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A SAÍDA DO CASULO OU O AUTORIZAR-SE POR SI MESMO

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Academic year: 2021

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CAROLINE OLIVEIRA DE ALMEIDA FABRICIO

A SAÍDA DO CASULO OU O AUTORIZAR-SE POR SI MESMO

Dissertação apresentada ao Programa de Mestrado em Psicanálise, Saúde e Sociedade da Universidade Veiga de Almeida como pré-requisito para obtenção do título de mestre em Psicanálise, Saúde e Sociedade. Área de concentração: Psicanálise e Saúde. Linha de pesquisa: Prática Psicanalítica.

ORIENTADORA: PROFa. DRa. MARIA ANITA CARNEIRO RIBEIRO

RIO DE JANEIRO 2020

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UNIVERSIDADE VEIGA DE ALMEIDA PRÓ-REITORIA DE PÓS-GRADUAÇÃO, PESQUISA E EXTENSÃO STRICTO SENSU

Rua Ibituruna, 108 – Maracanã 20271-020 – Rio de Janeiro – RJ Tel.: (21) 2574-8834 e 2574-8871 FICHA CATALOGRÁFICA

F126 Fabricio, Caroline Oliveira de Almeida

A Saída do casulo ou o autorizar-se por si mesmo / por Caroline Oliveira de Almeida Fabricio. – 2020.

56 f.; 30 cm.

Orientação: Profa. Dra. Maria Anita Carneiro Ribeiro. Dissertação (Mestrado) – Universidade Veiga de Almeida. Mestrado em Psicanálise, Saúde e

Sociedade, Rio de Janeiro, 2020.

1. Formação do analista. 2. Movimento Psicanalítico. 3. História da Psicanálise. 4. Desejo do analista. I. Ribeiro, Maria Anita Carneiro (Orientador). II. Universidade Veiga de Almeida.

Mestrado em Psicanálise, Saúde e Sociedade. III. Título.

CDD 616.8917 BN

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FOLHA DE APROVAÇÃO

CAROLINE OLIVEIRA DE ALMEIDA FABRICIO

A SAÍDA DO CASULO OU O AUTORIZAR-SE POR SI MESMO

Dissertação apresentada ao Programa de Mestrado em Psicanálise, Saúde e Sociedade da Universidade Veiga de Almeida como pré-requisito para obtenção do título de mestre em Psicanálise, Saúde e Sociedade. Área de concentração: Psicanálise e Saúde. Linha de pesquisa: Prática Psicanalítica.

Aprovada em 26 de junho de 2020.

_______________________________

Prof.a Dr.a Maria Anita Carneiro Ribeiro (Presidente da banca)

Universidade Veiga de Almeida

_______________________________

Prof.a Dr.a Vera Maria Pollo Flores (Avaliadora interna)

Universidade Veiga de Almeida

_______________________________

Prof.a Dr.a Flavia Chiapetta De Azevedo (Avaliadora externa)

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“Creio que me acho envolto num casulo, e só Deus sabe que espécie de bicho poderá sair desse esconderijo”

(Sigmund Freud, em uma carta à Fliess, 1897)

“O analista só se autoriza por si mesmo” (Jacques Lacan)

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AGRADECIMENTOS

Primeiramente, gostaria de agradecer aos meus pais, marido e filho, meus grandes incentivadores na minha vida, desde o início na faculdade de Psicologia, até agora no Mestrado em Psicanálise, Saúde e Sociedade.

Gostaria de agradecer enormemente a Maria Anita Carneiro Ribeiro, que me acolheu como sua orientada e me permitiu absorver um pouco do tanto que ela tem a oferecer. Se o meu trabalho tem como tema a formação do analista, sem dúvidas tomo ela como uma das grandes psicanalistas a quem, na minha formação, teve imenso impacto.

Exprimo também minha gratidão a Vera Pollo, que também tem importância na minha formação, desde minha pós-graduação na PUC, onde me aceitou como sua orientanda, mas aqui também nas bancas de qualificação e defesa. Suas contribuições foram importantíssimas para o rumo desta dissertação.

Não posso deixar de expressar meu agradecimento a Sérgio Prestes, que participou da minha banca de qualificação, não podendo participar da defesa apenas por um detalhe técnico.

Gostaria também de agradecer a Flávia Chiapetta, minha analista, que foi grande incentivadora no percurso do mestrado e da análise, bem como por ter aceito, em última hora, participar da banca de defesa.

A José Maurício Loures, meu carinho e agradecimento acolher e encorajar a minha escrita.

Para finalizar, gostaria de agradecer a todos os professores que tive durante estes dois anos no Mestrado e que contribuíram de maneira profunda para minha formação analítica e percurso acadêmico.

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RESUMO

Esta dissertação se propõe a refletir sobre a formação do analista, formação esta que vai desde um sujeito que se dirige a uma análise até o ponto em que ele se torna analista. Tanto Freud, como Lacan, se preocuparam e se mobilizaram para que a teoria psicanalítica não fosse distorcida, enfatizando a necessidade não só do conhecimento acerca dos conceitos, mas da própria história do movimento psicanalítico. As cisões e rupturas que marcaram a história da Psicanálise colocam para o analista uma questão: o que é primordial e que um psicanalista não pode abrir mão? E esta questão tem sido reatualizada através dos tempos. Defende-se aqui a ideia de que é da doutrina psicanalítica que o analista não pode abrir mão, pois, como é evidenciado no decorrer desse estudo, afastar-se dos fundamentos significa deixar de praticar Psicanálise.

Palavras-chave: Formação do analista; Movimento Psicanalítico; História da Psicanálise; Desejo do analista.

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ABSTRACT

This dissertation proposes to reflect on the formation of the analyst, formation that goes from a subject who is directed to an analysis until the point where he becomes an analyst. Both Freud and Lacan were concerned and mobilized so that the psychoanalytic theory was not distorted, emphasizing the need not only for knowledge about the concepts, but also for the history of the psychoanalytic movement. The splits and ruptures that have marked the history of Psychoanalysis pose a question for the analyst: what is essential and that a psychoanalyst cannot give up? And this question has been updated over time. The idea is defended here that it is the psychoanalytic doctrine that the analyst cannot give up, because, as it is evidenced in the course of this study, to move away from the fundamentals means to stop practicing Psychoanalysis.

Keywords: Analyst training; Psychoanalytic movement; History of psychoanalysis; Desire of the analyst.

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ... 8

1. FREUD E A FORMAÇÃO DO ANALISTA ... 11

1.1 A história do Movimento Psicanalítico ... 11

1.2 “A questão da análise leiga” e “Análise finita e infinita” ... 20

2. A FORMAÇÃO DO ANALISTA NA ASSOCIAÇÃO INTERNACIONAL DE PSICANÁLISE ... 29

3. A HISTÓRIA DO MOVIMENTO PSICANALÍTICO APÓS FREUD ... 36

3.1 Apontamentos históricos ... 36

3.2 Lacan e a formação do analista ... 41

CONSIDERAÇÕES FINAIS ... 48

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INTRODUÇÃO

O texto aqui apresentado é uma produção que diz respeito à formação do analista, algo de extrema importância para aqueles que pretendem se aventurar, não só pela teoria psicanalítica, mas pela prática. O desejo de estudar e escrever sobre a formação do psicanalista se originou em 2014, quando fui contratada para trabalhar em um Centro de Atenção Psicossocial.

O CAPS é um equipamento do SUS criado a partir da Reforma Psiquiátrica e tem como característica fundamental o trabalho de desinstitucionalização, considerando que os usuários do CAPS são, em sua maioria, pessoas que viveram, por muitos anos, em manicômios e/ou hospitais psiquiátricos.

A partir de um lugar completamente novo para mim, especialmente no que tange à função de um analista em uma instituição, uma pergunta surgiu: “Qual seria o papel de um analista em um lugar como esse?”. A partir dessa pergunta, um trabalho de elaboração se iniciou. Em 2017, fui desligada da instituição e estava ainda muito distante de obter a resposta para minha questão.

Nesse espaço de um ano, do desligamento até o meu anteprojeto para o Mestrado, algo ficou claro: já não mais se tratava da mesma indagação – o papel de um psicanalista num CAPS. O que se tornou uma questão para mim foi a formação do psicanalista, pois essa questão, na verdade, estava por trás da indagação sobre a atuação no CAPS. Quando me interrogo sobre o meu papel em uma instituição, o que tenho como pano de fundo é o desejo de entender o que autoriza um sujeito a psicanalisar.

