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CULTURA MATERIAL E REPRESENTAÇÕES DE MASCULINIDADES: UM ESTUDO DE CASO EM BARBEARIAS DE CURITIBA

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CULTURA MATERIAL E REPRESENTAÇÕES DE MASCULINIDADES: UM ESTUDO DE CASO EM BARBEARIAS DE CURITIBA

Vinícius Miranda de Morais1 Marinês Ribeiro dos Santos2

Resumo: Observamos historicamente nos estudos das relações de gênero o esforço na revisão e contestação daquilo que Alexis de Tocqueville chamou de “esferas separadas”. Como uma metáfora, a separação das esferas pública e privada serviu para justificar a distinção marcada pelo gênero entre dois mundos representados como supostamente independentes: o público, destinado aos homens e o privado, reservado às mulheres. As principais críticas a esse tropo residem sobre o seu caráter estático e prescritivo, afirmando que tal distinção não dá conta de explicar as tensões e os atravessamentos de fronteiras entre universos estabelecidos como masculinos e femininos. Sendo assim, o objetivo desse trabalho é problematizar o caráter arbitrário desta separação mediante o estudo de como são materializados conceitos de masculinidades nos ambientes de alguns salões de beleza de Curitiba, direcionados exclusivamente ao público masculino. Através da análise desses ambientes, visamos ressaltar a importância da cultura material na construção de identidades de gênero, por meio de estratégias de diálogo entre prescrições culturais acerca do que se entende por espaços públicos e privados.

Palavras-chave: relações de gênero; cultura material; representações de masculinidades Introdução

Este trabalho apresenta algumas reflexões sobre representações de masculinidades na organização do ambiente físico de uma barbearia de Curitiba, dedicada a atender exclusivamente ao público masculino. Aberta em Curitiba a partir de 2009 este local se diferencia em alguns aspectos das barbearias convencionais. A configuração dos ambientes dialogam e constituem um universo masculino, oferecendo aos seus clientes uma variedade de produtos e serviços. A exaltação de certo tipo de masculinidade é evidente em todo o material de divulgação do estabelecimento, pode-se ler em um de seus anúncios: “Barbearia Clube, coisa de macho”3. Neste local é possível se jogar bilhar, futebol de botão, vídeo game, ou então tomar uma cerveja, um vinho, comprar uma camisa enquanto se espera para se fazer um corte de cabelo ou a barba, assim como fazer uma limpeza facial, uma depilação completa ou as unhas.

Considerando a abordagem de Teresa de Lauretis (1994) – para quem masculinidades e feminilidades são construídos a partir de tecnologias do gênero – e o conceito de cultura material de

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Mestrando no Programa de Pós-Graduação em Tecnologia da Universidade Tecnológica Federal do Paraná, Curitiba, Brasil.

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Doutora em Ciências Humanas pela Universidade Federal de Santa Catarina. Professora no Departamento Acadêmico de Desenho Industrial e no Programa de Pós-Graduação em Tecnologia da Universidade Tecnológica Federal do Paraná, Curitiba, Brasil.

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Daniel Miller (2013) – para quem a materialidade não apenas simboliza os sujeitos, mas sim participa efetivamente da sua construção – este trabalho tem como objetivo responder a seguintes questões: (1) os ambientes físicos desta barbearia podem ser pensados como tecnologias de gênero? e (2) quais são as estratégias materiais e simbólicas acionadas na construção de masculinidades?

Para responder essas questões, problematizamos também a categoria “masculinidade” e a clivagem entre as esferas pública e privada. Os ambientes são analisados por meio da leitura de imagens veiculadas no site da barbearia. Com essas discussões, objetivamos evidenciar o caráter contingente das identidades de gênero, assim como e o papel fundamental dos artefatos na construção dos sujeitos e de suas identidades.

