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Riscos Próprios e Impróprios da Formação Analítica

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Academic year: 2021

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Riscos Próprios e Impróprios da Formação Analítica

Christian Ingo Lenz Dunker

O que garante a psicanálise ? Essa é uma pergunta que remete a três níveis distintos de resposta. Primeiro se pode entender de que se trata da garantia que um analisante tem que diante da experiência que se lhe anuncia, que esta experiência será de fato uma psicanálise. Nesse nível somos levados a uma tautologia: a psicanálise é o tratamento conduzido por um psicanalista e um psicanalista é aquele que conduz curas analíticas. É neste nível que se coloca a primeira objeção paranóica: mas como o paciente pode saber que tem diante de si um psicanalista e não um embusteiro ? Como me disse alguém uma vez: “Fui a um psicanalista e ele me disse: ‘deite-se que eu

gostaria de examinar suas zonas erógenas’ ”. Digo que o argumento é paranóico, mas

poderia também me referir à segregação e ao complexo de impostura que ele acaba por dissiminar. Ou seja, podemos dizer onde não há psicanalista, mas dificilmente podemos dizer onde ele está. O desagradável da situação é que o antídoto teórico para esta dificuldade é também um tanto quanto tautológico: o analista não se autoriza senão de

si mesmo1.

Confesso que esta máxima sempre me despertou certo constrangimento. Afinal como uma experiência de dissolução do eu, de reconhecimento radical do caráter alienante e de desconhecimento intrínceco do “si mesmo”, poderia se transmitir à partir do autorizar-se por si mesmo. Uma análise deveria ensinar alguém a, sobretudo, desconfiar de “si mesmo” e de preferência não extrair a autoridade necessária para seus atos da força egóica de sua identidade.

Examinando mais de perto a noção de si mesmo, na tradição ocidental, vemos que ela decorre de três acepções distintas que acabam se combinando: o ipso, o idem e o

proper. O ipso, de onde vem a idéia de ipseidade, refere-se ao caráter único de alguém.

O idem, de onde vem a idéia de identidade refere-se à continuidade ou mesmidade do si mesmo ao longo do tempo. Finalmente o proper indica, na esfera do si mesmo, a capacidade de ser próprio, de apropriar-se de seus atos, palavras e desejos. Só consigo reconhecer alguma plausibilidade na tese do autorizar-se por si mesmo, se o entendemos como expressão do apropriar-se, do tornar própria a atividade à qual se refere, no caso

1

Lacan, J. Proposição de 9 de Outubro de 1967 sobre o Psicanalista de Escola, in Outros Escritos, Jorge Zahar, Rio de Janeiro, 2003:248.

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analisar. Poderia argumentar adicionalmente que isso é compatível com a tese do analista definido por seu estilo ... próprio. Ocorre que a apropriação, que é um dos sinônimos possíveis para desalienação, implica uma experiência que ultrapassa o risco da situação analítica.

“É isto a garantia – isto pelo qual pus na ordem do dia na Escola Freudiana a transmissão da psicanálise – a garantia de que a psicanálise não se encaixe irredutivelmente neste autismo a dois.” (Lacan – SXXIV – L Issue ..., a11:77)

Aqui entramos no segundo nível de consideração do que garante a psicanálise. Neste nível trata-se do que o analista deve tornar próprio para se tornar analista. Há várias coisas, todas elas se reúnem na noção de formação. Tenho estudado este conceito, que é de fundamental importância na teoria da cultura desde o romantismo alemão, a partir da maneira peculiar como Freud o trouxe para a psicanálise. Um aspecto central da idéia de formação, em sua acepção mais forte, é de que se trata de um processo pelo qual o sujeito torna própria a alienação que de início se lhe impôs. A formação é o ponto em que alguém, torna seu a herança recebida. Isso é uma indicação que me parece preciosa para pensar a formação do analista, trata-se de torná-lo sujeito responsável pela sua própria formação. As primeiras palavras do texto da Proposição deixam claro esta idéia:

