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ANÁLISE COMPARATIVA DAS PERSONAGENS FEMININAS NOS CONTOS ANA DAVENGA DE CONCEIÇÃO EVARISTO E AMOR, DE CLARICE LISPECTOR

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AFRICANAS

I Encontro Internacional de Culturas Afrodescendentes e Indígenas da América Latina e Caribe

ANÁLISE COMPARATIVA DAS PERSONAGENS FEMININAS

NOS CONTOS ANA DAVENGA DE CONCEIÇÃO EVARISTO E

AMOR, DE CLARICE LISPECTOR

Camila Pereira de Sousa1 Lucélia de Sousa Almeida2

Resumo

A mulher ao longo do tempo foi considerada como um objeto do lar, disponível para afazeres domésticos e familiares, e isso se tornou um fato representado também pela Literatura, seja como reflexo ou através de crítica a esse julgamento. A partir desse pressuposto, este trabalho visa analisar as personagens femininas dos contos Ana Davenga da autora Conceição Evaristo e Amor de Clarice Lispector, mulheres que estão inseridas em condições sociais e ambientais diferentes e que ao mesmo tempo estão na mesma situação de submissas aos padrões de uma sociedade patriarcal. No primeiro momento, faz-se uma abordagem sobre as autoras contextualizando com seus contos estudados, em seguida destaca-se sobre o antes e o presente momento da rotina de donas de casa, para posteriormente analisar o ápice de questionamento sobre o estar no mundo. A partir desta pesquisa, pode-se reconhecer que independente das personagens inserirem-se em diferentes contextos sociais, elas permanecem em um ciclo de submissão, caracterizando um reflexo da sociedade machista e sexista que estão inseridas. Como referencial teórico utiliza-se Zolin (2009), Rocha (2009), Silva (2010) entre outros.

1 Acadêmica do Curso de Licenciatura Plena em Letras Português da Universidade Estadual do Piauí.

E-mail: camispereira09@hotmail.com

2 Mestre em Letras pela Universidade Estadual do Piauí (UESPI). Doutoranda em Letras pela Universidade

de Brasília (UNB). Membro do Grupo Literatura e Cultura, (UNB). Tem experiência na área de Letras Estudos do discurso e Literatura Brasileira, Bakhtinianos, Estudos da Linguagem. E-mail: almeida.lucelia@hotmail.com

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Introdução

O patriarcalismo regeu códigos que determinaram a condição feminina de subordinação, omissão e inferioridade em relação ao homem. A mulher ao longo da história foi considerada como um objeto do lar, disponível para afazeres domésticos e familiares, na condição de excluída ou em posições inferiores no mercado de trabalho, por exemplo. Nas Belas-Artes, até o século XIX, a ideia de supremacia do sexo masculino em relação ao feminino era forte, pois segundo Rocha (2009) ainda imperava a concepção de que os homens eram seres biológica e intelectualmente superiores às mulheres, e isso se tornou um fato representado também pela Literatura, seja como reflexo ou através de uma forte crítica a esse julgamento.

O próprio Cânone literário se manteve dominado pelo gênero masculino, ainda como reflexo dessa ideologia patriarcal, as mulheres que se arriscavam na produção texto literário teriam que romper essas barreiras patriarcais que as limitavam às ocupações domésticas, como afirma Lúcia Osana Zolin (2009):

Historicamente, o cânone literário, tido como um perene e exemplar conjunto de obras-primas representativas de determinada cultura local, sempre foi constituído pelo homem ocidental, branco, de classe média/alta; portanto, regulado por uma ideologia que exclui os escritos das mulheres, das etnias não-brancas, das chamadas minorias sexuais, dos segmentos sociais menos favorecidos etc. Para a mulher inserir-se nesse universo, foram precisos uma ruptura e o anúncio de uma alteridade em relação a essa visão de mundo centrada no logocentrismo e no falocentrismo. (ZOLIN, 2009, p. 253).

A luta pela busca de igualdade nas relações sociais e liberdade feminina se tornou mais acentuada no século XX com influência das transformações sociais que ocorriam no mundo e atingiu seu apogeu em 1960 com o surgimento do Movimento Feminista. Como afirma Rocha (2009) com a liberdade obtida, as mulheres adquiriram a possibilidade de poder lutar legitimamente em uma sociedade pluralista e várias outras conquistas foram incorporadas gradativamente ao longo dos anos. Segundo a pesquisadora, isso se deveu muito ao acesso ao conhecimento. O que pode ser exemplificado na garantia de direito a educação e a revogação de artigos do Código Civil, que contribuíam para reforçar a ideia de inferioridade intelectual e dependência das mulheres em relação aos homens.