Gênero, masculinidades e a sua construção

Para pensar as relações de gênero, assumimos como premissa o questionamento Judith Butler (2012) acerca da dicotomia sexo/gênero, na qual o sexo é colocado como natural, ou seja, um dado pré-discursivo, e o gênero como socialmente construído. Segundo a autora, a afirmação do sexo como um dado natural e do gênero como socialmente construído foi um argumento importante para as políticas feministas que, através destes conceitos, procuraram desnaturalizar a subordinação e opressão das mulheres pelos homens. Contudo, tal postulado traz consigo uma contradição, pois apesar de afirmar que sexo e gênero são coisas diferentes, o sexo seria o principal determinante da identidade de gênero. Para Butler (2012) o sexo não é natural e também não determina o gênero. Ela afirma que o sexo não é anterior a cultura. Essa interpretação seria também uma construção discursiva mediada pelo próprio conceito de gênero. Com essa postura Butler (2012) afasta qualquer possibilidade de se pensar em um marco essencial que definiria a identidade de gênero. Nas palavras da autora: “como fenômeno inconstante e contextual, o gênero não denota um ser substantivo, mas um ponto relativo de convergência entre conjuntos específicos de relações, cultural e historicamente convergentes” (BUTLER, 2012, p. 29).

O gênero não expressa uma essência fundacional existente a priori no sujeito, não é um meio pelo qual os atributos de gênero são manifestados. Para Butler (2012) o gênero é performativo, ou seja, é constituído, ou reiterado através de atos que efetivamente criam a identidade que supostamente revelariam.

Se os atributos ou atos do gênero, as várias maneiras como o corpo mostra ou produz sua significação cultural, são performativos, então não há identidade pré-existente pela qual um ato ou atributo pode ser medido; não haveria atos de gênero verdadeiros ou falsos, reais ou destorcidos, e a postulação de uma identidade de gênero verdadeira se revelaria uma ficção reguladora (BUTLER, 2012, p. 201).

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Nesse sentido Butler rompe com as categorias do sexo verdadeiro, do gênero distinto e da sexualidade específica, reiterando o caráter de construção social do gênero, onde a postulação de uma identidade fixa, ou então de uma masculinidade ou feminilidade verdadeira e permanente, fariam parte da reificação de normas naturalizadoras estruturadas ativamente pelo campo social. Essas normas procuram estabelecer limites por meio de prescrições culturais do que seria o comportamento “adequado” para homens e mulheres, efetivando “um espaço social para o e do corpo, dentro de certas grades reguladoras da inteligibilidade4 (BUTLER, 2012, p. 188).

Através do pensamento de Butler podemos observar uma clara contestação sobre qualquer tipo de identidade de gênero que seja constante. Seu caráter contextual é frequentemente afirmado, refutando a existência e uma essência que determine o gênero. A problematização sobre o caráter contingente e contextual das identidades de gênero se torna, talvez, mais controversa quando referente àquilo que nunca foi considerado um problema: a masculinidade. Historicamente representada como o centro a partir do qual todas as outras identidades seriam definidas, a noção de masculinidade é, muitas vezes, entendida como algo que não necessita ser explicado.

Entretanto não devemos ver a masculinidade como uma categoria coesa e homogenia. Almeida (1996) faz referência ao conceito de masculinidade hegemônica para ressaltar as hierarquias e relações de poder dentro da própria categoria masculinidade. Para o autor o patriarcado é a definição de uma ordem de gênero específica na qual a masculinidade hegemônica define a inferioridade do feminino e das masculinidades subordinadas. Connell e Messerschmidt (2013) descrevem esse conceito como um tipo de masculinidade, construído num processo social caracterizado por formas particulares de representação e uso dos corpos dos homens. Entretanto afirmam que não existem comportamentos ou posições absolutas e fixas que determinem quem pertence ou não a essa categoria, afinal o que se define por masculinidade hegemônica depende das relações de gênero dentro de diferentes códigos culturais:

A masculinidade não é uma entidade fixa encarnada no corpo ou nos traços da personalidade dos indivíduos. As masculinidades são configurações de práticas que são realizadas na ação social e, dessa forma, podem se diferenciar de acordo com as relações de gênero em um cenário social particular (CONNELL; MESSERSCHMIDT, 2013, p. 250).

