ter acolhido o meu trabalho tão generosamente, pela atenção cuidadosa, intervenções precisas e comentários consistentes que contribuíram com o crescimento da pesquisa e da pesquisadora.

À Antônio Luiz Dias Januzelli e Ciane Fernandes, pela aceitação do convite para compor a banca examinadora, pela generosidade e disposição para com o trabalho, e pelas valiosas contribuições na qualificação.

À Demian Reis, irmão-palhaço, parceiro, diretor-parteiro de Rosário, amigo e mestre. À Flavia Marco Antonio, irmã para sempre, parceira na maioria das aventuras desta trajetória. À João Lima e João Porto Dias, irmãos-palhaços, parceiros para sempre, agradeço às inúmeras contribuições a Rosário desde o experimento Água Viva. Agradeço com muito amor a estes irmãos do grupo Palhaços para Sempre pela união e grande aventura em busca da arte do ator.

À Carolina Laranjeira, amiga, assistente de direção-parteira de Rosário, pela colaboração essencial ao espetáculo, pelas leituras dessa escrita e pelos diálogos afetivos, artísticos e acadêmicos.

À Maiara Ribeiro, Vanessa Salles, Eduardo Albergaria, Rino Carvalho, Rafael Rolim, Maurício Pedrosa, Angélica Oliveira, que enquanto equipe, amigos e parceiros colaboraram imensamente no “parto” do espetáculo.

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pesquisadores do Lume Teatro por terem sido uma boa luz no meu caminho.

À Mãe Stella de Oxóssi e à Dona Noêmia (in memorian) (Ilê Axé Opó Afonjá), à mestra Margarida (Guerreiro Joana D’arc), ao mestre Raimundo Ferreira Evangelista, mestre Antonio Ferreira Evangelista e mãe Dôra (Reisado Discípulos de mestre Pedro), ao mestre Boca do Rio (grupo Zimba de Capoeira Angola), e a todos os grupos e mestres das manifestações populares brasileiras, que encheram minha vida de alegrias inimagináveis.

Ao mestre e dançarino de Butô, Tadashi Endo, pela dança.

Ao Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas da UFBA na gestão anterior de Antônia Pereira, e na gestão atual de Claudio Cajaíba.

Ao apoio do CNPQ - Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico, pela bolsa de mestrado concedida no segundo ano do curso.

À Hebe Alves, Lúcia Lobato, Cássia Lopes, Sonia Rangel, Eloisa Domenici, Erico Oliveira, Suzana Martins, Jacyan Castilho, Betti Grebler, Ângela Reis, Armindo Bião, Iami Rebouças, Eliene Benício e demais professores da Escola de Teatro da UFBA e do Programa de Pós Graduação em Artes Cênicas da UFBA.

À Daisy Andrade, Daiane, Lucas e todos os funcionários do Programa de Pós Graduação em Artes Cênicas da UFBA.

À Daniela Guimarães e Elaine Cardim, amigas inspiradoras que alegraram e enriqueceram a vida de mestranda. À Santiago Harris, Thales Branche e todos os queridos colegas da turma de mestrado de 2010 do Programa de Pós Graduação em Artes Cênicas da UFBA. À Marianne Consentino e Valécia Ribeiro, amigas doutorandas do PPGAC.

Ao “guardião” Rowney Scott e às “deusas” Maíra Valente, Nadja Pinheiro, Isabel Modercin, Nina Alves e Fernanda Capibaribe.

À Dane de Jade pela irmandade, incentivo à empreitada e todas as alegrias caririenses. À Gorete Albuquerque pela irmandade e estímulo constante para que Rosário nascesse.

À Danilo Pinho, Mário Filho, Geraldo Jr., Fabiano de Cristo, Gerson Andrade, Lorena Chagas, Juliana Roza, Samira Carvalho, Rodrigo Claudino, Guilherme Cunha, Marisol Albano, Cristiane Rodrigues, e todos os amigos do Ceará por todas as belas parcerias e contribuições à Rosário.

À José Regino, Luis Carlos Vasconcelos, Fábio Vidal, Ângelo Flávio, Maurício Assunção, Daniele Denovaro, Ceronha Pontes, amigos que contribuíram com a criação de Rosário.

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À Alice Becker, Daniel Becker, Clara Trigo, Viviana Preziotti e toda família Physio Pilates.

À Drª Gilda Maria Souza Oliveira e Drª Mara Valéria, pelo cuidado.

À Ceci Vilar, João Reis, Priscila Sodré, Teresa Costalima, Ana Paolilo, Ruy Cesar, Rô Reyes, Aristides Alves, Ilo Alves, Alexandre Basso, Suzana Miranda.

Aos palhaços participantes do Retiro de Iniciação a Arte do Clown, Aicha Marques, Alexandre Luis Casali, Antônia Vilarinho, Carol Almeida, Davi Lobo, Demian Reis, Elaine Cardim, Flavia Marco Antonio, Ivana Chastinet, João Lima, João Porto Dias, Kiliana Britto, Lúcio Tranchesi, Manhã Ortiz, Rafael Moraes, e Tânia Soares, por terem feito dessa experiência, única.

Aos alunos que permanentemente me ensinam e me reinventam. Á Arthur Vargens, que pacientemente revisou meu trabalho.

Ás Instituições e grupos: Escola de Teatro da UFBA, Escola de Dança da UFBA, Teatro Castro Alves (BA), Espaço Xisto (BA), Sitorne Estúdio de Artes Cênicas (BA), Teatro José Alencar (CE), SESC Ceará, Teatro SESC SENAC Pelourinho (BA), Lume Teatro (SP), Associação Cachuêra! (SP), Fundação Casa Grande (CE), Instituto Cultural Casa Via Magia (BA), Ilê Axé Opó Afonjá (BA), Teatro Gamboa Nova (BA), Carroça de Mamulengos (CE), União dos Artistas da Terra da Mãe de Deus (CE), Grupo Zimba (CE), Reisado Discípulos de Mestre Pedro (CE), Cooperativa Baiana de Teatro (BA)

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RESUMO

O presente trabalho aborda a trajetória criativa do espetáculo Rosário, sob os aspectos de um percurso formativo e do desenvolvimento de uma técnica pessoal. A dissertação reflete-se como uma pesquisa vocal ancorada na musculatura e em relação com canções e matrizes vocais de manifestações populares brasileiras, gerou os procedimentos criativos que culminaram em Rosário. Através da análise de diários elaborados durante dez anos do processo criativo do espetáculo solo, e sob a luz de noções da crítica de processo (SALLES, 2009), da imaginação criadora (BAHCELARD, 1993; 2009), da imaginação simbólica (DURAND, 1988; 2002), da consciência orgânica (GROTOWSKI, 1987; 2000; 2007) e de reflexões sobre a questão da memória no contexto de culturas populares (MARTINS, 1997), a pesquisa realiza a arqueologia de um trajeto, desvendando como essas vias subterrâneas possibilitaram o cruzamento de procedimentos criativos diversos, gerando a composição de uma obra artística.

Palavras-chave: espetáculo Rosário; organicidade; matrizes físicas e vocais; bloqueios; manifestações populares brasileiras; butô; imaginação criadora; imaginário; mito/rito; processo criativo; ancestralidade; memória.

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The present work discusses the creative trajectory of the performance Rosário under the aspects of a formative path and the development of a personal technique. The dissertation reflects how a voice research anchored in the muscle, and vocals matrices of Brazilian popular manifestations, generated the creative procedures that culminated in Rosário. Through the analysis of diaries elaborated during ten years of the creative process of the solo show and under the light of notions of the critical of process (Cecilia Salles), the creative imagination (Bachelard), the symbolic imagination (Durand), the organic awareness (Grotowski ), and reflections on the question of memory in the context of popular cultures (Leda Maria Martins), the research does the archeology of a path, uncovering how this underground tracks allowed the crossing of many creative procedures, generating the composition of an artistic work.

