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MEMÓRIAS DO TRABALHO DE CAMPO: LIMITAÇÕES E ANGÚSTIAS REFERENTES A UMA PEREZHIVANIE INACABADA.

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MEMÓRIAS DO TRABALHO DE CAMPO: LIMITAÇÕES E ANGÚSTIAS REFERENTES A UMA PEREZHIVANIE INACABADA.

Paulo Caldas Ribeiro Ramon (Doutorando em Psicologia UNESP/ASSIS, bolsista CAPES

Luane Maciel Freire (Doutoranda em Educação UEM/Docente Departamento Teoria e Prática da Educação)

contato:paulocrramon@gmail.com

Palavras-chave: Perezhivanie; memórias do escritor; Situação Colonial da escrita.

1.Introdução

Estas primeiras palavras consistem em uma tentativa de expressar o sentimento de escrever sobre o outro, inevitavelmente é uma vivência de escrita na qual a subjetividade do autor está em cena, no entanto não se trata de um exercício intimista mas sim de uma análise que antecede a intensificação do trabalho de campo entre os Xetá da T.I. São Jerônimo. Para tal partimos da premissa de que as condições objetivas determinam a consciência humana. (MARX, ENGELS, 2007).

Como proposta de trabalho de Doutorado procuro desenvolver o conceito de perezhivanie entre o povo Xetá (2016-2000), para tal será realizado um trabalho etnográfico e analítico, entendemos que estudar a vivência implica necessariamente experienciá-la, portanto este texto antecede ao trabalho etnográfico com o Povo Xetá, tenho assim como principal objetivo: realizar uma retrospectiva dos fatos vividos em diferentes situações profissionais e pessoais com o intuito de organizar o pensamento, abordando distintas vivências, em uma reflexão preparatória para o trabalho campo, .

Antes de falar da perezhivanie , é preciso brevemente apresentar a história do povo Xetá, linguisticamente são classificados como pertencente ao tronco Macro Tupi, próximo aos Guarani Mbya (RODRIGUES, 1978), desde meados do séc. XIX são relatados por diversos viajantes como ocupantes dos territórios ao longo do Vale do Rio Ivaí na região Sul do Brasil (BIGG-WITHER, 1974; MOTA, 2013). Com o avanço do processo de colonização no Estado do Paraná no séc. XX, a ocupação não indígena forçou os Kaingang a saírem de suas terras rumo ao oeste e estes, por sua vez, forçaram

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os Xetá a irem para região noroeste do Estado (Mota, 2013). No início do Séc. XX, enquanto as populações Kaingang e Guarani negociavam junto aos órgãos responsáveis a demarcação de seus territórios (Novak, 2006), já o povo Xetá manteve-se esquivo ao contato com os não indígenas, refugiando-se até meados de 1940 na porção noroeste do Paraná, local conhecido como Serra dos Dourados.

Na localidade, devido as disputas fundiárias envolvendo a população Xetá e não indígena, houve um contato extremamente sangrento para os Xetá, findado em 1964 que resultou no desaparecimento de diversos indígenas, rapto de crianças, diáspora étnica e a completa pilhagem do território Xetá. (MOTA, 2013; SILVA, 1998; 2003; FERNANDES, 1959; KOZAK et.al. 1981; RAMON, 2014)1.

A partir de 1964 os sobreviventes do extermínio de acordo com suas próprias palavras foram “extraviados” (Silva, 1998;2003) fixando-se temporariamente em diferentes Terras Indígenas (TI's) entre os Kaingang e Guarani, deste modo, passaram a reescrever sua história como grupo étnico. Partindo desta situação desenvolvi o trabalho de mestrado2, tive como objetivo investigar a maneira que os Xetá atuaram e desenvolveram estratégias próprias que visavam o fortalecimento do grupo étnico, entendendo-os, como índios emergentes, que através da proposta de educação diferenciada, e de outros espaços institucionais, buscaram a revitalização cultural e reconquista do território expropriado. Tal pesquisa desenvolvida no âmbito do projeto Jane Rekó Paranuhá: O contar da nossa Existência (2010-2013) coordenado pelo LAEE (Laboratório de Arqueologia, Etnologia e Etnohistória) da Universidade Estadual de Maringá-PR, possibilitou a reorganização da memória Xetá, elaboração de materiais didáticos bilíngues e novos espaços de visibilidade no cenário nacional.

Dentre os sobreviventes, José Luciano da Silva Tikuein3, fora sequestrado ainda

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Recentemente estudos da Comissão Nacional e Estadual da Verdade apontam diversas atrocidade contra os Xetá no período de 1940-1960.

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Dissertação de Mestrado em Educação intitulada “Organização Social, Educação e Participação Política de Jovens Indígenas Xetá no Paraná.”Programa de Pós-Graduação em Educação, orientado pela Professora Doutora Rosangela Célia Faustino.

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menino4 na Serra dos Dourados pelo SPI5, passando a viver em diversas aldeias no Paraná, tendo 8 filhos, diversos netos e bisnetos, em 1985 instala-se na T.I. São Jerônimo6, e por ser portador de profundo conhecimento ancestral e transmiti-lo a seus familiares, partimos da constatação de Oliveira (1998) sobre a etnologia dos índios misturados, identificamos Tikuein como “tronco velho” e a prole advinda como “ponta de rama”. Com o falecimento de Tikuein, seus descendentes têm se movimentado e organizado em torno de reivindicações sócio culturais e políticas, seja na dinâmica interna das relações políticas da T.I. São Jerônimo, mantendo-se como grupo étnico diferenciado e muitas vezes disputando representatividade política local, bem como, junto aos órgãos públicos em temáticas que gravitam em torno da visibilidade Xetá, Educação diferenciada e sobretudo a demarcação de seu território expropriado.