A partir desses pressupostos, por meio de uma análise comparativa, pretende-se investigar como se dá a representação da figura feminina nos contos Ana Davenga e Amor

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das escritoras Conceição Evaristo e Clarice Lispector, respectivamente. No primeiro momento, faz-se uma abordagem sobre as autoras contextualizando com seus contos estudados, em seguida destaca-se sobre o antes e o presente momento da rotina de donas de casa, para posteriormente analisar o ápice de questionamento sobre o estar no mundo

Conceição Evaristo

A escritora Conceição Evaristo é uma das principais e mais importantes representantes da literatura Afro-brasileira. Tornou-se também uma escritora conhecida internacionalmente. A sua primeira publicação foi uma crônica, em 1970, porém foi desconsiderada pela autora e o marco de suas publicações foi um poema publicado em 1990, no décimo terceiro volume dos Cadernos Negros, pelo grupo Quilombhoje, de São Paulo. O ano de 1990 também é o ano que a escritora passa a ter uma atuação mais significativa dentro da academia. “A vida acadêmica aumentou sua rede de relações com a intelectualidade negra: além de artistas e escritores/as, integravam-na agora pesquisadores/as e professores/as negros/as”. (MACHADO, 2014, p. 77). A partir de então, publicou diversos poemas e contos nos Cadernos, além disso, também produziu uma coletânea de poemas e dois romances.

A autora traz em sua literatura intensas reflexões acerca das questões de raça e de gênero, com o intuito de mostrar a desigualdade que está encoberta na sociedade. Sua obra, como ela própria afirma, é marcada pela “condição de mulher negra”.

Uma marca na Literatura afro-brasileira é significância da memória que serve como uma via de exposição do passado e, por meio dele, ocasionar uma modificação no presente com a intenção de “reparar sucessivas perdas como a da memória da ancestralidade africana, da ação heroica nos quilombos, enfim da própria história” (BERND, 1988, p.23). Essa memória é apresentada na obra de Conceição Evaristo como “escrevivências”, termo criado pela própria escritora:

E, nesse sentido, afirmo que, quando escrevo, sou eu, Conceição Evaristo, eu sujeito a criar um texto e que não me desvencilho de minha condição de cidadã brasileira, negra, mulher, viúva, professora, oriunda das classes populares, mãe de uma especial menina, Ainá, etc., condições essas que influenciam na criação de personagens, enredos ou opções de linguagem a partir de uma história, de uma experiência pessoal que é intransferível (EVARISTO apud DUARTE, 2011, p.115).

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Portanto, o negro será colocado como personagem central na literatura afro-brasileira com o intuito de que haja uma quebra naquilo que foi construído historicamente em torno de sua pessoa com o propósito de retratar uma nova realidade. No que se refere a escrita feminina negra, será caracterizada como formada por:

temas femininos/feministas negros comprometidos com estratégias políticas emancipatórias e de alteridades, circunscrevendo narrações de negritudes femininas/feministas por elementos e segmentos de memórias ancestrais, de tradições e culturas africano-brasileiras, do passado histórico e de experiências vividas, positiva e negativamente, como mulheres negras. (SILVA, 2010, p.178)

Dessa maneira, a escrita da mulher negra na literatura é caracterizada por uma representação não só de si, mas também de outras mulheres negras, com base em experiências vividas, de maneira a reivindicar de forma problematizadora sua condição.

O conto Ana Davenga, objeto de análise deste artigo, é pertencente à Conceição Evaristo e foi publicado na coletânea Cadernos Negros. Ele também está presente no livro Olhos d’água, publicado em 2016 pela editora Pallas. A obra é composta por quinze contos, nos quais a tônica está relacionada às dificuldades pelas quais passam os afro-brasileiros numa sociedade excludente. Nessas narrativas, mesmo que existam alguns personagens principais masculinos, a ênfase está centralizada nas personagens femininas, como é o caso da personagem desta análise.

O conto se inicia nos momentos que precedem a festa surpresa de aniversário de Ana Davenga. A personagem apresenta uma angústia, pois é casada com o chefe do tráfico do morro e o fato dele não chegar junto com os outros homens é preocupante .