Buscando uma resposta para isso, me proponho a estudar sobre a formação do analista, que, essencialmente, toca numa passagem de um sujeito que vai de analisando à analista, como Freud (1937/2008) orienta em “Análise finita e infinita”. Esta passagem não se dá de uma vez, pois trata-se de um percurso que requer muito tempo de estudo e prática clínica. O próprio surgimento da IPA nos revela isso, já que Freud percebe que a Psicanálise necessita de uma estrutura que possa não só garantir uma formação para aqueles que desejam ser analistas, mas que esta

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formação seja feita por pessoas que se dedicam à causa e que, portanto, são fidedignos à teoria freudiana. Contudo, o que a história nos mostra é o oposto, no seio do movimento psicanalítico muitos distorcem a teoria a seu bel prazer.

Em 1910, ano da fundação da IPA, Freud escreveu “Psicanálise selvagem”. Nesse artigo, ele deixa claro os perigos de se fazer um uso errado da Psicanálise. A técnica psicanalítica diz respeito a uma práxis e, para que ela não seja utilizada de maneira oposta à que foi preconizada por Freud, é necessário o estudo, mas, também, a análise pessoal. Ao longo de suas obras, Freud e Lacan se dedicaram à formação do analista e o que fica claro é que, para além da necessidade de se entender como esta formação se dá, há um contexto histórico, de extrema relevância, que se faz necessário conhecer.

Sendo assim, me proponho a estudar a formação do analista através dos escritos deixados por Freud e do ensino de Lacan, mas, também, pensar a própria história do movimento psicanalítico, pois, como foi dito anteriormente, há a necessidade de se teorizar sobre como a formação se deu numa perspectiva histórica. À medida que a psicanálise avança, se faz necessário refletir sobre a formação.

Penso que a história do movimento se faz relevante na medida em que os escritos de Freud, vez ou outra, esbarram em momentos peculiares. Por exemplo, a “História do movimento psicanalítico” é escrita, em 1914, em meio a importantes dissenções e o próprio texto “Questão da análise leiga”, de 1926, é um chamado de Freud sobre as acusações que Theodor Reik vinha sofrendo. Outro texto fundamental é “Deve se ensinar a Psicanálise na universidade?”, texto em resposta aos estudantes que solicitavam a inclusão da Psicanálise na grade acadêmica. Portanto, mais uma vez, a formação analítica é solicitada no seio do movimento.

No primeiro capítulo, traremos a história do movimento psicanalítico, separando-a em dois subitens, onde o primeiro será reservado ao que tange à época, até 1914, quando Freud escreve “História do movimento psicanalítico”. O texto é de extrema relevância para a formação psicanalítica, pois ali nota-se o esforço de Freud em demarcar o território psicanalítico, ensinando àqueles que se dirigem à Psicanálise que uma formação é pautada numa ética.

No segundo subitem, trabalharemos com os textos de Freud intitulados “A questão da análise leiga”, de 1926, e “Análise finita e infinita”, de 1937. Veremos que Freud não dava importância a um título ou diploma específico para aqueles que

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desejavam ser analistas, mas enfatizava que eles deveriam levar suas análises até as últimas consequências e estudar com muito afinco.

No segundo capítulo trataremos da formação analítica exclusivamente na IPA, ou seja, na construção dada por essa instituição no que tange aos pontos nodais da formação. Quais foram os rumos tomados por estes que dirigiram e ainda dirigem esta instituição e suas associações vinculadas? O que poderá ser visto é, na verdade, menos uma construção, mas uma deformação daquilo que foi preconizado por Freud e que, por ter seus furos, fez com que analistas os tampasse com regras e regulamentações.

No terceiro capítulo, abordaremos a história do movimento psicanalítico após Freud, considerando as concepções dos pós-freudianos que distorceram importantes conceitos da Psicanálise postulados por Freud. Para isso, trabalharemos com as contribuições do psicanalista francês Jacques Lacan que, ao propor uma releitura das obras de Freud, considerando aquilo que os seus contemporâneos vinham fazendo, inaugura um novo movimento, o movimento lacaniano. Movimento este que, assim como o de Freud, foi amplamente criticado, mas, a nosso ver, é o que mais se aproxima das formulações freudianas sobre a formação analítica.

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1. FREUD E A FORMAÇÃO DO ANALISTA

Este capítulo pretende abordar, mais especificamente, o que é um analista. Para isso, percorreremos em Freud os principais textos que tocam a história do movimento psicanalítico, que trazem à cena não só os impasses vividos por Freud, mas, também, a insistência em escrever a Psicanálise na história. Pretende-se, desta forma, localizar, numa perspectiva histórica, fundamentalmente em Freud, como a questão “o que é um analista?” atravessa a própria história da Psicanálise.

1.1 A história do Movimento Psicanalítico

Em 1914, no texto sobre a “História do Movimento Psicanalítico”, Freud faz um apanhado geral sobre a teoria psicanalítica até aquele momento. Acredita-se que ele se via motivado para isso desde que havia rompido com Adler e Jung, ambos psicanalistas que tinham prestígio aos olhos de Freud.

O artigo é escrito após duas rupturas importantes para o movimento psicanalítico e a primeira se deu com Adler. Freud retirou Adler do cargo de líder do grupo de Viena, pois este parecia tentar explicar toda doença neurótica pela sua teoria, o que para Freud seria impossível, visto que o interesse da Psicanálise não era o de dar conta de toda vida psíquica dos sujeitos, mas de contribuir com o que já se tinha, inclusive no que se refere aos processos civilizatórios – já que concomitante a esse texto, ele também vinha se debruçando sobre o seu brilhante texto “Totem e Tabu” (1913-1914).

Adler discordava, até certo ponto, de Freud no que tangia à teoria da sexualidade. Para Adler, a doença neurótica não necessariamente esbarrava na etiologia sexual das neuroses. Para Freud, Adler simplificava a teoria psicanalítica, o que acabava por transmitir equívocos. Freud não era contra os seus discípulos pensarem diferente dele, nem mesmo que discordassem de sua teoria, mas pensava que tudo o que se afastava dos fundamentos não poderia ser considerado Psicanálise. Depois da ruptura, Adler fundou a Psicologia Individual.

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A outra ruptura se deu com Jung, um pouco mais tarde. Para Freud, as contribuições de Jung estavam se distanciando da teoria psicanalítica. Isso ficou evidenciado após o congresso em Munique, em 1913, quando Freud diz: “não admito as inovações dos suíços como uma continuação legítima ou como um desenvolvimento adicional da Psicanálise criada por mim.”1 (FREUD, 1914/1979, p.

58, tradução minha), especialmente no que se referia à questão da sexualidade que, para Jung, não era tema central, era como uma das arestas dos conflitos humanos, bem como acreditava num inconsciente universal.

Desde o começo de sua relação com Jung, Freud já notava concepções teóricas diferentes entre eles, especialmente no tocante à libido, que, para Freud, era sexual, quando, para Jung, podia não ser sexual. Apesar das divergências, a relação continuou por algum tempo. Jung foi um personagem importante na história da Psicanálise. Ele foi um dos primeiros psicanalistas não judeus, o que, até certo momento, ajudou o movimento psicanalítico ao romper com a falsa impressão de que a Psicanálise era uma ciência para judeus (PINTO, 2007).

No decorrer dos anos em que Freud e Jung trabalharam juntos, as divergências continuavam, mas a ruptura parece ter se dado, não porque Jung pensava completamente diferente de Freud, mas porque tentava a todo custo minimizar a importância do caráter sexual da libido – conceito fundamental e central da Psicanálise. Para Freud, o que estava em questão era um ponto teórico que não se podia abrir mão. Portanto, era necessário que Jung trilhasse sua própria estrada, sem distorcer aquilo que a Psicanálise preconizava e ainda preconiza.

Freud (1914/1979) é categórico quando afirma que um de seus interesses com o presente trabalho era dizer o que era ou não Psicanálise, visto ser ele o inventor da Psicanálise. Freud diz: “De fato, a Psicanálise é minha criação, eu fui o único que cuidou dela por dez anos e todo o desgosto que o novo fenômeno causou nos contemporâneos”2 (FREUD, 1914/1979, p. 7, tradução minha). Portanto, não há

ninguém melhor do que o próprio Freud para definir as possibilidades e limites da Psicanálise.