2. A concepção de Perezhivanie.

O conceito de perezhivanie surge na obra de Vygotski desde seus primeiros escritos em “Psicologia da Arte” e com diversas considerações conceituais e desdobramentos. Recentemente tem sido foco de grande atenção de pesquisadores sobre sua potencialidade e por se tratar de um conceito ainda inacabado, embora potencialmente analítico da realidade circundante (Mok,2016; Veresov, 2004); Toassa (2009), Fleer (2016).

Aparição do termo perezhivanie na obra de Vygotski é detectado em “Tragédia de Hamlet” como vivência estética da tragédia, que para Toassa e Proença (2010) implica a busca por uma unidade entre sujeito e objeto, presentificada pela vivência de conteúdos

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Tal medida era recorrente por parte do órgão indigenista que não estava preparado para o trabalho com o grupo isolado, deste modo, Tucanambá José Paraná e José Luciano da Silva Tikuein foram capturados sob a alegação de identificação da língua indígena e para estabelecimento de contatos futuros com o grupo. (SILVA, 1998;2003).

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Serviço de Proteção ao Índio fundado em 1910 com a alcunha de SPITLN (Serviço de Proteção ao Índio e Localização de Trabalhadores Nacionais) e posteriormente SPI, é instituição governamental que antecede a FUNAI (Fundação Nacional do Índio) que só é fundada em 1967 após inúmeras denúncias referentes a atrocidades do SPI.

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Coabitam juntamente com grupos Kaingang e Guarani, a T.I. tem cerca de 1.339 hectares e poucas áreas de cultivo.

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mentais de qualidades diversas. Já no difundido texto “Quarta aula: a questão do meio na Pedologia” o autor é enfático enquanto a importância do meio no desenvolvimento infantil – que na mesma medida em que a criança é afetada pelo meio, este se modifica de acordo com o comportamento infantil - busca em termos relacionais compreender a vivência de cada criança de acordo com o desenvolvimento ontogenético, destaca a vivência/perezhivanie como um prisma que determinará o grau e tipo de influência que a realidade circundante determinará sobre a criança, e também como uma unidade de afetiva cognitiva na qual engloba a criança e o meio. Deste modo, a partir da vivência é possível abarcar a representação infantil , envolvendo tanto elementos do meio como elementos da personalidade. (VYGOTSKI, 2010, p.687)

Valsiner e Vander Veer (1993) contextualizam que A partir da década de 1980 com a valorização de sua obra no ocidente tem-se um enfoque eminentemente cognitivo nas traduções acessíveis tal fato poderia implicar uma possível redução do todo da obra do bielo russo. Dado que a perezhivanie deve ser compreendida em uma unidade de ação com outras funções psicológicas e o meio como destaca Veresov (2004; 2016). Originalmente a proposta de Vigotski (1995; 2010) por estar inacabada gera assim novas interpretações e rearranjos como pode-se identificar em Veresov (2004;2016), Gonzalez Rey (2013), Coelho (2016), Mok (2016), Fleer (2016) estes autores retomam os constructos primeiros de Vygotski, e debruçam-se sobre temáticas atuais tais como: formação de professores, interesses da criança em aprendizagem e análises teóricas, que expressam a importância da perezhivanie como um conceito profícuo na proposta vigotskiana.

Em linhas gerais podemos afirmar que a perezhivanie pode ser compreendida como uma intensa e emocional vivenciada através da experiência(VYGOTSKI, 1996; VERESOV, 2004;2016), parto desta concepção sintética para compreender as vivências em distintos trabalhos de campo com os Xetá realizados desde 2010, fatos ocorridos em campo e acontecimentos pessoais são as condições objetivas que implicam diretamente na relação com o grupo Xetá, antes de trazê-las, é necessário compreender algumas das facetas do conceito de perezhivanie, dentre elas trabalharei precisamente o entendimento fenomenológico como. conteúdo experienciado, pois é a lembrança pessoal e contida em

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meus diários de campo obtidos ao longo deste 8 anos. Mas é importante compreender a abrangência do conceito de perezhivanie, assim vamos a ela.

Nesta elaboração, parto da sistematização proposta por Veresov (2004;2016) que subdivide o conceito perezhivanie em suas características Fenomenológica e Conceitual, na dimensão fenomenológica a perezhivanie pode ser entendida como um processo, em sua característica dinâmica e vivencial, portanto o ato de ler este texto é um processo vivencial e vivenciar situações sociais é perezhivanie, são assim as vivências no tempo presente (VERESOV, 2004;2016). Neste caso há uma dimensão prévia a realização do trabalho de campo, assim nos meses/dias recentes que antecedem o trabalho a ida a Terra Indígena que compreendem o momento preparatório para o trabalho de campo, a ansiedade “pré-campo” é uma perezhivanie processual, no entanto, a partir da relação temporal, o processo passa a transformar em conteúdo experienciado, como no ato da lembrança de um fato, portanto na dimensão processual perezhivanie é compreendida como um prisma caracterizada pela refração de situações sociais como uma situação subjetiva e peculiar, esta proposta é elaborada em “Quarta aula: a questão do meio na Pedologia” Vygotski (2010).

O entendimento de um prisma que refrata distintas situações sociais, supera assim o entendimento no qual a consciência é um reflexo da realidade, sendo que o prisma tem a capacidade de refração e não reflexão direta e pura das diferentes situações sociais. Ainda na dimensão conceitual há também a compreensão conceitual de perezhivanie como uma unidade de desenvolvimento, entre o sujeito e o meio distinguindo entre da tradução do inglês Unity que refere-se a unidade da experiência em relação com o meio (uma unidade inserida em um todo mais amplo), já a unit pode ser considerada no estudo da personalidade e do meio. (VERESOV, 2016, 2004).