Connell e Messerschmidt contestam a existência de uma masculinidade verdadeira, ou essencial.

Eles deslocam o conceito de masculinidade, propondo uma abordagem que considere a sua multiplicidade, evidenciando seu caráter heterogêneo e sua condição de construto histórico-cultural.

4 Butler (2012) usa os termos grade ou matriz de inteligibilidade para se referir às identidades de gênero que

se conformam à coerência sexo – gênero – desejo. Ex.: quem nasce com pênis, logo será masculino, logo se interessará exclusivamente pelo sexo oposto.

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Eles argumentam que a masculinidade pode se configurar através da reprodução ou negação de práticas sociais discursivas e não discursivas como a participação bem sucedidas em esportes, comportamentos que envolvam riscos, controle emocional, entre outros. Porém os valores ligados a essas práticas sociais que constituem as masculinidades são contextuais, relativos a cenários sociais específicos. Para os autores “masculinidades são configurações da prática que são construídas,

reveladas e transformadas ao longo do tempo” (CONNELL; MESSERSCHMIDT, 2013, p. 271).

Guacira Lopes Louro (1999) discute como a escola, instituição normalmente regulada pelo Estado, atua na construção das identidades de gênero, promovendo formas específicas de se fazer menino ou menina, homem ou mulher. A autora utiliza o termo pedagogia da sexualidade para evidenciar o disciplinamento dos corpos no interior das escolas. Ela chama a atenção para o desempenho dessas instituições, mediante discursos e práticas, na formação/construção de homens e mulheres “de verdade”, estabelecendo desde muito cedo uma potente dicotomia para a criação de diferenças entre ambos.

O investimento mais profundo, contudo, o investimento de base da escolarização se dirigia para o que era substantivo: para a formação de homens e mulheres "de verdade". Em que consistia isso? Existiam (e, sem dúvida, existem) algumas referências e critérios para discernir e decidir o quanto cada menino ou menina, cada adolescente e jovem estava se aproximando ou se afastando da "norma" desejada. Por isso, possivelmente, as marcas permanentes que atribuímos às escolas não se refletem nos conteúdos programáticos que elas possam nos ter apresentado mas sim se referem a situações do dia-a-dia, a experiências comuns ou extraordinárias que vivemos no seu interior, com colegas, com professoras e professores. As marcas que nos fazem lembrar, ainda hoje, dessas instituições têm a ver com as formas como construímos nossas identidades sociais, especialmente nossa identidade de gênero e sexual (LOURO, 1999, p. 18).

A partir dos conceitos abordados acima, não nos parece apropriado falar de uma identidade de gênero autêntica, determinada a partir de um marco biológico verdadeiro, ou então de uma masculinidade única. O que temos são masculinidades múltiplas, construídas na ação social dentro de contextos específicos.

Teresa de Lauretis (1994) com sua crítica ao conceito de gênero como diferença sexual, evidencia a construção de masculinidades e feminilidades a partir do que ela chama de tecnologias do gênero. Essa autora afirma que o conceito de gênero posto como diferença entre os sexos é limitante, pois, nesses moldes, homens e mulheres surgem como sujeitos antagônicos, caracterizados não em termos de reciprocidade, mas por uma relação binária, onde ambos são universalizados.

A autora descarta a diferença sexual como único fator constituinte das relações de gênero. Ela afirma que os sujeitos são constituídos no gênero, não somente pela diferença sexual, mas também

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[...] por meio de códigos linguísticos e representações culturais; um sujeito “engendrado” não só nas experiências das relações de sexo, mas também na de raça e classe: um sujeito, portanto, múltiplo em vez de único, e contraditório em vez de simplesmente dividido (LAURETIS, 1994, p. 208).