Keywords: Rosario performance; organicism, blocks; matrices physicals and vocals, Brazilian popular demonstrations, Butoh, creative imagination, imaginary; memory; myth / ritual; ancestrality; creative process;

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Sumário

INTRODUÇÃO... 001

SESSÃO 1 – SEMENTE DO DESEJO – ASPECTOS FUNDANTES DE UMA ESCOLHA EM ARTE... 016

1.1CONVOCAÇÕES... 031

1.1.1Maravilhar-se – A via dos arrebatamentos como instâncias criadoras... 033

1.1.1.1 Imaginações evocadas pelos elementos da natureza... 035

1.1.1.2 A festa dos imaginários nas vivências de manifestações populares brasileiras... 039

1.1.1.3 O impacto do espetáculo Cnossos: instauração das inspirações técnicas... 071

1.2 VEÍCULOS... 082

1.2.1 Experimento Água Viva – uma cerimônia de Iniciação: Marco 1 de Rosário... 083

1.2.2 Faltam ações... 093

1.2.3 Cadê a voz?... 094

1.2.4 Por uma técnica criativa e um corpo liberado... 096

1.3 PRINCÍPIOS... 100

1.3.1 Breve resumo dos princípios apresentados... 101

1.3.2 O símbolo e a condução do indizível... 103

1.3.3 O ator como xamã... 105

1.3.4 Princípios assimilados nas manifestações populares brasileiras... 109

1.3.5 Princípios filosóficos que orientam as escolhas técnicas... 117

SESSÃO 2 – PERCURSO FORMATIVO – GESTANDO LIBERDADES E IDENTIDADES... 127

2.1 PALHAÇO: BASES DO CAMINHO DE CORPORIFICAR A VOZ E O CORAÇÃO... 127

2.1.1 Reconhecer e Lidar com os bloqueios que impedem a criação... 128

2.1.2 Retiro de Iniciação ao Palhaço... 132

2.1.3 Construindo um espaço de confiança para o trabalho do ator... 137

2.1.4 Desautomatização e dinamização de energias potenciais... 141

2.1.5 Aprendendo a escuta dos impulsos do corpo: rumo à consciência orgânica... 146

2.1.6 O Prazer como via da organicidade... 149

2.1.7 O transbordamento de humanidade como via de trabalho do ator... 151

2.1.8 Compreendendo o corporificar das emoções... 154

2.1.9 Entendendo que tudo é dança... 156

2.1.10 O grotesco como uma via para a dança e para a voz... 157

2.1.11 “Você é muda?”... 159

2.2 VENTOS QUE ANIMAM A TERRA: A VOZ ANCORADA NA MUSCULATURA... 162

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2.2.3 Voz e Ação Vocal: descobrindo o sol no abdômen e as estradas da voz... 169

2.2.4 Desenvolvendo uma pesquisa vocal em grupo... 182

2.2.5 Descobrindo os ressonadores... 199

2.2.6 Um sopro na carne da memória... 203

SESSÃO 3 – CRIAR, TRANSCENDER, PARIR, NASCER – A GERAÇÃO DE MATERIAIS CRIATIVOS E ASPECTOS DA COMPOSIÇÃO DE UM ESPETÁCULO... 205

3.1 UM ROSÁRIO DE CANÇÕES... 205

3.1.2 Cultivando e colhendo canções ... 206

3.1.3 Identificando trânsitos férteis entre as canções e a criação... 209

3.1.4 Propriedades das canções atuando na criação... 222

3.1.5 Canções Geradoras: Alguns procedimentos criativos decorrentes do contato com as canções... 234

3.1.6 O fio de Rosário... 237

3.2 ROSÁRIO: VOZ E ENCARNAÇÃO DO IMAGINÁRIO... 238

3.2.1 De Feridas e Flores... 238

3.2.2 A matéria-prima que constituiu o espetáculo... 241

3.2.2.1 Breve histórico de geração e evolução dos materiais à montagem... 241

3.2.2.2 Definição de Material... 250

3.2.3 Matrizes: emoções corporificadas ou pedrinhas preciosas de uma dança pessoal... 254

3.2.4 Entendendo estados criativos: Os ventos que animam a terra... 264

3.2.4.1 Encontrando motivações para mover-se... 266

3.2.4.2 Criar a partir de um conceito de tradução... 278

3.2.5Figuras... 283

3.2.5.1 Maria Pretinha... 284

3.2.5.2 Romeira ou Santa Bárbara... 289

3.2.5.3 Coroa Santa... 291 3.2.5.4 Cabocla... 298 3.2.6 Liberdade criadora... 307 CONSIDERAÇÕES FINAIS... 309 REFERÊNCIAS... 316 APÊNDICES... 321 ANEXOS ... 362

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INTRODUÇÃO

Rosário é uma fábula pessoal de mulheres, deusas e animais, preparada, para o espectador, na forma de um ritual. O espetáculo solo, concebido e atuado por mim, aborda a relação do ser humano com o sagrado e traduz no acontecimento cênico um ciclo de crueldade, criatividade, luta e reinvenção de si mesmo pela beleza e pela fé. A peça inspira-se em especial, na simbologia da coroação de reis negros, sempre viva, nos Congados Mineiros e em outros folguedos brasileiros. Esta experiência cênica revela, sob a perspectiva do feminino, do encontro de culturas diversas em novo território, e da religiosidade como estratégia de resistência e sobrevivência numa realidade hostil, aspectos das formações identitárias brasileiras.

“Quem aprisionou teu canto?” “E a tua dança, quem roubou?”1 Estas são algumas das provocações que pairam no final do espetáculo Rosário. Empresto-as para o contexto da apresentação desta pesquisa para evidenciar uma travessia que vai de uma prisão à liberdade; de uma escuridão à uma revelação. O presente trabalho intitulado Ventos que animam a terra: voz e criação na trajetória do espetáculo Rosário, reflete o processo de criação do espetáculo Rosário e o cruzamento de duas abordagens vocais como principal guia deste trajeto. Esta trajetória contempla aproximadamente dez anos, nos quais, o processo de criação do espetáculo está imbricado no meu percurso formativo. É a história de uma formação. É a história de uma criação. É a história da conquista de uma voz. As sessões contam o desenvolvimento de materialização de uma obra artística, de suas pulsões iniciais à encarnação destes impulsos. Aqui, a fala é do ponto de vista de dentro de um processo criativo, mas reflete compreensões gerais acerca da criação, pois é um exemplo de trajeto que diz respeito a todo artista: o trabalho de tornar visível o invisível. Assim, esta dissertação está ancorada em cinco premissas:

1) A abordagem do percurso criativo de um espetáculo que coincide com o percurso formativo de uma artista.

2) A pesquisa acerca de um processo criativo ancorado na articulação de distintas abordagens vocais.

3) A revelação da pesquisa vocal como provocadora da criação.

1

Versos do poema “Quem aprisionou teu canto?”, escrito por mim em 2000, e inserido em 2009 na montagem final do espetáculo Rosário.

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4) O trajeto do desconhecido ao espetáculo enquanto um caminho de revelação pessoal.

5) A importância do atuante, buscar, descobrir, e ter consciente sua técnica pessoal. Trata-se então de uma trajetória que abarca a pesquisa e o ator como pesquisador e criador. Um percurso de dez anos de experiências diversas que foram sendo afuniladas pelo desejo de realizar o espetáculo. Estas se constituíram de diversas fases e etapas que envolveram workshops, retiros de trabalho, treinamentos individuais e em grupo, ensaios abertos, apresentações do espetáculo em processo em eventos e festivais de artes cênicas, vivências em comunidades de culturas populares e viagens pelo Brasil, uma pré-estreia em 2008, uma estreia em 2009, e consequentes temporadas. É esta multiplicidade que fornece a textura da escrita.

Tecendo redes de reflexão que contemplam a criação e o ser-artista, o objetivo é desvendar a multiplicidade de aspectos envolvidos na trajetória criativa e formativa que culmina no espetáculo Rosário e no cruzamento de abordagens vocais. Intento mostrar a diversidade de uma floresta, com suas árvores de experiência e galhos, folhas, frutos e flores de procedimentos e filosofias artísticas, navegando em um rio central, ora raso, ora fundo, ora claro, ora barrento, ora calmo, ora violento, que é o percurso de descoberta e pesquisa da voz.

A metodologia utilizada para realizar a dissertação foi então estruturada engajando-se em quatro movimentos: uma reflexão sobre a filosofia e a prática das escolhas técnicas, uma breve reflexão teórica sobre fazeres e saberes de culturas brasileiras e minhas vivências realizadas nestes contextos, memoriais produzidos a partir dos registros escritos e imagéticos realizados durante o trajeto, e leituras acerca de campos de conhecimento envolvidos.

