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EDUCAÇÃO DO E NO CAMPO ENQUANTO TERRITÓRIO IMATERIAL: UMA POSSIBILIDADE DE RESISTÊNCIA DIANTE DA OFENSIVA DO CAPITAL NO BRASIL

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EDUCAÇÃO DO E NO CAMPO ENQUANTO TERRITÓRIO

IMATERIAL: UMA POSSIBILIDADE DE RESISTÊNCIA DIANTE

DA OFENSIVA DO CAPITAL NO BRASIL

PUZIOL, Jeinni Pereira Puziol (UEM/Bolsista CAPES) SILVA, Irizelda Martins de Souza (Orientador/UEM) CECÍLIO, Maria Aparecida (Co-Orientadora/UEM)

Introdução

Este ensaio é proveniente das discussões realizadas na disciplina de Políticas Educacionais Públicas no Brasil, pertencente ao Programa de pós-graduação em Educação da Universidade Estadual de Maringá. Tem como objetivo geral discutir e analisar como a Educação do Campo, enquanto Território Imaterial, a partir dos veios contraditórios do capital, pode auxiliar no processo de resistência da sociedade diante das condições de subalternidade econômica, política e social acentuada no Brasil a partir da década de 1990 junto à nova ordem produtiva do capital.

Para tal análise e discussão, busca-se, num primeiro momento, resgatar o contexto brasileiro da década de 1990, período de rupturas importantes para a sociedade brasileira. Destaca-se o Plano Diretor da Reforma do Aparelho do Estado (1995), o Discurso de Posse de Fernando Henrique Cardoso (1995), afim de demonstrar sua consonância com a ordem produtiva global instalada mundialmente a partir da década de 1970 e, sua influência específica no âmbito educacional, especificamente no teor das políticas propostas para a educação baseadas hegemonia neoliberal.

Evidenciado o contexto econômico e político no qual emergem as políticas educacionais, objetiva-se discutir como a educação é tratada pelo Estado, ou seja, o caráter mercadológico a ela destinado, vinculado as demandas da economia nacional e com a qualidade mensurada a partir de dados meramente quantitativos. Em específico, este artigo visa se pautar especificamente na educação do campo, a educação destina as populações que residem na área rural brasileira.

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A educação do campo faz parte da luta histórica do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), um movimento social que questiona a situação econômica do campo brasileiro e atrelado a isso a situação política e social da população, bem como a educação a ela destinada. O MST tem atuado com um sujeito pedagógico e lutado por uma educação do campo dotada de intencionalidade no processo de formação dos educandos. Os veios contraditórios da sociedade capitalista são aproveitados pelos movimentos sociais que junto ao conhecimento buscam resistir às investidas do capital que consideram o campo como algo residual e resumem a educação do campo ao transporte para a escola da cidade.

O referencial teórico-metodológico do trabalho está pautado na relação dialética entre o modo de produção capitalista e todas as representações sociais da sociedade. As analises aqui mediadas estão pautadas em documentos governamentais e também em artigos e pesquisas de autores que objetivam compreender a educação e a educação do campo no interior da realidade econômico, política e social da atualidade.

Reforma do Aparelho do Estado

Na década de 1990, principalmente, os Estados Nacionais procuraram se adequar as mudanças econômicas, políticas e sociais mundiais que estavam se reorganizando desde meados de 1970. O Estado burguês, único que possibilita a reprodução das relações produtivas capitalistas, promoveu a desregulamentação não somente do mercado de trabalho, mas da sociedade como um todo, justificada pela necessidade de potencializar o desempenho econômico (SAES, 1998).

O Estado capitalista teve suas funções e atribuições modificadas em nome das transformações e readequações do modo de produção do capital. A ideologia neoliberal, defendida desde meados do século XX por Friedrich Hayek (1899-1992), é adotada para legitimar o Estado mínimo para social configurado após a reestruturação produtiva. Para Anderson apud Crocetti (2004, p. 06):

Tudo que podemos dizer é que este é um movimento ideológico, em escala verdadeiramente mundial, como o capitalismo jamais havia produzido no passado. Trata-se de um corpo de doutrina coerente,

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autoconsciente, militante, lucidamente decidido a transformar todo o mundo à sua imagem, em sua ambição estrutural e sua extensão internacional.