A autora refuta a visão determinista que vê o gênero como uma derivação direta do sexo, uma propriedade inerente aos corpos, uma determinação a partir de um marco biológico, reforçando o seu caráter de construção em termos de relação social. Sendo assim, ela propõe o conceito de “tecnologia do gênero”, onde o gênero, “como representação e como auto-representação, é produto de diferentes tecnologias sociais, como o cinema, por exemplo, e de discursos, epistemologias e práticas críticas institucionalizadas, bem como das práticas da vida cotidiana” (LAURETIS, 1994, p. 208). A autora define “representação de gênero” como a construção das diferenças de gênero no interior de determinadas culturas através de tecnologias sociais como as instituições de ensino, o Estado, as religiões e as mídias, entre elas o cinema. A esta lista, acrescentamos a arquitetura e o design, práticas que nos interessam neste estudo. Para Lauretis (1994), a autorrepresentação seria o investimento dos indivíduos, homens e mulheres, em determinadas representações de gênero para a constituição de suas subjetividades, que, uma vez objetivadas, corresponderiam às suas identidades de gênero.

Não devemos entender a relação entre representação e autorrepresentação de forma unidirecional, onde as representações sociais marcadas pelo gênero determinariam a constituição das subjetividades – ou autorrepresentações – dos indivíduos. Devemos entendê-la de forma dinâmica, como uma relação de interdependência, de construção mútua. Podemos entender o caráter dessa relação através da expressão: “a construção do gênero é o produto e o processo tanto da representação quanto da auto-representação” (LAURETIS, 1994, p. 217). Nossas respostas diante das representações do gênero, independentemente de sermos solidários a algumas delas ou não, nos ordenam, indiciam, classificam. Cada ação social afirmada ou negada, mesmo que de forma naturalizada, trará junto consigo os indiciamentos do gênero que nos fazem sujeitos masculinos, femininos, ou então sujeitos “outros”.

Gênero e cultura material

Beatriz Preciado (2006), em seu texto “Basura y Gênero”, faz uma análise acerca dos banheiros públicos que nos dá algumas pistas de como esses espaços atuam como uma tecnologia de gênero, construindo indivíduos e suas condutas. Por exemplo, a arquitetura dos banheiros públicos masculinos, muito além de resolver questões “práticas” do dia a dia, traz na sua

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materialidade pretensiosamente neutra, valores e ideais culturais que trabalham na produção e reprodução de certo tipo de masculinidade. Segundo a autora:

O mictório, como uma protuberância arquitetônica que cresce desde a parede e se ajusta ao corpo, atua como uma prótese da masculinidade, facilitando a postura vertical para mijar sem receber respingos. Mijar de pé publicamente é uma das performances construtivas da masculinidade heterossexual moderna. Deste modo, o discreto mictório participa da produção da masculinidade no espaço público. Por isto, os mictórios não estão presos em cabines fechadas, senão em espaços abertos a visão coletiva, posto que mijar-de-pé-entre-caras é uma atividade cultural que gera vínculos de sociabilidade divididos por todos aqueles, que ao fazê-lo publicamente, são reconhecidos como homens5 (PRECIADO, 2006).

O conceito de cultura de Daniel Miller nos ajuda a entender essa relação de construção mútua entre banheiro e sujeito, ou, dito de outra forma, entre cultura material e sujeitos. Segundo Miller (2013) os artefatos não se prestam apenas para nos representar como signos ou símbolos de estilos de vida ou de marcadores identitários. Os artefatos não seriam simples vetores, ou comunicadores de nossa essência para o mundo, como se os indivíduos possuíssem um eu interior verdadeiro e os artefatos, como elementos passivos, apenas revelassem isso ao mundo.

Em sentido contrário, o autor afirma que os artefatos não são externos às pessoas. Eles participam ativamente da sua constituição em um tipo de simbiose, onde as fronteiras entre sujeitos e objetos, mais do que difusas, são inexistentes. Miller (2013) rompe com a dicotomia sujeito/objeto, e utiliza o termo dialética da objetificação como possibilidade de transcender essa oposição, reforçando o caráter recíproco do processo de constituição de sujeitos e cultura material. Logo, “ao fim e ao cabo, o que temos é o processo dinâmico ele mesmo, que produz simultaneamente aquilo que passamos a mencionar como objetos e sujeitos” (Miller, 2013, p. 88).