1 “no admitía las innovaciones de los suizos como continuación legítima ni como desarrolho ulterior del

psicoanálisis creado por mí.”

2“Em efecto, el psicoanálisis es creación mía, yo fui durante diez años el único que se ocupó de él, y

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A IPA foi fundada na intenção de fazer com que o legado de Freud, sua teoria, pudesse não só ser transmitida de maneira correta, mas que possibilitasse a outros uma adequada formação.

Nas sessões dos grupos locais que formariam a associação internacional, deveria ser ensinada a maneira de cultivar a Psicanálise, onde se encontrariam em treinamento médicos para cuja atividade poderia ser fornecida uma garantia. Também me pareceu desejável que os partidários da Psicanálise se reunissem para uma troca amigável e apoio recíproco, depois que a ciência oficial pronunciou seu solene anátema contra ela e declarou um boicote fulminante contra os médicos e institutos que a praticavam.3 (FREUD, 1914/1979,

p. 42, tradução minha)

Se a IPA tem como direção a formação de um analista, o que ela revela é um impossível, pois ainda que se coloquem balizas e diretrizes que norteiam os analistas no ensino e transmissão da Psicanálise, os impasses entre os pares não acabavam. Havia, dentro da IPA, psicanalistas que possuíam sua própria forma de pensar a teoria. Alguns desses psicanalistas divergiam completamente de Freud, outros nem tanto.

Freud acreditava que muita dessa dissenção, da mesma maneira que acontecia com Adler e Stekel, provinha de um conhecimento imperfeito da técnica da Psicanálise, e que, portanto, era uma imperativa obrigação de sua parte expor essa técnica mais detalhadamente do que fizera até então. (JONES, 1976, p. 436)

O que se pode recolher na biografia de Jones, através de relatos de cartas de Freud, é que, apesar de sua preocupação com a transmissão da Psicanálise, ele dava liberdade àqueles que se aventuravam em pensar diferente. Segue uma passagem de uma carta de Freud a Ferenczi, após este ler um trecho de seu livro para a Sociedade Psicanalítica de Viena:

Quanto ao seu empenho em permanecer completamente em concordância comigo, valorizo-o como expressão de sua amizade, mas acho que esse empenho não é necessário nem mesmo

3 “En las sesiones de los grupos locales que compondrían la asociación internacional debía enseñarse

el modo de cultivar el psicoanálisis, y ahí hallarían su formación médicos para cuya actividad podría prestarse una surete de garantia. También me parecia deseable que los partidários del psicoanálisis se encontrasen reunidos para un intercambio amistoso y para un apoyo recíproco, después que la ciência oficial había pronunciado su solemme anátema contra él y había declarado un fulminante boycott contra los médicos e institutos que lo praticaban.”

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facilmente atingível. Sei que não sou muito acessível e sinto-me em dificuldade para assimilar o pensamento de terceiros, uma vez que não se encontrem dentro do meu roteiro. É necessário um bom pedaço de tempo antes que eu possa emitir juízo sobre ele...Se você tivesse de esperar por tão longo tempo, diante de cada uma dessas ocorrências, sua produtividade chegaria ao fim. (JONES, 1976, p. 620) Independentemente da liberdade dada aos seus seguidores, as dissensões e rupturas eram inevitáveis. Logo no começo de seu texto, Freud já aponta uma espécie de fracasso na IPA, quando diz:

Não consegui criar entre seus membros aquela harmonia amigável que deve reinar entre os homens comprometidos com a mesma e difícil tarefa, nem sufocar as disputas sobre a prioridade que as condições de trabalho em comum davam muitas oportunidades. As dificuldades oferecidas pela instrução no exercício da Psicanálise, particularmente grandes e culpadas de muitas das dissensões atuais, já eram sentidas naquela Associação Psicanalítica de Viena, de caráter privado.4 (FREUD, 1914/1979, p. 24, tradução minha)

Freud descortina, com isso, um princípio importante da Psicanálise, a questão do ensino, portanto, da maneira como a transmissão da Psicanálise se dava e, obviamente, da forma em que era ensinada. Tamanha foi a importância disto para Freud, que ele chega a dizer que este era o fator responsável por grande parte das brigas e separações que se deram ao longo da história do movimento psicanalítico. Fica claro, então, que havia em Freud um interesse maior do que chamar para si a autoria da Psicanálise, mas de que ela não se transformasse em algo que não era.

Também, Freud (1914/1979) expôs que, após abandonar a teoria do trauma de sedução, por esta se mostrar falível, ficou desnorteado. Freud considera que poderia ter, inclusive, caminhado pela mesma saída encontrada por Breuer frente à descoberta indesejável da transferência amorosa: a fuga. Mas ele diz: “Talvez eu persista, porque não tive a opção de começar outra coisa.” 5 (FREUD, 1914/1979, p.

17, tradução minha).

4“No logre crear entre sus membros esa armonía amistosa que debe reinar entre hombres empeñados

en una misma y difícil tarea, ni tampoco ahogar las disputas por la prioridade a que las condiciones del trabajo en común daban sobrada ocasión. Las dificultades que oferece la instrucción en el ejercicio del psicoanálisis, particularmente grandes, y culpables de muchas de las disensiones actuales, ya se hicieron sentir en aquella Asociación Psicoanalítica de Viena, de carácter privado.”

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Freud não mais podia fechar os olhos para o que vinha descobrindo, não podia mais recuar frente a seu desejo. Não se tratava de uma escolha, ele deveria insistir na Psicanálise, mesmo diante de toda a resistência que encontrava no meio médico e científico, afinal de contas, diz ele: “sem dúvida, o pronunciamento da morte foi um progresso, comparado à morte pelo silêncio!” 6 (FREUD, 1914/1979, p. 34, tradução

minha).

Em uma passagem da “História do movimento psicanalítico”, Freud (1914/2008) indica algo valioso sobre os efeitos da Psicanálise no meio científico, quando fala de um artigo de Bleuler sobre a Psicanálise que teve poucos efeitos: “O autor de Affektivität não tem o direito de se surpreender se o efeito de uma obra não for determinado pelo valor da trama, mas pelo tom afetivo.”7 (FREUD, 1914/1979, p.

39, tradução minha). Estaria Freud revelando que aquilo que captura o sujeito não é tanto a relevância dos argumentos, mas o que daquele que escreve toca aquele que lê? Os efeitos da transferência podem ser colhidos para além da clínica?

Em seus artigos sobre a técnica, mais especificamente em “Sobre a dinâmica da transferência”, Freud (1912/2018a) diz que o analisante recorre a certos clichês estereotípicos que dizem respeito a um certo modo de se posicionar na vida, e isto é revivido na transferência com seu analista.

Portanto, é totalmente normal e compreensível que o investimento libidinal de uma pessoa parcialmente insatisfeita, carregado de muita expectativa, também se volte para a figura do médico. Conforme o nosso pressuposto, esse investimento irá se guiar por modelos, irá dar sequência a um dos clichês presentes na respectiva pessoa ou, como também poderíamos afirmar, irá inserir o médico em uma das sequencias psíquicas que o paciente em sofrimento formou até aquele momento. (FREUD, 1912/2018a, p. 112)

Pela via da transferência, o analisante resgata algo de seu passado na figura do analista. E é desta maneira que ele poderá avançar nas suas questões. Pensando a partir disso, levanto a hipótese de que, assim como na transferência em análise, esse “tom emocional” pode, também, ser pensado como transferência no que se refere à relação que se estabelece entre o leitor e o texto.

6 “sin duda el pronunciamento de muerte era un progresso, comparado con la muerte por el silencio!” 7 “El autor de Affektivität no tiene derecho a assombrarse si el efecto de un trabajo no resulta

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Parece que, desde o princípio, apesar de saber do mal-estar que a Psicanálise provocaria por subverter a visão que o homem tinha de si – até então uma visão cartesiana, do cogito “Penso, logo existo” –, Freud achava necessário que uma associação fosse fundada para que uma formação fosse possível, uma sociedade onde o grande objetivo seria o avanço da Psicanálise e a formação de analistas.

Freud sustenta sua teoria e prática da Psicanálise, ainda que, com isso, ele tivesse que romper com grandes aliados até certo momento. Freud não recuou frente à tentativa de Jung em distorcer conceitos fundamentais da Psicanálise, como a sexualidade infantil e o próprio inconsciente, bem como de se vender à América.