A referida reestruturação produtiva do capital, ou seja, a passagem da acumulação rígida (fordista-taylorista) para a acumulação flexível (toyotista) – sob a égide do capital financeiro - transformou o cenário mundial por meio de mudanças econômicas, políticas, sociais e culturais. A “Era de Ouro”, caracterizada pelo capital monopolista, baseado no binômio taylorismo/fordismo1, de caráter rígido pautado na produção em massa, entrou em decadência nas décadas de 1960 e 1970 e culminou com o fim da longa onda expansiva de crescimento econômico e taxas de lucro compensadoras entre o fim da Segunda Guerra Mundial (1939 – 1945) e a segunda metade da década de 1960 (HOBASBAWM, 1995). No período áureo do capital monopolista:

[...] a produção em larga escala encontraria um mercado em expansão infinita e a intervenção reguladora do Estado haveria de controlar as crises. Anunciava-se um capitalismo sem contradições, apenas conflitivo – mas no quadro de conflitos que seriam resolvidos à base do consenso, capaz de ser construído mediante os mecanismos da democracia representativa (NETTO; BRAZ, 2007, p. 212).

A ilusão de um capitalismo sem contradições teve seu fim com a redução da onda de crescimento econômico e a queda das taxas de lucro com a crise de superprodução e o choque do petróleo. Na primeira metade da década de 1970, a influência candente das mudanças na organização produtiva do trabalho capitalista (a crise da organização do trabalho fordista-taylorista e a emergência da organização do trabalho toyotista) refletiu no movimento da contracultura, no movimento feminista, na revolta estudantil e no retrocesso do movimento operário provocado pela ofensiva do

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Taylorismo: “Conjunto das teorias para o aumento da produtividade do trabalho fabril, elaboradas pelo engenheiro norte-americano Frederick Winslow Taylor (1856-1915). Abrange um sistema de normas voltadas para o controle dos movimentos do homem e da máquina no processo de produção” (SANDRONI, 2000, p. 306). Fordismo: “Conjunto de métodos de racionalização da produção elaborados pelo industrial norte-americano Henry Ford, baseado nos princípios de que uma empresa deve dedicar-se apenas a um produto. [...] para diminuir os custos, a produção deveria ser em massa, a mais elevada possível e aparelhada com tecnologia capaz de desenvolver ao máximo a produtividade por operário. O trabalho deveria ser também altamente especializado, cada operário realizando determinada tarefa” (SANDRONI, 2000, p. 128-129).

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capital na produção. Naqueles anos de grande agitação política e social, a ilusão de um capitalismo sem contradições caiu por terra. Conforme os autores Netto e Braz (2007):

[...] a onda longa expansiva é substituída por uma longa onda recessiva: a partir daí e até os dias atuais, inverte-se o diagrama da dinâmica capitalista, agora, as crises voltam a ser dominantes, tornando-se episódicas as retomadas (p. 214).

Começaram a ser introduzidas alterações nos circuitos produtivos baseados na acumulação flexível do capital em detrimento da acumulação rígida anterior. Harvey (1993, p. 140) pontua que: “[...] a acumulação flexível [...] se apóia na flexibilidade dos processos de trabalho dos mercados de trabalho, dos produtos e padrões de consumo”.

Na base da flexibilidade se buscou criar uma nova lógica produtiva capaz de lidar com a instabilidade do crescimento econômico mundial e com o mercado restrito, atendendo às particularidades do consumo. Da crise dos mercados de massa, buscou-se uma produção voltada para os nichos de mercado. Dessa forma, procurou-se uma fuga da padronização até então existente e promoveu-se uma desconcentração industrial que desterritorializou a produção na busca por mão de obra de baixo preço, intensificando a exploração da força de trabalho e a consequente desregulamentação de suas relações.