No decorrer da narrativa, Ana Davenga será apresentada como uma mulher sensual que chamou a atenção do chefe do tráfico durante uma roda de samba. Durante o episódio, a personagem é vista por Davenga com características que o fazem lembrar-se de sua mãe, de outro tempo de paz, da sua infância. A partir daquele momento, o chefe do tráfico enxerga a mulher com um desejo que fosse sua. Ana aceita receber o nome de Davenga e correr riscos que aquela vida lhe traria. O marido trazia o sustento para o barraco e quando estava fora por muito tempo, seus companheiros, que a princípio viam a mulher com desconfiança ,eram os responsáveis por isso. A companheira sabia do que se passava, porém sentia uma necessidade de viver tudo aquilo.

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Os minutos de agonia são interrompidos pela chegada de Davenga e o anúncio de que se tratava de uma festa surpresa de seu aniversário. A partir de então, Ana é possuída por um sentimento de alegria e surpresa, já que se tratava da sua primeira festa de aniversário. Após todos os convidados irem embora, o casal é surpreendido pela chegada da polícia. Ana é metralhada, ali na cama, enquanto protegia com as mãos “um sonho de vida que ela trazia na barriga” (EVARISTO, 2016, p. 30).

Clarice Lispector

Clarice Lispector é uma das mais importantes e aclamadas escritoras do Brasil, sendo pesquisada e conhecida em diferentes países. Dedicou-se a uma produção variada de crônicas, romances, novelas e contos, tendo uma predileção por trabalhar de maneira mais intensa as características psicológicas de seus personagens. Além disso, a escritora possui uma preferência por protagonistas do universo feminino, criadas com profundidade e mostrando a complexidade de seus sentimentos, inquietações e vivências. Em uma entrevista ao Jornal Correio Brasiliense (2017) a pesquisadora Cintia Shwantes afirma que:

Clarice fala da angústia de existir, e especialmente de um ponto de vista feminino. Suas personagens femininas estão sempre em algum momento crucial de suas vidas e precisam se redefinir, o que pode acontecer como uma libertação, ou um suicídio, ou um enlouquecimento.

Segundo a pesquisadora Lúcia Osana Zolin (2009), a sua escrita é um marco do início da fase feminista da literatura de autoria feminina, pois possui traços e “críticas contundentes aos valores patriarcais, tornando visível a repressão feminina nas práticas sociais, numa espécie de consequência do processo de conscientização desencadeado pelo feminismo”( ZOLIN, 2009, p.332.), caracterizando-se, sobretudo, por ser marcada por uma quebra nos valores patriarcais que até então eram disseminados na produção literária feminina. Em vista disso, a autora introduz uma nova fase da literatura brasileira de autoria feminina, apresentando novos rumos para o que era produzido no meio literário no que se refere a essa escrita, problematizando o papel da mulher na sociedade.

O conto em análise, Amor faz parte da coletânea de contos intitulada Laços de

Família, publicada em 1960. São 13 contos centralizados, tematicamente, no processo de

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estabelecidas. Nessa obra a personagem Ana é caracterizada por um momento intenso de questionamento entre o mundo em que vive submissa aos padrões da ordem patriarcal e um mundo que a personagem mergulha e acaba por se redescobrir enquanto sujeito no mundo.

O conto Amor é escrito em terceira pessoa e tem como protagonista a personagem Ana, uma dona de casa sempre preocupada com seus afazeres domésticos e que possui um marido e filhos com quem vive em uma relação de harmonia. Porém, em mais um dia normal de sua rotina, ao voltar das compras e se deparar com um cego mascando chiclete e sorrindo, Ana toma consciência do mundo ao seu redor e desenvolve uma desestabilidade emocional, uma crise existencial. Após o encontro com o cego, a personagem caminha desesperadamente até chegar ao Jardim Botânico e é onde continua a questionar o que estava há muito tempo aprisionado em meio as tarefas e seu conformismo da rotina doméstica. Neste momento de reflexão a respeito da vida que construíra no casamento, é perceptível a insatisfação de Ana, o que fica evidenciado em um trecho do conto: "também sem felicidade se vive”, apesar de que essa construção e a vida que leva seja uma escolha sua.

