UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO INSTITUTO DE LINGUAGENS
COORDENAÇÃO DE PROGRAMAS DE PÓS-GRADUAÇÃO MESTRADO EM ESTUDOS DE LINGUAGEM
A conversa entre textos visuais: uma análise textual a partir das
teorias de Maingueneau
CUIABÁ / JANEIRO 2006
MESTRADO EM ESTUDOS DE LINGUAGEM ÁREA: ESTUDOS LINGUISTICOS
LINHA DE PESQUISA: ENSINO-APRENDIZAGEM DE LINGUAS
MESTRANDO:
DEGMAR FRANCISCO DOS ANJOS
Produção referente à disciplina Tópicos em
Linguística Aplicada: Interfaces da LA com a análise dialógica do discurso ministrada
A conversa entre textos visuais: uma análise textual a partir das
teorias de Maingueneau
Degmar dos Anjos.
A lingüística aplicada, de acordo com Moita Lopes (1998:114), se destaca por procurar subsídios em várias disciplinas para poder esclarecer, teoricamente, uma questão ou um problema com a qual as pessoas se deparam ao usar a linguagem na prática social, ou em um contexto de ação.
Coadunando com essa compreensão, buscamos nesse ensaio analisar a linguagem não em suas formas comuns de apresentação – escrita e fala, mas no momento em que ela se apresenta através de formas não-verbais. Para tanto, embasamo-nos nas teorias da Análise do discurso de linha francesa, mais especificamente nos conceitos de Dominique Maingueneau .
Constantemente, ao observarmos figuras, gravuras, obras de arte ou outros elementos pictórios, somos levados a nos emocionar ou a ter sensações de desconforto, como se aquela imagem estivesse nos falando algo, como se aquela imagem fosse parte de um discurso capaz de causar em nós os mais diversos sentimentos.
E não é para menos, de acordo com Dominique Maingueneau, a prática discursiva não integra apenas enunciados, podendo integrar aí diversos outros domínios semióticos, tais como quadros e obras musicais (2005: 146). A este respeito, o autor é claro em dizer que:
A prática discursiva não define apenas as unidades de um conjunto de enunciados, podendo ser considerado como prática intersemiótica e integrar produções pertencentes a outros domínios
semióticos. O sistema de restrições que funda a existência do discurso pode ser igualmente pertinente para esses outros domínios. (2005: 23)
É devido a este compreensão que Maingueneau vai diferenciar Texto e enunciado, definindo texto como os diversos tipos de produções intersemióticas e enunciado como o texto em sentido estrito, isto é, as produções lingüísticas, mas lembrando que ambos podem pertencer a uma mesma prática discursiva. Ora, se tanto os enunciados quanto os textos podem pertencer a práticas discursivas, pode-se afirmar também que tanto um quanto o outro se estruturam a partir do relações interdiscursivas, que vão através de outros discursos, constituir o discurso presente naquele texto ou enunciado. Ou, como diz Maingueneau, “A hipótese do primado do interdiscurso inscreve-se numa perspectiva de heterogeneidade constitutiva, que amarra, em uma relação inextricável, o Mesmo do discurso e seu outro”
A partir das explanações apresentadas, fundamentadas nas definições de Maingueneau, podemos agora analisar uma gravura buscando compreender como o texto pictório pode, desta forma, apresentar a heterogeneidade.
O texto escolhido para análise tem por título “La vie en Rose” é obra de Adão Iturrusgarai e foi publicado no Jornal A Folha de São Paulo em setembro de 1999. Porém, é preciso salientar que o texto não foi retirado diretamente do Jornal mencionado, mas sim de um site voltado para o trabalho com alunos do ensino médio (www.educacional.com.br). Neste site, o texto aparecia, junto com duas questões de interpretação que analisavam questões relacionadas à violência urbana, em meio a uma coletânea de exercícios de interpretação textual voltados para alunos que estão se preparando para o vestibular.
Acreditando que o texto tem um funcionamento interno – a heterogeneidade que o constitui – e outro externo – o diálogo que o texto estabelece com o momento histórico e social em que é elaborado, vamos nesta análise buscar compreender os diálogos existentes na heterogeneidade constitutiva¹ do texto (o conceito de heterogeneidade constitutiva pertence a Authier-Revuz e diz respeito à relação entre discursos que é exposta na
elaboração de um texto), dado que não possuímos a fonte nem o momento exato de sua produção – elementos importantes em uma contextualização do texto com demais discursos que estão presentes no instante histórico, social e político de sua redação.
Feitas as explanações iniciais, passemos à análise do texto que é mostrado a seguir. 1 - O conceito de heterogeneidade constitutiva pertence a Authier-Revuz e diz respeito à relação entre discursos que é exposta na elaboração de um texto
C o m o se v ê , o t e xto é estruturado a partir da idéia de sobreposição de uma imagem sobre outra. No caso, uma imagem ao fundo, aparentando uma vida camponesa, é encoberto por pela obra de arte Guernica,que entra no texto carregada por três seres humanos.
Para melhor analisarmos a gravura acima, observemos agora cada uma das imagens que aparecem no texto.
A imagem que aparece ao fundo é, aparentemente, uma representação da vida camponesa.