É inegável a polissemia do conceito e sua abrangência, dado que a perezhivanie está presente de forma ubíqua, entretanto neste texto irei pensar um protótipo teórico em meu processo de escrita, antes de analisar uma possível perezhivanie étnica entre os Xetá, reflito sobre a perezhivanie da escrita com base nos momentos já experienciados, lembrando das situações vividas entendidas como um fenômeno presente na subjetividade do pesquisador, dado que esta subjetividade é constituída em determinadas

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condições objetivas e materiais, dado que tais vivências implicam diretamente na própria subjetividade do autor e no olhar e ouvir em campo que ecoam constantemente no processo de escrita, vista também como uma unidade de análise, na qual emoção e cognição reagem ao meio, retomando a noção monista que Vigotski herdará de Espinosa para romper com no funcionamento cartesiano que cindia razão e emoção, corpo e mente, por fim, a acepção de Perezhivanie como uma dupla subjetividade, no caso do jogo infantil, tendo como atividade predominante de desenvolvimento a brincadeira, a perezhivanie pode ser entendida como um jogo vivido (simulação lúdica), bem como a percepção consciente de participar artificialmente de um jogo. (FLEER, 2016).

Vale destacar que a vivência/perezhivanie na obra de Vygotski não é algo exclusivo da infância, mas sim presente em toda a vida, concomitante a ontogênese do sujeito, o que implica pensarmos este conceito do nascimento até a morte do sujeito em um continuum de desenvolvimento em que se dão as vivências.

Nos interessa também o entendimento antropológico nas contribuições de Vygotski, dado que é possível identificar um certo traço eurocêntrico em sua obra, tal como pontua Tulviste (1991;2011) e Werstch e Tulviste (1992) com contundentes e construtivas críticas referentes a essa característica i, exemplificada na elaboração das Funções Psicológicas Superiores, que abordadas como “higher” ou “lower”, muitas vezes traduzidas para o português como elementares e superiores, remetem-se a uma concepção de escalas culturais hierarquizadas, carecem assim de certa revisão, sobretudo quando se trata de um trabalho com povos indígenas., Tais autores abordam temáticas que envolvem desde a autoestima na constituição da vivência, partem para o entendimento que existem atividades psicológicas heterogêneas, e múltiplas manifestações de linguagens. Mas antes deste exercício vamos as lembranças referentes ao trabalho de campo, ao entendimento da perezhivanie como conteúdo experienciado.

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Na ansiedade para realizar o trabalho de campo, com a conclusão dos créditos obrigatórios, os prazos se aproximavam a largas passadas, nas noites de abril de 2017 tive uma sequência de pesadelos, todos de alguma forma envolviam o tempo, ou melhor, a escassez de tempo, tratava-se de uma sensação difícil de nominar. Em uma das idas para Assis-SP, sozinho e pensativo na estrada, mesclavam-se pensamentos envolvendo a realização de um trabalho de campo com os Xetá, condições de trabalho que envolve a docência precarizada, também refletia sobre uma certa tradição eurocêntrica na teoria de Vygotski, esta amálgama compunha/compõem a situação social.

Sentia um grande receio e resistência em retornar ao campo, era incompreensível pois sempre foi um trabalho gratificante, algo que eu sempre gostei e dava prioridade. Embora fosse inominável, como se me encontrasse diante de um precipício plano e estável, , e em um segundo plano e abaixo haviam inúmeras pedras pontiagudas, entre elas alguns galhos secos e outros ainda verdes, seria uma passagem bucólica e serena para a contemplação, se não houvesse uma onça parda à espreita e com os caninos a mostra que se aproximava de mim, possivelmente representado pelo fato de ser aluno de doutorado, preocupado somente com dilemas teóricos, hoje escrevendo sobre esta vivência compreendo que tal felino representa/representava o tempo, os prazos e até as burocracias inerentes a elaboração de uma tese, a cada dia ao longo do ano de 2017 se aproximam de mim.

Ao pensar sobre os fatos, tratava-se de uma situação de escolha única, imperativo era ir a campo, é sabido que muitas vezes as situações em campo são delicadas que podem ser resumidas conflitos internos nas T.I., escassez de recurso para pesquisa, pegar estrada perigosa, regressar a Maringá e dar aulas, enfim um conjunto de dificuldades que precisam ser superadas para o trabalho de campo, esta conjuntura muitas vezes criava uma sensação paralisante e o ato procrastinador se instaurava. É sabido que as situações dos povos indígenas são complexas, entendo como fundamental a concepção de Situação Colonial proposta por Balandier (1993) para entendermos as múltiplas relações, para este antropólogo os projetos civilizatórios, seja dos colonizadores ou dos colonizados não efetivam de forma completamente homogênea, pelo contrário vão se compondo situações heterogêneas repleta de alianças, estratégias e formas de resistência. Inevitavelmente

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estes fatores implicam na perezhivanie da escrita, envoltos de distintos fatores da escrita, e por fim traço um esboço ainda inicial sobre as implicações destes diferentes fatos em uma possível perezhivanie da escrita, explorando a noção de um apanhado de lembranças e conteúdos mnemônicos que levam a atual situação, uma certa crise, um bloqueio ao trabalho e à escrita, que por sua vez precisa ser superado pela retomada do trabalho de campo, reafirmação dos laços entre os integrante do grupo e retomada da reflexão sobre a etnicidade Xetá como perezhivanie, trata-se portanto de uma perezhivanie constituída nesta situação social.