Mesmo depois de uma conversa intensa e conturbada com o seu interior, Ana retoma seus pensamentos gradualmente ao voltar para casa e encontrar o que a sua realidade marcada pela condição de mulher, submissa ao seu papel de esposa e mãe lhe exigia .

Análise da Representação das Personagens

A primeira personagem apresentada para a análise será Ana Davenga que é retratada antes do casamento, em uma roda de samba, dançando de forma sensual e cheia de liberdade. Os movimentos realizados pela dançarina chamavam a atenção de Davenga. Ela, em meio à distração na dança, não reparava nos olhares daquele que viria a ser seu futuro marido. Naquele momento, o chefe do tráfico a enxergou com emoção ao lembrar-se das mulheres importantes de sua vida e passou a delembrar-sejá-la como sua mulher. Após aceitar adotar o nome de Davenga, foi morar no barraco do traficante, uma espécie de quartel general, e de certa forma cumpria com suas obrigações domésticas e seu papel de “amante”. Essa situação remete ao Código civil de 1916, pois segundo ele a mulher era obrigada a acrescentar, com casamento, ao seu nome, o sobrenome do marido. Além de assumir as funções domésticas, também assumiu o papel da mulher que devia estar

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disponível para o prazer do marido e a espera do sustento de casa, mais uma vez refletindo a ideia de superioridade masculina.

A princípio, não era bem vista pelos amigos de Davenga, pois sua presença era um motivo de desconfiança. Porém, o chefe deixava bem claro que isso não mudaria nada com relação aos assuntos do grupo, a mulher era “cega, surda e muda no que se referia a assuntos deles” (EVARISTO, 2016, p.22), dessa maneira com sua voz silenciada. O marido também deixava claro que aquele que não conseguisse controlar seus desejos com relação a Ana, seria morto. No fundo Davenga sentia uma insegurança e não aceitaria que nenhum dos comparsas se envolvessem com ”sua” mulher.

Ana passou a ser “quase uma irmã que povoava os sonhos incestuosos dos homens comparsas dos delitos e crimes de Davenga” (EVARISTO, 2016, p.22). Esses comparsas eram também os responsáveis por trazer sustento ao barraco quando o chefe passava muito dias fora. A esposa de Davenga sabia do que se passava, de todos os crimes cometidos pelo marido e dos riscos que corria ao lado dele, porém sentia uma necessidade de viver tudo aquilo e construir uma família ao lado de Davenga. Na realidade, a sua condição não lhe permitiria ter outras escolhas e sua vida seria aquela de tensão e rodeada por medo e violência.

Enquanto a personagem Ana, do conto Amor é apresentada como se tudo que sucedera antes do casamento estivesse fora de seu alcance, como algo estranho. A protagonista do conto não se reconhece mais na pessoa que fora antes do casamento. Teria surgido da vida anterior para descobrir um conformismo com relação à vida atual e assumir o “destino” de mulher. Ana sentia uma necessidade de firmeza que só o casamento e um lar poderiam lhe garantir.

Durante o presente momento da narrativa, após a construção de sua família, a personagem Ana é apresentada em meio às inúmeras tarefas que a vida de mãe e dona de casa lhe exigiam. Sempre com a mente ocupada durante a maior parte do tempo, pois estava o tempo todo em busca de manter a ordem e harmonia tudo.

Todas as suas inquietudes e todo o seu tempo eram dedicados ao marido, aos filhos e às tarefas do lar. Ana, em meio a tantas responsabilidades esquecia-se de si mesma para se concentrar apenas na família e mantinha cautela na “hora mais perigosa da tarde”, em que se encontrava desocupada, quando nada mais necessitaria de sua força.

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É possível perceber que as personagens estão inseridas em espaços diferentes, Ana Davenga mora em um barraco numa favela e vive sob a tensão que os perigos que a vida de mulher do chefe do tráfico a traz. Já Ana, do conto Amor, possui uma vida mais tranquila, ocupada com as compras de casa e em harmonia com os filhos e marido, mesmo não se sentindo feliz e ainda carregando as consequências daquela vida que plantara, pois não possui tempo para pensar em si mesma. Desse modo, possuem formas de submissão depois do casamento, mesmo quando se trata de escolhas que partiram de decisões mais cômodas para cada uma das personagens.