O conjunto de desenhos que a formam (flores, pássaros, casa, árvores, sol, nuvens e campos) consegue transmitir a sensação de tranqüilidade que se espera quando se fala do campo. É comum vermos, em propagandas ou outros enunciados, a vida camponesa associada a essa idéia de tranqüilidade, como os enunciados a seguir, que foram retirados de sites de propaganda turística:
· Há ainda, aqui perto, uma série de pequenas instâncias de repouso nas montanhas, onde se pode encontrar a tranqüilidade do campo
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Já a segunda imagem, a obra " GUERNICA " é um óleo sobre tela de autoria de ' Pablo Picasso ', datado de 1937. O acontecimento que inspirou o conhecido quadro de ' Picasso ' foi a própria cidade de Guernica, capital da província Basca, a qual a 26 de Abril de 1937 foi alvo de bombardeamentos por parte de aviões alemães (Legião Condor) por ordem do General Franco. Dos 7000 habitantes, 1654 foram mortos e 889 feridos. A destruição de Guernica foi a primeira demonstração da técnica de bombardeamentos de
saturação, mais tarde empregado na 2ª Guerra Mundial. O Quad r o , perte ncent e ao período cubista da história das artes, retrata a visão do autor acerca dos horríveis acontecimentos vividos pelo povo de Guernica e do olhar assustado com o qual o mundo via a capacidade de destruição que o homem demonstrava naquele momento (horrores que seriam ainda maiores na segunda guerra mundial ocasionados pela utilização de bombas atômicas em duas cidades japonesas).
O texto Guernica, nesta retratação horrífica, também faz uso da intertextualidade e da interdiscursividade, ao se referenciar em outros textos e outros discursos. Analisemos alguns momentos em que isto se torna aparente.Em primeiro plano no quadro, está uma figura fragmentada com a cabeça cortada, à esquerda, e um braço também cortado, ao centro, agarrando uma espada quebrada, emblema que de forma interdiscursiva nos traz à lembrança as resistências heróicas. Junto à espada quebrada encontra-se uma flor, que comoventemente (também devido à idéia interdiscursiva de que a flor é o representante da pureza, da beleza e da leveza das coisas) parece aumentar o horror geral da cena caótica.
Entre as complexas imagens cubistas de "Guernica", a mãe e o filho é imediatamente interpretado. Uma criança morta, pende inerte nos braços da mãe. O grito da mãe está representado pela
lingua que sugere a um punhal ou um estilhaço de vidro. Formas semelhantes aparecem um pouco por todo o quadro. A angústia no rosto da mulher que segura a criança é especialmente penetrante, talvez aumentada pelo contraste entre o estilo do rosto e a representação mais convencional da criança.
.
Tal parte da obra de Picasso, de forma intertextual e interdiscursiva, resgata a obra de Michelangelo La Pietá , que ao retratar a dor da mãe do Cristo, tornou-se referência da dor de uma mãe que recolhe em seus braços o corpo inerte de um filho.
No lado direito do quadro, duas mulheres olham horrorizadas para o cavalo ferido com medo e pena, sugerindo certas semelhanças, em conceito e semelhança, com as imagens de Cristo na cruz e a presença das três Marias em cena. Picasso procurava talvez uma imagem moderna e secular para exprimir o sofrimento humano, mas uma que não tivesse qualquer simbolismo cristão explicito.
Feitas as análises das duas imagens que aparecem na gravura de Iturrusgarai, podemos compreender a forma como o texto apresenta a sobreposição de duas realidades. Ao apresentar uma visão camponesa ao fundo, que é encoberta por uma outra realidade (a retratada por Picasso) através das mãos humanas, a gravura nos traz à mente, através de um processo intertextual e interdiscursivo a terrível sobreposição de um mundo assustador, no qual o que impera é o horror das guerras que se tornam cada vez mais comum em nosso
cotidiano (pois incluímos aí a “guerra” da violência urbana), sobre a tranqüilidade com o qual o homem ainda sonha.
Desse modo, ainda que Iturrusgarai tenha trabalhado apenas com imagens, podemos ver que outros textos e outros discursos são resgatados. A intertextualidade e a interdiscursividade, definidas por Maingueneau, podem ser claramente constatadas na gravura em análise, como pudemos verificar acima. Tornando, assim, comprovada a hipótese de Mainguenaeu, mencionada no início deste texto, de que uma prática discursiva pode integrar outros domínios semióticos além dos enunciados, e que estes outros domínios também estão sujeitos aos sistemas de restrições que fundam a existência dos discursos (Maingueneau, 2005: 23)
Bibliografia
AUTHIER-REVUZ, Jacqueline. Palavras Incertas: As não coincidências do dizer. Campinas, SP: Editora da UNICAMP, 1998.
Contexto, 2005.
MAINGUENEAU, Dominique. Gênese dos discursos. Curitiba – PR: Criar Edições, 2005. ORLANDI, Eni P. Discurso e texto: Formulação e circulação dos sentidos. Campinas, SP: Pontes, 2001.
http://www.uc.pt/iej/alunos/1998-99/guernica/ acessado em 25 de janeiro de 2006.
http://www.rainhadapaz.g12.br/projetos/artes/picasso/guernica.htm acessado em 27 de janeiro de 2006
http://www.christusrex.org/www1/citta/0-Pieta.jpg acessado em 27 de janeiro de 2006