Pode-se pensar que, se o trabalho da análise até então era o de superar a resistência, como Freud nos orienta em seu texto “Sobre a dinâmica da transferência” (1912/2018a), por que não pensar que este também é o trabalho no que concerne ao avanço da Psicanálise enquanto teoria? Freud sabia que a resistência não era uma particularidade da análise.

A resistência é o indício de que há transferência, de que algo grandioso está por trás daquele que se cala. O próprio Freud diz que não esteve imune a ela. Jones (1976) relata que Freud havia se lançado em sua autoanálise, não por livre e espontânea vontade, mas porque intuía a necessidade disto. Para Jones (1976), a construção teórica, ao menos no período de 1890 a 1900, se dava concomitantemente à análise de Freud. A própria investigação do seu inconsciente possibilitou a descoberta e o avanço teórico da Psicanálise, a tratar-se, por exemplo, da descoberta do desejo incestuoso.

Foi pelo fato de observar e investigar seus próprios sonhos, material que se encontrava a mão para o fim de estudos e o que mais usou em seu livro, que lhe veio a ideia, em termos conscientes, de prosseguir na sua autoanálise até a sua lógica ultimação. (JONES, 1976, p. 325)

Se a IPA institui regras e diretrizes para a formação de um analista, evidencia, assim, que haveria uma forma na qual um analista deveria se enquadrar, e o que Freud nos orienta é justamente o contrário: a formação de um analista não se dá enquadrando-o em uma fôrma, pois há algo da formação que escapa aos moldes, que tem a ver com os impasses vividos pelo dia a dia de um analista e de sua própria experiência com seu inconsciente.

Freud (1914/1979) deixa claro que havia muita resistência contra a Psicanálise por parte de alguns médicos e de outros campos da ciência, mas acreditava que havia

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muito trabalho tão logo essas resistências fossem superadas. Com isso, Freud aponta as duas deserções que havia acontecido até aquele momento na Psicanálise. A primeira, com a demissão de Adler do cargo de diretor da associação Viena, em 1911; e, depois, com Jung, em 1913, num congresso em Munique, onde Freud diz não reconhecer as inovações feitas pelos suíços na Psicanálise.

Adler e Jung requeriam de Freud o reconhecimento e esse desejo lhes tampou os olhos e ouvidos, fazendo distorcer conceitos importantes. Adler chegou a dizer que não era fácil viver “à sombra” de Freud. Mas Freud não estava disposto a fazer concessões em prol de uma amizade.

Freud (1914/1979, p. 64, tradução minha) estava interessado nos “trabalhos nas profundezas.”8 e sabia que este seria então o seu destino, apenas não tinha

entendido o porquê. Para isso, ele conta três momentos com seus três mestres, Charcot, Breuer e Chrobak, sendo este último um respeitável ginecologista de sua época. Freud admite que a originalidade pela qual estava sendo responsável havia sido transmitida por estes três homens. Segundo Freud: “Os três me transmitiram uma intelecção que, a rigor, eles próprios não possuíam” 9 (FREUD, 1914/1979, p. 12,

tradução minha).

Nas cenas relatadas por ele, os três senhores, em uma conversa informal com Freud, contam casos de pessoas que sofriam de alguma doença de contexto claramente sexual. Em tom de brincadeira e, como nos mostra Freud, sem saber ao certo o que estavam dizendo, oferecem como resposta à doença algo de caráter estritamente sexual.

Ao relembrar estas cenas, Freud faz mais do que se redimir com seus mestres, ele mostra que a transmissão não se dá pela via da compreensão e, justamente por não compreender, pode fazer algo para além. Freud relata: “Em mim, por outro lado, essas três comunicações idênticas, que recebi sem entender, adormeceram durante anos, até que um dia elas acordaram como um conhecimento de aparência original”10

(FREUD, 1914/1979, p. 12, tradução minha).

8“trabajos en las profundidades.”

9“Los três me habían transmitido una intelección que, en todo rigor, ellos mismos no poseían”

10“En mí, en cambio, essas três comunicaciones idênticas, que recebí sin compreender, quedaron

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Freud já havia entendido que a Psicanálise também poderia despertar o que havia de pior nas pessoas, mas, ainda assim, persistiu. Era seu “destino inelutável” 11

(FREUD, 1914/1979, p. 12, tradução minha) mexer em casa de abelhas. Ele diz que o que o movia era poder ver comprovado em sua clínica suas afirmações. Seu avanço com a teoria se dava concomitante ao seu avanço enquanto psicanalista. Sobre os primeiros anos da análise, Freud diz:

A interpretação dos sonhos me serviu de consolo e apoio naqueles anos iniciais difíceis da análise, quando eu tive que dominar técnica, terapia clínica e neurose, todas de uma vez; eu estava então completamente isolado, em meio a um emaranhado de problemas e, como resultado do acúmulo de dificuldades, muitas vezes, eu temia perder a bússola e a autoconfiança. Muitas vezes levava um tempo desconcertantemente longo antes de encontrar no paciente a prova de minha premissa de que todas as neuroses deviam ser feitas como uma guerra compreensível pela análise; mas nos sonhos, que poderiam ser concebidos como análogos dos sintomas, achava essa premissa uma confirmação quase infalível.12 (FREUD, 1914/1979, p.

19, tradução minha)

Com este breve parágrafo citado acima, Freud desmistifica a posição do analista como alguém superior ou não passível de momentos difíceis na condução de uma análise. Inclusive, ratifica a importância da análise pessoal. Em uma carta à Fliess, adicionada na nota de rodapé do texto citado, afirma: “como ainda tropeço com enigmas em meus pacientes, é forçado que é o mesmo que me atrapalha na auto-análise” 13 (FREUD, 1914/1979, p. 20, tradução minha).

O que se pode perceber com este primoroso trabalho de Freud é que a questão da formação de um analista é permeada por erros e acertos, mas, de alguns pontos não se deve abrir mão: análise pessoal, supervisão e estudos teóricos. Parece que nesse texto ele chama a atenção para as deserções, quando estas ferem a questão

11“ineluctable destino”

12“La interpretación de los sueños me sirvió de comodidad y apoyo en esos difíciles años iniciales del

análisis, cuando tuve que dominar técnica, clínica y terapia de las neurosis, todo a un tempo; estaba entonces enteramente aislado, en médio de uma maraña de problemas, y a raiz de la acumulación de dificultades temía a menudo perder la brújula y la confianza en mí mismo. Transcurría a menudo un lapso desconcertantemente largo antes de hallar en el enfermo la prueba de mi premissa de que toda neurosis tenía que hacerse por guerza comprensible mediante análisis; pero en los sueños, que podían concebirse como unos análogos de los síntomas, hallaba esa premissa uma confirmación casi infalible.”

13“puesto que todavía tropiezo com enigmas en mis pacientes, es forzoso que es esto mismo me

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do ensino e transmissão da Psicanálise. Jones (1976) diz que, apesar do clima não ser mais cordial entre Freud e Jung, Freud não se apegava às questões pessoais, mas ao fato de Jung “renunciar os princípios fundamentais da Psicanálise.” (JONES, 1976, p. 446).

Maria Anita Carneiro Ribeiro (1998), em seu texto intitulado “A crise na Sociedade Britânica de Psicanálise”, comenta sobre um ponto fundamental que se descortina na crise numa sociedade psicanalítica. A autora diz: “os ataques pessoais, por mais virulentos que sejam, são apenas a roupagem imaginária das crises” (CARNEIRO RIBEIRO, 1998, p. 33), salientando, assim, que deve-se deter menos a atenção nas roupagens das dissenções e crises e mais do que da doutrina estava em jogo, ou seja, do que se estava querendo abrir mão em prol de ganhos secundários.

Para autora, na crise de 1941-45, entre Melanie Klein e Ana Freud, o que estava em jogo era “a fidelidade à obra de Freud” (CARNEIRO RIBEIRO, 1998, p. 34). Os pós freudianos vinham constantemente distorcendo a obra freudiana, principalmente no que diz respeito à formação do analista, afinal, sua teoria é a base de sua prática. Na crise de 1941-45 há um abafamento da mesma e, para Carneiro Ribeiro, quando “uma crise é abafada a formação se burocratiza” (CARNEIRO RIBEIRO, 1998, p. 36).