Para empreender a investigação deste processo criativo mergulhei em quinze diários de trabalhos escritos entre os anos de 1998 e 20112. Escrever diários é um costume desde adolescente. A familiaridade com a escrita se concretizou no trabalho artístico ganhando o sentido de registrar, memoriar, guardar. No percurso da pesquisa, eles foram um suporte essencial para a criação, ao oferecer um espaço para responder aos desejos no momento em que me sentia atravessada por ele. Quando não era possível estar dedicando-me à criação efetiva, faziam-se necessários locais de escoamento e

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materialização. Assim, os cadernos, coleções de imagens, fragmentos de textos, coleção de canções, e outras atividades “reunidoras” de impulsos criativos, eram possibilidades momentâneas de concretização. Além, dos diários, trabalhei com antigos relatórios de aulas dos anos iniciais da faculdade de teatro (1994 e 1995), cartas, escritos avulsos, e ainda com dois diários de Demian Reis, e um de Flavia Marco Antonio (2000 a 2004), ambos, parceiros de trabalho de uma fase relevante deste trajeto.

Para dar materialidade a essa reflexão procurei seguir os rastros destas escrituras feitas “no calor da hora” operando uma arqueologia que remonta os passos deste trajeto e revela os princípios de organização desta criação. No intuito de dar conta da multiplicidade do percurso realizei quatro decupagens para abordar a trajetória criativa e ampliar a forma de ler este material, no sentido de tornar compreensível para mim mesma a rede intrincada que se teceu para essa criação artística. Primeiro, debrucei-me sob cada diário, selecionando informações e tecendo análises acerca de questões relevantes ao recorte proposto entrevendo que fases, experiências e temas de trabalho estavam representados em cada um deles.

Posteriormente, sem olhá-los, remontei a trajetória, pela memória e, olhando-a de vários ângulos, escrevi memoriais de acordo com três pontos de vista. Inicialmente remontei a história de cada ano. Depois fiz uma análise de cada cena do espetáculo de acordo com alguns aspectos: a descrição da ação, a listagem das matrizes físicas e vocais que compuseram a cena em questão, a descrição do processo que criou a tal cena, a revelação das camadas de material que foram se sobrepondo até a cena ser criada, a identificação das técnicas determinantes na criação desta cena e por fim, a reflexão do porque da cena estar naquele lugar do espetáculo. Por último, sem olhar os diários, realizei um memorial do desenvolvimento vocal, contando a história desses aproximados dez anos sob o aspecto da voz. Sendo assim, foram realizadas quatro abordagens memoriais da trajetória: diários, anos, cenas, voz.

Num segundo momento, tendo um montante de mais de quinhentas páginas deste material analisado, passei a organizá-lo de acordo com os roteiros de assuntos que seriam abordados na dissertação, como por exemplo: pesquisa vocal, geração de material criativo, bloqueios psicofísicos, contatos culturais, amor pelas canções, etc. Em seguida, desenvolvi mapas conceituais que contemplavam aspectos da trajetória de Rosário e começavam a sugerir as sessões da dissertação, que inicialmente eram quatro:

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a primeira relativa às origens, a segunda abordando a formação técnica, a terceira o contato criativo com manifestações populares brasileiras e a quarta, a criação do espetáculo. As análises decorrentes dos diários e das decupagens foram então inserida nestes mapas.

No âmbito do Programa de Pós Graduação em Artes Cênicas da Universidade Federal da Bahia, destaco que as disciplinas Festas e Espetacularidades, ministrada pelos professores Lúcia Lobato e Erico Oliveira, Corpo e Mestiçagem Cultural, ministrada pela professora Eloisa Domenici, e Teorias do Imaginário, ministrada pela professora Sônia Rangel foram contribuições vitais para alargar um pensamento que vinha se construindo acerca dos temas de interesse. Em geral, os estudos realizados no mestrado sobre autores que inauguram visões acerca do processo criativo deram um suporte fundamental para realizar uma análise do material dos diários. Para empreender a arqueologia desta trajetória, percorrendo os procedimentos criativos e técnicos que materializaram esta história, o diálogo com a pesquisa da crítica de processo e a autora Cecília Salles (2009) colaborou no sentido de investigar uma obra de arte a partir de sua construção, entendendo que é através do contato com a materialidade desse processo que se pode compreender as coerências que são construídas ao longo de um percurso criativo sob a forma de leis internas que regulam o seu funcionamento.

Nesta investigação sou ao mesmo tempo sujeito e objeto desta busca, e engajei-me em mergulhar no passado e seguir meus rastros, remontando meus raciocínios artísticos, tendo como ponto de partida a intenção inicial de revelar os procedimentos que foram constituídos por “um fazer que ao mesmo tempo inventava o modo de fazer” (PAREYSSON, P. 59, 1993). Apesar de tudo ter começado com o desejo de Rosário, revelo um caminho que se conheceu sendo caminhado. Refletir este percurso criativo desde seus primeiros impulsos até a montagem do espetáculo, percebendo ainda a corrente do percurso formativo que corria junto às urgências criativas, revelou uma série de combinações e criação de procedimentos que foram experimentados e utilizados na criação de Rosário.

A orientação da Profª Drª Meran Muniz da Costa Vargens, colaborou fundamentalmente com esta reflexão, incentivando o mergulho nos diários, instigando formas de olhar para este material, e enfatizando o valor de uma escrita pessoal que avalia um percurso do ponto de vista da intimidade da criação, entretanto sem perder de

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vista a exigência da objetividade e da comunicabilidade como os viabilizadores que legitimariam a escrita que aborda uma experiência subjetiva. A sua vasta experiência de artista, criadora, atriz, diretora, pesquisadora e professora possibilitou que acompanhasse meus passos, estimulando o andar, mas sem impor um caminho: Orientando a descoberta. Acolhendo a descoberta. E às vezes, negando a descoberta.

O desafio inicial desta pesquisa foi adentrar estes processos tão íntimos e encontrar meios de expô-los de forma que pudesse refletir outros processos atorais. O entendimento é de que nosso material artístico reside nessa intimidade. Desta maneira, a articulação deste material numa cartografia pessoal da travessia, almeja não apresentar um caminho fechado, mas apresentar possibilidades que provoquem caminhos outros. As “falas” registradas nos diários foram utilizadas para tecer a escrita, bordando, em um corpo de reflexão teórica, os fios da materialidade da vivência. Ao contemplar dez anos de percurso, os diários revelam a autora desde uma fase juvenil até um amadurecimento. Estes registros apresentam qualidades diversas refletindo as capacidades e possibilidades de cada momento, portanto, é uma escrita que não apresenta uma construção formal. O valor desta escrita é documental e se expressa através de fragmentos às vezes aleatórios, declarações apaixonadas, arroubos juvenis, descrições técnicas de exercícios, reflexões sobre a prática, desenhos, rabiscos de cenas, anotações de poesias, preces e canções, relatos de vivências, etc. como uma comprovação das urgências e impulsos criadores. Para ressaltar o contraponto da fala do presente com a fala do passado estes fragmentos estão postos em itálico. Os diários estão numerados de 1 a 14, e um deles é nomeado “diário do Retiro”. Os trechos destas anotações inseridas no trabalho, portanto, aparecem referidas por essa numeração/nomeação, seguidas, geralmente da indicação do ano (e às vezes do dia e mês) do fragmento utilizado. Como, nem todas as anotações tem datas precisas, optei por esse sistema de datação.

Rosário é uma obra ancorada na memória em três aspectos: um primeiro relativo ao despertar espontâneo de memórias, um segundo aspecto que se refere a uma memória que precisou ser construída no corpo, e um terceiro que contempla a memória vivenciada no percurso. Estes três aspectos se constituíram no espetáculo. Assim como Rosário é um trabalho com a memória, é também o exercício com esta escrita. Para analisar a trajetória e os procedimentos, primeiro tendo-os identificado através da repetida leitura dos diários, precisei lembrar. Para escrever precisei lembrar precisamente. Lembrar com o corpo, lembrar cada sensação, lembrar cada percurso

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interno, para relatar como as aquisições técnicas e criativas, uma imbricada na outra, ocorreram. Lembrar na musculatura, contando com a memória gravada nela, como cada material foi gerado e com o apoio dos diários, montar um quebra cabeça de instantes originais de surgimento e transformação dos materiais. Assim, essa escrita, foi sendo tecida, lembrando através do corpo e dos cadernos, remontando os vestígios dos raciocínios criativos desde seus primórdios. Embora, não seja plenamente possível, nem para o autor que se lembra, abarcar a totalidade dos processos que envolvem uma criação (Salles, 2009, p. 16).