A obsessão por novos mercados impulsionou a globalização do capital. A organização flexível da produção permitiu maior fluidez e agilidade do capital em movimento sob as condições de um capitalismo global instável, marcado pela financeirização da riqueza capitalista e instabilidade política crescente. No lugar da sociedade nacional, surge a sociedade global. Realidades e problemas nacionais mesclam-se com as realidades e os problemas mundiais, ou seja, o local, regional, nacional ou mesmo continental entram no jogo das relações internacionais. As atuações do mercado financeiro permeiam a sociedade global em todos os âmbitos e promovem sua fragmentação. De acordo com Santos (2008):

A globalização é, de certa forma, o ápice do processo de internacionalização do mundo capitalista (p, 23). Hoje, [...], pode-se dizer que a totalidade da superfície da terra é compartimentada, não apenas pela ação direta do homem, mas também pela sua presença política. Nenhuma fração do planeta escapa a essa influência. [...] Com a globalização, todo e qualquer pedaço da superfície da Terra se

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torna funcional às necessidades, usos e apetites de Estados e empresas nesta fase da história (p. 81).

No interior da reestruturação produtiva do capital, também foi realizada a destruição da política de proteção social do Welfare State2, marcado pelo enfraquecimento dos sindicatos, ausência de legislações trabalhistas e flexibilização do mercado de trabalho, acirrados pela adoção do modelo neoliberal. De acordo com Laurell (2002, p. 04):

As estratégias concretas idealizadas pelos governos neoliberais para reduzir a ação estatal no terreno do bem-estar social são a: privatização do financiamento e da produção dos serviços; cortes dos gatos sociais, elimininando-se programas e reduzindo-se benefícios; canalização dos gastos para os grupos carentes; e a descentralização em nível local.

Embora no Brasil não tenha se concretizado o Welfare State como nos países desenvolvidos, a adoção das medidas neoliberais foram tomadas de igual de maneira se não de forma mais brusca. A eleição de Fernando Henrique Cardoso em 1995 representou a incorporação máxima das orientações neoliberais para o mercado e a sociedade. Na leitura do discurso do presidente supracitado verificou-se a incorporação massiva dos ideais neoliberais em todos os âmbitos (econômico, político, social, cultural, etc.) de forma bastante clara. Por meio das palavras utilizadas, observou-se as origens teóricas e pessoais do então Presidente da República, o que influiu diretamente sobre o seu modelo de gestão do país. Lê-se do referido discurso:

[...] a realização de um projeto nacional consistente de desenvolvimento deve nos fortalecer crescentemente no cenário internacional. O momento é favorável para que o Brasil busque urna participação mais ativa nesse contexto. Temos identidade e valores permanentes, que hão de continuar se expressando em nossa política externa. Continuidade significa confiabilidade no campo internacional. Mudanças bruscas, desligadas de uma visão de longo prazo, podem satisfazer interesses conjunturais, mas não constroem o perfil de um Estado responsável. Não devemos, contudo, ter receio de

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“Sistema econômico baseado na livre-empresa, mas com acentuada participação do Estado na promoção de benefícios sociais. Seu objetivo é proporcionar ao conjunto dos cidadãos padrões de vida mínimos, desenvolver a produção de bens e serviços sociais, controlar o ciclo econômico e ajustar o total da produção, considerando os custos e as rendas sociais” (SANDRONI, 2000, p. 112).

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inovar quando os nossos interesses e valores assim indicarem. Numa fase de transformações radicais, marcada pela redefinição das regras de convivência política e econômica entre os países, não podemos, por mero saudosismo, dar as costas aos rumos da História. Temos, sim, que estar atentos a eles para influenciar o desenho da nova ordem. É tempo, portanto, de atualizar nosso discurso e nossa ação externa, levando em conta as mudanças no sistema internacional e o novo consenso interno em relação aos nossos objetivos. É tempo de debater às claras qual deve ser o perfil do Brasil, como Nação soberana, neste mundo em transformação, envolvendo no debate a Chancelaria, o Congresso, a universidade, os sindicatos, as empresas, as organizações não-governamentais. Vamos aposentar os velhos dilemas ideológicos e as velhas formas de confrontação, e enfrentar os temas que movem a cooperação e o conflito entre os países nos dias de hoje: direitos humanos e democracia; meio ambiente e desenvolvimento sustentável; as tarefas ampliadas do multilateralismo e os desafios da regionalização; a dinamização do comércio internacional e a superação das formas de protecionismo e unilateralismo. Outros temas centrais são o acesso à tecnologia, os esforços de não-proliferação e o combate às formas de criminalidade internacional (1995).