Na Biografia de Freud, escrita por Ernest Jones, este relata que Freud havia comentado com ele que, depois da “Interpretação dos Sonhos” (1900), “Totem e Tabu” (1913-1914) foi seu texto mais original. Mais ou menos quatorze anos depois, ele revela isso, ainda que durante estes anos tenha trabalhado de maneira tão intensa e com inúmeras produções escritas. Com essa informação, Freud ensina que a formação de um analista se dá numa passagem de um tempo, de um percurso longo que vai desde o destrinchar de seu próprio inconsciente até dissenções, cisões e rupturas (JONES, 1989).

Sobre as deserções abordadas no texto, Freud é categórico:

Os homens são fortes durante todo o tempo em que sustentam uma ideia de forte; eles se tornam impotentes quando são postos contra eles. A Psicanálise apoiará essa perda e, em troca desses apoiadores, conquistará outros. Só espero que o destino tenha um aumento confortável para aqueles que residem no mundo subterrâneo da Psicanálise os tenha causado desconforto. E outros, que eles possam

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levar seu trabalho nas profundezas até o fim e sem tropeçar.14

(FREUD, 1914/1979, p. 64, tradução minha)

Obviamente, ainda que tenha escrito em 1914 sobre isso, a questão não estaria finalizada. As críticas à Psicanálise jamais cessariam. A cada avanço, havia um novo embate.

1.2 “A questão da análise leiga” e “Análise finita e infinita”

Em 1926, doze anos após ter escrito “A história do movimento psicanalítico”, Freud novamente esclarece o que é a Psicanálise. Quando escreve “A questão da análise leiga”, a Psicanálise atravessava um momento delicado no qual um psicanalista era acusado de charlatanismo, pois este não era médico, mas atendia como psicanalista. O acusado era Theodor Reik, um Doutor em Filosofia pela Universidade de Viena, nome de grande importância no movimento psicanalítico por ter sido um dos primeiros analistas leigos da história da Psicanálise. Reik foi um grande colaborador de Freud, com importantes publicações.

A propósito da análise leiga, Freud sabia que a Psicanálise não deveria ser exclusividade da faculdade de medicina. Um médico não necessariamente era o mais apto a tornar-se analista. Para Freud “o analista precisa ter aprendido principalmente essa Psicologia, a Psicologia Profunda ou Psicologia do Inconsciente, pelo menos aquilo que se sabe a respeito até os dias de hoje.” (FREUD, 1926/2008, p. 232).

Um analista, para Freud (1926/2008), parecia mais ser medido pelo estudo teórico e a própria análise pessoal, do que uma formação acadêmica normal – uma combinação da qual ele aponta como fundamental. Em certo momento, a análise pessoal toma mais importância, pois, para Freud, o conhecimento de seu próprio funcionamento mental era o que lhe dava subsídios para as sessões com os analisantes.

Se os representantes de várias ciências mentais devem estudar a Psicanálise a fim de serem capazes de aplicar seus métodos e

14“Los hombres son fuertes durante todo el tempo en que sustentan una idea fuerte; se vuelven

impotentes cuando se le ponen en contra. El psicoanálisis soportará esta perdida y a cambio de estos partidários ganará otros. Sólo me queda desear que el destino depare un cómodo ascenso a quienes la residência en el mundo subterrâneo del psicoanálisis les há provocado desasiego. Y a los otros, que les sea permitido llevar hasta el final y sin tropiezos sus trabajos en las profundidades.”

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ângulos de abordagem ao seu próprio material, não lhes será suficiente parar de repente nos achados que são formulados na literatura analítica. Eles devem aprender a análise da única maneira possível, se submetendo-se eles próprios a uma análise. (FREUD, 1926/2008, p. 238)

Novamente pode-se ver Freud discorrendo sobre formação, sobre os atributos necessários para ser um analista e que estes não se esgotam na figura do médico. Freud começa este texto falando a uma pessoa imparcial sobre a formação do sintoma, em que uma aliança é malfeita entre o isso e o eu, quando ambos querem coisas opostas. O primeiro quer que sua vontade seja satisfeita; já o segundo, obedecendo ao princípio de realidade, rejeita essa possibilidade. O isso procura meios para ir para superfície, ou seja, para a consciência. O eu é quem faz esta interlocução, deformando a demanda do isso quando esta aparece na consciência. Freud diz:

Mas atente para o detalhe de que não é o fato do conflito que cria a condição do estar doente – pois tais oposições entre a realidade e o Isso são inevitáveis e o eu tem como uma das suas constantes tarefas fazer a mediação entre eles –,mas a circunstância de que o eu se serviu do recurso insuficiente do recalque para resolver o conflito. (FREUD, 1926/2008, p. 229)

Com esta afirmação, Freud nos mostra que o próprio recalque, mecanismo utilizado para negar a castração, não é totalmente eficiente, portanto, escorre dele uma verdade sobre o sujeito que não pode ser totalmente encoberta. A formação de um analista, para Freud, é mais que saber tudo sobre a teoria, mas o próprio atravessamento de uma análise. Pensando a partir da citação acima, trata-se do próprio conhecimento de suas limitações enquanto sujeito.

Ao falar para uma pessoa imparcial sobre a formação do sintoma, Freud ensina sobre a formação de um analista. Quando um analista está advertido de seu próprio inconsciente, desta estrutura ineficiente que é própria da neurose, ele pode vir a cumprir uma de suas tarefas, que seria a de interpretar.

Se o senhor adquiriu um certo autocontrole e dispõe de determinados conhecimentos, as suas interpretações permanecerão imunes às suas propriedades pessoais e chegarão à conclusão correta. Não digo com isso que para essa parte da tarefa a personalidade do analista seja indiferente. Entra em cena uma certa sensibilidade auditiva para o que foi recalcado inconscientemente, e nem todos possuem o mesmo grau de sensibilidade. E, principalmente, atrelada a isso temos também a obrigação do analista de se tornar apto para a recepção sem

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preconceitos do material analítico, a partir de uma profunda análise própria. (FREUD, 1926/2008, p. 250)

A interpretação toma um lugar fundamental para Freud, não apenas por ser uma espécie de instrumento do analista, mas também por falar do próprio percurso de tornar-se analista. Para Freud, a interpretação é uma tarefa que requer “tato” (FREUD, 1926/2008, p. 251), afinal, há um momento certo em que o analista pode dizer algo – e esse requinte vem com a experiência. Para Freud, o indicativo de que a interpretação foi correta é a resistência do lado do paciente.

De um lado, há o paciente que se põe a falar, “porque ele acredita no analista, e acredita nele porque adquire uma atitude emocional especial em relação à pessoa do analista.” (FREUD, 1926/2008, p. 257). Este é o amor de transferência. Mas é, também, este mesmo amor de transferência que, muitas vezes, impede o analisante de avançar na análise. Do outro lado, temos o analista, que precisa saber manejar esse amor transferencial, de maneira que o sujeito continue a caminhar em sua análise. Sobre esse manejo, Freud diz: “E isso exige do analista muita habilidade, paciência, calma e abnegação.” (FREUD, 1916/2008, p. 261).

Dito isso, o estudo teórico, o atravessamento de sua análise e a vinculação a uma instituição são, para Freud, pontos importantes da formação de um analista, pois dão ao sujeito uma certa condição de se nomear analista.

Freud vê a regulamentação da formação de um analista como algo negativo, mas destaca a importância de se ter um espaço aonde os analistas possam trocar experiências e discutir a teoria. Freud enfatiza que restringir a prática psicanalítica aos médicos não deveria fazer parte da regulamentação, pois, para ele, o mais importante era a análise pessoal.

Nesses institutos, os próprios candidatos são analisados, têm aulas teóricas em forma de palestras sobre todos os objetos importantes para eles e usufruem da supervisão de analistas mais velhos e experientes quando são habilitados a empreender os primeiros experimentos em casos mais simples. Calcula-se que sejam necessários em média dois anos para essa formação. Evidentemente, após esse período ainda se é iniciante, não um mestre. Aquilo que ainda for lacunar precisa ser adquirido por meio de exercícios e pela troca de ideias nas associações psicanalíticas, onde membros mais jovens encontram os mais velhos. (FREUD, 1926/2008, p. 262)

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Em um importante texto, “Sobre o ensino da Psicanálise nas Universidades”, Freud traz, talvez pela primeira vez de maneira mais clara, aquele que seria o tripé da Psicanálise: a análise pessoal, estudo teórico e supervisão.