2. Lembranças, fatos importantes de 2010-2017

A beira de um rio, acampávamos nos dias 11 e 12 de dezembro de 2011, eu e Yuri Esquiçati amigo não-índio de longa data, no dia 12 amanhecíamos após mais de 24 horas de um exaustivo dia de filmagens e entrevistas com os Xetá de São Jerônimo, estávamos as margens do Rio do Tigre, na ocasião coletávamos imagens de um cenário digno da Serra do Dourados7 dos anos 1950, nove tapuj (casas típicas Xetá) estavam dispersas ao longo da mata e algumas pequenas clareiras com aproximadamente 500m², havia uma cozinha com um varão e um fogo incessante no chão, carnes, pães, café….cerca de 60 indígenas, predominantemente Xetá, filhos netos, e bisnetos de Tikuein8, juntamente com os Kaingang e Guarani da T.I. São Jerônimo, desenvolviam diversas atividades culturais das quais filmávamos em HDTV, trabalho este que geraria o etnodocumentário “Acampamento Xetá” ocorrido no âmbito do projeto Jane Reko Paranuhá: o contar da nossa Existência”, toda as propostas foram executadas pelos Xetá, momento no qual somente fizemos o registro fílmico.

O Santos F.C. acabara de perder a final do Mundial Interclubes para o então imbatível Barcelona. Ao relembrar estes dias remete-me uma grande felicidade, embora reclamássemos sistematicamente da escassez de recursos, ainda havia subsídios para

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Serra dos Dourados nas décadas de 1940-1960 foi o último reduto de existência Xetá sem o abrupto contato com a sociedade envolvente, local constantemente pelos Xetá sobreviventes como local onde foi possível os Xetá se expressarem culturalmente.

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viagem, que possibilitava a compra de carne para os dias de trabalho, que era assada no modo tradicional acampamento (talvez o momento mais feliz do trabalho) todas financiadas por projetos institucionais abarcados pelo LAEE, a bolsa era baixa, mas as despesas da vida em República em Maringá também eram, sempre uma conta ou outra ficava atrasada, mas era possível tomar uma cerveja para descontração, ao lembrar deste período intercalando a vida com os indígenas e o convívio em república recordo com grande carinho das pessoas e dos momentos vividos.

O início do trabalho com os povos indígenas ocorreu no ano de 2010 em concomitância com a finalização da graduação em Psicologia, lembro que certo dia caminhava para a aula, ainda no quarto ano de graduação em Psicologia em 2009 para a disciplina de Técnicas Psicoterapêuticas visualizei um cartaz anunciando a seleção de alunos para um projeto “O Esporte/Lazer em Comunidades Indígenas”, no momento pensei que seria uma excelente oportunidade de fugir do modelo clínico tradicional imposto pela formação em Psicologia, e por ser um tanto avesso a representação do “psicólogo de sucesso” em seu setting clínico, nada contra, mas sabia que não seria feliz em meu dia a dia, embora ainda goste muito da área clínica, inscrevi-me na seleção com a expectativa de uma nova empreitada, em uma guinada que de fato aconteceria somente um bom tempo depois, o projeto convocava para seleção em 2009, mas só se iniciou em 2010 devido ao atraso na verba de financiamento.

Sorte por ter sido selecionado entre os estudantes, o professor coordenador e hoje amigo Giuliano Pimentel não procurava alunos com uma boa média, ou com produtividade, acredito que tenha selecionado os alunos mais teimosos, que iam nas reuniões que não ocorriam, os que sempre perguntavam, teimosamente sobre o início do Projeto que tardou quase uma ano para se iniciar. O azar se deu que logo no início do projeto, em janeiro de 2010 tive minha primeira lesão no joelho direito quando treinava Judô/Jiu-jitsu, o que me deixou de muleta por 2 meses, perdi a oportunidade de fazer minha primeira viagem de campo, os colegas puderam visitar as T.I. do litoral e no Oeste do Paraná, contemplando predominantemente a etnia Guarani, o objetivo foi realizar um levantamento das condições de infraestrutura, mas sobretudo com um enfoque nas demandas esportivas, o trabalho era basicamente levar uma bola para os caciques como

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forma de entrada e solicitávamos alguns dados, ainda que assimétrica (pelo não indígena oferecer tão pouco em troca de muitas informações) era uma maneira recíproca de não somente “coletar dados”, mas propor algo em troca .

A primeira área que fui visitar, em março de 2010 foi a T.I. Barão de Antonina e T.I. São Jerônimo, ambas possibilitaram uma vivência extraordinária, primeiramente em Barão onde ocorreu o encontro com o prof. Luis Gino que me demonstrou aspectos importantes da cultura Kaingang, que mais tarde gerou um interessante material didático com filmagens nas grutas do Rio Tibagi, e em São Jerônimo logo pude ter contato com as lideranças Kaingang e Guarani, momento em que tive o primeiro contato com os Xetá, colegas de outras áreas que já conheciam a T.I. São Jerônimo se surpreendiam quando analisavam que os jovens Xetá sempre relatavam sua condição étnica, como um traço distintivo dos Kaingang e Guarani, mesmo o grupo aparentando ser uma minoria na T.I. pude constatar que não se tratava de um grupo pequeno, mas sim de um grupo pouco falado mas que ascendia socialmente, tanto na política da T.I. como em dimensões nacionais .