Assim como Preciado, Miller discute a questão da relação entre indivíduos e espaços arquitetônicos, que, nos termos deste último, promovem processos de objetificação, ou seja processos de mútua constituição. Porém, conforme o excerto abaixo, Miller praticamente inverte a ordem da relação onde, em um processo complexo envolvendo disputas de poder e assimetrias, os “desejos” do espaço construído sobrepujariam os anseios dos moradores:

Num grau muito mais elevado, a moradia implica contornos de poder e escala que tornam questões tão íntimas como nossos relacionamentos pessoais dependentes de forças muito maiores. Por isso nos confrontamos com um contexto muito mais amplo e profundo para a

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Tradução livre do original: “El urinario, como una protuberancia arquitectónica que crece desde la pared y se ajusta al cuerpo, actúa como una prótesis de la masculinidad facilitando la postura vertical para mear sin recibir salpicaduras. Mear de pie públicamente es una de las performances constitutivas de la masculinidad heterosexual moderna. De este modo, el discreto urinario noes tanto un instrumento de higiene como una tecnología de género que participa a la producción de la masculinidad en elespacio público. Por ello, los urinarios no están enclaustrados en cabinas opacas, sino en espacios abiertos a lamirada colectiva, puesto que mear-de-pie-entre-tíos es una actividad cultural que genera vínculos de sociabilidad compartidos por todos aquellos, que al hacerlo públicamente, son reconocidos como hombres”.

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nossa análise. [...] é possível que as pessoas em Londres queiram que suas casas sejam um processo semelhante de construção recíproca. Muitas vezes, porém, se é isso que elas querem, trata-se de um desejo frustrado, pois a moradia traz consigo forças poderosas que absolutamente não estão sobre seu controle (MILLER, 2013, p. 121).

Miller (2013) utiliza o termo alienação para descrever o processo onde as pessoas não se reconhecem na materialidade que as cercam: uma materialidade imposta, onde o objetificação – a construção mútua entre indivíduos e artefatos – é posta de tal maneira que poderíamos dizer que saõ os artefatos que criam as pessoas.

Tendo em vista os conceitos apresentados, retornamos à indagação feita no início do texto: é possível pensar nos ambientes físicos das barbearias como tecnologias de gênero? Iniciando a discussão com o conceito de gênero de Judith Butler (2012), pudemos observar o posicionamento crítico da autora sobre a ideia de gênero como derivado de algum marco sexual. Para a autora o gênero é construído através de ações sociais normativas de significação do corpo em contextos específicos, não devendo sua existência a uma essência pré-discursiva. Analogamente a Butler (2012), Connell e Messerschmidt (2013) descartam a existência de uma masculinidade essencial ou verdadeira, afirmando que as masculinidades, como identidades de gênero, são construídas, reveladas e transformadas ao longo do tempo. Assim podemos afirmar que as masculinidades são construídas socialmente, através de normas naturalizadoras estruturadas ativamente pelo campo social. Mas então, a materialidade dos ambientes da barbearia poderia construir um certo tipo de masculinidade? Neste sentido Lauretis (1994) nos ajuda a entender os ambientes das barbearias como tecnologias de gênero, ou seja, como representações de masculinidade que através de sua materialidade constroem as identidades de gênero dos sujeitos. Nos termos de Lauretis, os banheiros públicos, aos quais Preciado (2013) fez referência, são ótimos exemplos de tecnologias de gênero. O conceito de objetificação Miller (2013) reforça a capacidade da cultura material de produzir sujeitos marcados pelo gênero, afirmando o caráter recíproco do processo de constituição de sujeitos e objetos. Enfim, podemos dizer que sim, os ambientes físicos das barbearias podem ser considerados como tecnologias de gênero, visto que promovem a construção de sujeitos implicados em identidades de gênero, neste caso relacionadas às masculinidades.