No tocante à psicanálise, sua inclusão no currículo acadêmico seria motivo de satisfação de um psicanalista, mas, ao mesmo tempo, é evidente que ele pode prescindir da universidade, sem prejuízo para sua formação. Pois o que ele necessita teoricamente pode ser obtido na literatura especializada e aprofundado nas reuniões científicas das sociedades psicanalíticas, assim como na troca de ideias com os membros mais experientes. Quanto à experiência prática, além do que aprende na análise pessoal ele adquire ao tratar pacientes, sob aconselhamento e supervisão de colegas já reconhecidos. (FREUD 1919 [1918]/2010, p. 378)

Desde o nascimento da IPA, estes pilares já podem ser notados, inclusive a própria necessidade do surgimento de uma associação de psicanalistas aponta para isso. A IPA nasce como um local de abrigo aos analistas que tanto sofriam naquela época por causa da má fama da Psicanálise, mas também como um espaço de discussão e troca de experiências. Este tripé, portanto, análise pessoal, estudo teórico e supervisão, serão os norteadores da psicanálise, que, como dita por Freud, prescinde da Universidade à medida que sua formação perpassa para além disso.

Ainda sobre o analista e o poder da transferência, Freud comenta sobre a regulamentação, afirmando: “os analistas didatas serão educados para a sua atividade futura, não médica. Mas tudo isso exige um certo grau de liberdade de movimentação e não suporta limitações mesquinhas” (FREUD, 1926/2008, p. 288). O tripé da psicanálise norteia a formação analítica, mas não a limita.

Em sua correspondência com Fliess, que durou pouco mais de 10 anos, Freud encontrou não só um amigo, mas uma figura semelhante à de um analista. É bastante claro que Freud supunha saber a Fliess, ele lhe remetia cartas contando de seus sonhos, progressos teóricos e, também, relatava casos clínicos. Apesar de Freud considerar o começo de sua “autoanálise” a partir de 1897, pode-se pensar que esta começara antes, com as próprias correspondências trocadas por eles.

Nesse sentido escreveu a Fliess regularmente, as vezes mais de uma carta por semana, remetendo relatos de suas descobertas, detalhes relativos a seus pacientes e – o que é mais valioso de tudo, do ponto de vista – manuscritos periódicos com as suas ideias do momento arranjadas mais ou menos de uma forma esquemática. Fornecem-nos

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eles, mais do que qualquer outra contribuição, alguma noção do seu progresso gradativo e do seu desenvolvimento no campo da psicopatologia. (JONES, 1989, p. 303)

Freud e Fliess chamavam seus encontros de “congresso” e Freud chega a dizer que Fliess “é seu único público” (JONES, 1989, p. 303). Nessas intensas correspondências, muito material de trabalho e pesquisa foi obtido até a ruptura, que se deu totalmente em 1900. Tais “congressos” serviam para reforçar sua leitura e comprometimento com o trabalho.

Depois de cada um de nossos congressos tenho estado revigorado durante semanas, novas ideias se me apresentam, restaura-se o prazer de um trabalho severo e a vacilante esperança de encontrar um caminho através da selva arde, por um momento, com firmeza e brilho. (JONES, 1989, p. 304)

No ano da ruptura dessa relação, Freud diz estar deprimido e que não haveria remédio para isso a não ser uma autoanálise. Naquele momento, Freud nega a Fliess um convite de passarem a páscoa juntos com a família, afirmando precisar de um tempo só para curar-se. Na mesma época, Freud constata sentimentos hostis para com Fliess, ainda que este fosse um grande encorajador de suas descobertas e, também, de grande admiração de Freud.

Freud se viu na obrigação de caminhar só, sem o apoio de Fliess, navegar sozinho e avançar com sua teoria. Tantos anos de trabalho nas profundezas e na solidão custaram a Freud sua própria saúde (JONES, 1976).

Em um trecho de uma das últimas cartas a Fliess, 1900 Freud diz:

Passei por uma crise interior profunda, e você o comprovaria se pudesse ver como ela me envelheceu...Se eu estivesse com você tentaria apreender tudo em termos conscientes a fim de lho descrever [...] O fim de toda essa coisa seria que eu me queixaria continuamente durante cinco dias e voltaria inteiramente excitado e insatisfeito com o trabalho de verão que tenho à minha frente [...] O que me oprime não pode, certamente, ser remediado. (JONES, 1976, p. 305)

Em Fliess, Freud encontrava não apenas um amigo, mas alguém que podia partilhar suas descobertas sem o ódio tão frequente que encontrava em seus opositores. Jones comenta a ruptura entre Freud e seu amigo: “quanta coragem em afastar o único arrimo de que podia valer-se, ficando apenas com uma tênue esperança de alcançar as fontes interiores de autoconfiança que podia substituí-lo” (JONES, 1976, p. 306).

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Em uma de suas cartas a Fliess, Freud sugere que sua inibição na escrita poderia ter relação com o rompimento da amizade. Tal paralisia, afirma Freud, servia para “impedir a continuidade da nossa relação epistolar [...] de uma natureza extremamente obscura” (JONES, 1976, p. 309).

Com o percurso que vem sendo feito, é possível pensar que essa inibição na escrita não correspondia necessariamente à relação de ambos, mas ao próprio desejo de Freud, pois continuar a escrever era, cada vez mais, se afastar deste amigo que ele lhe imputava saber. Poderia ser uma forma de destituir Fliess do lugar de mestre que ocupava para ele.

Concomitantemente a este fato e ao começo de sua autoanálise, Freud descobre sua profunda e secreta hostilidade para com o seu pai e, segundo Jones (1976), era tentador que Freud colocasse Fliess nessa posição de pai, de um pai encorajador, diferente dos sentimentos nutridos pelo próprio pai. Ainda assim, Jones crê que a hostilidade também existia para com Fliess e que acabaria em dissensão e afastamento.

A autoanálise de Freud foi fundamental para sua vida, mas, também, para ele como analista. Mergulhar em seu inconsciente corroborava sua teoria e lhe permitia escutar seus pacientes, na medida em que ele próprio já havia percorrido seu inconsciente. Dessa maneira, Freud estabeleceu, ainda que não tenha dito claramente, uma regra para os analistas: todos que queiram analisar alguém devem antes analisar a si próprios. Embora mais tarde, em 1914, Freud diga que é impossível uma autoanálise, neste momento, em 1897, ele registra a necessidade desta.

O inventor da Psicanálise transmite aos seus seguidores mais do que pensa ensinar. Transmite um saber sobre a Psicanálise que vai além dos conceitos e da teoria. Assim como seus mestres o transmitiram algo que eles próprios não sabiam o que era, Freud também transmite algo para além de seu conhecimento. Transmite a marca de seu desejo, de um trabalho vivo e pulsante, o qual devotou sua vida e seu corpo: “O que me oprime não pode, certamente, ser remediado. É minha cruz e devo carregá-la, mas Deus sabe que minhas costas se tornaram visivelmente encurvadas como resultado desse esforço” (FREUD apud JONES, 1976, p. 305).

Freud não tem pudor em falar de sua clínica, tanto dos acertos quanto dos erros. Isso pode ser visto claramente nos relatos dos casos em que Freud, na incursão pelo inconsciente do analisando, admite os manejos equivocados que fez.

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[...] também recorri ao estabelecimento de prazos fixos em outros casos e, também, tomei em consideração as experiências de outros analistas. O juízo sobre o valor dessa medida de coação é indubitável. Ela é eficaz, desde que se encontre o tempo certo para ela. Mas ela não tem como garantir a consecução completa da tarefa. Ao contrário, podemos estar certos de que enquanto uma parte do material se torna acessível sob a pressão da ameaça, outra parte permanece reclusa e com isso é soterrada e se perde para o esforço terapêutico. Lembremos que não se pode estender o prazo depois de ele ter sido fixado; do contrário se perderá toda a credibilidade para a sequência do tratamento. (FREUD, 1937/2008, p. 319)

No texto acima citado, “Análise finita e infinita”, Freud comenta sobre os desfechos de uma análise e questiona se há um final de análise. Traz, então, diversos casos onde se pode pensar quais são os efeitos colhidos numa análise. Ao tentar falar sobre o término ou não de uma análise, Freud ensina sobre a própria precariedade do sujeito, portanto, da necessidade de se abandonar um ideal de final de análise.