O fragmento do discurso do presidente já demonstrava em sua posse o caráter das medidas que iriam ser tomadas em seu governo. A confiabilidade do campo internacional é exaltada mediante os novos ideais de globalização dos espaços. Verifica-se a introdução clara do neoliberalismo por meio dos esquemas de integração ligados aos blocos econômicos. A liberdade do mercado é acentuada para o bom funcionamento da sociedade. E ao mesmo tempo em que valoriza-se as relações internacionais, ressalta-se a importância de construir e fortalecer um Estado Nacional Soberano.

A Reforma do Aparelho do Estado brasileiro é aclamada para o cumprimento dos preceitos do laboratório de ideais neoliberais. De acordo com o Plano Diretor de Reforma do Aparelho do Estado (1995): “[...] o Estado reduz seu papel de executor ou prestador direto de serviços, mantendo-se entretanto no papel de regulador e provedor ou promotor deste, principalmente dos serviços sociais” (BRASIL, 1995).

É possível distinguir quatro setores no novo aparelho do Estado, o Núcleo Estratégico que “corresponde ao governo, em sentido lato”; as Atividades Exclusivas que “é o setor em que são prestados serviços que só o Estado pode realizar”; os Serviços Não Exclusivos que “corresponde ao setor onde o Estado atua simultaneamente com outras organizações não-estatais e privadas”; e a Produção de Bens e Serviços para o

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Mercado que “corresponde à área de atuação das empresas”. A educação está localizada nos Serviços Não Exclusivos, e entre os seus objetivos temos:

Transferir para o setor público não-estatal estes serviços, através de um programa de “publicização”, transformando as atuais fundações públicas em organizações sociais, ou seja, em entidades de direito privado, sem fins lucrativos, que tenham autorização específica do poder legislativo para celebrar contrato de gestão com o poder executivo e assim ter direito a dotação orçamentária (BRASIL, 1995, p. 46-47).

O caráter mercadológico dado as questões sociais é a prova da incorporação das políticas internacionais no cenário brasileiro. Para Netto e Braz (2007, p. 245): “O esvaziamento das estâncias democráticas acompanha a reconversão do Estado em serviçal de um mercado que, de fato, é manipulado por uma oligarquia financeira mundial”. A década de 1990 demonstra claramente a redefinição dos limites entre o público e o privado (PERONI, 2003).

Educação do e no Campo

O poder, presente na dialética do mundo concreto, é exercido de incontáveis lugares. As relações econômicas, políticas e sociais representam intrinsecamente as relações de poder que dão vida ao modo de produção capitalista (Raffestin, 1993). O território camponês expressa uma materialidade inserida nas desigualdades inerentes ao modelo capitalista de produção, e, portanto, com possibilidades de se opor à dominação que lhe é imposta. Como bem analisou Ianni (1982, p. 30) sobre a natureza do capital na obra de Marx:

[...] o capitalismo não é nem estável, nem homogêneo, mas essencialmente desigual e contraditório; uma forma antagônica de desenvolvimento das forças produtivas e das relações de produção. É verdade que o capitalismo é um sistema de mercantilização universal das relações, gentes e coisas. Mas isto não significa que ele equalize ou homogeneíze tudo e todos. Ao contrário, o mesmo processo de mercantilização universal cria e desenvolve desigualdades, desequilíbrios e antagonismos.

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O desenvolvimento territorial só será efetivo na contramão da hegemonia da sociedade se os povos do campo forem protagonistas dessa mudança. A educação do campo significa construir o seu próprio pensamento diante do cotidiano que representa sua vida e realidade. O campo, enquanto território de resistência e vida, fundamenta a construção da sua educação, expressão da luta dos camponeses pela construção de um projeto de campo digno e que considere as diferencialidades deste.