Com o tempo, conheci as principais lideranças da época, Guarani Kaingang e Xetá, em entrevistas diversas com estes últimos, os mesmos expunham sua situação, estavam na T.I. de forma “emprestada” pois a T.I. não era deles, eram tratados muito bem em alianças com as outras etnias, resistiam as dificuldades, embora com limitações, essa foi a condição que me marcou em relação ao Xetá. No entanto, eram tantas informações, falas, ações, diferentes T.I. visitadas, etnias, que não era possível realizar um focalizar em um grupo específico, neste primeiro momento o objetivo do projeto era justamente um enfoque genérico na coleta e alimentação do banco de dados, filmagens, fotos, registros e diversos contatos, o futebol era o principal objeto de trabalho9 com a proposta e convite a todas as T.I. a participarem de um campeonato que seria realizado em 2011.

Ao final de 2010 formei-me psicólogo, e com uma certa decepção quanto as possíveis práticas no campo da Clínica e do Trabalho, embora a Psicologia Escolar tenha

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Fassheber (2006) sobre o Etno-desporto Kaingang, no qual o futebol ocupa um fundamental papel na ressignificação das lutas tribais.

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me surpreendido positivamente, com as primeiras leituras de Vygotski, mas pensava em trabalhar com os povos indígenas e não havia encontrado uma possibilidade teórica de trabalhar com Vygotski e as situações encontradas nas aldeias.

No início de 2011 a convite da atual coordenadora do LAEE e hoje amiga e conselheira Rosangela Faustino pesquisadora e educadora extremamente combativa e crítica que muito me ensinou e acrescentou sistematização em minha formação, iniciei no projeto Observatório de Educação Escolar Indígena, e posteriormente no projeto “O impacto do Bolsa Família no processo de ensino aprendizagem” fato que possibilitou conhecer outras T.I.: Laranjinha, Pinhalzinho, Faxinal e Ivaí, sendo a última local onde pude realizar um trabalho de campo mais contínuo, com um olhar voltado para o consumo abusivo de álcool e nas suas consequências nefastas como atropelamentos, mortes e diversas brigas, ao realizar incursões em campo ficando semanas na T.I., acabei me integrando a T.I., sentindo-me “confortável” com os habitantes e lideranças, o que em termos acadêmicos não foi proveitoso, dado que coletei muitos dados, mas não consegui estabelecer uma possível relação entre a escola e o consumo de álcool (dado que estava em um projeto de Pesquisa da Educação), o campo pulsou me levou aos desdobramentos para a interessante relação de faccionalismos Kaingang, a situações relevantes como as ocorridas em eleições na T.I. Ivaí10, e a força política tanto eleitoral como social que a comunidade desenvolve no município de Manoel Ribas-PR.

Trabalhando no Ivaí durante 2011 e 2012, ingressei regularmente no mestrado em 2012, com um projeto de pesquisa que envolvia o estudo do consumo de bebidas e possíveis contribuições da escola, no entanto, problemas políticos internos, recusa e até mesmo boicotes da FUNASA11 em transmitir informações e minha ineficiência em manter-me focado na temática da educação fizeram com que este primeiro projeto fosse inviabilizado, de um estudo sobre o consumo de álcool e as contribuições da escola na prevenção do uso de álcool com um grupo Macro Jê como os Kaingang, fui levado pela

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C.f. Fernandes o 15 e o 23.

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Fundação Nacional da Saude responsável pela saúde nas T.I. até 2011, sendo posteriormente substituída pela SESAI (Secretaria Especial de Saúde Indígena).

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indicação de minha orientadora na época de Mestrado ao estudo dos Xetá, um grupo Tupi Guarani, próximo aos Mbya, estávamos em Setembro de 2012, e encontrava-se em vigor e a todo vapor o projeto de pesquisa “Jané Rekó Paranuhá: O contar de Nossa Existência” e sem ter o intuito claro de realizar um estudo de mestrado eu já havia coletado horas de filmagens, dados de campo e sem ter notado já estava envolto no chamado “encontro etnográfico” com uma certa fusão de horizontes junto aos Xetá. Embora hoje tenha visto que foi um troca válida que norteou a formação como pesquisador, no mês que foi me dada esta tarefa fiquei noites sem dormir, preocupado digerindo a ideia de trabalhar com mais afinco com o grupo, não tinha leituras sobre e tive que devorar as teses, dissertações e livros sobre a temática, clareando assim as dificuldades históricas do grupo, o processo de pilhagem e a constante luta. (SILVA, 1998;2003)

Desenvolver o mestrado com os Xetá era o desafio posto, tratava-se de organizar os dados de campo já realizados e manter a sistemático do trabalho, lembro que na 4 oficina no ano de 2011 a presença do professor Dr. Aryon D. Rodrigues12 foi muito marcante, e que em certa ocasião ele olhou bem fundo nos meus olhos, muito antes de saber que trabalharia com os Xetá, e me contou sobre a história de Tuca e Tikuein, naquele período imaginava que seria um kaingangólogo de carteirinha não me atentei com a questão Xetá, Aryon contou que Tuca havia sido capturado na floresta, na Serra dos Dourados, ele havia saído para coletar frutas com outras crianças, estavam em um grupo, quando Tuca sobe em uma árvore e as outras crianças aguardam ele embaixo, chegam alguns agrimensores que tinham o intuito de lotear as glebas, todas as crianças fogem, ficando assim somente Tuca na copa da árvore, sendo assim capturado e levado ao então SPI (Serviço de Proteção ao Índio). Aryon ainda contou sobre os outros Xetá, sobre dificuldades que enfrentou em ir a campo naquele período (déc. 1950), perseguições da ditadura, o encontro com Vladmimr Kozak13 e seu trabalho, a situação dos Xetá me afetaram profundamente, atualmente consigo me recordar com uma certa

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Aryon Rodrigues (1925-2014) grande linguista brasileiro, esteve com os Xetá na Serra dos Dourados nas décadas de 1950-1960, desenvolveu estudos linguísticos com grupos Tupi e Macro Jê.