Freud traz dois casos interessantes, sendo um deles o tratamento de Ferenczi. Este texto, inclusive, é como uma resposta de Freud aos questionamentos de Ferenczi, psicanalista importante no meio e que muito trabalhou e teorizou sobre a formação do analista e o final de análise. Alguns analistas pensavam um pouco diferente de Freud no que toca tanto à formação quanto o final de uma análise – no segundo capítulo, trabalharemos esta diferença.

No texto “Análise finita e infinita”, o primeiro caso é de um psicanalista que, durante um tempo, fez autoanálise e que, apesar de sucesso em alguns aspectos de sua vida, notava que sua relação com homens e mulheres não era totalmente livre de sua neurose. Sendo assim, ele se submeteu a uma análise com alguém que considerava superior a si e notou que suas queixas anteriores, a respeito de sua maneira de se relacionar com homens e mulheres, haviam melhorado, portanto, esta seria uma análise bem-sucedida. Alguns anos se passaram e novos problemas surgiram em sua vida, bem como atitudes negativas para com o próprio analista.

O segundo caso é sobre uma mulher, como diz Freud, não tão jovem e solteira, que, por sofrer de fortes dores nas pernas, o que lhe gerava uma dificuldade em caminhar, acabou por não aproveitar sua puberdade. Após um tempo de análise, seu sintoma desapareceu, o que lhe permitiu retomar sua vida. Nos anos que seguiram ao fim da análise, mesmo com acontecimentos terríveis em sua vida, como perdas familiares e problemas financeiros, ela pôde ser, por diversas vezes, o esteio da família. Ainda assim, cerca de 14 anos após o fim da análise, ela foi tomada por uma

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séria hemorragia que a levou a uma cirurgia de histerectomia total e, após esse fato, ela tornou a adoecer e se negou a retomar a análise.

Afinal o que Freud está chamando de bem-sucedido? Ele parece ser um pouco pessimista quanto ao humano, para ele o amansamento da pulsão não necessariamente gera qualidade para o sujeito, pois deixaria de fora o fator topológico e dinâmico da doença.

Para pensar isso, Freud traz o exemplo dos estágios de desenvolvimento, onde o sujeito vai passando de um estágio ao outro, do oral para o anal, por exemplo, mas isso não significa dizer que o estágio anterior foi superado, algo pode ter restado dele. O sujeito consegue “amansar” a pulsão com a cultura, com o intelecto, mas isso não abarca totalmente a pulsão.

Freud traz uma analogia interessante sobre a sociedade atual e uma mais antiga. Ele diz: “Às vezes, poderíamos questionar se os dragões dos tempos primevos realmente foram extintos” (FREUD, 1937/2008, p. 331). Portanto, o resíduo de uma geração para outra, de um estágio para outro, tem seus efeitos na análise, inclusive como ponto de basta. Uma análise bem-sucedida, pensando assim, traz este ponto de impossibilidade, de incurável do sujeito.

Não é apenas a constituição do eu do paciente, mas também a peculiaridade do analista que tem um lugar importante entre os momentos que influenciaram as perspectivas do tratamento analítico e o dificultam dependendo do tipo das resistências. (FREUD, 1937/2008, p. 354)

Para Freud (1937/2008), um analista não é uma presença protegida da/na análise, mas uma presença necessária. Será que é possível pensar a peculiaridade do analista, falada acima por Freud, não só como resistência por parte dele, mas como um estilo próprio do analista? Com o que opera o analista? Para Freud há um resto indomável da pulsão, será que isto pode ser um indicativo de que um analista que atravessou toda sua análise, se utiliza disto que restou nos tratamentos que irá conduzir? Isto, de alguma maneira, se aproximaria do que Lacan, anos mais tarde falaria a respeito do desejo do analista.

Até o momento, foi percorrida a história do movimento psicanalítico a qual Freud foi seu ator principal. Percebe-se que Freud se preocupou com os desvios aos quais a Psicanálise estava sujeita, mesmo sabendo, como visto acima, que a Psicanálise desperta o pior nas pessoas. Com todas as dissensões, cisões e brigas,

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Freud foi fiel ao seu desejo, fez a Psicanálise ser mundialmente conhecida, com todos os prós e contras que isso acarreta.

Como se pode perceber, através do próprio depoimento de Freud sobre as suas experiências mais íntimas, bem como sua relação com seus pares, estas atravessam de uma ponta a outra a sua própria formação como analista. Sua teoria é tão viva quanto a sua própria vida, que se entrelaçam desde o início, do Freud ainda neurologista até o Freud pai da Psicanálise.

A formação do analista, a partir do surgimento da IPA, tomou rumos inesperados, os aliados de Freud, ao se debruçarem sobre a formação, pouco se preocuparam em teorizar sobre e mais em burocratizá-la. O que a história mostra é que a formação analítica na IPA se tornou muito mais uma cartilha de boas maneiras, do que um verdadeiro debruçar sobre as questões que os analistas atravessam desde sua entrada na Psicanálise até o final. Com suas correspondências e trabalhos, Freud aponta para um a mais na formação, ou melhor dizendo, para um furo na formação.

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2. A FORMAÇÃO DO ANALISTA NA ASSOCIAÇÃO

INTERNACIONAL DE PSICANÁLISE

Neste capítulo, será abordada a formação dos analistas após o surgimento da IPA, entendendo que esta foi a primeira associação que de fato pensou na formação dos analistas. Mostraremos como a IPA caminhou numa direção oposta do pensamento freudiano no que dizia respeito a formação analítica, já que esta instituição levou a formação para um viés burocrático conduzindo, inclusive, a sua quase regulamentação. Nota-se, até hoje, que muitas instituições filiadas à IPA são a favor da regulamentação da Psicanálise. Sendo assim, este capítulo pretende mostrar os caminhos e descaminhos tomados pela IPA no que tange à formação analítica.

A IPA nasceu em 1910, no congresso de Nuremberg, após as dissenções que vinham acontecendo no meio psicanalítico – conforme abordado no capítulo anterior. Para Freud, era fundamental que a teoria não sofresse deformações e, muito menos, que fosse traída por seus próprios discípulos, bem como na proteção de sua obra contra os inimigos. Até 1907, o que se tem é uma formação menos rígida, que consistia na leitura das obras de Freud e na permuta de ideias com o próprio.

A formação analítica, até então, funcionava como um pequeno grupo onde seus membros se esforçavam para trabalhar as questões pertinentes à clínica psicanalítica, sendo, esta formação, consequência da evolução teórica e da própria experiência. O que a história mostra é que a necessidade de se pensar a formação do analista se deu a partir das primeiras dissenções no movimento na época. Foram as dissenções que faziam Freud pensar cada vez mais numa estrutura que desse aos interessados na Psicanálise uma formação mais autêntica.

O começo da IPA por si só já demonstra um interesse duplo por parte dos membros da Sociedade das quartas-feiras. Jones (1976) relata que para Ferenczi não se tratava apenas de ser uma instituição que pensaria a formação psicanalítica, mas teria também efeitos de controle sobre as publicações dos psicanalistas. Assim, o Presidente da Associação teria o poder de autorizar ou não a publicação de um psicanalista.

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Depois de fazer a sensata proposta para a fundação de uma associação internacional, com filiais em vários países, Ferenczi continuou para afirmar a necessidade de que todos os artigos escritos ou os que se pronunciassem verbalmente e de autoria de um psicanalista deviam ser primeiramente submetidos à aprovação do presidente da Associação, que assim enfeixaria poderes de censura jamais vistos. (JONES, 1976, p. 417)

Como se pode ver, no nascimento da Associação já havia pessoas que tendiam para uma certa burocratização da formação, estabelecendo regras e normas um tanto quanto exageradas, mas que até aquele momento era muito embrionário.

Catherine Millot em seu texto “Sobre a história da formação dos analistas”, faz uma revisão nos textos da coleção da International Journal of Psycoanalysis e constata que a regulamentação da formação e sua reflexão se dera de maneira quase cronológica.

[...] começou pela regulamentação; a reflexão veio em seguida. Foram os erros, os impasses do sistema de formação estabelecido, que levaram os analistas a se questionar sobre os fins e os meios da formação. (MILLOT, 2006, p. 29)

A IPA passa a ser esta instituição que legisla sobre a formação psicanalítica e fica a cargo dela a orientação e autorização da formação analítica. Millot diz que, em 1910, apesar da regulamentação não ser ainda o principal interesse, foi por causa deste poder dado à IPA que, futuramente, a regulamentação pôde vir a ser pensada.