Barbearia: entre o público e o privado

Uma vez que as barbearias são espaços comerciais destinados aos homens, cabem algumas considerações a respeito da clivagem público/privado presente na materialidade dos ambientes. A distinção entre esferas pública e privada está associada a “significados específicos, valores,

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identidades e funções” 6(HOLLOWS, 2008, p. 15). Como uma metáfora, a separação das esferas serviu para justificar a distinção marcada pelo gênero entre dois mundos representados como supostamente independentes: o público, destinado aos homens e o privado, reservado às mulheres (KERBER, 1988). Nesta dicotomia, a esfera pública, espaço masculino por definição, foi associado ao local da ação política, da produção. Já a esfera privada, designada às mulheres e localizada no espaço doméstico, foi associada ao consumo e à manutenção da vida em família. Segundo Hollows (2008) a organização da sociedade a partir de duas esferas distintas trouxe uma profunda mudança nas relações de gênero. A divisão arbitrária e a naturalização dos espaços que determinavam a ação de homens e mulheres ajudou a criar e controlar as distinções e hierarquias sociais e culturais. Segundo Santos (2010, p. 29) a retórica da diferença essencial entre homens e mulheres e entre os espaços que lhes são destinados “pode ser entendida em termos de sistemas de normatizações, padrões de comportamento e arranjos espaciais, cujas repercussões sociais implicam constelações de poder”.

Para Hollows (2007) a noção de duas esferas completamente separadas a partir de identidades de gênero foi fundamental para a forma com que a sociedade moderna foi organizada. O discurso da esfera pública destinada aos homens e da privada às mulheres foi reforçado pelas diferenças visuais, materiais e espaciais dos interiores pertencentes as duas esferas, tornando-se uma realidade física que, por sua vez, confirmava as distinções (SPARKE, 2008 p.13).

Nas imagens da barbearia que tomamos como exemplo, podemos observar algumas estratégias de diferenciação marcadas por prescrições culturais de gênero. Vejamos como a cultura material foi acionada no sentido da construção de masculinidades. A figura 01 mostra a marca da “Barbearia Clube”, elemento fundamental na comunicação da empresa com seus clientes, e que também está presente na decoração do seu ambiente interno.

Figura 01: Marca da barbearia Clube. Disponível em: <http://barbeariaclube.com.br/>. Acesso em: 01 de julho de 2013.

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Sua composição gráfica faz referência aos escudos de times de futebol, elemento simbólico ligado a um universo tido como masculino. Podemos ler na composição da marca o slogan “coisa de macho”, que remete ao público idealizado para o qual se destina os serviços da barbearia. A ligação com o futebol também se faz presente mediante a disponibilidade da prática do jogo de futebol de botão (figura 02).

Figura 02: Mesa de futebol de botão. Disponível em: <http://www.barbeariaclube.com.br/diaderei.php>. Acesso em: 01 de julho 2013.

A figura 03 mostra o hall da entrada do estabelecimento. Podemos observar neste ambiente algumas características ligadas historicamente a ambientes públicos masculinos: trata-se de um espaço amplo, com grande área envidraçada, recursos utilizados em espaços públicos modernos (SPARKE, 2008). Observamos, retratada em primeiro plano, a presença de um chapeleiro, adornado com de chapéus de modelo antigo e grandes guarda-chuvas pretos. O chapeleiro foi construído em madeira de tom escuro, material associado a alguns valores masculinos “como estabilidade, segurança, força, tradição e respeito” (CARVALHO, 2008, p. 120).

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Uma das bancadas da barbearia está organizada como se fosse um balcão de bar, local associado a socialização masculina (figura 04). Observamos sobre ela alguns recipientes contendo petiscos que, nestes espaços, normalmente são servidos junto com bebidas alcoólicas.

Figura 04: Bancada de bar. Disponível em: <http://barbeariaclube.com.br/enderecos.php>. Acesso em: 01 julho 2013

Observando a imagem de outro espaço do mesmo estabelecimento, podemos notar uma configuração que, desta vez, dialoga com a esfera doméstica. Na figura 05, o ambiente de espera remete à organização de uma sala de estar. Três poltronas revestidas em tecido de cores sóbrias estão dispostas em torno de uma mesa de centro, sobre a qual encontram-se algumas revistas.