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clareza a maneira em que Aryon relatava tais histórias, sorte também pelo amigo Yuri ter filmado momento tão ímpar.

Com o passar dos meses e a realização do trabalho em campo, inevitavelmente me encantei pela temática Xetá, ao longo das leituras e dos encontros com os Xetá, tanto na UEM, como em São Jerônimo, pude analisar a política interna e externa que os Xetá traçaram, forma de sociabilidade dos jovens, os casamentos como formas de manutenção, tanto da condição do grupo como dos mesmos na T.I. São Jerônimo, claramente peguei uma carona no processo de ascensão do grupo, na emergência étnica, que tanto fora articulada pelos Xetá como pela conjuntura política que a época possibilitava, em 2012 haviam muitas lacunas na história Xetá, a Comissão Nacional da Verdade estava em ascensão e investigou o processo de expropriação dos Xetá nas décadas de 1940-1960, para mim ficava claro que os Xetá não eram povos próximos da extinção, mas sim como resistentes, persistentes o que nos termos Balandier (1969) lutava contra a entropia que aparentemente os aniquilava, estavam vivos, os troncos velhos (índios antigos, sobreviventes do extermínio na década de 1960) haviam deixado diversas “pontas de rama”, que se reestruturavam consideravelmente como um grupo étnico “novo” partindo da tradicionalidade dos sobreviventes da Serra dos Dourados.

Ao pensar a dissertação de Mestrado já desenvolvida, e a conjuntura na qual estavam/estão inseridos, é possível repensar a mesma política, como nos termos de Arendt et.al (2015) referente a mesopolítica, pensar a mesma é realizar um giro metodológico na previsibilidade dos dados, entendendo que quaisquer formas de imaginar um resultado é uma mera ilusão, o que possibilita a ideia do pesquisar COM, com o povo, buscando em um constante diálogo o que é esperado por eles, quais suas demandas e situações, e essa abertura na fronteira étnica14 foi possível, as incursões em campo, a coleta e registro de dados com os Xetá, a relação antropológica possibilitou muitos dados de campo, procurei na ocasião compreender a importância no engajamento político com o grupo, na forma de como por meio da cultura se faz política.

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Menciono fronteira étnica na perspectiva de Barth (2011) sobre os Grupos étnicos e suas fronteiras, ideia esta que os elementos tanto culturais como os indivíduos adentram ou são expelidos pela fronteira social, constituída pelo e no grupo.

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Os resultados deste trabalho realizado entre 2010-2013, envolvem primeiramente o etnohistória Xetá marcada pela diáspora na década de 1960, por uma clara ruptura do modus vivendi, e pela presença de sobreviventes que relataram uma das maiores atrocidades contra indígenas no Brasil e a constituição de uma certa bolha cultural sacralizada como aponta Silva (1998;2003) nas décadas posteriores, e os resultados desta se expressam na atualidade, transmissão étnica dos sobreviventes aos Xetá de hoje, e a atuação política que os mantém como grupo diferenciado e atuante como apontei Ramon (2014). Hoje constituem-se como um grupo étnico com cerca de 170 integrantes somente na T.I. São Jerônimo, embora organizados, estão ainda desprovidos de território, em terras Kaingang e Guarani, há o grupo, mas não há a terra. Pensar nos Xetá é colocar em evidencia o roubo da história, o roubo da terra, e o que Viveiros de Castro em diversas ocasiões denuncia: a sociedade ocidental procura transformar o índio em pobre, mas os povos indígenas não são “pobres”, pelo contrário o realce da etnicidade permite uma nova conjuntura, a luta pelos direitos historicamente conquistados.

Na produção do mestrado, primeiramente com o texto de qualificação houve muita angústia, pois a princípio os primeiros estudos gravitavam sobre a temática Kaingang, e no campo na T.I. Ivaí não consegui manter-me exclusivamente na análise da escola, somado a esta conjuntura, embora soubesse da potencialidade da teoria de Vygotski, ainda a sentia eurocêntrica, e de alguma forma precisava realizar distintas conexões, mas agora com o grupo Xetá, a mediação demandava: pensar o desenvolvimento humano, escola, etnohistória, antropologia e principalmente os Xetá, de forma que contemplasse a educação. Na angústia de buscar bibliografias e uma solução mesmo que parcial para o projeto, li um artigo intitulado “Para uma Antropologia do Político”, de 2012, nesta os autores destacavam como um traço cultural, sobretudo étnico indígena, remetia a direitos, à ancestralidade e por sua vez esses traços culturais também eram traços políticos, indicando uma vasta bibliografia de Georges Balandier (1920-2016) e Max Gluckman (1911-1975).

Na qualificação houve uma proveitosa destruição e reconstrução do trabalho pelo professores Dr. Lucio Tadeu Mota e Isabel Cristina Rodrigues, nela foi dado um norte possível de desenvolver a Antropologia Política, e a escola se inseria como uma

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instituição utilizada pelos Xetá para demonstrar sua força política, e com a finalização dos dados de campo, foi uma questão de empenho e tempo para finalizar a dissertação, além da Antropologia Política ter fundamentado os dados de campo, busquei na Teoria da Atividade de Leontiev (1903-1979) uma forma de encontrar uma dimensão psicológica para a reorganização do grupo, foi possível identificar diversos sentidos pessoais psicológicos do fenômenos antropológico caracterizado pela Territorialização.