A narrativa Ana Davenga se inicia marcada por um momento de tensão vivido pela personagem nos instantes que antecediam sua festa surpresa de aniversário, ou seja, fica evidente o modo de vida a que a personagem foi sujeitada. O barraco estava em uma agitação e Ana não conseguia compreender o porquê de seu homem não estar presente em meio aos outros do grupo. Era necessário ter cautela, pois o líder do tráfico “tinha um coração em Deus, mas, invocado, era o próprio diabo” (EVARISTO,2016, p.22). Ana temia que algo tivesse acontecido, porém os companheiros do grupo não demonstravam tristeza alguma. Ela não sabia se aquilo tudo seria uma forma de esconder o que de pior poderia ter acontecido por conta dos crimes que cometia ou se seria apenas uma brincadeira de Davenga.

Os minutos de ansiedade foram interrompidos pela chegada de Davenga e o anúncio, pelas batidas do samba, que se tratava de uma festa surpresa de seu aniversário. Ana Davenga, ao ouvir vozes de crianças, lembrou-se da que ainda estava em barriga. Refletia sobre o futuro incerto da criança em meio àquela realidade em que estava inserida. Ainda tomada por um sentimento de espanto e ao mesmo tempo alegria, uma vez que “era a primeira vez na vida, uma festa de aniversário” (EVARISTO, 2016, p . 29), seu coração não cabia tanta felicidade, ela que “tão viciada na dor, fizera dos momentos que antecederam a alegria maior um profundo sentimento” (2016, p. 29).

Já a narrativa Amor começa a se complicar ao fim da tarde, quando ao voltar das compras, já no bonde, preparando-se para retomar sua rotina, Ana olhou para o ponto e teve uma visão que lhe causou uma intranquilidade: um homem cego mascando chiclete, ele “mastigava goma na escuridão. Sem sofrimento”. Ela olhava o cego "como se ele a tivesse insultado” (LISPECTOR, 2016, p.147), com uma expressão de ódio e um sentimento de piedade sufocante em meio a uma sociedade indiferente aos problemas alheios. Ela se deu conta do mundo em que vivia. A simples existência do cego perturbava

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a sua paz construída dentro do seu mundo, mostrava que o mundo a fora não era perfeito e como a realidade era dura. Nesse instante, Ana deixa cair às compras que carregava na sacola e chama a atenção de todos. Em meio ao momento de desorientação, a personagem percebe que passou do ponto de descida.

A situação atinge seu clímax quando a personagem, ainda desorientada, vai parar no Jardim Botânico. Depois da visão do cego, agora era o jardim que modificava os seus pensamentos. Aquele lugar levara Ana a refletir sobre a fragilidade da vida “as árvores estavam carregadas, o mundo era tão rico que apodrecia” (LISPECTOR, 2016, p. 151). Além disso, ao admirar aquela ordem, a natureza, em um estado de êxtase ela é tomada por uma nova percepção da realidade. Nesse Jardim, na medida em que se redescobre o que existe de melhor e de pior em si mesma, ela se depara com sentimentos paradoxais e complexos de sua condição existencial: “Era fascinante, e ela sentia nojo” ( LISPECTOR,2016, p .148)

A personagem Ana, do conto Amor passa por um momento de questionamento sobre a realidade que a cerca ao ver um cego mascando chiclete, uma epifania ocasionada por uma situação aparentemente comum. Nesse instante uma crise existencial a leva para fora do mundo harmonioso a um mundo de questionamentos e incertezas. Já no conto

Ana Davenga esse momento é apresentado nos instantes que antecedem festa de

aniversário da personagem, que foi muito significativa para ela, pois em meio a tantos problemas havia esquecido de si mesma e a festa de aniversário seria a primeira ser comemorada. Além disso, o medo e interrogações surgiam, pois Ana sabia que qualquer coisa poderia acontecer com Davenga. A personagem ainda não possuía uma família formada com o marido, como em Ana do conto Amor, e carregava na barriga um sonho que também lhe trazia preocupações, pois existia uma indeterminação quanto ao futuro que a criança teria ao nascer naquelas condições.

Em Ana Davenga, depois da festa e da saída de todos os convidados, o casal amou-se amou-sem saber que aquela amou-seria última vez. Foram interrompidos pela chegada da polícia e avisados que barraco estava cercado. O chefe do morro foi morto, assim como Ana também. Metralhada, ali na cama, enquanto protegia com as mãos “um sonho de vida que ela trazia na barriga ” (EVARISTO, 2016, p. 30). Vítima de violência como tantas outras mulheres, Ana teve aquele sonho de maternidade interrompido.