Os veios contraditórios inerentes ao modo de produção capitalista abrem espaço para a contestação da exploração e dominação da classe hegemônica sobre a classe subalterna. Os novos componentes da engrenagem capitalista propõem uma reorganização espacial dos territórios, viabilizam novas formas de acumulação e exploração, ao passo que acirram as desigualdades e, consequentemente, possibilitam a ascensão das camadas sociais subalternas na negação da dominação imposta, expressa nas lutas sociais. As lutas pela terra e pela reforma agrária realizadas pelo MST demonstram a contestação popular diante da acumulação e exploração econômica capitalista. A instabilidade do capital é o caminho para os movimentos sociais que não consentem as relações de opressão do capital. Para Harvey (2005, p. 87), “[...] a paisagem da atividade capitalista está eivada de contradições e tensões [...] é perpetuamente instável diante de todos os tipos de pressões técnicas e econômicas que sobre ela incidem”.

A Educação deve ser pensada para a realidade específica do território camponês e se constitui, portanto, como um território imaterial que está relacionado ao controle e domínio dos processos de construção do conhecimento. Produzir e reproduzir determinado território só é possível pelo conhecimento e ação de seus sujeitos. As intencionalidades são materializadas nas disputas provenientes das conflitualidades e é pela teoria, educação e cotidiano que se compreendem tais processos e torna-se possível questionar e propor novas formas de vivência.

A Educação do Campo, prioridade histórica e política do MST, realiza a formação dos sem terra com funções intelectuais que não incorporem uma educação vinda de fora, mas que estes se tornem “sujeitos de sua própria pedagogia” (CALDART, 2004, p. 312). Questionam-se a educação oferecida às populações do campo, a precariedade dos transportes e dos salários, professores leigos e sem preparo

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para atuar no meio rural, materiais didáticos e pedagógicos fora da realidade, entre outras questões. A escola localizada no campo e tratada de forma residual é adaptada à escola urbana.

Desde 1997, com o Encontro Nacional de Educadoras e Educadores da Reforma Agrária – ENERA, e depois em 1998, com a I Conferência Nacional Por uma Educação Básica do Campo, foi quebrado o silenciamento do campo em relação à negação ao direito à educação digna para as populações desse espaço. Desencadeou-se um novo olhar para o campo. Nos territórios conquistados e ainda em processo de conquista pelos sem terra são discutidas a importância da educação e a luta por uma escola diferente da oferecida ou imposta até então.

A aprovação das Diretrizes Operacionais para a Educação Básica do Campo, em 2001, representou um passo importante na luta pela educação do campo no interior da complementaridade entre campo e cidade. Para Fernandes (2004, p. 136): “A aprovação das Diretrizes representa um importante avanço na construção do Brasil rural, de um campo de vida, onde a escola é espaço essencial para o desenvolvimento humano”. O autor ainda ressalta que o campo não é somente o lugar da produção agrícola, mas o espaço de inúmeras populações, e, portanto, de vida e, sobretudo, de educação (FERNANDES, 2004).

Nas referidas Diretrizes (Brasil, 2001), pode-se verificar um olhar diferente para a Educação do Campo do que até então era colocado pela legislação que tratava da educação rural. Uma vitória pode ser aclamada pela luta popular em conseguir levar o modelo de educação que contribua com o desenvolvimento do campo para a legislação brasileira. Lê-se no parágrafo único do artigo 2º:

A identidade da escola do campo é definida pela sua vinculação às questões inerentes à sua realidade, ancorando-se na temporalidade e saberes próprios dos estudantes, na memória coletiva que sinaliza futuros, na rede de ciência e tecnologia disponível na sociedade e nos movimentos sociais em defesa de projetos que associem as soluções exigidas por essas questões à qualidade social da vida coletiva no país (BRASIL, 2001).

A intencionalidade no processo de formação que está no próprio caráter do MST, além da luta pelo cumprimento de sua tarefa histórica, entendido com a produção

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de alimentos nos latifúndios improdutivos, e a busca pela formação de seres humanos que entendam e contestem práticas sociais impostas pela sociedade vigente começam a ser traduzidas na legislação brasileira e representam um trunfo para as populações do campo. A educação do campo ganha novos contornos e dimensões e representa importante grito em meio ao esquecimento sofrido pelo campo. Para Arroyo; Caldart; Molina (2004, p. 12-13):

A Educação do Campo traz, então, uma grande lição e um grande desafio para o pensamento educacional: entender os processos educativos na diversidade de dimensões que os constituem como processos sociais, políticos, culturais; formadores do ser humano e da própria sociedade.