Mas são estes fios da memória que tecem a escritura, junto a reflexões que tocam basicamente quatro campos de conhecimento que na pesquisa se correlacionam: a imaginação criadora (Bachelard) e a imaginação simbólica (Durand), processos criativos (Cecília Salles), reflexões sobre mito e rito (Mircea Eliade), manifestações culturais brasileiras (Leda Maria Martins, Oswald Barroso e Graziela Rodrigues), a arte do ator (Grotowski, Burnier, Dança Butô), e as psicoterapias corporais e couraças musculares (Reich). A criação de Rosário é aqui refletida através de um mergulho nestes campos, e, através de uma investigação teórico/filosófica de quatro imersões técnicas (Dança das Origens; Lume Teatro3; Dança Butô; Prática budista) e de quatro aspectos das manifestações populares brasileiras (Canto, dança, redes simbólicas, princípios que movem a prática criativa), que em graus diferentes de envolvimento, compõem o espetáculo. Utilizando uma imagem do espetáculo trago o desenho a seguir como diagrama que contempla os autores em correspondência com os termos chave que se entrelaçarão na dissertação.

3

Núcleo artístico e pedagógico vinculado à Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) criado em 1985 por Luis Otavio Burnier.

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Diagrama 1. Imagem de uma figura do espetáculo Rosário mostrando a correspondênciaentre termos chave e autores da dissertação.

Tecendo a escrita através das falas dos diários, permito-me, ainda, a brincadeira poética de trazer, para dar textura a esta reflexão, trechos de canções, textos, poemas e preces que inundavam estes cadernos, e são parte, ou do espetáculo, ou do processo. Operando com o aspecto lúdico desta lógica e utilizando o recurso poético para revelar

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instâncias subjetivas do trajeto, um dos textos do espetáculo que é um poema baseado nos nomes coletados e inventados de diversas “Nossas Senhoras”, oferece suas senhoras como regentes das três sessões apresentadas aqui.

Os anos relativos à criação de Rosário, desde o primeiro vislumbre para realizar o espetáculo em 1998, até a estreia em novembro de 2009, compreende quatro fases diferentes que se referem a um tempo inicial de desejos e ideias definidora de rumos, a um tempo de formação técnica, a um tempo de colheita de material criativo, e a um tempo de composição do espetáculo final. Ressalto que as atitudes referentes a estes quatro tempos, mesmo atitudes de montagem, estão presentes em todas as fases. Para definir a trajetória como objeto da presente pesquisa, considero o experimento cênico “Água Viva” realizado em 1999 como um exercício da disciplina Expressão Vocal II, ministrado pela professora Meran Vargens, como marco inicial da criação de Rosário, e a estreia do espetáculo, em 20 de novembro de 2009, como marco final. O experimento em 1999 foi uma primeira oportunidade de organizar e materializar os desejos técnicos, estéticos, e poéticos. O trajeto criativo “Água Viva – Rosário” corresponde a um processo formativo, a um espaço de experimentação e a uma criação. O espetáculo hoje, mesmo oficialmente finalizado, continua se revelando como um espaço de pesquisa e crescimento.

O sentido do espetáculo Rosário é sintetizado em dois movimentos nos quais, no meio do espetáculo, após viver vários ciclos de sofrimento, a menina que atravessa toda a cena é obrigada a engolir sua dor na forma de seu próprio sangue, e em um segundo momento, no final, esta mesma figura, agora fortalecida como uma rainha, desabrocha de sua boca (a mesma que engoliu o sangue), uma enorme flor vermelha. Nesta síntese está o princípio fundador do espetáculo sob o signo da reinvenção. Nos tratados teatrais de Zeami, mestre do teatro Nô, a metáfora da semente e da flor, em linhas gerais, é utilizada para falar de uma fase seminal do trabalho do ator em que a semente corresponde ao desenvolvimento da técnica, e de um momento em que estes esforços resultam no “insólito da flor”, que reflete um “maravilhamento” do espectador, e um êxtase por parte do ator que transcendeu a técnica. Utilizando essa metáfora teatral, Renato Ferracini, ator-pesquisador do Lume Teatro, reflete o trajeto da arte do ator contemplando a existência de um momento em que a flor existe em potência como semente, um momento em que o ator “enche-se de vida” corporificando os potenciais da semente através da técnica, para, ao fim, brotar ações físicas orgânicas como flores para

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serem doadas ao espectador (2001, p. 35-41). Sob a luz destas três metáforas, refletindo movimentos similares, a trajetória criativa do espetáculo Rosário, sua construção dramatúrgica, assim como, o percurso formativo imbricado neste trajeto, vai da semente à flor.

As quatro fases compreendidas no percurso (origens, formação, coleta, composição) estão refletidas na presente dissertação em três sessões metaforizadas em um tempo semente, um tempo de gestação e um tempo de nascimento. A trajetória de Rosário é uma longa gestação, em que, ao passo que eu “pari” o espetáculo, eu nasci como artista. Uma livre adaptação do livro “Água Viva”, de Clarice Lispector, foi utilizada como texto do experimento cênico realizado na disciplina, e mesmo tendo sido abandonado com a progressão da criação de Rosário, ele reflete o tom da trajetória no sentido de um mergulho no desconhecido para nascer. Assim, alguns trechos desta adaptação realizada em 1999, também são usadas nas aberturas dos capítulos, junto às senhoras regentes.

A primeira sessão, intitulada “Semente do Desejo - aspectos fundantes de uma escolha em arte”, reflete o momento seminal do percurso e os estados que estavam em potência ansiando para serem germinados. Corresponde aos desejos e aos aspectos que fundaram as escolhas que foram orientadoras do caminho artístico em questão. Esta etapa é dividida em três partes: Convocações, Veículos e Princípios. O intuito foi identificar qual era o desejo, o que estava na origem deste desejo, quais eram as reflexões e atitudes que estavam presentes e levando a modos de veicular o desejo, que caminhos estavam sendo vislumbrados para a materialização do desejo, e ainda, quais eram as linhas de identidade destes desejos. Assim, na escrita dedicada às convocações estão refletidas as primeiras imagens simbólicas, pulsões e arrebatamentos que impulsionaram o caminho. Em Veículos, revelo os potenciais da semente com relação aos desejos técnicos, assim como, às orientações filosóficas inerentes à escolha das técnicas, que embalam o desejo da materialização do espetáculo. Na terceira parte, me dedico a elencar princípios que me foram revelados durante o percurso da criação, e que ficaram mais evidentes na presente investigação. Eles foram fundamentais para guiar a criação de Rosário, e também, mostraram-se como princípios norteadores do meu fazer artístico em geral.

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Na presente pesquisa, para sentir o perfume da flor que exala no final deste trabalho sob a forma da conquista de uma criação, faz-se necessário familiarizar-se com a semente. Lançando mão de mais uma imagem, percebo que percorrer o trajeto de uma criação é como acompanhar as fases de construção de uma casa. Como anfitriã, desculpem-me, mas preciso levá-los antes ao porão. Levá-los a sentir o cheiro úmido da gruta onde habitam as origens deste trajeto e as pulsões que moveram a criação; onde habitam os primeiros experimentos técnicos que colaboraram em veicular estes impulsos; onde habitam os princípios que deram sustentação ao fazer criativo. Rever o trajeto criador leva, antes de tudo, à identificação do momento exato em que houve a convocação do sujeito, no qual, confrontado com a urgência, é espreitado a desenvolver algumas capacidades. Entre elas a coragem de escolher caminhos e a capacidade de suportar o estado de “nascência” do processo, onde o jogo é sempre entre o conhecido e o desconhecido. Penso que Rosário, como todo trajeto criativo, é uma história de escuridão, luz, e escuridão novamente, em ciclo constante de abertura de novas questões e conhecimentos. A trajetória analisada na presente dissertação refere-se à gradual descoberta de que caminhar na arte é trabalhar com o conhecimento das dimensões obscuras amalgamadas em nós, e com toda sorte de trânsitos e conexões entre elas. Não é um caminho linear, do desconhecido para o conhecido. No jogo constante de luz e escuridão, a escuridão, muitas vezes, por mais dolorosa, impulsiona o caminho, e a luz, por mais bela, requer coragem. Porque ver, nem sempre é sinônimo de paz. As certezas podem ser perturbadoras. Estas são questões fundantes para lidar com processos de criação: intimidade com origens, escolha e paciência. A constelação de imagens e pulsões pessoais que se aglutinaram como imaginário, provocou um caminho em arte, e se tornou o espetáculo Rosário. Um imaginário constelou-se para uma criação artística, e, enquanto constelava, formava a criatura que criava. A regente desta sessão que revela o mergulho no desconhecido é a Nossa Senhora da Minha Escuridão.