Devido a necessidade de trabalhar, assumi algumas disciplinas no curso de Psicologia no município de Guarapuava-PR o término da dissertação se realizou nas madrugadas intercalando com os trabalhos e docência no município que implicava cerca de 600km por semana, em uma rotina exaustiva, tive devido a tais condições objetiva parar o trabalho de campo e somente empenhar na docência. Embora não continuasse o trabalho de campo, mantinha contato com os Xetá, sua terra estava em processo de demarcação, mais precisamente de identificação15.Neste mesmo momento eu me casava com a companheira que amo profundamente, as contas cresciam, despesas com uma casa a dois estavam maiores, não havia meios para continuação de trabalho de campo. Somado a este fato meu pai havia sido diagnosticado com um avassalador câncer em 2013, e assim dediquei-me exclusivamente a docência, com uma mistura de desgosto e prazer, as viagens neste período foram de visita ao H.C. Amaral de Carvalho em Jaú-SP, e a residência do meu adoecido pai no município de Araraquara-SP.

Angustiado entre as longas viagens, saudades da minha mulher e a busca por melhores condições de trabalho fizeram com que buscasse aulas em Maringá, momento em que houve a abertura de um Teste Seletivo para o DPI-UEM, na área escolar, passei e iniciei a docência no curso em que havia me formado, na transição do ano, sem férias, descanso ou ensaio, virava o semestre, em Agosto de 2014 estava em sala de aula, foi um início de semestre bem cansativo, mas estava motivado por regressar a Maringá.

Foi uma questão de tempo para que as condições me levassem a exaustão, estava com uma rotina de trabalho considerável, foi o momento de fato em que pude aprender a lecionar, os Xetá passavam a me procurar para realizarmos alguns trabalhos, dentro do

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possível atuava no LAEE mas com muitas limitações em campo, não havia tempo para nada. O fato de estar dentro do “sistema”, no caso a UEM, possibilitou a doação de materiais didáticos que seriam descartados, algumas visitas breves em campo para auxiliá-los no novo projeto que vigorava ”Saberes Indígenas na Escola”.

Momento de reformulações e também de eclosão de conflitos internos na T.I. São Jerônimo, as lideranças Guarani e Kaingang disputavam a hegemonia política interna, com muitas ameaças, tiros, tentativas de homicídios, um cenário verdadeiramente belicoso, neste os Xetá estavam ameaçados de serem mandado para fora da T.I., rearranjos internos ocorriam na disputa de poder da aldeia, mas os Xetá estava politicamente fortalecidos pela visibilidade que conquistaram nos anos anteriores e pelos casamentos interétnicos entre os Kaingang e Guarani.

Após muitas disputas e ameaças os conflitos levaram os Xetá a ascensão política quanto a representatividade dos caciques, ou seja, anteriormente a T.I. tinha dois caciques, um Guarani e outro Kaingang, posteriormente aos conflitos de 2014 foi instituído o cacique Xetá. Esta ascensão se deu devido ao apoio do cacique Kaingang, pois é apoiado por suas lideranças que são Xetá (grupo de cerca de 15 indivíduos que apoiam os caciques e que são responsáveis pela elaboração das leis local, pela ordem e decisões internas da comunidade) , os filhos de Tikuein casaram-se com Guarani e Kaingang, e os filhos destes casamentos hoje são Xetá, ou seja, netos de Tikuein compõem um número expressivo de lideranças, sobretudo, junto aos Kaingang da T.I. São Jerônimo.

Em suma, durante os anos de 2014 e 2016, após muitas disputas os Xetá passaram a ter maior representatividade no interior da T.I. com caciques e lideranças próprias, toda esta conjuntura de conflitos e disputas, juntamente com o interesse em aprofundar sobre a temática étnica me levaram a seleção de Doutorado, seria uma oportunidade de manter o estudo com os Xetá, e também em pensar uma nova Psicologia, ressaltando seu engajamento com a luta do povo Xetá. Ingressei como aluno não regular ainda em 2015, e encontrei prof. João Batista Martins, que seria o atual orientador, pessoa de fala mansa mas combativa, acolhedor e diretivo, e por apresentar a teoria de Vygotski de modo aproximado com a Antropologia me incentivou a prestar o

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Dr., mas naquele momento estava apurado com muitas aulas, lembro que fiquei até estrábico no primeiro semestre, estava cansado como nunca, até os alunos me olhavam e indagavam: “-Nossa professor você está bem?!” eu respondia “Claro! Como não?!” Negava uma exaustão que me consumia, além deste cansaço meu pai profundamente adoecido sem perspectivas de melhoras, situação consideravelmente angustiante.

Entrava também em um interessante caminho teórico, revisando textos básicos da história da Psicologia e Psicologia Histórico Cultural alicerçava algumas lacunas conceituais, o estudo na montagem de aulas era solitário, mas o momento da aula era motivador, explicar e compartilhar as vivências teóricas e práticas junto aos indígenas era e é uma atividade prazerosa, somado a esta motivação, voltar ao Bloco 27 onde me formei, propiciava uma gratificação profissional considerável, além da responsabilidade oriunda de toda atividade docente.

Meados de novembro de 2015 se aproximava a seleção do Dr., sabia que poderia entrar, mas que teria pouco tempo e energia para elaborar o projeto, meu pai falecera em fevereiro de 2015 infelizmente seu câncer fulminante havia vencido, surpresa ingrata foram as inúmeras pendências por ele deixadas, dignas de um dramalhão mexicano. Sete ementas ao ano, uma mulher que amo profundamente, mas exigente, inúmeras viagens para Assis cursando disciplinas, inevitavelmente meu corpo pereceu: nas vésperas da entrega do projeto de Doutorado uma intensa amigdalite com febre de 40°C, não conseguia andar tamanha a dor no corpo, muito menos comer, faltavam 6 dias para a entrega do projeto, corpo extremamente desgastado, mas a cabeça ainda que dolorida permitiu que eu escrevesse um projeto fraco, além da escrita apressada e ruim, teoricamente Vygotski dialogava com os Xetá de forma tão dispersa que o projeto estava similar a um fichamento, cheio de retalhos e citações desconexas umas com as outras.