“Trata-se de fundamentar, num estatuto duradouro o bastante para ser submetido à experiência, as garantias mediante as quais nossa Escola poderá autorizar um psicanalista por sua formação – e, em decorrência disso, responder por ela. “ (Lacan, Proposição V1, 1967:575)

Uma Escola, portanto, autoriza o analista por sua formação, entendo isso no duplo sentido de permitir que ele se aproprie, que ele seja autor, de sua formação e que isso lhe confere uma certa autoridade. Nada, portanto, menos formativo do que a atitude dócil e resignada diante do saber, que deve ser compreendido, assimilado e reproduzido, segundo um certo sistema de hierarquias e distribuição do capital simbólico inerente ao saber. Formação implica uma certa confrontação da qual se extrai um princípio genérico: o risco. Quando se escolhe um analista, quando se decide por um supervisor,

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quando nos envolvemos com uma instituição analítica e não outra, quando vamos a um seminário ou mesmo quando escolhemos ler um livro em vez de outro, em cada um destes pequenos ou grandes gestos há um risco. O importante é que este risco seja um risco próprio, que seja reconhecido como tal e julgado segundo os termos que são os da própria formação. Esse me parece ser o sentido da distinção entre gradus e hierarquia. A hierarquia baseia-se na lógica do risco social, o gradus na lógica do risco formativo.

Passamos aqui ao terceiro nível de consideração sobre o que garante a psicanálise. É o nível de sua relação com o campo social. Entendo que não se trata de fugir a este plano e argumentar toscamente que a psicanálise se faz e se reconhece por si mesma e entre seus próprios pares. Isso seria trair duramente a idéia de formação. Seria reduzir a formação à um processo apenas ético e não também político. O risco ético não é o espelho do risco político, entre eles há uma Banda de Moebius da transferência. Entre eles há a psicanálise em extensão e a psicanálise e intensão. A palavra autorizar contém este duplo vínculo: autor e autoridade. Neste caso o risco não se transfere para a Escola que escolhemos participar:

“Vamos tratar de estruturas asseguradas na psicanálise e de garantir sua

efetivação no psicanalista.” 2

Ou seja, se dizemos: este risco alguém assume por mim, alguém que dirige ou se interessa por isso na Escola, uma vez que esta se coloca como asseguradora, estamos no mesmo caminho da contra-formação, ou seja, “impropriação” de risco.

Quando falo em risco social refiro-me a uma expressão corrente da ideologia de nossa época, ou seja, a tendência a regular as relações sociais e as orientações político normativas segundo o princípio da redução de risco. Quanto menos risco melhor. É neste quadro, bem descrito por autores como Beck e Guiddens, que se pode entender o problema da regulamentação da psicanálise. Ou seja, seria preciso defender a população contra o risco representado por uma prática potenciamente perigosa, danosa ou não legítima. O argumento da segurança dos usuários combina-se assim com as políticas públicas de distribuição de saúde e tratamento. Importante notar que a percepção da prevenção ou evitação do risco torna-se um fator determinante da política, é uma

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extensão do que Foucault chamou de biopoder. Insisto, trata-se da percepção de que o Estado está ali onde o esperamos, ou seja, na função de garantia contra o risco.

Esta observação é crucial para entender o debate sobre a regulamentação em nossos dias e em nosso país. O caso contra Theodor Reik, que motivou Freud a escrever

A Questão da análise leiga 3, pertence a outro universo. É uma contenda entre

corporações, a médica e a não médica. O caso da regulamentação da psicanálise na Itália da década de 60, segue o mesmo princípio, neste caso resolvido por meio de um acordo. A tentativa de estabelecer um Instituto de Psicanálise, na USP dos anos 70, feita por Durval Marcondes, também seguiu esta lógica, neste caso entre a corporação universitária e a psicanalítica. Não é que as lutas corporativas estejam extintas, elas se avivam mesmo no quadro atual, ocorre que a partida é jogada segundo outro contexto. Trata-se do Estado assumindo diretamente a incitação regulatória do risco.