A segunda sessão intitulada “Percurso formativo – Gestando Liberdades e Identidades”, está centrada no aspecto formativo. Tendo confirmado as escolha, essa parte do trabalho volta-se para refletir os contatos técnicos que determinaram minha identidade artística, lançaram as bases para criar Rosário, e, ainda, abriram o caminho para o encontro de uma técnica pessoal. Nesta etapa, meu corpo foi transformado, e experienciei o surgimento de uma voz, além de conquistar meios concretos de trabalho físico-vocal-criativo. A sessão é dividida em duas partes: uma é dedicada a descrever a

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iniciação à arte do palhaço e posterior desenvolvimento, como o fazer que promoveu a experiência da exaustão física, do desenvolvimento da escuta dos impulsos do corpo, e de um contato humano diferenciado.

A outra parte, relata as fases e peculiaridades de uma pesquisa vocal que foi determinante nesta trajetória. Sob as vibrações da filosofia de Grotowski, a meta estava pautada na busca de uma consciência orgânica que integrasse o corpo em todas as suas dimensões, e propiciasse um encontro sincero com o outro, com o espectador. Esta base técnica-criativa foi viabilizada através de cinco workshops com o Lume Teatro, e, do subsequente aprofundamento no âmbito do trabalho do grupo Palhaços para Sempre4. Considero que a formação foi complementada pelos contatos e vivências com manifestações populares brasileiras, e o aprendizado de cantos, danças e lutas sob a influência dos contextos sociais e simbólicos inerentes às culturas populares. Ao revelar momentos de dissolução de bloqueios e aberturas de caminhos musculares profundos rumo à consciência orgânica, as regentes dessa sessão são a Nossa Senhora desatadora de Nós e Nossa Senhora das Chagas Abertas.

O trabalho é concluído analisando a fase eminentemente criativa em sua terceira sessão intitulada “Criar, Transcender, Parir, Nascer”, na qual revelo a geração de materiais criativos e aspectos da composição de um espetáculo do trabalho. O percurso inteiro é dotado de criação. Desde a primeira ideia, escrita, imagem, vislumbre de cena, em 1998, Rosário estava sendo concebido. Entretanto, é evidenciada neste momento uma apropriação segura de modos de criar, gerar materiais criativos e compor cenas. Nesta sessão são abordadas as canções tradicionais e os procedimentos criativos decorrentes destes contatos culturais, e também, o repertório de materiais criativos manipulados para a composição de Rosário. Aqui estão todos estes aspectos de imagens e memória se amalgamando e encarnando-se como resultados de um acúmulo de experiências. O contato com a dança Butô através de um workshop em 2006 com o mestre e dançarino Tadahsi Endo e posterior desenvolvimento em trabalho individual aprofundou a base técnico-criativa promovida pelo Lume Teatro, me levando à criação através da síntese da formação e das vivências com as culturas brasileiras. A prática budista, presente em todos os anos da trajetória, embora não fosse utilizada como um treinamento artístico, representou um engajamento técnico em uma disciplina que

4

O grupo Palhaços para Sempre foi criado em 2000 por mim, Demian Reis, Flavia Marco Antonio, João Lima e João Porto Dias, para pesquisar a arte do palhaço e a arte do ator.

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funcionou como um apoio sutil que propiciou compreensões importantes acerca da consciência criativa. O que é essencial nesta última parte da dissertação é a revelação - através de reflexões e exemplos materiais do processo de criação - dos modos de geração de material criativo, dos procedimentos criativos surgidos dos cruzamentos entre as duas abordagens vocais agenciadas no percurso (as canções e a pesquisa vocal ancorada na musculatura), e de modos de acesso a estados criativos. Uma clareza importante advinda destes empreendimentos, são acerca de caminhos para estar sensível e criar. Nestas reflexões finais encontro o legado do caminho. Tendo partido do desconhecido e chegado ao espetáculo como a uma revelação pessoal, completando um ciclo, as regentes dessa sessão são a Nossa Senhora do Rosário e a Nossa Senhora do Raio que Ilumina a Escuridão.

Gostaria ainda de destacar, a título de introdução para a compreensão do trabalho, que o aparecimento da palavra corpo, na presente pesquisa, estará sempre se referindo ao corpo como entidade inseparável da voz, assim como, ao corpo integrado à consciência. Se estas dimensões referentes à totalidade do ser, em algum momento aparecem separadas, é para fins analíticos, para evidenciar algo que demande ser demonstrado isoladamente, inclusive para a percepção da relação entre as dimensões integradas do ser. O foco são as ações físicas e vocais que parte desse “corpo-voz-consciência”.

Grotowski, ao longo de sua pesquisa, adotou diversas terminologias para abarcar de acordo com sua investigação, o artista cênico. Assim, ele utilizou termos como ator, atuante, doers (fazedores) performers, para indicar aqueles que “faziam a ação”. Ele preferia se referir a arte do performer - por indicar “executar uma ação”, “acompanhar um processo”, “fazer” -, ao invés de falar sobre “artes do espetáculo”, expressão que segundo ele limita o acontecimento à ação de ver (Pradier apud Reis, 2009). Nas minhas vivências em comunidades detentoras de tradições culturais, vi que os participantes das manifestações, enquanto atuantes que cantam, dançam, lutam, rezam, dramatizam e mimetizam no âmbito destes fazeres cênicos, se chamavam por “brincadores”. A identificação com estas práticas espetaculares me fez ampliar definitivamente a visão acerca do teatro e do ator. Isso me lembrava sempre as tradições de teatro oriental, onde cantor, não está separado de ator, que por sua vez não está separado de dançarino.

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Assim, sendo este um trabalho que medita as raízes rituais e religiosas do teatro, que originalmente incluía em seu fazer o canto, a dança, e a dramatização, enfatizo que os termos ator, atuante, dançarino e performer, nesta trajetória são utilizados como sinônimos que expressam a totalidade de um ser criante. Embora reconheça através de autores e pesquisas diversas acerca do teatro, da dança e da performance, que há diferença entre esses termos, não considero relevante categorizá-los no âmbito desta pesquisa. O enfoque é no aspecto criativo deste “fazedor de ação”. O olhar instaurado aqui é fruto de uma trajetória que me levou a vivenciar o intercâmbio entre estes termos no momento em que escolhi, enquanto atriz formada em uma escola de teatro convencional, caminhos e práticas artísticas que buscavam estados de consciência e presença geradores de pulsões, fluxos e ações reais e simbólicas.

Nos “ventos que animam a terra”, título da dissertação, estão presentes algumas relações que intento revelar no percurso da presente pesquisa: a relação entre um aspecto corpóreo visível que materializa dimensões invisíveis do ser humano; a voz que abre caminhos na musculatura levando ao movimento, estando aí presente a relação entre respiração e músculo, sopro e carne; as linhas do mito pessoal que atualizam-se no rito do espetáculo; a relação do ser humano com a esfera do sagrado; e ainda, a relação de imaginários que encarnam-se nas danças e nos cantos nas manifestações brasileiras e, imaginários constelados durante a trajetória que encarnam-se nas cenas de Rosário. A reflexão da presente dissertação se refere à essas profusões de relações entre o invisível com o visível. São jornadas que dizem respeito a processos de encarnação em arte. Esta relação conecta-se ao processo de formação e descoberta de técnicas que viabilizam energias criativas, ao processo de criação como materialização de arrebatamentos e convocações; e ainda, à relação com a memória e a necessidade de atualizá-la. Pela via dos desejos e convocações que unem matéria e sensação e alinham os sentidos para a materialização, compreendo o artista como artesão de matérias e artesão do imaterial.