Sobre a situação social, e situação colonial

Enquanto realizava minha corrida individual, os Xetá buscavam a demarcação territorial, depois dos trabalhos desenvolvidos de 2010-2013, e as discussões da Comissão Nacional da Verdade, houve uma ascensão na visibilidade Xetá que culminou no processo de declaração do Território Xetá, uma emergência étnica se desenhava de forma mais considerável, no entanto, no que tange as fronteiras internas, os Xetá

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passavam por reformulações internas como alterações de lideranças, conflitos internos na T.I. São Jerônimo eclodiram em novas alianças com as lideranças chefiadas pelo cacique Kaingang da T.I.

Ao final do processo fui aprovado para ingressar no programa, muito mais pela entrevista e pela temática do que pelo projeto, fui orientado a reformulá-lo, neste momento tive contato com o conceito de perezhivanie, em 2016 me perguntava o porquê de ter escolhido a teoria de Vygotski? Provavelmente por ter visto que a psicologia trazia consigo uma atuação predominantemente elitista, e a discussão metodológica de Vygotski tem um potencial fecundo e revolucionário no entendimento do psiquismo. Ainda que tenha um traço eurocêntrico, é inegavelmente uma perspectiva revolucionária extremamente crítica quanto a psicologia burguesa.

Mas pensar Vygotski e povos indígenas é algo que sem a devida mediação seria reproduzir os erros dos missionários e jesuítas que embora com a discursiva da boa fé, passavam catequizar os indígenas, e mais do que isso, muitas vezes foram enganados pelos próprios indígenas como apontou Viveiros de Castro (2002) ao frisar que o a inconstância da alma selvagem caracterizada pela aparente submissão aos valores cristãos, mas de posterior irredutibilidade de seus valores anteriores, que como uma murta cede as novas formas impostas, mas que com o tempo tem seus galhos crescidos de forma desordenada as ordens do podador, sendo este o perfil psicológico predominante destacado pelos cronistas quinhentistas.

Além disto, o fato de pensarmos nas contribuições da Antropologia Política, com a noção de Situação Colonial de Balandier (1993) desvela as assimetrias nas relações entre os povos nativos e o processo colonizador, embora a relação não se dê de forma unívoca, ou seja, nem o projeto de expulsão das populações estrangeiras tenha se consolidado, nem tampouco o projeto de incorporação, assimilação ou extermínio dos europeus tenha se concretizado, o que temos são projeto distintos com interesses distintos que não se finalizam em sua plenitude, pelo contrário, vão compondo arranjos múltiplos e muitas vezes inesperados, claro que predominantemente caraterizado pela violência e pilhagem dos povos, mas não em um movimento unívoco e passivo.

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Estes são alguns dos nortes teóricos que me auxiliaram a pensar a complexidade Xetá na atualidade, herança teórica ainda do mestrado, Ramon (2014), identificar como a Situação Colonial se constituiu nos tempos de hoje para compreender o grupo se relacionando com os grupos não indígenas. Já nas leituras mais recentes, compreender o tom da inconstância da alma nas negociações, talvez estes alguns dos pilares introdutórios para pensarmos a temática da etnicidade como perezhivanie sob uma perspectiva vygotskiana, talvez os primeiros pontos para a necessária mediação, uma forma de se entender o que foi dito nos anos 1920-1934 por Vygotski, com os pés no presente e os olhos no futuro. Os tempos são outros, o socialismo real infelizmente ruiu, o capitalismo em seu projeção mais inescrupulosa e devastadora se espalha destruidoramente, ainda assim a metodologia sócio histórico cultural proposta por Vygotski ainda se mostra fecunda.

Esta complexa relação, de diferentes atores e interesses diversos, expressam o que denomino de Situação Colonial de Escrita, inserida no trabalho de campo, na qual não há uma linearidade de interesses, pelo contrário há uma somatória complexa de interesses, dos quais os diferentes atores procuram resguardar seus próprios, nessa amálgama me insiro, buscando o pesquisar COM os Xetá seja coleta de dados etnográficos e/ou instrumentalização na luta própria do povo.

No entanto, pensar nos diferentes fatores que levam a constituição do campo me leva a uma espécie levitação pelos diferentes fatores, como psicólogo, me arrisco a uma analogia antropológica, no ofício do Psicólogo em campo carece de um claro entendimento da especificidade, que passa inevitavelmente pela subjetividade, pois embora me aventure na Antropologia e em analisar os diferentes sujeitos não se trata de um estudo antropológico, ou melhor dizendo somente antropológico, mas sim e também psicólogo, mesmo que tais ciências possam ser irmãs como pontua Cole16, há diferenças e similaridades das quais não me aventuro a inventariar neste momento.

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COLE, Michael. La zona de desarrollo próximo: donde cultura y conocimiento se generan

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Antes do retorno a campo, resta a memória dos trabalhos já desenvolvidos, o quanto foi gratificante os trabalhos anos anteriores e em como aparentemente a situação está mais travada, faz-se necessário sair do escritório e partir para o campo em definitivo, enfrentar os medos, mas para isso entendo ser importante comprendê-los, trata-se assim da perezhivanie da escrita que antecede o trabalho de campo.

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