Figura 05: Sala de estar. Disponível em: <http://barbeariaclube.com.br/enderecos.php>. Acesso em: 01 julho 2013.

Esse fato demonstra que a distinção das esferas pública e privada não dá conta de explicar as tensões e os atravessamentos de fronteiras entre esses universos, estabelecidos como masculinos e femininos. Comforme afirma Sparke (2008), nos ambientes modernos, as fronteiras entre espaços públicos/privados, masculinos/femininos sempre estiveram sobre ameaça. “Os valores que

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supostamente cada um deles abraça, invadem constantemente o território oposto, levando consigo características visuais, materialidades e linguagens espaciais por meio das quais tais valores são expressos” 7(SPARKE, 2008, p. 11). Segundo a autora as fronteiras entre as “esferas separadas” são instáveis e foi justamente essa instabilidade, ao invés da separação, que definiu a modernidade e, por extensão, os interiores modernos (SPARKE, 2008).

Mesmo que muitas instâncias de nossa vida cotidiana ainda sejam informadas pelo gênero, as fronteiras entre elas não precisam ser entendidas como rígidas, pois, como no exemplo da “Barbearia Clube”, elas se mostram permeáveis. Desse modo podemos afirmar que, enquanto tecnologias de gênero, os ambientes privados e públicos e as identidades de gênero construídas a partir deles, são constituídos em termos de reciprocidade e não de separação.

Considerações finais

Neste trabalho evidenciamos o caráter de construto social do gênero, assim como a condição contextual e contingente das masculinidades, fato que nos possibilitou pensar sobre as formas pelas quais as identidades de gênero são construídas em contextos sociais e históricos específicos. A imbricação entre os conceitos de tecnologia de gênero, masculinidade e cultura material abordada neste trabalho nos possibilitou pensar os ambientes da barbearia analisada como tecnologias de gênero, ou seja, como instâncias que contribuem de forma efetiva para a construção das identidades de gênero dos indivíduos, mais especificamente de suas masculinidades.

Pudemos observar nos ambientes desta barbearia, enquanto representação de certos tipos de masculinidades, algumas estratégias de diferenciação marcadas por prescrições culturais de gênero. A leitura das imagens possibilitou a identificação de expedientes de construção da diferença baseados na clivagem público/privado, como também evidenciou o caráter arbitrário desta separação. Embora a metáfora das esferas separadas seja constantemente atualizada por discursos e normas reguladoras, no intercurso social ela se mostraram um tanto quanto indeterminadas. Vale ressaltar que, mesmo carregando marcas de gênero na sua determinação, universos tidos como masculinos ou femininos são interdependentes, assim como são interdependentes as suas respectivas materialidades e as identidades de gênero construídas a partir delas.

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Tradução livre do original: “the values they embraced constantly invaded each other’s territories, taking with them as they did so the visual, the material and the spatial languages through which those values were expressed”.

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Referências

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SPARKE, Penny. The Modern Interior. 1ª ed. UK, London: Reaktion Books, 2008.

Material culture and representations of masculinity: a case study on barber shops in Curitiba Abstract: On gender relationship studies throughout history, we perceive the effort partaken to review and refute what Tocqueville defines as "separate spheres". As a metaphor, the separation between public and private spheres has been used to justify the gender-defined distinction between two worlds portrayed as independent: the public one, assigned to men, and the private one, reserved for women. The main criticism to this term usage lays on its static and prescriptive character,

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claiming such distinction is not enough to explain the existing tensions and crossings between universes established as masculine and feminine. Therefore, the goal of this paper is to problematize the arbitrary character within such separation by studying how masculinity concepts are materialized in a few beauty parlors in Curitiba that are exclusive for males. Through the analysis of these environments, we seek to highlight the significance of material culture in the construction of gender identities, by using dialogue strategies between cultural prescriptions surrounding common perception of what constitutes public and private spaces.

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