Rosário é um espetáculo que parte da escolha de um espaço circular que coloca o tempo de maneira cíclica e não linear, abordando um eterno retorno que vai transmutando experiências dolorosas em beleza através da relação com o sagrado. Estes círculos são marcados por relações quaternárias através das quatro figuras humanas e quatro figuras encantadas que regem o espetáculo, através dos quatro elementos da natureza que instauram a materialidade da cena e através de quatro eixos que sustentaram a criação da dramaturgia do espetáculo:

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I – Ritual / Sagrado / Celebração / Nascimento

II – Corte do Lugar De Origem / Sofrimento / Cativeiro /Aprisionamento III – Força / Beleza / Festas / Grito / Volta às Raízes / Ligação Divina IV – Redenção / Êxtase / Libertação / Coroação

Trazendo a estrutura do espetáculo para a dissertação, adotando esse tempo circular que inclui passado e presente em simultaneidade, trago o diagrama de uma flor que contempla todos os aspectos da trajetória.

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Diagrama 2. Imagem da flor de Rosário mostrando sete ciclos que contemplam a criação do espetáculo e a escrita da dissertação.

Na flor, contemplo a totalidades e simultaneidade destes círculos, em camadas de quatro pétalas que se abrem em processos que se desdobram conforme um movimento que parte do espetáculo e chega à dissertação. Em um eterno retorno, esta reflexão é parte de um processo desencadeado pelo espetáculo, de forma que pude revivê-lo neste novo ciclo de pesquisa. Assim o primeiro ciclo de pétalas são as quatro abordagens técnicas (Dança das Origens; Lume Teatro, Dança Butô; Prática Budista) que calcaram a criação, o segundo são as quatro instâncias de influências advindas do contato com as manifestações populares, que fundindo-se com a técnica também calcaram a criação (Canto, dança, redes simbólicas, princípios que movem a prática criativa), o terceiro são os quatro tempos que envolvem a criação (impulsos e ideias iniciais, formação técnica, coleta de materiais, criação/composição), o quarto, são os quatro movimentos que estruturam a metodologia para a presente pesquisa (reflexão filosófica das técnicas e sobre as vivências com as manifestações brasileiras, produção de memoriais na qual está incluída as análises dos diários, e as leitura teóricas), o quinto ciclo são as quatro abordagens dos memoriais (diários, decupagem dos anos, voz e cenas), o sexto, são os quatro campos de conhecimento (imaginação criadora, arte do ator, psicoterapias corporais, inspirações etnográficas) e por fim, o sétimo ciclo de pétalas são os quatro aspectos contemplados nas três sessões da dissertação (origens de Rosário, formação técnica, contato criativo com manifestações populares, criação). Assim, trago do espetáculo para materializar a dissertação, as relações quaternárias com o quatro como um número que simboliza realização, assentadas em um tempo/movimento circular na forma de um passado que não se esgota e coexiste com o presente.

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1 SEMENTES DO DESEJO – ASPECTOS FUNDANTES DE UMA ESCOLHA EM ARTE

Regente: Nossa Senhora da minha Escuridão

O outro lado de mim me chama.[...] Sinto-me tonta como quem vai nascer. [...] Há uma prece profunda dentro de mim que vai nascer não sei quando. (Clarice Lispector)

Rosário é uma fábula pessoal de mulheres, deusas e animais preparada para o espectador na forma de um ritual. O espetáculo traduz, no acontecimento cênico, um ciclo de crueldade, criatividade, luta e reinvenção de si mesmo pela beleza e pela fé, e se inspira, em especial, na simbologia da coroação de reis negros, sempre viva nos Congados Mineiros e em outros folguedos brasileiros. Essa experiência cênica revela aspectos das formações identitárias brasileiras sob a perspectiva do feminino, do encontro de culturas diversas em novo território, e da religiosidade como estratégia de resistência e sobrevivência numa realidade hostil.

No prelúdio do espetáculo, os espectadores são recebidos por um ser que ergue longos galhos secos, metaforizando a mãe-árvore. Essa mãe universal desenha, no espaço, um círculo com terra vermelha que escorre de sua grande barriga, instaurando o território mítico da cena. Desse momento em diante, ciclos se sucedem, colocando em jogo morte e renascimento, desterritorialização e territorialização, prisão e libertação, sofrimento e redenção, tendo, como eixo de desenvolvimento das cenas, quatro personagens arquetípicos: três velhas e uma menina.

Nas situações de corte ou revolução, esses círculos/ciclos são devastados ou, invertidos em sentido anti-horário, suspensos pela presença de entidades femininas, que simbolizam deusas-rainhas e encarnam a natureza. A figura mitológica do boi pontua a cena em dois momentos, enfatizando a submissão e a reinvenção festiva. A constante metamorfose dessas mulheres, deusas e animais utiliza, como suporte, uma longa saia branca, uma bacia prateada e uma caveira de boi, multiplicando-se em imagens e funções diversas. As qualidades distintas destas figuras determinam as diversas ocasiões de interação com o público, o que também caracteriza o ritual. O acontecimento cênico é conduzido por uma linha de canções brasileiras e é composto de ações dançadas por um corpo e voz provocados por sensações de dilaceramento e êxtase. Rosário é tecido por imagens simbólicas que constituem uma poesia visual na qual os versos são a sucessão de círculos bordados por desvios que funcionam como quebras que anunciam

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a transformação final. Os refrões são a repetição de um pequeno fragmento de texto que marca a tensão na cena; o último refrão desemboca no clímax do espetáculo, no qual a menina vivencia um estupro e é obrigada a suportar sua dor e a engolir seu próprio sangue.

A partir de então, a peça se desenvolve galgando a espiral, o que leva a uma cena de revolta e guerra, à redenção final com a coroação de uma mulher do público – cena registrada na foto a seguir – e à transformação do sofrimento em uma flor que brota da boca desta mulher que reúne todas as mulheres. Ela, agora, apresenta nova feição, tocada por um êxtase místico e pelas forças dos arquétipos da rainha-entidade. A terra, o fogo, a água e o vento são responsáveis pela densidade material da cena. Eles mostram-se premostram-sentes materialmente por meio de sons e imagens que os sugerem, criando uma textura sonora e imagética. Evocando os elementos da natureza, Rosário instaura uma atmosfera atemporal e organiza-se como um ritual, convidando os espectadores a reviverem suas memórias pessoais e sociais de violência, a fazerem contato com sua ancestralidade, a se reinventarem através do sagrado e a evocarem sua própria catarse.

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O espetáculo é um solo. Um ritual pessoal de encarnação de imagens matriciais íntimas, convocações primordiais atualizadas na cena. As imagens matriciais e seus entrecruzamentos simbólicos, que revelaram a paisagem do imaginário de Rosário, começaram a aparecer como convocações por volta de 1998; portanto, onze anos antes de sua concretização como espetáculo. O trajeto de Rosário trata do caminho desses conteúdos ao corpo através do desenvolvimento de ações físicas e vocais, e do corpo à elaboração cênica. Dessa forma, a paisagem – estabelecida pela recorrência e repercussão causada pelas imagens e seus desdobramentos em temas, situações históricas, pessoais e mitológicas – fez emergir uma tessitura simbólica, que revelou o mito pessoal do espetáculo. Ao passo em que se revelava esse mito pessoal, fazia-se por conhecer tanto os eixos dramatúrgicos que indicavam a construção da cena quanto os princípios que orientavam o processo de criação e a coleta de materiais. Esses princípios orientaram a criação de Rosário e permaneceram para além do espetáculo, como projeto de uma vida.

De acordo com as ideias do historiador das religiões e estudioso dos mitos Mircea Eliade (1994), o mito, tal como é vivido pelas sociedades arcaicas, é uma história sagrada ou sobrenatural tida como verdadeira, que se refere sempre a uma criação, a como uma realidade veio à existência, seja essa realidade um padrão de comportamento ou um modo de trabalho. Sob essa perspectiva, o mito ensina as histórias primordiais que nos constituíram e tudo que se relaciona com nossa existência. Esse aprendizado é impregnado pelo sagrado e deve ser repetido através do rito. Reatualizar esta história sagrada é ser forçado magicamente a retornar à origem. É aprender o segredo da origem das coisas, reiterando sua criação e assegurando a presença das forças com a mesma beleza, vigor e abundância de quando apareceram pela primeira vez. Celebrando, através do rito, o mito de origem, o indivíduo deixa-se impregnar pela atmosfera sagrada na qual se desenrolaram esses eventos miraculosos. Nela, fortifica-se e encontra sentido para o funcionamento da vida. Eliade esclarece que viver os mitos implica em uma experiência religiosa porque se distingue da experiência ordinária da vida cotidiana, e mesmo nesse plano é tido como uma realidade viva à qual se recorre incessantemente.