No texto citado acima, Catherine Millot diz que, apenas em 1918, no Congresso de Budapeste, após a fala de um psicanalista que dizia achar importante que todo analista fosse analisado, a regulamentação, de fato, começou a ser pensada. Então, em 1920, nasce o primeiro instituto de formação de analistas em Berlim, liderado por Karl Abraham e Max Eitingon. O último sendo responsável pela regulamentação da formação durante os 30 anos seguintes.

Quanto ao funcionamento inicial desse primeiro Instituto de Berlim, pode-se dizer que dispensava um ensino teórico assegurado pelos analistas da Sociedade berlinense que nela praticavam igualmente análises didáticas. Além disso, esse instituto estava ligado a uma policlínica analítica criada simultaneamente, na qual eram dispensados tratamentos analíticos gratuitos ou a preços módicos [...]. Esses alunos deviam prestar contas de seu trabalho com os pacientes aos mais experientes, que se esforçavam para orientá-los. (MILLOT, 2006, p. 30)

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Millot afirma que a posição de Eittington quanto à formação de analistas se dava de maneira natural, quase orgânica, assim como a supervisão, que surgia quase de maneira espontânea, emergindo de uma necessidade natural do recém analista em se dirigir para outro mais experiente. Nos textos lidos por Catherine Millot, o que ela percebe é que, mesmo após Eittington estar anos à frente do Instituto de Berlim, ele não acreditava que a formação analítica viria ser um problema.

No instituto, a formação durava aproximadamente um ano e meio e a análise didática era obrigatória e durava por volta de seis meses. Algo da ordem de uma regulamentação começava a aparecer através deste modelo a ser seguido. Os analistas que lá estavam se formavam, não de uma maneira singular, mas quase que em massa, sem diferenciação. O que se nota nesta época é a obrigatoriedade da análise didática, do ensino teórico e das supervisões, mas ainda de “caráter relativamente informal” (MILLOT, 2006, p. 31)

Poucas justificativas existiam para tantas regras que surgiam e viriam a surgir, poucos falaram sobre a importância da análise didática como fundamental na formação analítica e Freud foi um deles. No texto “A questão da análise leiga”, Freud (1926/2008) justifica essa importância apontando para a própria experiência com o inconsciente. Na medida em que o candidato à analista experimentasse a análise, isso não só poderia habilitá-lo na função, como faria crer nos processos inconscientes, uma vez que ele os pôs à prova.

Sendo assim, rogamos a quem quer que vá exercer a psicanálise em outros que antes se submeta a uma análise. É somente ao longo dessa autoanálise, ao experimentar realmente em seu próprio corpo - mais precisamente, na própria alma – os processos que sustentam a existência da análise, que os alunos adquirem as convicções que os guiarão mais tarde como analistas. (FREUD, 1926/2008, p. 223)

Se a IPA nasceu do desejo de Freud e de seus pares para que a teoria psicanalítica não fosse distorcida, bem como um lugar que garantisse a formação para aqueles que desejavam ser analistas, com o passar dos anos isso mudou. Mudou não por vontade de Freud, mas, talvez, pela própria dificuldade em trabalhar a questão da formação dos analistas. Muitos furos foram sendo deixados ao longo do caminho e estes que permitiram a tantos, como Eittington, Ferenczi e Balint que estabelecessem formas e regras para se pensar a formação.

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Obviamente, não foi apenas pelos furos deixados, houve interesses maiores na IPA. Elizabeth Roudinesco (1988) revela isto em seu livro A história do movimento

psicanalítico na França. Para os presidentes que pela IPA estiveram, como os

analistas didatas, tanto na época de Freud, como após sua morte, o que acontecia com as instituições filiadas a IPA era de interesse maior. Alguns presidentes de associações se interessavam em regulamentar a psicanálise e, por exemplo, transformá-la numa associação exclusiva a médicos, inclusive indo contra a máxima freudiana da análise leiga. Tal medida de controle era quase que de ordem higienista, os médicos se sentiam soberanos sobre os analistas de formação não médica.

As regras que surgiam pareciam mais corresponder a uma tentativa de monopólio dos analistas didatas sobre aqueles que desejavam ser analistas, do que estar a serviço da técnica psicanalítica. Roudisneco (1988), inclusive, fala sobre o fato do tempo estipulado para uma análise didática se diferenciar, por exemplo, do tempo de uma análise terapêutica, uma análise sem finalidade de formação. Isso significa que o tempo de 50 minutos caberia para aqueles que desejavam se analistas, mas para aqueles que não tinham interesse, ou ainda não haviam mostrado desejo de fazer formação psicanalítica, não necessariamente precisavam respeitar este tempo. Abaixo, um trecho do livro da autora que ilustra bem a formação na IPA:

No regulamento de 1949 não se faz menção alguma à obrigação de que o terapeuta respeite um tempo fixo de duração das sessões. Entretanto, admite-se há vinte anos na IPA que os tratamentos didáticos devem durar pelo menos quatro anos, à razão de três, quatro ou cinco sessões semanais de pelo menos cinquenta minutos. Essa prática se aplica igualmente à terapêutica e à didática, mas, como a formação dos terapeutas é objeto de uma regulamentação rigorosa, é pela análise didática que se exerce o controle de uma sociedade. (ROUDINESCO, 1988, p. 248)

Tal regra de um tempo fixo da sessão é implícito, porém, isto não havia sido teorizado. Um analista, ao cabo de 50 minutos, encerra a sessão. E Roudisneco (1988, p. 248) diz mais: “Esse ato não tem a menor significação interpretativa e tal técnica corre o risco do totalitarismo. De fato, não leva em conta as diferenças humanas nem as realidades clínicas”. A repetição automática deste modo de operar uma análise não é pautada por uma teoria, por isso, mais se parece com uma forma de controle dos analistas didatas do que estar se prestando ao trabalho do inconsciente.

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Roudinesco, para salientar a discrepância evidente entre Freud e seus discípulos, chama atenção para o fato de que o fundador da Psicanálise jamais se atentou a regras tão consolidadas. Sobre Freud, ela comenta que:

Aceita casais em análise e propõe a um que substitua o outro quando o primeiro falta à sessão. Receita anticoncepcionais, empresta livros, dá e recebe presentes, recomenda espetáculos, cumprimenta por alguma roupa e sai do aposento para urinar caso sentir necessidade. (ROUDISNECO, 1988, p. 249)

Para Freud, o interesse maior era no inconsciente, em suas nuances, sintomas e menos nas regras – estas existiam, certamente, mas não como algo rígido e imutável. A conduta do analista correspondia ao seu estudo teórico e sua análise pessoal, que lhe garantiam uma escuta mais afinada, o que não se enquadra em estipular um tempo para a sessão. Em “Recomendação aos médicos para o tratamento psicanalítico”, Freud (1912/2018b) orienta os jovens analistas, mas como o próprio título já entrega, são recomendações e não regras. Afinal de contas, a única regra era da associação livre e, do lado do analista, a atenção flutuante.

Na década de 1920, alguns importantes institutos de Psicanálise foram criados, como a Policlínica de Berlim e, também, a de Viena. A cada ano em que a Psicanálise se tornava mais famosa, maior era a necessidade de se pensar a formação. É importante ressaltar que estes institutos nasciam em meio à destruição da guerra. Viena ainda era tomada por militares e, ainda assim, o trabalho psicanalítico avançava, ainda que a duras penas (JONES, 1976).

Em 1919, Freud fundou sua editora, Internationaler Psychoanalytischer Verlag, de grande importância na formação analítica, pois, por ser uma editora psicanalítica, dava a Freud o poder de escrever o que bem quisesse e, aos outros analistas, um lugar para dirigir seus escritos e serem publicados (JONES, 1976). Os escritos eram de extrema importância pra Freud, pois eram uma forma de registrar a psicanálise no mundo, de compartilhar de experiências, algo fundamental na formação dos analistas.

A ideia de tornar-se inteiramente livre das condições impostas pelos editores e de poder publicar os livros que bem quisesse, e quando quisesse, provocou um apelo poderoso nesse lado de sua natureza. Com a sua própria editora a existência continuada dos periódicos psicanalistas, que haviam sido gravemente ameaçados durante a guerra, estaria em maior segurança. Por último, os autores de poucos recursos poderiam estar certos de terem um bom trabalho publicado. (JONES, 1976, p. 593)

Referências

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