No cenário do Reino Unido, que conheço um pouco mais de perto isso é muito claro (penso que ele não difere substancialmente da situação na França), foi o Estado Britânico interpelou as associações de psicoterapia acerca das condições sobre as quais se poderia legitimar sua prática e assim diminuir risco e maximizar o investimento público em saúde mental. Á partir disso formou-se a UKCP, uma meta-associação congregando diferentes formas de psicoterapia: junguianos, adlerianos, reichianos e ... lacanianos. Só BPA ficou de fora. Ocorre que a IPA britânica tem um braço psicoterapêutico, que reúne aqueles que querem praticar a psicanálise, mas não tem os recursos financeiros ou as condições para efetuar uma formação apropriada. Essa classe média de “analistas” (entre aspas, não porque não sejam, mas porque se apresentam assim) luta fervorosamente contra a regulamentação da psicanálise, defendendo assim a causa de seus próprios opressores. Temos uma associação de psicoterapias no Brasil, a ABP, que tem um perfil muito semelhante à UKCP. Roudinesco argumentou brilhantemente como esta nova estratégia do Estado, que sai de sua posição passiva, de árbitro ou mediador das contendas corporativas e profissionais e passa para a posição de agente incitador da segurança das populações, difere em função dos limites que cada cultura tolera para a ação pública sobre a esfera privada. (Isso remonta aos efeitos da implantação do Código Napoleônico em diferentes países e conseqüentemente a formação da sociedade civil)

3

Freud, S. – A questão da análise leiga (1926), in Obras Completas Sigmund Freud, VXX, Amorrortu, Buenos Aires, 1988.

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Espero que fique claro, desta maneira, que o problema da regulamentação não é primariamente relativo aos psicanalistas, mas às associações de psicanálise. A segregação é indireta, quem estiver fora de uma associação ou que não for por ela legitimado, está fora do sistema de distribuição de recursos sem saúde mental, está excluído dos concursos para trabalhar em instituições e será lentamente segregado à condição de um não-formado.

Está aqui a raíz para um tipo de risco que é impróprio. Impróprio no sentido de que ele transfere para uma instância Outra a administração das tomadas de risco inerentes à processo formativo. No fundo o argumento final seria o de que o Estado garante a psicanálise, e os riscos formativos que ela implica são riscos minimizáveis pelas garantias que ela oferece.

Termino com um apólogo sobre a diferença entre riscos próprios e riscos impróprios na formação do analista:

A formação do analista e a transmissão da psicanálise tem a estrutura de um chiste. O que garante que uma piada será de fato uma piada, ou seja, que ela produza efeitos como o riso ou o humor ? Freud tinha algumas idéias a respeito. É necessário que aquele que conta e aquele que escuta pertençam “a mesma paróquia”. Mas o fato de que pertençam á mesma paróquia é condição necessária, mas não suficiente, aliás, quando estamos demais na mesma paróquia as piadas tendem a ser conhecidas, são velhas e perdem seu gosto. Logo, as boas piadas, de alguma forma vem de fora. Contar uma piada é sempre um risco, podemos nos dar mal, prior do que passar desapercebido é tentar agradar e não conseguir. Há um risco, que tem que vem diretamente com a forma como quem conta pretende extrair um “fragmento de gozo” que só retorna ao sujeito na medida em que ele se desfaz e “passa a diante” uma primeira experiência, na qual ele mesmo foi ouvinte. É quando passamos a piada adiante que realmente nos apropriamos dela. Mas nada menos propício ao efeito de chiste do que alguém nos incitando ou obrigando a contar piadas. É certo que neste caso, começamos a deixar de lado a graça e o tempo próprio do chiste em detrimento de especificações rituais e tolices do tipo, quem está autorizado a contar uma piada e quem está obrigado a rir dela.

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