Entretanto, é importante não perder de vista que o Estado viabiliza a construção da educação básica do campo, por meio das legislações, mas são os próprios sujeitos que devem construir o conhecimento com base em sua realidade e vivência. Como analisaram Fernandes; Molina (2005, p. 9): “Esse projeto não deverá ser criado pelo Estado, mas sim pelos grupos sociais interessados. Para que possam construir e ter controle sobre os conhecimentos e do desenvolvimento de tecnologias apropriadas aos distintos territórios”. O Estado tem papel fundamental no processo para garantir a realização das propostas, mas a sociedade deve estar atenta a todo processo.

A construção e aprovação das diretrizes representam a demarcação de um território teórico, é a tentativa de defender, a partir de sua realidade, seu espaço de vivência. Busca-se pensar a educação do campo a partir do campo, e não da cidade, como tem sido feito. Uma educação do campo vinculada à História e sua vivência está no próprio caráter pedagógico do MST. A prática educacional do movimento social não se fundamenta estritamente nas relações pedagógicas (educador e educando), mas na própria dinâmica social, na qual cabe ressaltar a reciprocidade entre as práticas educativas e a dinâmica da sociedade. Além do conhecimento sistemático representado pela educação formal, existe também o aprendizado presente nas próprias lutas do Movimento, por meio da ocupação da terra, reuniões, manifestações públicas, vida nos acampamentos, enfrentamentos, entre outros. O trabalho é, também, um princípio educativo (Gramsci, 1985). É de extrema importância a sintonia entre a escola e as

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mudanças do território local, pois as novas necessidades geram as bases para a formação profissional de acordo com o modo de vida e o trabalho em constante transformação.

Diante do exposto, fica evidente o caráter imaterial da educação do campo e o poder que abriga em suas bases. A imaterialidade que movimenta a realidade está presente em todos os territórios, inclusive no campo. Fernandes (2009, p. 15), ao analisar tais questões, evidencia:

O território imaterial está presente em todas as ordens de territórios. O território imaterial está relacionado com o controle, o domínio sobre o processo de construção do conhecimento e suas interpretações. Portanto, inclui teoria, conceito, método, metodologia, ideologia etc. [...] A produção material não se realiza por si, mas na relação direta com a produção imaterial. Igualmente, a produção imaterial só tem sentido na realização e compreensão da produção imaterial.

Os territórios imateriais representam a base de sustentação de todos os territórios. São os territórios imateriais que materializam, por meios das lutas, novas formas de vida. O MST, como sujeito pedagógico, produz e transforma identidades ao longo de sua trajetória histórica com diferentes vivências e realidades que dão vida ao “movimento do Movimento” (CALDART, 2004). A história deste e a pedagogia são transformadas constantemente e procuram consolidar uma pedagogia do Movimento e não para o Movimento. De acordo com as reflexões de Caldart (2004, p. 317):

O MST junta em si esses dois sujeitos, o que torna, parece-me, um objeto bastante privilegiado de estudo também nesse campo. Trata-se aqui, pois, de compreender uma pedagogia do Movimento e não para o Movimento, no duplo sentido de ter o Movimento como sujeito educativo e como sujeito de reflexão (intencionalidade pedagógica) sobre sua própria tarefa de fazer educação ou formação humana.

É nesse sentido que o MST, por meio da Educação do Campo e da valorização no cotidiano, atua na construção de “contra-racionalidades” dos lugares e dos territórios (MÉSZÁROS, 2005). Por meio das manifestações, tem-se a contraface ao pragmatismo envolvido por um denso sistema ideológico. O Movimento tornou-se uma organização popular que luta pela conquista de territórios e sua contínua transformação. São os

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sujeitos inseridos nas disputas territoriais que constroem novas realidades por meio de sua intencionalidade. De acordo com Fernandes (2009, p. 4):

As disputas territoriais são, portanto, de significação, das relações sociais e de controle dos diferentes tipos de território pelas classes sociais. O território, compreendido apenas como espaço de governança, é utilizado como forma de ocultar os diversos territórios e garantir a manutenção da subalternidade entre relações e territórios dominantes e dominados. O território compreendido pela diferencialidade pode ser utilizado para a compreensão das diversidades e das conflitualidades das disputas territoriais.