O mito constitui um paradigma de um ato humano significativo. Foi através do sentido de uma história ao mesmo tempo fabulosa e verdadeira que, aos poucos, cheguei a um mito pessoal que correu nos veios do processo e, hoje, dá sentido ao espetáculo Rosário. Sob esse ponto de vista, ao tornar consciente esse mito, o espetáculo se tornou

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um rito que relembra o tempo mítico da criação, o ato primordial da transformação do caos em cosmos pela criação divina, e, na sequência, o princípio cíclico de transformação do cosmos em caos e do caos em cosmos novamente. Nos fragmentos registrados nos diários, é possível ver, através dos anos, os rastros que indicam o mito, a evolução dos eixos dramatúrgicos e dos princípios que guiaram o processo e se organizaram no espetáculo Rosário. Indico, a seguir, esses rastros revelando as suas recorrências e evoluções.

Em 1999, eu desejava trabalhar com o ciclo de “nascimento – morte –

renascimento”5 e com os seguintes momentos:

• Momento feto

• Momento nascimento • Momentos de retorno

• Momentos de ciclo – circulares6

Havia o primeiro traço do que se constituiu em Rosário como os ciclos humanos e as quebras representadas pelas entidades:

A única coisa que sai do circulo é a entidade. Que tudo rege.

Que é o não-tempo. Que é o universo.

O que aparece em intervalos do que circula7.

Em 2000, escrevi a poesia (vide Figura 1, pág. 15) que aparece no programa de estreia de Rosário em 2009. Os versos trouxeram imagens-urgência que insuflaram o mito e reuniram significados do espetáculo, além de ter se tornando, nos últimos meses do processo a fala de uma das velhas:

Quem são teus deuses?

Quantas flechas já tivestes na mão? Há quanto tempo está aqui? Quantos círculos fez? Não sente saudade?

Teus pés ainda estão rachados?

Ainda dá para sentir o cheiro do teu suor misturado à seiva das folhas? Seus olhos são transparentes?

Porquê está preso? Quem te aprisionou?

Ainda guarda em ti todos os animais? Onde estão teus filhos?

Consegue chorar sem dor? Sorrir com as lágrimas da graça?

E o teu transe, a tua dança, quem roubou? Não sente saudade?

5 Diário 4, 1999. 6 Ibidem 7 Ibidem

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És companheiro do fogo? Sangra tuas mãos no tambor? Sabe o que é sagrado? Lembra teus rituais? Conta pra mim Quem te roubou?

Teus pés ainda estão rachados? Teus pés ainda batem forte no chão? Me ensina tua dança?

Deixa eu beber tua água? Olha nos meus olhos? São transparentes? Ainda és puro?

Ainda és amigo da serpente? Ainda sabe voar?

Me conta suas histórias? Você lembra?

Quem roubou?

Quem aprisionou teu canto? Quem matou seu povo? Você lembra?

Ainda conheces o segredo? Lembra o caminho? Me leva com você? Me ensina de novo?8

8

Poesia escrita em folha solta somada a uma colagem de recortes de revista conforme imagem apresentada.

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Figura 2: poema-colagem. Caneta preta e colagem de recortes de revista sobre papel 21 cm X 29, 7 cm, Felícia de Castro, abril de 2000.

Em 2002, alimentando e projetando o desejo da criação:

Solo: revela nossa prisão a um círculo incessante de nascimento, sofrimento, envelhecimento, morte e renascimento, e a possibilidade e necessidade de libertação desse ciclo. E como isso pode acontecer através de um encontro com o sagrado e com a beleza. Um encontro com o mundo interior e seus caminhos. Caminhos que levam a expansão e a união com o espaço. Revelação da semente divina. 9

Ou, ainda, nesse mesmo ano, indicando a cadência da cena: “Começar traçando o círculo, e rodando, rodando, passando por várias fases, facetas do ser, entidades. E o

sagrado no círculo / no fim (estar) fora dele”10. Esta indicação evoluiu através dos anos

e em 2009 transformou-se na “cena do xirê”, na qual são apresentadas no início do espetáculo as personagens arquetípicas.

Em 2003, descobri que, para esta criação, precisava “Emanar história mágica e

Dar significado”11. Ou seja, estava em busca do mito do espetáculo e de como

encontrar sua forma.

Nesse exercício de pensar a “história mágica” e o significado, cheguei à forma sob uma lista de atos que deveriam constituir Rosário:

Atos

Ato do nascimento Ato do amor

Ato do sexo (comer a flor)

Ato da dor (música do baile perfumado) Ato da mulher

Ato da mãe (nossas senhoras) Ato da velhice Ato da religiosidade Ato do ritual Ato da morte Ato da fé / louvor Ato do sangue Ato da morte

Ato da guiança – Ou ato do caminho a iluminação Ato da queda12

Nessa fase, a ideia para a dinâmica da cena era que cada ato fosse “Acompanhado

por figura da entidade, o diálogo com o sagrado”13.

9 Diário 8, outubro de 2002. 10 Diário 9, 2002. 11 Diário 10, 2003. 12 Diário 10, 2003. 13 Ibidem

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Havia, também, a ideia de composição baseada em “Atos que retornam e se interpenetram”. Para essa composição, deveria utilizar como recursos:

• Conexões • Correlações • Repetições14

Em 2004, tornou-se mais claro o que eu desejava com/para o espetáculo:

Quero passar com essa peça toda beleza que é ser mulher, o sagrado do feminino. E também toda luta e dor das mulheres, sobretudo as negras, que sempre foram ao longo da história profundamente violadas e desrespeitadas tanto por seu próprio companheiro como pela sociedade. Este é um aspecto. Outro é a possibilidade de redenção do sofrimento que todos os seres podem alcançar. Redenção pela beleza, pelo sagrado, pelo divino. Transmutação pelo amor.15

Em 2005, mais indicações para dinâmica da cena: “De círculos em círculos (realizar) uma morte”16.

Mais sentidos buscados para a cena: o desejo era traduzir a “Comunicação com o

céu, este diálogo, que todos os homens buscam”17. A inspiração para isto vinha dos

africanos, que “misturaram, encobriram sua religião para manter esse diálogo [...]”18 E

a reflexão sobre a mestiçagem religiosa ocorrida em solos brasileiros: 1- África – mãe

2- Brasil – nossas senhoras

3- Transcendência / Brasilidade – espiritualidade brasileira19

Em 2007, as convocações, pulsões e recorrências de imagens me impulsionaram a escrever uma fábula, uma historinha que, por revelar essas pulsões pessoais, identifico como mito, como metáforas de uma história pessoal: Este espetáculo é uma fábula, uma

brincadeira, um entrar em contato com a ancestralidade, que não é uma, são muitas20.

Chegando, aos poucos, à Fábula: No início era o vento. E as águas...

Depois os primeiros homens inventaram sua prisão. O círculo. O sofrimento.

Em tribos, fizeram rituais. E tentaram comunicar-se 14 Ibidem 15 Ibidem, 2004. 16 Folha solta, 2005. 17 Ibidem 18 Ibidem 19 Ibidem 20 Diário 4, 2007.

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Com o sagrado.

Tentando o caminho de volta Regidos pela mulher, a mãe. E veio a luta, os combates. Aprisionamento

Arrancados desse estado primeiro. De suas terras.

Foi realizado o corte Representado pelas águas Então um lugar de passagem. E numa nova terra

Dominados em cativeiro Deu-se o encontro e o choque. Tentaram comunicar-se Com seus divinos

Através de nova linguagem. Pediram ajuda

Era o lamento E a alegria

A expressão vinha através Daquela mistura

Daquele encontro E o trabalho E a saudade

E a tentativa de voltar Acabar com o círculo21.