O desfecho da história de Ana, do conto Amor, não é violento como de Ana Davenga, porém a personagem retorna para tudo aquilo que representa a vida moldurada

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que muitas mulheres têm por seguirem aprisionadas ou conformadas aos padrões da sociedade. “ A noite já estava chegando e afligida por um sentimento de culpa, a mulher volta para casa correndo, sem esquecer tudo o que havia acontecido durante o caminho”. Mesmo depois de um abraço apertado no filho, ela não consegue esquecer o quanto a vida é perigosa e refletir o que decorreria caso acompanhasse o chamado do cego.

Mais tarde, depois de jantar com o marido, os filhos, e o resto da família em um momento de harmonia, a protagonista começa a pensar sobre a sua família, dessa forma, recupera gradualmente a sensação de conforto que o lar lhe trazia: “Ana prendeu o instante entre os dedos antes que ele nunca mais fosse seu” (LISPECTOR, 2016, p .154). A protagonista encerra a narrativa quando “sopra a pequena flama do dia”, após um período de reflexão e tomada de consciência, retoma a sua vida e rotina doméstica.

Conclusão

Por meio da análise feita das personagens Ana Davenga e Ana, do conto Amor, conclui-se que ambas tiveram seus destinos ainda ligados ás normas regidas pelo patriarcado. Mesmo dispondo do poder de escolha e liberdade antes do casamento, como no caso de Ana Davenga, ou no caso de Ana, do conto Amor, que teve uma intensa reflexão sobre a vida sem felicidade que levava, as personagens sofreram com consequências de suas escolhas. Ana Davenga teve sua vida violentamente interrompida por ter escolhido o envolvimento com o chefe do tráfico, enquanto Ana, do conto Amor, voltou a sua rotina de infelicidade. Vidas marcadas por opressão e um ciclo de submissão que permaneceu.

É notória a importância dessa literatura e da escrita feminina, seja como meio de despertar a consciência crítica ao apresentar como esses valores patriarcais são fortes, ou como uma reafirmação da personalidade e individualidade feminina. As autoras, ao realizarem a construção das personagens marcadas pela “condição de mulher”, permitem que seja feita uma denúncia mostrando como os valores regidos pela ideia de superioridade masculina e a inferioridade feminina ainda são fortes não só nas personagens em questão, mas na realidade de muitas mulheres, pois apesar de tantas conquistas, é necessário que se continue com as lutas por respeito, mais oportunidades profissionais, igualdade, prestigio, boas remunerações no mercado de trabalho.

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Referências

ANDRADE, Isabella de. O universo feminino de Clarice Lispector. Disponível em: http://www.correiobraziliense.com.br/app/noticia/diversao-e-arte . Acesso em: 10 de set. 2017. BERND, Zilá. Introdução à literatura negra. São Paulo: Brasiliense, 1988.

DUARTE, Eduardo Assis (Org.) Literatura e afrodescendência no Brasil: antologia crítica. Belo Horizonte: UFMG, 2011.

EVARISTO, Conceição. Olhos d’água.Pallas:2016. LISPECTOR, Clarice. Todos os contos. Rocco: 2016.

MACHADO, Bárbara Araújo. "Recordar é preciso": Conceição Evaristo e a intelectualidade negra no contexto do movimento negro brasileiro contemporâneo (1982-2008). Dissertação (Mestrado em História) Universidade Federal Fluminense, Niterói,2014. Disponível em : < http://www.historia.uff.br/stricto/td/1824.pdf> . Acesso em : 10 de set. 2017.

ROCHA,Patrícia. Mulheres sob todas as luzes: a emancipação feminina e os últimos dias do patriarcado. Belo Horizonte: Editora Leitura, 2009.

SILVA. Ana Rita Santiago da. A Literatura de escritoras negras: uma voz (Des) silenciadora e emancipatória. Interdisciplinar Ano 5, v. 10, jan-jun de 2010. p. 175-188. Disponível em: < https://seer.ufs.br/index.php/interdisciplinar/article/viewFile/1264/1100 > . Acesso em: 10 de set.2017.

ZOLIN, Lúcia Osana. Literatura de Autoria Feminina. In BONNICI, Thomas e ZOLIN, Lúcia Osana (Org.) Teoria Literária: Abordagens Históricas e Tendências Contemporâneas. 3ª ed. Maringá: Eduem, 2009.

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