A Educação, como parte do mundo histórico-social, é uma construção que dá vazão às mudanças que se operam na organização social. Concebidas as contradições inerentes ao modo de produção e, consequentemente, as possibilidades de resistência ao que é imposto, a Educação, vertente que abriga as lutas de classes, pode ser usada para auxiliar na perpetuação da ordem vigente, ou para buscar novas realidades, sem perder de vista que:

[...] no modo de produção capitalista, ela [Educação] tem uma especificidade que só é inteligível no contexto das relações sociais resultantes dos conflitos das duas classes fundamentais. Assim, considerar a educação na sua unidade dialética com a sociedade capitalista é considerá-la no processo das relações de classe, enquanto essas são determinadas, em última instância, pelas relações de produção (CURY, 1992, p. 13).

Relacionando todo o contexto econômico e político da década de 1970 até a atualidade com tipo de educação disseminada, Laurell (2002) traz compreensões importantes sobre o papel das minorias e excluídos que lutam pela contestação e mudança da realidade que vivenciam baseada nos veios contraditórios do capital e de sua nova ideologia. Para Laurell (2002, p. 14):

[...] as próprias implicações do projeto neoliberal minam suas possibilidades de êxito. Já se delineia um novo cenário político em que, sob formas diversas e frequentemente espontâneas, estão se confrontando grandes contingentes – unidos pelo empobrecimento e pela falta de esperança – com pequenas minorias – vertiginosamente enriquecidas e investidas do poder que emana do controle sobre as

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decisões econômicas. Este confronto mostra, aliás, o quanto estão equivocadas aqueles que acreditam que tenhamos chegado ao fim da história ou mesmo à implantação estável do projeto neoliberal na América Latina.

Considerações finais

Os limites do poder das palavras, ou seja, do conhecimento, devem ser reconhecidos frente à lógica econômica dominante da sociedade do capital. Entretanto, o protagonismo das lutas populares prova que é possível questionar e tencionar as engrenagens do modo de produção capitalista e se contrapor aos poderes hegemônicos que tendem a dominar a maior parte dos territórios. A contradição corrente do processo de globalização, característico da sociedade atual, demonstra que ainda é possível fragmentar territórios e ousar a se pensar novas formas de organização sócio-espacial.

Os avanços na legislação brasileira evidenciam o crescimento da educação do campo no cenário nacional, proveniente das lutas travadas pelo movimento social contra a ofensiva do capital. O MST mostra-se preocupado com a condição intelectual de sua população e vê no conhecimento um dos caminhos para obedecer e subsistir e, ao mesmo tempo, resistir às investidas da dominação do capital, propondo projetos futuros. A vivência cotidiana das populações camponesas estrutura a construção da educação do campo, que, para além da realidade urbana escolar, tem no trabalho e no cotidiano, práticas educativas de grande importância.

Diante de um mundo confusamente percebido, em meio ao aprofundamento dos problemas sociais, ainda é possível visualizar, junto ao movimento social e à educação do campo, alternativas dentro da conjuntura imposta pela lógica global. O conhecimento pode ser apropriado de diversas formas de acordo com as diversas realidades sócio-espaciais, considerando suas singularidades; assim, visualiza-se a educação do campo ajudando na recriação do território camponês, não apenas restrito aos assentamentos e acampamentos, mas no interior do campesinato como um todo.

É válido esclarecer que a prática educativa não é aqui entendida como a solução para os problemas da sociedade burguesa em vigência, mas como instrumento de luta que objetiva desvendar, pela raiz, o caráter alienante do discurso hegemônico e construir novas consciências a partir da realidade material que se constitui sob o modo de

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produção capitalista. Em suma, a educação do campo é uma construção teórica essencial para o desenvolvimento da resistência do território camponês em meio à lógica globalizante que ignora as minorias.

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Referências

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