Na tentativa de visualizar o espetáculo, fiz um esboço de um

storyboard,22 organizando uma sequência com cenas e ideias que haviam sido

coletadas.

Ainda nesse ano, reflexões mais claras sobre que tipo de relação desejava estabelecer com o público. Alguns depoimentos coletados durante as três temporadas realizadas com Rosário indicam que houve um retorno nesse sentido23:

O espetáculo pretende uma experiência sinestésica; (pretende) pelos sentidos alcançar um encontro com a ancestralidade de cada um, despertando o interesse por suas origens. (Pretende) que as pessoas sintam na pele os arquétipos prisão, libertação... (Pretende) despertar um sentimento de religiosidade, de fé, de compreensão do quanto o sagrado e as relações místicas operam em nossas vidas. (Pretende) despertar que disso decorre também a ligação com o belo, o sentido de beleza. O sentido divino que colocamos na terra em contato com o céu24.

Da mesma maneira que estava escrito na introdução de O Povo Brasileiro, de Darcy Ribeiro (2007, p. 17) e guardei para mim no diário, aspirava, com Rosário, “ajudar o Brasil a encontrar-se a si mesmo”25.

21

Ibidem

22

Storyboards são ilustrações colocadas em uma sequencia para realizar a pré-visualização de um filme. Estes desenhos estão anexados à dissertação.

23

Os depoimentos do público relevantes para este trabalho estão anexados a dissertação.

24

Diário 12, 2007.

25

(36)

Em 2008, cheguei ao entendimento de que o espetáculo giraria em torno de quatro eixos precedidos de um prelúdio, composto pela presença de todos os quatro elementos da natureza e que evocaria questões de origem:

• Prelúdio • Origem • Elementos

I – Nascimento / celebração / festa / anunciação da brincadeira / levantamento do mastro

II - O corte /Crueldade / estupro / aprisionamento / cativeiro / transição / a formação / mistura

III - Ancestralidade / a força das raízes que falaram mais alto / um caminho para liberdade

IV - Purificação / de volta ao êxtase / redenção pela beleza e pelo sagrado / devolvendo

a crueldade em beleza26

Em 2009, escrevi, novamente, um poema, impulsionada pelo esforço de traduzir o que eram a paisagem, o mito e o rito de Rosário. O poema colaborou na compreensão das imagens, sentidos e eixos do espetáculo:

Rosário é devoção

Rosário é entrega a providência divina Rosário é uma mulher

Rosário é círculo

Ciclo de todas as mulheres Rosário é raiz rasgando terra Rosário é vento

Rosário é vento soprando vela de barco Rosário é beira do mar

Rosário é chegada Rosário é adeus

Rosário são muitas entidades Rosário é uma grande oração

Rosário é o Brasil que tragou a África Rosário é Portugal que se perdeu no Brasil Rosário é preto

Rosário são todas as famílias e os filhos que foram embora Rosário são rainhas que falam com o céu e com o mar Rosário é o mar que protege

Rosário é o mar como lugar de passagem Rosário é memória

Rosário é lugar de não esquecimento Rosário é segredo Rosário é o mar Oceano de corte Rosário é reinvenção Rosário de senhoras27 26 Diário 12, 2008. 27 Diário 13, 2009.

(37)

Ainda em 2009, aparecia de modo cada vez mais recorrente a ideia de cena que guardaria o sentido geral do espetáculo: (Ter junto a mim um) fio vermelho. Comer (em um momento da peça) e (no final) devolver (como a) flor28.

Ideia igualmente recorrente sobre o fim da peça: Final redenção. Redenção do sofrimento pela beleza e pelo sagrado. Êxtase espiritual. (Com a) Música senhora do

Rosário29. A seguir, dando ênfase à materialidade desse texto, reproduzo, através de

imagens de páginas dos diários, alguns dos rastros revelados.

Figuras 3: recorte de página do diário 4, 1999.

Figura 4: recorte de página do diário 10, 2004.

28

Ibidem

29

Refiro-me a música que inspirou a criação do espetáculo, intitulada “Terno de Congo dos Arturos – Marcha de Nossa Senhora do Rosário”. Diário 13, 2009.

(38)

Figura 5: recorte de página do diário 10, 2004.

(39)

Figura 7: página do diário 10, 2004.

(40)

Figura 9: Página do diário 4, 2007.

(41)

Figuras 11: página do diário 13, 2009.

Sobretudo nos primeiros anos desta trajetória, esses sentidos e imagens funcionaram como forças movedoras da criação. Empreendi uma busca para encontrar os veículos que permitiriam elaborar ações físicas e vocais que seriam o suporte da atualização do mito em rito. Para compreensão da trajetória aqui refletida, convido o leitor a se familiarizar com a paisagem, o mito e o ritual que constituíram o espetáculo e que lançam as bases técnicas e filosóficas do trajeto.

Cecília Salles (2009, p. 28), sob a luz da crítica de processo, investiga a obra de arte a partir de sua construção e reflete que há vários níveis de ação em um trajeto artístico que revelam que são inúmeras as formas de se aproximar da criação. Identifico três aspectos que agiram simultaneamente na criação de Rosário e sobre os quais me debruço nesta sessão. O primeiro aspecto aborda a questão das convocações e do impacto de imagens que instauram o devaneio no artista.

Gaston Bachelard (1993, p.189) põe-se no encalço do desvendamento das ações da imaginação criadora e coloca o devaneio como a força que uma imagem pode exercer em nós, uma força que instaura uma “contemplação primordial”. Esse aspecto indica as atrações e as pulsões. A compreensão dessas origens ilumina a dança das repercussões. O segundo aspecto se refere à necessidade de encarnação dessas pulsões “criantes”, ou seja, a busca de veículos para viabilizar a criação. Técnica, no aspecto

(42)

aqui tratado, representa a descoberta do caminho para estar sensível, para conquistar a autonomia de acessar estados criativos, e operar modos de criar. O terceiro aspecto se refere aos princípios que passaram a nortear a criação e a guiar as ações. É a afirmação da escolha e do desejo. Foi através da revelação de princípios que descobri gradualmente o mito pessoal que parecia agir subterraneamente, impelindo-me a “contar uma história” e a encontrar o meu próprio rito: o espetáculo.

Para abarcar esses três níveis de ação do trajeto, utilizo como metodologia para esta sessão, o cruzamento de informações contidas nos diários de todo o período, traçando um índice das recorrências dos princípios, imagens, símbolos, arquétipos, eixos temáticos, valores dominantes, atrações e primeiras imersões técnicas, revelando a dinâmica com que elas se apresentaram e com que estabeleceram as bases da criação de Rosário, da minha formação e independência artística.

Identifico os quatro primeiros anos desse trajeto - desde o primeiro desejo em 1998, de fazer um solo sobre a relação do ser humano com o sagrado, até, em 2001, quando me deparei com a canção que fundou o projeto do espetáculo - , como a fase de seminal de Rosário, porque é nesse período que estão contidas as sementes que, fecundadas, gestaram a trajetória e criaram Rosário. Os potenciais contidos nessas sementes se manifestaram enquanto obsessões, urgências, devaneios, imagens recorrentes, atrações, arrebatamentos, identificações técnicas, filosóficas e teóricas. Esses potenciais amadureceram enquanto princípios artísticos que me regeram à criação. Percebo que quando esses princípios foram sendo identificados, ampliaram a consciência com relação aos modos de operar a criação. Nessa reflexão, enfatizo a importância de o artista identificar o que lhe rege e valorizar o que pulsa em seu ser. A consequência é a autonomia criativa.

A tentação de desvendar a semente significa um processo que é irrigado pelo desejo. O aspecto desse desejo é misterioso. Não é um desejo objetivo. É um desejo ainda sem rosto, sem forma, sem explicação, que não entendemos muito. Ele é uma sensação, e, mesmo sem entendê-lo, lutaremos para conhecê-lo e irmos além com ele. Esse desejo não é identificado como falta, mas como trás o ator e pesquisador Renato Ferracini (2006, p. 39), é um desejo que nos impulsiona para a construção ou reconstrução de novas possibilidades de existência; é o desejo que é chamado por Nietzsche de “Vontade de Potência”. É esse desejo que me conduzia dos estados potenciais para a encarnação, para atravessar o portal do invisível para o visível.

Referências

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